Psicologia USP - Conhecimento e Razão Instrumental

9
More More Services on Demand Article Article in xml format Article references How to cite this article Curriculum ScienTI Automatic translation Send this article by email Indicators Cited by SciELO Access statistics Related links Share Permalink Psicologia USP Print version ISSN 01036564 Psicol. USP vol. 8 n. 1 São Paulo 1997 http://dx.doi.org/10.1590/S010365641997000100002 CONHECIMENTO E RAZÃO INSTRUMENTAL Franklin Leopoldo e Silva Departamento de Filosofia Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas USP Este texto trata de alguns aspectos que julgamos importantes para o entendimento da noção de razão instrumental. Focalizamos numa primeira parte alguns temas inscritos na fundação filosófica da modernidade, visando assim fornecer subsídios para a compreensão da história crítica da razão feita por Adorno e Horkheimer. Procuramos também tratar de pontos estratégicos para a abordagem dialética do Iluminismo, com a finalidade de esclarecer a necessidade, posta pelos autores, da consideração das contradições presentes no desenvolvimento da razão iluminista, tais como progresso/regressão e autonomia/dominação. Descritores: Iluminismo. Razão instrumental. História. Teoria. Crítica. Quem quer que ainda seja capaz de lançar um olhar crítico ao mundo contemporâneo não poderá certamente deixar de se surpreender ao comparar os resultados do processo histórico da modernidade com o projeto que se pode inferir das pretensões de nossos ancestrais fundadores. Bacon e Descartes situamse nesta relação de paternidade exatamente porque propuseram os meios racionais de emancipação do homem em relação às forças da natureza e aos dogmas estabelecidos por instâncias de autoridade alheias ao domínio da pura razão. Tais meios racionais constituem os procedimentos de conhecimento da realidade em todos os seus aspectos. Conhecer emancipa porque o conhecimento traz consigo o domínio da realidade. Da submissão ao senhorio sobre a natureza é pois a trajetória que caracteriza a passagem do arcaico ao moderno, do primado do mundo exterior à primazia de um sujeito livre que se situa perante o mundo na posição de um juiz que é ao mesmo tempo um senhor. As duas atribuições vinculamse ao saber cujo único instrumento é a razão. Afirmase assim um poder indefinido de exploração intelectual da realidade que tem como conseqüência necessária o domínio técnico da natureza. Em princípio, nenhum elemento haveria neste quadro que pudesse causar estranheza ao homem do nosso século, habituado às conquistas tecnológicas derivadas do progresso da ciência e à marcha acelerada que caracteriza o domínio da terra por via das criações do engenho humano. Entretanto, se nos detivéssemos numa análise mais precisa deste pensamento que se constituiu na alvorada dos tempos modernos, duas coisas poderiam talvez causar inquietação. A primeira é o caráter utópico de certas propostas de organização social do trabalho científico que acompanham e mesmo ilustram a pretensão de domínio racional. Em Bacon, textos como a Nova Atlântida descrevem, na forma da utopia, uma civilização extremamente equilibrada, totalmente calcada na busca e organização do saber em todos os domínios, do que resulta o estado de felicidade desfrutado por todos os habitantes. O segundo motivo de inquietação deriva da maneira como Descartes pretendia integrar as

description

ARTIGO

Transcript of Psicologia USP - Conhecimento e Razão Instrumental

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 1/9

    MoreMore

    ServicesonDemand

    Article

    Articleinxmlformat

    Articlereferences

    Howtocitethisarticle

    CurriculumScienTI

    Automatictranslation

    Sendthisarticlebyemail

    Indicators

    CitedbySciELO

    Accessstatistics

    Relatedlinks

    Share

    Permalink

    PsicologiaUSPPrintversionISSN01036564

    Psicol.USPvol.8n.1SoPaulo1997

    http://dx.doi.org/10.1590/S010365641997000100002

    CONHECIMENTOERAZOINSTRUMENTAL

    FranklinLeopoldoeSilvaDepartamentodeFilosofia

    FaculdadedeFilosofia,LetraseCinciasHumanasUSP

    Estetextotratadealgunsaspectosquejulgamosimportantespara o entendimento da noo de razo instrumental.Focalizamos numa primeira parte alguns temas inscritos nafundao filosfica da modernidade, visando assim fornecersubsdiosparaacompreensodahistriacrticadarazofeitapor Adorno e Horkheimer. Procuramos tambm tratar depontosestratgicosparaaabordagemdialticadoIluminismo,com a finalidade de esclarecer a necessidade, posta pelosautores, da considerao das contradies presentes nodesenvolvimento da razo iluminista, tais comoprogresso/regressoeautonomia/dominao.Descritores:Iluminismo.Razoinstrumental.Histria.Teoria.Crtica.

    Quemquerqueaindasejacapazde lanarumolharcrticoaomundocontemporneonopodercertamentedeixardesesurpreenderaocompararosresultadosdoprocessohistricodamodernidadecomoprojetoquesepodeinferirdaspretensesdenossosancestraisfundadores.BaconeDescartessituamsenestarelaodepaternidade exatamente porque propuseram os meios racionais de emancipao do homem em relao sforasdanaturezaeaosdogmasestabelecidosporinstnciasdeautoridadealheiasaodomniodapurarazo.Taismeios racionais constituemos procedimentos de conhecimento da realidade em todos os seus aspectos.Conhecer emancipa porque o conhecimento traz consigo o domnio da realidade. Da submisso ao senhoriosobreanaturezapoisatrajetriaquecaracterizaapassagemdoarcaicoaomoderno,doprimadodomundoexteriorprimaziadeumsujeito livrequesesituaperanteomundonaposiodeumjuizqueaomesmotempoumsenhor.Asduasatribuiesvinculamseaosabercujonicoinstrumentoarazo.Afirmaseassimumpoder indefinidodeexplorao intelectual da realidadeque temcomoconseqncianecessriaodomniotcnicodanatureza.

    Em princpio, nenhum elemento haveria neste quadro que pudesse causar estranheza ao homem do nossosculo, habituado s conquistas tecnolgicas derivadas do progresso da cincia e marcha acelerada quecaracterizaodomniodaterraporviadascriaesdoengenhohumano.Entretanto,senosdetivssemosnumaanlise mais precisa deste pensamento que se constituiu na alvorada dos tempos modernos, duas coisaspoderiamtalvezcausarinquietao.Aprimeiraocarterutpicodecertaspropostasdeorganizaosocialdotrabalhocientficoqueacompanhamemesmoilustramapretensodedomnioracional.EmBacon,textoscomoaNovaAtlntidadescrevem,naformadautopia,umacivilizaoextremamenteequilibrada,totalmentecalcadanabuscaeorganizaodosaberem todososdomnios,doque resultaoestadode felicidadedesfrutadoportodososhabitantes.OsegundomotivodeinquietaoderivadamaneiracomoDescartespretendiaintegraras

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 2/9

    vriaspartesquecompematotalidadeunitriadosaberhumano,definindoavinculaodoempreendimentotericocomassuasaplicaesprticasatravsdotermosabedoria.Aestaperfeitaintegraoentreateoriaea prtica assinalado omesmo objetivo proposto por Bacon: a consecuo da felicidade humana.Os ramosextremosdarvorequeemDescartesrepresentaosistemadosabersoamecnica,amedicinaeamoral,oque nos indica que o saber terico se complementa na sua aplicao harmnica s trs dimenses queconcorrem,noserhumano,paraafelicidade:odomniotcnicodanaturezapelasartesmecnicas,aextinodasdoenaseoprolongamentodavidaefinalmenteodomniointernodaspaixesquedevelevarserenidadedoesprito.

    Por que propsitos to razoveis aparecem hoje para ns como revestidos de um carter quase bizarro?Simplesmenteporqueahistriadamodernidademostrouaincompatibilidadeentreasduaspartesdoprojeto:aautonomia da razo e a conquista da felicidade.Mas responder destamaneira implica tambmem constatarqueumaharmonia inicial tornousehistoricamenteumconflito.Comefeito,tantoparaDescartesquandoparaBacon,nadadeveriaoporoexercciodaracionalidaderealizaodafelicidade,postoquenoprpriosentidodaorganizaoracionaldosaberjestariaincludooobjetivodobemestarhumanoemtodososaspectos.Estarelaoestpressupostacomoverdadeiranaprpriagnesedoprojetodeemancipaoracional,umavezqueoconhecimentospodelevarrealizaodaliberdade.Autopiabaconiananosignificaorelatodoimpossvel,mas exatamente a representao literria do possvel e a noo cartesiana de sabedoria expressasimplesmenteanecessidadedetotalizaoharmnicadetodasasdimensesdavidahumana.Istonoscolocadiantedeumproblemasingularmentedifcil:explicarcomoahistriaencarregousedetornarfalsoalgoqueopensamentoinstituiucomoverdadefundamental.

    A direo em que esta questo deve ser pensada tende a agravla sobremaneira, pois foi a trilha histricaseguida pela modernidade que aprofundou o conflito entre os elementos que se deveriam combinar e estepercursohistriconadamenosqueoprogresso.

    *

    Nada mais bvio do que a constatao de que a razo fator de progresso. O que caracteriza o avanohistrico da modernidade sobretudo o desenvolvimento da cincia e da tcnica, tornado possvel pelasperspectivasmetafsicasemetodolgicasinstitudasefundamentadasnosculoXVII,pelotrabalhodeGalileu,BaconeDescartes.Acompreensomaisaprofundadadoprocesso,noentanto,exigequeseperguntepelotipoderacionalidadequeseexerceunesteprogresso.Adistinoaserfeitacorrespondesduasfacesdoqueanteschamamosdeprojetodamodernidade.Vimosque,paraconceberumconhecimentoquelevasserealizaodafelicidade como conseqncia, tanto Bacon quanto Descartes tiveram de acoplar atividade de conhecer odomnio da realidade, pois a tcnica dominadora que estabelece condies para o aprimoramento da vida.Num primeiro momento, a inveno e a consolidao dos meios de dominao proporcionados peloconhecimento tarefa de uma racionalidade instrumental num segundo momento, o estabelecimento dasfinalidades a que tais meios deveriam servir para a consecuo dos fins constitui o objetivo de umaracionalidade prtica. Vse por a que, num projeto de emancipao autntico, as duas coisas soinseparveis, embora coordenem suas diferenas no prprio processo de expanso racional. Dominar anaturezaapropriarse,peloconhecimento,dosmeiosquepermitamcoloclaemharmoniacomasfinalidadeshumanas.Osignificadodopredomniodasubjetividadenainstauraodaculturamodernaaplenaassunodovalordequesedevemrevestirasfinalidadeshumanas.Arazocomomedidadetodasascoisasnotemaprincpio umestatuto apenas lgico,mas tambmaxiolgico, que se expressano reconhecimento dohomemcomovalor,apartirdesuacondiodeenteracional.

    Assim a modernidade parece traduzir para termos puramente racionais uma combinatria de origemaristotlica:arazotericaqueconheceeporestaviacriaosmeiosearazoprtica(nosentidodafronesisaristotlica)quedevediscernirosfins.Seriaacompletaintegraodestasduasperspectivasqueresultarianoque Descartes chamou de Sabedoria. Mas h um elemento complicador na prpria gnese deste projeto. Otrabalhodefundamentaodaatitudegalilaica,levadoaefeitoporDescartes,equeconstituiaelaboraodasbasesmetafsicas do conhecimento em sentidomoderno, tinha como um de seus alicerces uma idiamuitontida, que aos olhos de Descartes aparecia como um pressuposto absolutamente necessrio para que oconhecimentoviesseapossuirumcartersistemtico:aunidadedarazo.Compreendeseapreocupaodofilsofo. Jqueprecisoestabelecerumfundamento inquestionvelsobreoqual repousardoravante todooconhecimento, a consistncia e a completude do sistema que assim se edificar depende da solidez e daunidadedoseuprincpio.Somentedestamaneiraosujeitopodeconstituir,apartirdointelecto,acertezaquedevecaracterizara sua relaocomoobjeto.Renunciarunidadeda razoseria retornarsoscilaesquemarcavamumaconcepoprmetdicadeconhecimento,avariaoentrefundamentosensvelefundamentointelectual, que justamente havia suscitado a dvida e a tarefa de reforma da Filosofia. Mas da unidade darazo seguemse duas conseqncias necessrias: a unidade do mtodo e a unidade do objeto. Como amesma razo que se aplica nos vrios modos de conhecimento, e como se trata de estabelecer sempre omesmotipodecertezacujoparadigmaaevidnciamatemtica,spossvelconceberumnicomtodo.Ecomo a objetividade constituda a partir desta unidademetdica, seguese que um nico tipo de objeto adequado a um nico mtodo. Podese continuar falando numa diversidade de objetos (a alma, Deus, oscorpos),mas o conhecimento evidente supe a reduo desta diversidade de contedos a uma uniformidadeintelectual. De algumamaneira preciso abstrair da diversidade a unidade, para que haja correspondnciaentremtodoeobjeto.aprpriaunidadedoparadigmaqueexigeestareduo,jqueacertezamatemtica,isto , eminentemente intelectual e que incide sobre entes abstratos, o prottipo de evidncia. este o

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 3/9

    significadodamatematizaodomundo,oudocartermatematizantedoconhecimentoenquantotal.

    estaunidadequeprejudica,desdeoincio,avisodadiferenaedaarticulaoentreotericoeoprtico.Descartes no pe em dvida a diferena entre a Fsica e a Moral, mas a necessidade de conhecimentoigualmente evidente em todos os domnios faz com que o conhecimento em moral deva seguir o mesmoparadigma do conhecimento fsico.Ora, uma vez estemodelo estabelecido, as coordenadas fundamentais doconhecimento esto definitivamente postas, uma vez que ser este modelo que propiciar precisamente oprogresso,jqueelevistocomoonicoquepodepermitiroacessoevidnciaterica.Osentidoltimodoprogressoamximaexpansodestemodelo.AdelimitaocrticadoconhecimentotericofeitaporKantsemove ainda dentro destas coordenadas. A interdio do conhecimentometafsico, se de um lado restringe ohorizonte da teoria, de outro refora o carter puramente e formalmente racional do fundamento daatividade cognitiva, que em Descartes ainda dependia de uma relao entre a razo humana e Deus comogarantia das representaes evidentes. por isto que a depurao formal das estruturas lgicas doconhecimento emKant opera como restritor do mbito do conhecimento terico, paramelhor fundamentar aunidadedoconhecimento.

    Comistopodemosavaliarcomooprogressodoconhecimentoocorredemaneirasolidriaaumarestriodoexerccio da racionalidade terica. O surgimento das novas cincias e a abertura de novos campos deobjetividade subordinamse unidade do paradigma, j que o estatuto de cientificidade depende daconformao das novas realidades a uma definio prvia de conhecimento objetivo. Assim se consuma asuperposioentre racionalidadee racionalidade instrumentalou tcnica,permanecendoa idiacartesianadeque a diversidade de contedos no pode implicar na quebra da homogeneidade da noo de objeto. Estahegemoniadarazo instrumentalproduzconseqnciasde largoalcancequantoaoquesedevecompreenderporemancipaoeautonomiacomocaractersticasdamodernidade,equantorelaoentreestasduasnoeseaidiadeprogresso.

    *

    Comefeito,apartirdoquadroacimatraadosomosobrigadosarelacionarduasidiasaprincpioantagnicas:autonomiaesubordinao.Arealizaodaautonomiadarazoresultounoestabelecimentodeummodeloderacionalidadeaoqual se subordina todoo conhecimentoeque sepe como requisitodoprprioexercciodarazo.Ahegemoniadoparadigma,consolidadahistoricamente,implicouentonainversodovaloraprincpioimplcitonaprpria idiadeautonomia.Aexpansodaatividade racional oprogresso fica sendoentoasimples incorporaodenovoscontedosaummodelo formalderacionalidadequepermanece invarivelnassuasgrandeslinhas.Oexemplomaisradicaldestaidiadeprogressocientficoaepistemologiapositivaeoscritriosdecientificidadequesoporelaestabelecidos.Oreconhecimentodaverdadecientficacomovalorficanainteiradependnciadaconformaodoconhecimentoaomodelodaobjetividadefsicomatemtica.

    Aconseqnciadestepressupostonoapenasaadaptaodarealidadeaoscritriosdeobjetividade,comasubseqente perda que isto possa acarretar no que concerne adequao entre mtodo e objeto. Aconseqnciamaior,quedealgumamaneira japareceemDescartes,adissoluoda realidadenoatodesuatransformaoemobjetodeconhecimento.poristoqueaflexibilizaodomodelo,oudealgunsdeseusrequisitos,nobastapara fazerdeumanovaadequaoumaverdadeiraapreensodarealidademesma.Porexemplo,nobasta,comofizeramosepistemlogosfrancesesdofinaldosculopassado,estabelecergrausdedeterminismo para garantir a adaptao domodelo fsicomatemtico a novas cincias, no intuito de reduzirassimaperdaderealidadenoprocessodeobjetivao.Istosignificamanterseaindanointeriordaperspectivadeterminista,ampliandoapenasalatitudedeinserodarealidadenomodelodeobjetividade.

    claroqueestesproblemasaparecemdemaneiramaiscontundentenocasodascinciasquetmporobjetoohomem,sejamaquelasconvencionalmenteditas"humanas",comoaSociologiaeaHistria,sejamaquelasquepelomenos tmohomementre os seus objetos, como o caso da Psicologia. As questes que esta ltimasuscita em termos de epistemologia e teoria da cincia so particularmente relevantes para umequacionamentocrticodoproblemadarazoinstrumental.

    Boapartedacrticaquese fazPsicologiacientficadesdeo finaldosculoXIXatosanos30destesculopode ser remetida a um problema de fundo, que foi desdobrado em vrias dificuldades de ordemepistemolgica e de teoria do conhecimento. Tratasedapossibilidadede fazer do sujeitoumobjeto. De umlado o simples enunciado do problema j prenuncia a sua insolubilidade de outro e por istomesmo talproblemasformuladoapartirdeumaposiocrticaemrelaoPsicologiacientficaquesepraticavanapocaaquenosreferimos.desenotarqueocarterfundamentaldesteproblemaaparecenaamplagamadeposies crticasqueele recobre.Numextremo,aabsoluta interdiocomteanadeumaPsicologia cientfica,exatamente devida impossibilidade de objetivar os contedos, demarcandolhes um territrio distinto daBiologiaedaFsicaSocial:aidiadeumaPsicologiacientficacontrariaaprprianoodemtodocientfico.Num outro extremo, a crtica bergsoniana, que v na objetivao dos contedos a dissoluo inelutvel daespecificidadedopsquico.Aqui,aimpossibilidadedeumaPsicologiacientficanosmoldestradicionaissedeveao cartermetafsicodaquiloquedeveria se constituir comoo seuobjeto:oprprio sujeito,ouoesprito.Adiferena entre estas duas posies, que se inscrevem em campos filosficos absolutamente opostos, queBergson prope uma forma de conhecimento que, abandonando completamente os parmetros do modelotradicional,permitiriaumacertaaproximaodopsiquismoentendidocomotemporalidadeinternaoudurao.Neste sentido o "mtodo" da Psicologia coincidiria parcial ou mesmo totalmente com o da Metafsica. exatamente o carter inalcanvel do estrato subjetivo que leva Comte a pronunciar o seu interdito. Assim

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 4/9

    amboscoincidemdealgumamaneiranoresultado,emboradivergindoradicalmentenospontosdepartida.

    Aquestocentral,quedecertomodotraduzoproblemafundamentalenunciadoacima,adaespecificidadedo"objeto" da Psicologia. A reivindicao desta especificidade, no caso de Bergson, obrigao a abraar a duratarefadedefinila.Estetrabalho,sobreoqualnonospodemosdeteraqui,nemmesmopararesumilo,produzresultados em duas instncias. Na primeira, a que chamaramos de epistemolgica ou metodolgica, aconclusoaquesechegaadeumatotal inadequaoentremtodotradicional modelocartesiano filtradopelo formalismokantianoeretraduzidopelopositivismoeosujeitopsicolgiconoestratomaisprofundodesua "vida interior", que para Bergson coincide mais propriamente com o psquico. O carter analtico domtodo, sua vocao categorial que se expressa na formulao de conceitos fixos que deveriam encerrarformalmente o objeto, delimitando com nitidez espacial os seus contornos e focalizandoo, para tanto, demltiplasperspectivasexternas,redundarianumaaberraoalgocomoumageometriadasubjetividade.Nasegunda instncia, que poderamos denominar de metafsica o que em termos bergsonianos significa arealidadea ser estudada, a especificidadedopsquico aproximadamentedefinida comoa fluncia temporaldasvivncias, impossveldesercaptadanosmoldesdorealismosubstancialistatradicional, jqueseopefixidezdeumacoisa.Emambososcasosoquetemosaoposioapressupostosmetodolgicosemetafsicoseoque se impeo reconhecimentodeque,no casodaPsicologia,o conhecimentonoestparaoobjetoassimcomooconceitoestparaa coisa,oua leiparaos fenmenosque regula. Isto significaa falnciadomodelofsicomatemticonaPsicologia.

    Masistosignifica,aomesmotempo,entenderascausasdaaplicaoporassimdizerespontneadestemodeloaumarealidadeque lhetoadversa.Tratasedotriunfohistricodeumcertoparadigmaderacionalidade,que institui o seu objeto, constituindoo como homogneo aos esquemas intelectuais, mesmo ao preo docompletodistanciamentodarealidadeaserconhecida.unicamentea forado instrumentoquemoldaoseuproduto.IstoindicaeporistooexemplodaPsicologiaestratgiconoapenasograuaquepodechegaroconstruto artificial no conhecimento, mas principalmente o abandono, por parte da razo instrumental, dosujeito,cujaemancipaoeenaltecimentohaviasidoatarefamaisinsignedaprpriarazo,nonascimentodamodernidade.

    *

    Paradarcontadacomplexidadedesteprocessoprecisocompreenderalgodahistriadarazo,eassimtentarseguir um movimento que se caracteriza simultaneamente pelo progresso e pela regresso. Uma dascontribuiesbsicasdeAdornoeHorkheimerparaa compreensodoprocessohistricodedesenvolvimentodo Iluminismo foi chamar a ateno para a relao dialtica entre estes dois termos, mostrando assim anecessidadede introduziraconsideraodacontradionahistriadarazoenoprocessoemancipadorcujarealizaosedariaaolongodestaprpriahistria1.Ora,tendoemvistaoqueexpusemosataqui,noresultade maneira alguma surpreendente que o trabalho de elucidao histrica levado a efeito pelos doisrepresentantesdaEscoladeFrankfurttenhatidocomoomaiormritoaproduodeumaaporia,precisamenteaindissociabilidadeentreprogressoeregressoqueenunciamoshpouco.

    Aaporiacomquenosdefrontamosemnossotrabalhorevelaseassimcomooprimeiroobjetoainvestigar:aautodestruiodoesclarecimento.Noalimentamosdvidanenhumaenistoconsistenossapetitioprincipiidequealiberdadenasociedadeinseparveldopensamentoesclarecedor.Contudo,acreditamosterreconhecidocomamesmaclarezaqueoprprioconceitodestepensamento,tantoquantoasformashistricasconcretas,asinstituiesdasociedadecomasquaisestentrelaado,contmogermeparaaregressoquehojetemlugarportodaparte.Seoesclarecimentonoacolhedentrodesiareflexosobreesteelementoregressivo,estselandoseuprpriodestino.Abandonandoaseusinimigosareflexosobreoelementodestrutivodoprogresso,opensamentocegamentepragmatizadoperdeseucartersuperadore,poristo,tambmsuarelaocomaverdade.(Adorno&Horkheimer,1986,p.13).

    O esforo de racionalizao da natureza produziu o seu "desencantamento", isto , o animismo natural foisubstitudopela compreensodaarticulaodos fenmenos, o que levao entendimento a operar sobre eles.Enquantoanaturezaaparececomoumconjuntodeforasquesesituaalmdacompreensohumana,ecomoqualohomemdeverelacionarseemtermosdecumplicidade,conjurao,temor,identificao,apelo,oqueseverifica,porsuposto,umavinculaoemqueoserhumanosesubmeteaodesconhecido,aindaquefaadanatureza a matriz de representaes mticas. Somente a racionalidade tcnica permite operar com osfenmenos em termos de submetlos ao poder humano. A diferena est precisamente neste fator: adominao.Quandoosacerdoteinvocaasforasdanaturezaembenefciodohomem,oqueelefaznaverdadetentarreverteropoderdominantedestasforas,paraqueelasnoseempenhemnadestruiodouniversohumano.Completamentediferenteocasodatcnica,vistoqueaasupremacia,opodereapossibilidadededomniosituamsedo ladodohomem.Anatureza foiesvaziadadeumaalma, isto,deumpoderque tantopodia auxiliar quanto aterrorizar. Por isto o progresso do conhecimento o progresso do domnio e oIluminismo a passagem do mito razo esclarecida. Mas, devido identificao, j comentada, entreconhecimentoedominao,ainstrumentaoparaodomnioacabarecobrindoatotalidadedoqueseentendeporexercciodaracionalidade.Olimitedodomnioainrciadodominado:assimosenhoriosobreanaturezase expressa racionalmente no carter plenamente constitudo doobjeto. A natureza, e tudo que ela contm,passadeforaacoisa.Hqueseentender,noentanto,queesteprocessodereificaoinscrevesenomagodaracionalidadeinstrumentalcomoasuaprpriarazodeser.destaformaquetodoequalquerobjetodeveser tratado como coisa. No difcil constatar ento que a homologia formalmente exigida para que oinstrumento modele seu produto faz com que fique estabelecida tambm uma ntima relao entre razo ecoisa,racionalidadeereificao.aexpansodoreinodofsicoinertequeconstituiassimotriunfodarazo.

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 5/9

    Ora,ocompromissoqueassimseinstituientreaatividadedarazoeapassividadedeummundodeobjetosredundanacompletaidentificaoentreracionalidadeemanipulao.

    O esclarecimento comportase com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conheceos namedidaemquepodemanipullos.Ohomemdecinciaconheceascoisasnamedidaemquepodefazlas.(Adorno&Horkheimer,1986,p.24).

    Aqui adquire todo seu sentido o problema acima formulado e que exprimia o dilema da Psicologia: apossibilidadedefazerdosujeitoumobjeto.Quandoesteconhecimentoinstrumentalvoltaseparaadimensodohumano, s pode tratla em termosde objetomanipulvel. Surge entouma contradio insupervel nombito de qualquer conhecimento do homem enquanto sujeito por isto a cientificidade regida pela razoinstrumental deve necessariamente abandonar a considerao do sujeito e construir uma homologiafundamental entreohomemequalqueroutroobjeto.desta formaqueoprprio conhecimento sed comonegao do sujeito, e a atividade da razo produz a passividade do sujeito racional enquanto objeto deconhecimento.Areificaodosujeitocomonicapossibilidadedeconhecloodefine, ipsofacto,nos termosdaalienao.O controledanatureza,queaanulaode suaatividade, jquea racionalidade se confundecom a identidade, isto , a estabilidade tautolgica a que logicamente se deveria poder reduzir todos osfenmenos, estendese assim ao sujeito quando este se torna tema de elucidao racional. Ora, estarepresentaoreificadaqueosujeitotemdesimesmoqueoperaaregressodeumapretensaemancipaoa uma total submisso e controle, numa realidade histricosocial totalmente administrada pelos parmetrosfuncionaisdarazoinstrumental.

    neste sentido que se pode falar em "autodestruio do esclarecimento". A racionalidade tcnica no simplesmenteaquelaqueseservedatcnica,masaquelaquese identificacomatcnica, isto, identificaomeio como fim. Esta identificao entre parte e todo resultado essencial do processo histrico deesclarecimento. Omodelo objetivista triunfou na teoria da cincia como o nico possvel no porque seja onicoracional,mas porque o nico em que a razo semostraprodutiva, isto manipuladora: conhecer saber fazer. Esta eficincia do saber semostra no seu carter pragmtico. O pragmatismo da cincia no elemento derivado, que a ela se acrescentaria de fora. H uma intencionalidade pragmtica originria naconscincia intelectual, que foi expressa exatamente na identificao entre conhecer e dominar. paracontrolarqueseconhece.Estacaractersticanoapenasdosabercientfico,masdetodosaber,namedidaemquesua finalidadeassegurara sobrevivncia.Neste sentidoapraxisoelementomotordodesejodeconhecer,daanaturalidadedestedesejo,afirmadadesdeAristteles.FoiestecarterpragmticointrnsecoaoconhecimentoquemotivouasconcepesdeBaconedeDescartes,nostermosdeumpossvelcasamentofelizentreateoriaeaprtica.Masnamedidaemqueomundoprticoperdeusuaautonomiaearazoinstrumentalganhouumadimenso totalitria,aprticapassouaserentendidacomoderivaoda teoria,meraaplicaotcnica do conhecimento tericoinstrumental. Como a tcnica existe, em princpio para satisfazer asnecessidades humanas, estas passaram a ser compreendidas no mbito da razo instrumental, a nica quepodesatisfazlasatravsdaaplicao tcnica.Estadissoluodomundoprticoesuasubordinao razoterica definida como instrumental pode ser considerada outro elemento de regresso, pois omundo prticoseria aquele em que as finalidades humanas poderiam se constituir autonomamente. A esta dissoluo domundo prtico corresponde a cegueira a que se referem os frankfurtianos: "o pensamento cegamentepragmatizado". A eficincia produtiva do pensamento instrumental estabelece um desequilbrio entre a aocomosimplesecompulsriaaplicaodos resultadosdoprogressoeodiscernimento racionaldas finalidadesquedeveriamgovernarestaatividade.Poristoaaodominadoraoriundadatecnologiatantomaisincuadoponto de vista tico quanto mais se torna febril e constante. Isto porque a relao entre as necessidadeshumanaseasatisfaodelastornouseumcrculooperantedentrodoslimitesdarazoinstrumental,comoodemonstra principalmente o papel do consumo como finalidade e ao mesmo tempo estmulo de reincioperptuodaproduotecnolgica.

    Assim se constitui, pois, a aporia a que se referem Adorno e Horkheimer: a emancipao se converte emsubmisso, na medida em que o progresso da razo instrumental coincide com a regresso do humano categoriadecoisa.Oimpulsoparaadominaodanaturezanasceudotemorfrenteaodesconhecido.Osmitoseosrituaiscumpriramprimeiramenteestafuno,emqueohomem,paracontrolar,sesubmetia.Acincia,aodesencantar a natureza, isto , ao substituir a relao com as foras pela formalizao metdica de ndolematematizante, apaziguou a exterioridade, destituindoa de vida. Mas o triunfo da instrumentalidadedominadorainstaurouumaoutrafontededominao,aprpriarazoenquantoessencialmentedominadora.Daatendnciadosindivduosaalienaremaliberdadeemprincpioconquistadanasdiversasfigurasdarazo,oumesmoemqualquerdosseusprodutos,desdeasdescobertascientficasatomarketingeleitoral.Aquestoque, tendo esta aporia se constitudo no interior do movimento da razo emancipadora, ela no pode serinteiramente avaliada pelos parmetros tericos do prprio Iluminismo. Da a reivindicao, por parte deAdornoeHorkheimer,deumateoriacrticaqueestejadotadade instrumentosparaentenderestemovimentocomplexonoapenasnalinearidadedoseuprogresso,mastambmnosmeandrosdesuascontradies.Oqueatradiocartesianalegoucomomodelodeteoriaalgodotadodaeconomiadeelementosedoesquematismoquecaracterizamoraciocnioabstrato.Oprestgiohistricodascinciasexatasenaturaisimpsscinciasdohomem o mesmo paradigma, do que decorrem as dificuldades a que j aludimos. No entanto, o maisimportanteaconsideraraquiapresenadahistrianaprpriaconstituiodoobjetodestascincias.Oqueateoria crtica tem de diferente da teoria tradicional, para alm da questo domtodo, a considerao docarterhistricodaprpriarazo.Jamaischegaramosanotarquearazoiluministatrazemsioseucontrriose a abordssemos a partir de sua definio puramente lgica e ahistrica. a historicidade da razo quepermite ver no seu desenvolvimento o entrelaamento de fatores de diversas ordens que nos obrigam a

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 6/9

    considerarconjuntamentearacionalidadeeamitificao,oprogressoearegresso,acivilizaoeabarbrie.Ailusodalinearidadenosmostrariaacivilizaosucedendobarbrie,aracionalidadesucedendoaomitoeoprogressocomoincompatvelcomoretornoaestgiosprimriosdeconhecimentoesociabilidade.Umateoriacrtica,queconsideraatotalidadedasrelaesnasprticashumanasenoapenasaseleodeelementosquedesenham o progresso linear, nos obriga a dialetizar o processo histrico, ao nos mostrar que qualquerrealidade, na medida em que se afirma historicamente, traz em si aquilo que a nega. Mas tal viso supesujeitosproduzindoconcretamentesuasprticasapartirdecondiesdadas.

    A teoriaemsentido tradicional, cartesiano,comoaqueseencontraemvigorem todasascinciasespecializadas,organizaaexperinciabasedeformulaodequestesquesurgememconexocomareproduodavidadentrodasociedadeatual.Ossistemasdasdisciplinascontmosconhecimentosdetalformaque,sobcircunstnciasdadas,soaplicveisaomaiornmeropossveldeocasies.Agnesesocialdosproblemas,assituaesreaisnasquaisacinciaempregadaeosfinsperseguidosemsuaaplicao,soporelamesmaconsideradosexteriores.Ateoriacrticadasociedade,aocontrrio,temcomoobjetooshomenscomoprodutoresdetodasassuasformashistricasdevida.Assituaesefetivas,nasquaisacinciasebaseia,noparaelaumacoisadada,cujonicoproblemaestaria namera constatao e previso segundo as leis da probabilidade. O que dado no depende apenas danatureza,mastambmdopoderdohomemsobreela.(Horkheimer,1989a,p.69).

    Estetextopodeserentendidoapartirdaformulaoweberianadeumadicotomiaquepodeserditabsicanaidia moderna de teoria: a separao entre juzos de fato e juzos de valor. A teoria tradicional supe apossibilidade de uma descrio neutra da realidade, mesmo que esta realidade seja psicolgica, social ouhistrica,isto,mesmonaquiloqueserefereaohomem.Noprocessodedesencantamentoquecoincidecomaprogressivaracionalizaodomundo,oquepermitiuaohomemsairdeumarelaoanimistacomanaturezafoi o distanciamento dos fenmenos naturais, estabelecido por via da mediao metdica, que passou aconstituirentoamedidadadescrioobjetivadarealidade.Nestesentidoaposiotomadafrenterealidadeaposiodesujeitodeconhecimento,munidodosinstrumentosquevenhamapermitirarepresentaomaisadequadadomundo.Emboraaadequaopossaserentendidacomoumamedidadeavaliaodapertinnciadoconhecimento,tratasedeumamedidalgica,cujafinalidadedisportodososobjetosnauniformidadeemque eles devem aparecer para o sujeito, respeitando assim a unidade bsica do modelo racional. Nestaperspectiva,nocabeaosujeitojulgaracercadaconstituiodascoisas,dasrelaesentreosfenmenosedosistema de produo de eventos reais, questionando a organizao cosmolgica em termos de valor, isto ,procurando discernir entre o bom e o mau na instncia dos fatos. Este tipo de juzo no cabe dentro dosparmetrosdecientificidade,postoquenohaveriameiosdemediroseugraudeobjetividade.nestesentidoque Horkheimer diz, no texto citado, que a gnese, a singularidade situacional e os fins perseguidos soconsideradospelateoriatradicionalcomo"exteriores",oquesignificaquenofazempartedoquadroformaldeconhecimento,emborapossamviraser temadeconsideraesextracientficas,porexemplo,a"opinio"docientistaacercade taisassuntos, formuladanoentantoapartir deumaposioemqueeleno se colocariajustamente como cientista. A hegemonia do modelo de teoria faz com que esta atitude tenha que serreproduzidaemtodososcamposdeconhecimento.

    Porqueumateoriacrticanopodedeixardeconsiderar"agnesesocialdosproblemas,assituaesreaisnasquaisa cinciaempregadaeos finsperseguidos"?Porque tal teorianopartedahomogeneidadedodado,isto,dauniformidadeapriori concebidade tudooque for consideradoobjeto.A razodisto que, para ateoriacrtica,arealidadeproduzidapelossujeitosenquantoagenteshistricos.Oquedizrespeitoaohomemnuncapodesertomadocomoumdadonatural.Tomarohomemcomoprodutordasprticasqueconstituemasua realidade tirlo da esfera dos objetos fsicoinertes, considerar a impossibilidade de separar, nosujeito,oqueeledoqueele faz,entendendoqueaaohumanasedistinguedaaodosobjetosnaturaisporserdotadadeintencionalidade.Comefeito,anoodeagentequandorelacionadacomaaohistricanopode ser assimilada simplesmente a umprocesso de causalidade natural. Quando se diz que os homens so"produtoresdetodasassuasformashistricasdevida",nosepodedeixardeconsiderarnestaproduoumaintencionalidade racional emoral, que aprpria caracterizaodaaohistrica como aohumana casocontrrionohaveriacomodistinguiroprocessohistricodoprocessonatural.Istosignificaqueainstnciadosocialnopodeserconsideradacomomeiodeatividadehistricadamesmamaneiraqueseconsideraomeionatural como ambiente dos organismos em geral. E isto porque a organizao domeio, no caso da relaoentre o homem e a sociedade, depende da produo das prticas que vo estruturando e modificando estemeio.

    Isto significa que quando se trata de conhecer o homem, tratase de conhecer um sujeito histrico, e noapenas um sujeito dado. A subjetividade se institui no interrelacionamento das prticas constituintes douniverso humano. Podemos num certo sentido dizer que o problema que est aqui colocado para todas ascinciashumanasomesmoqueestpostoparaaPsicologia:comofazerdosujeitoumobjeto,semdeixardeconheclo como sujeito? O problema tornase insolvel se for tratado apenas epistemologicamente. E istodevidoaumaquestofundamentalquepodeserenunciadacomoovalordacincia.Aquelequesepecomosujeitodeumconhecimentoque temcomoobjetoo sujeito, colocasepor istomesmoentre aqueles objetosquedevemserconhecidoscomosujeitos.Nohnestecasoadistnciaquefuncionacomooperadormetdico,demarcandomuitobemoquesujeitoeoqueobjeto.Senaturalizoaesferadohumanoreduzindoaaumconjunto de objetos anlogos aos objetos fsicos, colocome por isto na posio de nico sujeito, o que teoricamente problemtico e praticamente insustentvel. A intersubjetividade a moldura desta prticahistricaparticularqueoconhecimentocientfico.Aposiotericanomepenoexteriordahistriaedasociedade. intersubjetividade corresponde a interdependncia das atividades que se desenvolvem noentrelaamentosocial.

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 7/9

    Na verdade, a vida da sociedade um resultado da totalidade do trabalho nos diferentes ramos de profisso, e,mesmoqueadivisodotrabalhofuncionemalsobomododeproduocapitalista,osseusramose,dentreelesacincia,nopodemservistoscomoautnomoseindependentes.(...)Somomentosdaproduosocial,mesmoque,propriamentefalando,sejampoucoprodutivosouatimprodutivos.(Horkheimer,1989b,p.37).

    As relaes dinmicas da totalidade social no permitem o isolamento da atividade terica, e estainterdependncia fundamenta o compromisso do cientista. Em suma, no h neutralidade e portanto hinteresse. O interesse relacionado ao conhecimento no pode ser tratado como conjuntura ou acidente: estnecessariamentepresentenaatividadetericapelasimplesrazodequeestaumaprticahistricasituadaemrelaoaoutrasecomoelementodeumquadrodeinterconexes.Adiferenaentreateoriatradicionaleateoria crtica que aquela desconhece o interesse como motor do conhecimento, por no admitir qualquerescala de valor no procedimento terico, enquanto a teoria crtica acolhe entre seus temas de reflexo ointeresse e procura elucidar o seu lugar e o seu papel. Neste sentido a teoria crtica pode chegar a ver aneutralidade cientfica da teoria tradicional como neutralizao ideolgica da questo do interesse noconhecimento. A ideologia da neutralidade se expressa, j o vimos, numa linguagem epistemolgica: aneutralidade requisito lgico de objetividade.Mas vemos tambmagora quequando a relao cognitiva seestabelecedesujeitoasujeitosaobjetividadeneutraoperanecessariamentedeformareducionista,poissupea identificaoentreprticahistricaeobjetonatural.Ora, tal identificaopodeser tratadaemdoisnveis:comoequvocometodolgico,noplanodaepistemologiaecomoprocedimentodereificao,noplanodatica.Emambososnveisestemjogoaverdade.Dopontodevistaepistemolgico,noconfrontoentreumaFsicaSocialpositivistaeumaSociologiacrticaoquesejogaaverdadenaapreensodoagentesocialedesuasaese relaes.NodebateentreumaPsicologia fisicalistaeumaabordagemnoorganicistadopsquico,oque est em jogo a verdadena apreensoda conscincia.Mas talvez o ponto quemereamaior destaqueestejaprecisamentenoplanodasconseqnciasticasdaracionalidadeinstrumentalnascinciasdohomem:osignificadodaobjetivaonaturalistadosujeitoedesuasprticas,arepresentaodapessoacomocoisa.

    *

    A estreita vinculao entre as dificuldades epistemolgicas e as conseqncias ticasmostra que uma visocrticadahistriadarazoedosprocedimentoscientficosnoestde formaalgumacomprometidacomummoralismoacusatriooucomqualquerveleidaderomnticaderetornoaumaidadedeouro.Pelocontrrio,ofatodequeanecessidadedoprocessohistrico,quetransformouosujeitodedominadoremdominadopelosseus prprios instrumentos de dominao, s possa ser inteiramente compreendida pormeio de ummtododialticoindicaalgicapresentenestastransformaes,todaselasoperadaspelosprpriossujeitoshistricos,num espantoso movimento de simbiose progressiva entre emancipao e dominao. Na enorme diferenaexistente entre omito e a cincia podese notar contudo uma continuidade: em ambos os casos tratase deescaparaoterror,conjurandooucontrolando.Talvezesteimpulsobsicopossanosauxiliarnacompreensodacontradioinerenteaoprocessodeesclarecimentoedarelevnciadasconseqnciasticas.Aseguranaqueamediao domtodo racional proporciona diante de ummundo desencantado provoca tambma confianailimitadanoinstrumentodedominao.Eestaconfianadeveserproporcionalameaalatentederetornodoencantamento reprimido ou do terror de que o conhecimento nos livrou. precisamente esta confiana narazo e no seu progresso ilimitado que enfraquece a viso crtica da racionalidade como prtica humana esocialmente determinada. A razo tornase absoluta e este carter se exprime justamente atravs do seuaspectomaiseficaz:ainstrumentalizao.Eporistosepodedizerqueasubmissoincondicionadarazonosedistingue,estruturalmenteenoplanodamotivaoprofunda,deumarecadanamitologia.Somenteassimse explica que o mesmo instrumento sirva crtica e dominao totalitria, liberdade e servidovoluntria.Estasimetriaentrerazoemitotemalgodeaterrorizante:elasignificaqueaorganizaoracionaldacincia,daproduo,dasociedadepodeconviverperfeitamentecommecanismosdePsicologiacoletivaqueintegremaalienaoeabarbriecomobens.Onazismomostrouque istonoapenasumaconjectura.Seconsiderarmosavinculao,suficientementeevidente,entreosprocessosdedesautonomizaoindividualededissoluo tica na esfera da sociabilidade, teremos uma viso razoavelmente ntida do elemento autofgicoinscritonoprocessocivilizatrio:aambivalnciadoterrorcomorepressoeproteo.

    O preo da dominao no meramente a alienao dos homens com relao aos objetos dominados com acoisificaodoesprito,asprpriasrelaesdoshomensforamenfeitiadas, inclusiveasrelaesdecadaindivduoconsigomesmo.Elesereduzaumpontonodaldasreaesefunesconvencionaisqueseesperamdelecomoalgoobjetivo.Oanimismohaviadotadoascoisasdeumaalma,oindustrialismocoisificaasalmas.(Adorno&Horkheimer,1986,p.40).

    A reificao como conseqncia ticohistrica da prevalncia da razo instrumental vinculase assim alienaodossujeitosdaaonosseusprodutos.Nestesentidoaproduooinversodaatividadelivre.Masaproduo,poroutro lado,conseqnciadaposiohistricadeumsujeitoativoedominadordanatureza.No h portanto como desvincular, no nvel das conseqncias ticas, o industrialismo produtivista daracionalidadetcnicaqueotornoupossvel,mesmoconsiderandoquedeterminadasatividadesdarazo,comoacinciabsica,nosejamimediatamenteprodutivas.Apossibilidadedetransitaremtermosdecontinuidaderacional do objeto para o produto que justifica a autocompreenso objetivista do sujeito, isto , aimpossibilidadedeosujeitosepensarcomotal,poisnosoapenas"asprpriasrelaesdoshomens"entresiqueseachamcomprometidascoma"coisificaodoesprito"aidiaquecadaindivduotemdesimesmo,"asrelaesdecadaindivduoconsigomesmo",estofundamentadasnaautocompreensodecadaumcomo"algoobjetivo".Estaobjetividadeserefletenasaesereaesqueso"objetivamente"esperadasdele, isto,naprojeodeumegoconvencional.Noportantoavisodooutroquemealienademimmesmo,soueuquevoluntariamentemealienonavisodooutro.Estainautenticidadefundamentalfazpartedoprocessodeentre

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 8/9

    expressoinstrumentaldassubjetividades.Cadaumnoapenasumsujeitoqueoolhardooutrotransformaemobjetotodossoprodutosdaobjetividadereificadoradeumaracionalidadesocialadequadaaum"mundoadministrado".

    Isto que se manifesta por assim dizer naturalmente no plano das relaes humanas aparece formalizado eexacerbado na cincia, onde a reificao encontra o amparo dos parmetros lgicos justificadores daobjetividadeterica.destaformaqueacontece,deformainteiramente"danificadora"(expressodeAdorno),oentrelaamentosocialentreasprticasdesociabilidadeeasatividadestericas,umasrefletindoasoutras,nosmodos especficos de resposta s exigncias da instrumentalidade.Diante desta totalidade cindida, comoumcorpocompostodemutilaes,ateoriacrticaseposicionaresolutamenteemtermosdejuzodevalor.Elano esconde, portanto, o seu interesse e o seu compromisso. O impulso crtico no deve se desfazer nadescrio e na constatao dos limites, como em Kant. Numa perspectiva efetivamente emancipadora etransformadora,a razodeveriavernos limitesaocasiodasuperaoenoopretextoda resignao. Istonosignificadeformaalgumaquesedevaentenderumapassagemsempreconseqentedacrticaaoativismo.Estepodefacilmenteserincorporadodediversasformasnaquilocontraoqualreage.Aprpriacompreensodoalcance do processo histrico da modernidade aponta para o perigo de gratuidade de uma resistnciaimediatista.Como conciliar o interesse e o compromisso coma recusa emapontar a sada?Mas, aomesmotempo,comoproporqueseescapedabarbrieseconsiderlaemtermosdefuturoiminentefecharosolhossuapresena?"Esperlaparaofuturo,depoisdeAuschwitzeHiroshima,fazpartedopobreconsolodequeaindapossvelesperaralgopior."(Adorno,1995,p.214).

    Compreender a histria moderna, a gnese e o processo de desenvolvimento da razo iluminista, ascontradiesqueelaimplica,tambmcompreendercomoforampossveisAuschwitzeHiroshima.Ointeresseeocompromissoaenvolvidossignificamnoentantoqueestacompreensonosedemtermosdaposiodeumsujeitodiantedeeventosobjetivos.A compreensodabarbrie sadquire sentidoseacrescentaalgoaonossopoderdeevitarasuarepetio.porestemotivoqueopensarcrticojsednombitodapraxise,assim,jseconfiguradealgumamaneiracomoresistnciaa"algopior".

    LEOPOLDOeSILVA,F.KnowledgeandInstrumentalReason.PsicologiaUSP,SoPaulo,v.8,n.1,p.1131,1997.

    Abstract:Thistextdealswithfeaturesconsideredofimportanceforthegeneralcomprehensionoftheconceptofinstrumentalreason.Primarily,inthearticle,afewthemesinscribedinthephilosophicalfoundationofmoderntimesarepointedout,andtherefore,provideaidforanunderstandingofthecriticalhistoryofreasonformulatedbyAdornoandHorkheimer.StrategicpointsforthedebateofthedialecticsofIlluminismarediscussed,withtheobjectiveofhighlightingthenecessityofconsideringthecontradictionspresentinthedevelopmentofilluministicreasonsuchasprogress/regressionaswellasautonomy/domination.Indexterms:Illuminism.Instrumentalreason.History.Theory.Criticism.

    REFERNCIASBIBLIOGRFICAS

    ADORNO,T.W.Notasmarginaissobreteoriaepraxis.In:Palavrasesinais:modeloscrticos2.Petrpolis,Vozes,1995.[Links]

    ADORNO,T.W.HORKHEIMER,M.Dialticadoesclarecimento:fragmentosfilosficos.Trad.GuidoAntoniodeAlmeida.2.ed.RiodeJaneiro,JorgeZahar,1986.[Links]

    HORKHEIMER,M.Filosofiaeteoriacrtica.SoPaulo,NovaCultural,1989a.(ColeoOsPensadores)[Links]

    HORKHEIMER,M.Teoriatradicionaleteoriacrtica.SoPaulo,NovaCultural,1989b.(ColeoOsPensadores)[Links]

    1Cf.principalmenteAdornoeHorkheimer(1986),sobretudoocaptulosobreoConceitodeesclarecimento,p.1852.

    CreativeCommonsLicenseAllthecontentsofthisjournal,exceptwhereotherwisenoted,islicensedunderaCreativeCommonsAttributionLicense

    InstitutodePsicologia

  • 19/04/2015 PsicologiaUSPConhecimentoeRazoInstrumental

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365641997000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 9/9

    Av.Prof.MelloMoraes,1721BlocoA,sala202CidadeUniversitriaArmandodeSallesOliveira

    05508900SoPauloSPBrazil

    [email protected]