O exercício do cargo público numa sociedade de risco

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263 Umberto Machado de Oliveira* O exercíciO dO cargO públicO numa sOciedade de riscO e O cOmetimentO de imprObidade administrativa ThE ExErCisE OF PUbliC OFFiCE in a risk sOCiETy anD ThE COMMiTMEnT OF aDMinisTraTivE MisCOnDUCT El EjErCiCiO DEl CarGO PúbliCO En Una sOCiEDaD DE riEsGO y El COMETiMiEnTO DE Una FalTa aDMinisTraTiva Resumo: O presente trabalho tem como objetivo confrontar a concepção de “sociedade de risco” com o conceito legal de improbidade adminis- trativa previsto na Lei n. 8.429/92, conhecida como Código Geral de Conduta do Administrador Público no direito brasileiro. A partir disso, buscar-se-á uma reflexão sobre a posição do exercente do cargo público no contexto de uma sociedade de risco, com vistas a contribuir para o debate de sua responsabilização por ato que im- porte em violação da referida lei em função da não observância dos princípios da precaução e da prevenção, inerentes a tal teoria. Abstract: This paper aims to confront the concept of "risk society" with the legal concept of administrative misconduct under Law 8.429/92, known as the General Code of Conduct of the Public Administrator in Brazilian law. From this, it will get a reflection on the position of exercente public office in the context of a risk society, in order to contribute to the discussion of accountability for an act that matters in violation of that law on the basis of * Mestre em Direito pela UFG. Doutorando pela Universidade de Coimbra. Pro- fessor da Faculdade de Direito da UFG. Promotor de justiça do Estado de Goiás.

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O presente trabalho tem como objetivo confrontar a concepção de “sociedade de risco” com o conceito legal de improbidade administrativa previsto na Lei n. 8.429/92, conhecida como Código Geral de Conduta do Administrador Público no direito brasileiro.

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Umberto Machado de Oliveira*

O exercíciO dO cargO públicO numa sOciedade de riscO e O cOmetimentO

de imprObidade administrativa

ThE ExErCisE OF PUbliC OFFiCE in a risk sOCiETy

anD ThE COMMiTMEnT OF aDMinisTraTivE MisCOnDUCT

El EjErCiCiO DEl CarGO PúbliCO En Una sOCiEDaD DE riEsGO

y El COMETiMiEnTO DE Una FalTa aDMinisTraTiva

Resumo:

O presente trabalho tem como objetivo confrontar a concepção de

“sociedade de risco” com o conceito legal de improbidade adminis-

trativa previsto na Lei n. 8.429/92, conhecida como Código Geral

de Conduta do Administrador Público no direito brasileiro. A partir

disso, buscar-se-á uma reflexão sobre a posição do exercente do

cargo público no contexto de uma sociedade de risco, com vistas

a contribuir para o debate de sua responsabilização por ato que im-

porte em violação da referida lei em função da não observância dos

princípios da precaução e da prevenção, inerentes a tal teoria.

Abstract:

This paper aims to confront the concept of "risk society" with

the legal concept of administrative misconduct under Law

8.429/92, known as the General Code of Conduct of the Public

Administrator in Brazilian law. From this, it will get a reflection

on the position of exercente public office in the context of a risk

society, in order to contribute to the discussion of accountability

for an act that matters in violation of that law on the basis of

* Mestre em Direito pela UFG. Doutorando pela Universidade de Coimbra. Pro-fessor da Faculdade de Direito da UFG. Promotor de justiça do Estado de Goiás.

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non-compliance with the principles of precaution and preven-

tion, inherents in this theory.

Resumen:

El presente trabajo tiene como objetivo hacer frente a la noción

de "sociedad del riesgo" con el concepto jurídico de falta admi-

nistrativa en virtud de la ley. 8.429/92, conocida como el Código

General de Conducta del Administrador Público en la legislación

brasileña. De esto, se conseguirá una reflexión sobre la posición

del ejercente del cargo público en el contexto de una sociedad

de riesgo, con el fin de contribuir a la discusión de la responsa-

bilidad por un acto que importa en la violación de la ley sobre la

base del no-cumplimiento de los principios de precaución y pre-

vención, inherentes a esta teoría.

Palavras-chaves:

Precaução, prevenção, responsabilidade, administrador, ímprobo.

Keywords:

Precaution, prevention, responsibility, administrator, dishonest.

Palabras clave:

Precaución, prevención, responsabilidad, administrador, deshonesto.

intrOduÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo relacionar a con-cepção de “sociedade de risco” com o exercício do cargo público naperspectiva da configuração de ato de improbidade administrativa,conforme previsto na lei n. 8.429/92, o Código Geral de Conduta

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do administrador Público no direito brasileiro. a partir disso, bus-car-se-á uma reflexão sobre a posição do exercente do cargo pú-blico no contexto de uma sociedade de risco com vistas acontribuir para o debate de sua responsabilização por ato queimporte em violação da referida lei, tendo em vista a repercussãosocial de sua conduta.

a pergunta que se pretende responder, em outras pala-vras, é: no que podem contribuir a teoria do risco e os princípiosque dela decorrem para o combate do fenômeno da improbidadeadministrativa? Embora saibamos que a concepção de socie-dade de risco tem sido estudada mais sob a ótica das inovaçõestecnológicas e dos riscos que oferecem ao meio ambiente e àsaúde do ser humano, o trabalho buscará apoio na doutrina pro-duzida nessa área, com o fito de transportá-la para a questão doexercício do cargo público e da possibilidade do cometimento deatos que violem a lei reguladora da questão no direito brasileiro.

É de se considerar que a adoção de medidas para solu-ção de problemas ambientais identificados muitas vezes apro-xima-se, ainda que de forma transversa, ao fenômeno daimprobidade administrativa. não raro as tentativas de solução deproblemas ambientais são, para os malversadores do erário, emmuitas situações, uma boa fonte de desvio de recursos. a “causa”é boa, ou seja, a “defesa do meio ambiente”. Os mecanismos deefetivação da tentativa de solução de um problema ambiental sãomuitas vezes de dificílima ou de impossível aferição posteriorquanto à real utilização dos meios sugeridos. Uma exemplificaçãotalvez torne mais clara essa afirmação. vamos tomar a hipótesede um rio poluído. imagine-se que, para a solução do problemada poluição nesse rio, seja apontada, como uma das providênciasviáveis, lançar um composto químico diluído na quantidade de ummilhão de litros de água, e que esse composto químico seja dealto custo. O composto químico é lançado, mas numa quantidadeequivalente à metade do que era previsto, enquanto nas planilhas

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de lançamento consta que foi lançado de acordo com o planejado.Como comprovar que essa fraude ocorreu? se, por exemplo, tomar-se amostras da água do rio onde foi lançado o composto químico,pode ser afirmado que a dosagem inicialmente planejada não sur-tiu o efeito esperado e, portanto, há necessidade de uma maiorquantidade. não será possível, nessa hipótese, dizer que não foilançada a quantidade do composto químico simplesmente porque,por exemplo, não se pode, diante do fluxo das águas no leito dorio e de diversos fatores naturais que possam ter influenciado (re-tenção nas areias no fundo do leito, às margens, etc.), aferir aquantidade lançada. Esse simples exemplo hipotético serve parailustrar quantos riscos há, em matéria ambiental, de improbidadeadministrativa. Portanto, a teoria do risco, produzido no âmbito dodireito ambiental, pode, cremos, ser transportada para servir deanálise da ocorrência do fenômeno.

cOnsideraÇÕes preliminares sObre a lei n. 8.429/92e delimitaÇÃO dO cOnceitO de imprObidade

a Constituição Federal brasileira previu, em seu art. 37,§ 4º, que “os atos de improbidade administrativa importarão asuspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a in-disponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma egradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

na sequência, em complementação a esse preceito, edi-tou-se a lei n. 8.429/92, a qual estabeleceu, em seu capítulo ii,em três seções distintas, os três grandes grupos de atos carac-terizadores de improbidade administrativa1: a) os que importem

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1 Essa tipologia já é absorvida pela jurisprudência, até mesmo em função da cla-reza da divisão feita no texto legal, conforme se depreende da decisão da Primeira

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em enriquecimento ilícito (art. 9º); b) os que causem prejuízo aoerário (art. 10); c) os que atentem contra os princípios da admi-nistração Pública (art. 11), compreendida, nesse tópico, a lesãoà moralidade administrativa.

Quando procedemos à leitura dos dispositivos legais quecontêm os tipos de improbidade administrativa (artigos 9º, 10 e11 e incisos), é possível identificar a coexistência de duas técni-cas legislativas na elaboração da lei n. 8.429/92: i) a primeira,que pode ser identificada na cabeça (caput) dos dispositivos tipi-ficadores da improbidade, com a utilização de conceitos jurídicosindeterminados, o que seria adequado como instrumento quepretende o enquadramento do infindável número de ilícitos depossível ocorrência, decorrentes da própria criatividade humanae de seu poder de improvisação; ii) a segunda, na formação dediversos incisos que compõem os arts. 9º, 10 e 11, com previsõesespecíficas, ou passíveis de integração, de situações que podemconsubstanciar, na vida cotidiana da administração pública, im-probidade, os quais facilitam o entendimento dos conceitos inde-terminados veiculados nos artigos principais e possuem naturezameramente exemplificativa, tendo em vista o emprego do advér-bio "notadamente" (GarCia, 2006, p. 248).

a previsão de dispositivos de combate à probidade naadministração pública tem sido enrobustecida no direito brasi-leiro, seja com alteração à Constituição Federal pelo constituintederivado, seja com a inserção em leis complementares e ordiná-rias de disposições que a essa questão fazem referência. assimé que, logo após a edição da lei n. 8.429/92, foi aprovada a

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Turma do superior Tribunal de justiça brasileiro, contida no recurso Especial n.874.040-MG (Diário de justiça Eletrônico de 12.11.2008): “5. Deveras, a título deargumento obiter dictum, o caráter sancionador da lei 8.429/92 é aplicável aosagentes públicos que, por ação ou omissão, violem os deveres de honestidade,imparcialidade, legalidade, lealdade às instituições e notadamente: a) importemem enriquecimento ilícito (art. 9º) ; b) causem prejuízo ao erário público (art. 10);c) atentem contra os princípios da administração Pública (art. 11) compreendidanesse tópico a lesão à moralidade administrativa.”

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Emenda Constitucional de revisão n. 4, que deu nova redaçãoao § 9º do art. 14, constante do capítulo dos direitos políticos naConstituição Federal, prevendo que lei complementar estabele-ceria outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação,a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para oexercício de mandato, considerada vida pregressa do candidato,e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência dopoder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ouemprego na administração direta ou indireta. além disso, é dignode nota que o artigo 15, que estabelece, no caput, a vedação decassação de direitos políticos, insere entre as hipóteses excep-cionais de perda e suspensão dos referidos direitos, no seu incisov, os casos de improbidade administrativa, nos termos do art. 37,§ 4º. ainda, entre os crimes de responsabilidade que podem serpraticados pelo Presidente da república, estão os atos que aten-tem contra a probidade na administração (art. 85, v, da Constitui-ção Federal de 1988). Também a lei de responsabilidade Fiscal(lei Complementar n. 101, de 04.05.2000), que estabelece nor-mas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade nagestão fiscal e dá outras providências, previu, em seu art. 73, queas infrações a seus dispositivos serão punidas segundo as nor-mas do Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 2.848, de7.12.1940, da lei n. 1.079, de 10.04.1950 (lei do impeachment),do Decreto-lei n. 201, de 27.02.1967 (lei de responsabilidadedos Prefeitos e vereadores) e da lei n. 8.429/92. Por fim, cumpreregistrar que a lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997 (que es-tabelece normas para as eleições), estatui, em seu art. 73, um rolde condutas vedadas destinado especificamente aos agentes pú-blicos, com “o indisfarçável propósito de evitar que a estrutura ad-ministrativa seja utilizada para fins políticos, relegando a planosecundário o interesse público”, com a cominação de sançõesque podem ser aplicadas pela justiça Eleitoral (tais como suspen-são imediata da conduta vedada, multa e cassação do registro

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ou do diploma), sem prejuízo da configuração, conforme o § 5º domesmo dispositivo, simultânea de ato de improbidade administra-tiva a ser punido nos termos do art. 11, inciso i, da lei n. 8.429/92.

É de se inferir que se há uma preocupação com a maté-ria é porque esta, obviamente, tem relevância no contexto do sis-tema democrático. E ninguém duvida disso. não é preciso muitoesforço e conhecimento para supor que o fenômeno da improbi-dade tem implicações negativas muito amplas na administraçãopública e, com isso, afeta milhões de pessoas de forma direta eindireta, especialmente quando a escassez de recursos públicosresulta em ineficiência ou mesmo insuficiência na prestação deserviços essenciais (saúde, educação, segurança, por exemplo)à coletividade. a preocupação presente no direito brasileiro é en-contrada também no direito internacional, como se percebe dossucessivos e recentes tratados internacionais sobre a matéria: a)a Convenção interamericana contra a Corrupção, concluída noquadro da Organização dos Estados americanos em 29.03.1996;b) o Código internacional de Conduta para os Funcionários Pú-blicos (resolução n. 51/59, das nações Unidas, em 12.12.1996);c) a Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Eu-ropa, assinada em Estrasburgo em 30.04.1999; d) a Convençãoda União africana para a Prevenção e a luta Contra a Corrupçãoe Crimes assimilados, aprovada em Maputo em 11.07.2003; e)e, finalmente, a Convenção da nações Unidas contra a Corrup-ção, assinada em Mérida, no México, em 31.10.2003.

nessa linha, cumpre registrar que o conceito de impro-bidade administrativa é visto como espécie de má gestão pública.Osório (2007) procura situar a improbidade administrativa, nummarco ético-institucional, como espécie de má gestão pública, oque implicaria num escalonamento dos ilícitos de má gestão,aparecendo a improbidade em seu devido lugar. Pontua que anoção jurídica de boa gestão, no âmbito do direito administrativo,tem origem teórica inicial nas lições de Maurice hauriou, jurista

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francês que pioneiramente referiu-se ao princípio da moralidadeadministrativa, fazendo-o na perspectiva funcionalmente apoiadano ideário de boa gestão pública. O referido autor, ao tecer co-mentários à jurisprudência do Conselho de Estado francês, nocomeço do século xx, disse que

existia uma moralidade administrativa segundo a qual o admi-nistrador ficava vinculado a regras de conduta inerentes à disci-plina interna da administração Pública, o que significava aobediência necessária a pautas de boa administração, transcen-dendo as minúcias ou previsões expressas nas regras legais.(OsÓriO, 2007, p. 39)

nessa ótica, a boa administração comportaria um espec-tro de condutas eticamente exigíveis dos administradores públi-cos, fossem ou não previstas expressamente no ordenamentojurídico passivo. seguindo esse raciocínio, ser bom administradornão equivaleria, originalmente, apenas ao mero cumprimento dalegislação, como também o mau administrador poderia descum-prir preceitos ligados à ética institucional, à moral administrativa.isso representou um ataque ao pensamento positivista predomi-nante no momento histórico por ele vivenciado. salienta Osórioque, muito embora seja possível identificar-se alguns vestígios daexigência de uma espécie de boa administração pública nas re-motas culturas ocidentais, é na pós-modernidade que se conso-lida essa “exigência ético-normativa por meio da mudança daadministração burocrática ao modelo gerencial”, e dentro desseambiente há o aumento dos níveis de responsabilidade pessoaldos agentes públicos. ressalta, ainda, que ninguém duvida deque hoje em dia haja um princípio essencial de boa gestão públicanas Constituições democráticas, como disse, inclusive, “muitoacertadamente o Parlamento Europeu, ao anunciar que tal prin-cípio suporta uma série de deveres de boa gestão, deveres ima-nentes ao sistema e não necessariamente explícitos”. registraque a confiança ou o trust entre administradores e administrados,que está no centro das democracias modernas, tem como ponto

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de partida a boa gestão pública, até mesmo em decorrência deque os primeiros têm que prestar contas de seus atos aos segun-dos. Poderia se afirmar, na ótica do autor, que a juridicização dodever de boa gestão pública é decorrente de profundas alteraçõesna teoria política do Estado, o qual passa a ter como suportenovos paradigmas teóricos de justificação, “entre os quais a buscae a implementação de resultados”, que alcança não só o nível ad-ministrativo, mas também o institucional. Pontifica que a boa ges-tão tem como pressuposto o respeito aos direitos fundamentaisda pessoa humana e a satisfação das demandas da cidadania,cumprindo as exigências do liame de confiança que une e deveunir governantes e governados, administradores e administrados2.

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2 E prossegue o autor (2007, p. 43-47) quando discorre sobre o imperativo ético daboa gestão pública na pós-modernidade e a perspectiva de responsabilidade dosagentes públicos: “O conceito de legitimidade pertence tanto ao campo da ética quantoao da teoria política. inclui um julgamento de valor sobre um sistema considerado glo-balmente, que será, assim, tido como legítimo ou ilegítimo, bom ou mau, conforme asrazões que impulsionam sua atuação e as necessidades sociais. Esse julgamento sedirige a um fim último do sistema, tomado este e seus elementos como meios aptospara produzir aquele, desde uma perspectiva interna ou externa de balizamento.Em síntese muito apertada, pode-se anotar que, no mundo pré-moderno, a legiti-midade dos sistemas políticos se fundamentou basicamente na religião ou empráticas próximas às religiões. no moderno, a legitimidade alicerçou-se funda-mentalmente na teoria do contrato social, na ética do consenso, no princípio desoberania popular e em discursos universalizantes na proclamação de direitos hu-manos. na pós-modernidade, os pressupostos de legitimidade passaram a serdeslocados para outros domínios, nomeadamente pelos critérios de eficiência, oque, para alguns autores, pode significar ocultar do discurso a discussão sobreos fins últimos do Estado, embora isto não seja realmente necessário.vemos a exigência de boa administração - tal e como funciona na atualidade -como produto específico da pós-modernidade, esse contexto no marco do qualos novos paradigmas ainda seguem abertos e os velhos em permanente questio-namento crítico. É certo que, nesse universo, o discurso político tem muito a vercom o econômico, especialmente no tocante aos paradigmas de qualidade, efi-cácia e eficiência dominantes no âmbito das atividades privadas. a gestão empresarial, entretanto, tem uns parâmetros próprios, distintos aos deconseguir exclusivamente satisfazer ao bem comum, o que produz paradoxos.Em relação às decisões públicas, o discurso ético da boa administração não seocupa exclusivamente de resultados, mas também de condutas eticamente cor-retas. Os meios e os fins são relevantes e positivamente valorados dentro dos pa-radigmas do bom administrador, daí a processualidade das relações nesse setor.ninguém duvida que a ética institucional do setor público impõe o ideal de boa ad-ministração e por, isso proíbe a má gestão pública.”.

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Osório observa, nesse ponto, que a corrupção tem sidoum assunto central no processo comunicativo de globalização,propiciando a união de esforços e energias internacionais, tantopara o seu combate quanto para se buscar o implemento, a difu-são e o fortalecimento de mecanismos preventivos e de diagnós-ticos precisos, tudo com vistas a objetivos comuns aos povoscivilizados e democráticos. Pondera, no entanto, que definir a pa-tologia da corrupção como “o uso indevido de atribuições públi-cas para obter benefícios privados” é muito amplo e ambíguo,“capaz de abarcar desde as mais insignificantes até as maiorespatologias imagináveis” (OsÓriO, 2007, p. 28). O termo carregaem si uma magia capaz de mobilizar a opinião pública e causarsérios prejuízos políticos e até econômicos e hoje os organismosinternacionais iniciam a adotar

[...] posturas mais coerentes e comprometidas com a soluçãodessas graves questões, abandonando o viés obsessivo pelaterminologia da corrupção, cujas entranhas resultam estreitaspara abarcar outros fenômenos. Esse é o caso do Código in-ternacional de Conduta para os titulares de cargos públicos,documento feito pelas nações Unidas. segundo esse Código,os titulares de cargos públicos serão, em última instância, leaisaos interesses públicos de seu país, tal como se expressempor meio das instituições democráticas de governo, de ma-neira eficiente e eficaz. Os agentes públicos devem ser dili-gentes, justos e imparciais, deveres genéricos, é verdade, quecomportam múltiplas formas de concretização e densidadenormativa, tarefa a cargo dos Estados soberanos. Tais deveressuperam o olhar limitado às desonestidades corruptas ou corrup-toras, alcançando outros domínios comportamentais, inclusivenão intencionais, apenas violadores de cuidados objetivos ediligentes que deveriam ser tomados.O que se nota é uma preocupação da OnU com problemasque transcendem os limites mais estreitos da corrupção pú-blica, deslocando o debate ao universo mais amplo da má ges-tão pública, embora os temas resultem entrelaçados e estamovimentação ainda seja tímida em seus sinais mais emble-máticos. (OsÓriO, 2007, p. 36-37)

ainda, registra Osório que alguns sistemas, como é o casodo brasileiro, estão enfocando mais a improbidade, expressão de

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conteúdo mais amplo, da qual a corrupção constitui apenas uma fa-ceta mais preocupante, mas não a sua inteireza. Dessa forma, na lin-guagem cotidiana a expressão improbidade substitui a corrupção,absorvendo o enriquecimento ilícito, tendo em vista que essa é a lin-guagem que se utiliza no meio forense e que é transplantada para osmeios de comunicação. O certo é que o Estado vem buscando mu-niciar-se de ferramentas para combater as variadas modalidades deatos ilícitos, seja as que abrangem a desonestidade ou as que assumema forma de ineficiências intoleráveis. ressalta que é nesse contextoque o direito brasileiro desempenha um papel de vanguarda, assu-mindo a liderança de um processo de renovação do sistema punitivo,“comprometendo-se com parâmetros de maior eficácia, desde oponto de vista das ferramentas disponíveis, não necessariamente dasinstituições competentes”.

na visão de silva (2008, p. 669), a probidade administra-tiva seria uma forma de moralidade administrativa que foi objetode atenção especial da Constituição, considerando-se que puniuo ímprobo com a suspensão de direitos políticos (art. 37, § 4º),conforme anotado linhas atrás. a probidade administrativa traduz-se, assim, no dever do funcionário da administração atuar comhonestidade ao exercer suas funções, sem aproveitar-se dos seuspoderes ou das facilidades deles decorrentes em proveito pessoalou de outra pessoa a quem queira beneficiar. O desrespeito aesse dever caracterizaria a improbidade administrativa. Pontificaque a improbidade administrativa constitui-se numa imoralidadeadministrativa qualificada pelo dano ao erário e correspondentevantagem ao ímprobo ou a outrem. no âmbito trabalhista a dou-trina desenvolveu uma concepção de probidade que se aproximamuito do dever do funcionário para com a administração3.

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3 O dispositivo da Consolidação das leis Trabalhistas (Decreto-lei n. 5.452, de 1ºde maio de 1943) que prevê a demissão do empregado por justa causa por ato deimprobidade é o art. 482, “a”, com a seguinte redação: “art. 482 - Constituem justacausa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbi-dade; [...]”. Em comentário sobre essa previsão, Garcia assim se manifesta: “aindaque en passent, é relevante tecer algumas considerações sobre o tratamento da

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a visão de silva no final do parágrafo anteriormente trans-crito, no sentido de que a “improbidade é uma imoralidade qualifi-cada pelo dano ao erário”, merece uma melhor reflexão, pois não éde todo acertada. Para a configuração da improbidade às vezes nãohá necessidade de prejuízo ao erário, e também nem toda infraçãoà legalidade (como previsto no art. 11 da lei n. 8.429/92) ou à moralpode ser vista de pronto como caracterizadora de improbidade.

Primeiramente, o art. 5º da lei n. 8.429/92 já sinaliza a des-necessidade de ocorrência do efetivo prejuízo ao erário para a con-figuração de improbidade administrativa ao estabelecer que“ocorrendo lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosaou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarci-mento do dano”. O gerúndio “ocorrendo” dá a exata noção de quepode não ocorrer e assim a lei será aplicável da mesma forma. nemtodos os incisos previstos no art. 9º necessitam do dano ao eráriopara sua configuração e o 11 e incisos não pressupõem a ocorrênciade dano ao erário público, pois nestes foram eleitas condutas queconfigurariam atos de improbidade administrativa que atentam con-tra os princípios da administração pública. ademais, o art. 21, i, es-tabelece que a aplicação das sanções previstas no art. 12 prescinde"da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público", o que reforçaa ideia da desnecessidade do dano ao erário para configuração deimprobidade. Essa conclusão é ainda mais robustecida pelo feixede sanções previstas para infração em seu art. 12, incisos i a iii, emque se prevê ressarcimento integral do dano “quando houver”.nesse ponto é de se observar, conforme anota Garcia, que o dis-posto no art. 21, inciso i, deve ser interpretado em harmonia, em es-pecial com o art. 10, pois para que haja subsunção de determinadofato às figuras previstas “neste dispositivo é imprescindível a oco-rrência de dano ao patrimônio público, o que, por evidente, não po-deria ser dispensado por aquele” (GarCia, 2006, p. 277).

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improbidade nas relações trabalhistas, seara em que sua presença consubstancia justacausa para a rescisão do contrato de trabalho pelo empregador (art. 482, i, da ClT)”.

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Para melhor elucidação do conceito de improbidade ad-ministrativa, torna-se adequado abrir um parêntesis para incursio-nar nos critérios propugnados na doutrina para a aplicação da lein. 8.429/92. Garcia prega, nesse aspecto, a utilização do princípioda proporcionalidade, de tal forma que se estabeleçam “critériospassíveis de demonstrar a configuração da improbidade adminis-trativa em sua acepção material”, evitando-se a realização de umaoperação mecânica (“formal”) de subsunção do fato à norma.Destaca que à atividade de concreção dos valores que foram elei-tos pelo legislador na referida lei devem ser estabelecidos limites,“sob pena de se transmudar uma legitimidade de direito em umailegitimidade de fato”. É necessário “uma valoração responsávelda situação fática”, pois assim é que essa legislação, restritiva dedireitos fundamentais, manter-se-á em harmonia com os limitesconstitucionais, “não incursionando nas veredas da desproposi-tada aniquilação desses direitos”4.

Então, utilizando-se o princípio da proporcionalidade emsentido estrito, torna-se inadequada a aplicação da lei n.8.429/92, por não configurar ato ímprobo, quando desprezível alesão aos deveres do cargo, tendo em vista que, além da insig-nificância do ato, a aplicação das sanções previstas no art. 12 da

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4 Em relação ao princípio da aplicação do princípio da proporcionalidade, prosse-gue Garcia (2006, p. 104-105): “Este princípio deflui do sistema e visa a evitar res-trições desnecessárias ou abusivas aos direitos constitucionais, permitindo abusca da solução menos onerosa para os direitos e liberdades que defluem doordenamento jurídico. Em linhas gerais, o princípio da proporcionalidade será ob-servado com a verificação dos seguintes fatores: a) adequação entre os preceitosda lei nº 8.429/92 e o fim de preservação da probidade administrativa, salvaguar-dando o interesse público e punindo o ímprobo; b) necessidade dos preceitos dalei nº 8.429/92, os quais devem ser indispensáveis à garantia da probidade ad-ministrativa; c) proporcionalidade em sentido estrito, o que será constatado a partirda proporção entre o objeto perseguido e o ônus imposto ao atingido, vale dizer,entre a preservação da probidade administrativa, incluindo as punições impostasao ímprobo, e a restrição aos direitos fundamentais (livre exercício da profissão,liberdade de contratar, direito de propriedade etc.). afora estes, os quais formariama denominada razoabilidade interna, luís roberto barroso acrescenta a razoabi-lidade externa, que representa a compatibilidade entre o meio utilizado, o fim co-limado e os valores constitucionais.”.

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lei n. 8.429/92 ao réu importa lesão maior do que aquela que elecausara ao ente estatal. nesse caso, poderão ser aplicadas aoagente público outras sanções (de caráter disciplinar, como a ad-vertência, etc.), que tenham compatibilidade com a reprovabilidadede sua conduta e com a natureza dos valores porventura infringidos.a improbidade administrativa, conforme observa Osório (2007, p.179), deve ser a última ratio do direito administrativo sancionador.

Propugna, pois, que “à improbidade formal deve estarassociada a improbidade material”, sendo que esta

não restará configurada quando a distorção comportamental doagente importar em lesão ou enriquecimento de ínfimo ou denenhum valor; bem como quando a inobservância dos princípiosadministrativos, além daqueles elementos, importar em erro dedireito escusável ou não assumir contornos aptos a comprome-ter a consecução do bem comum (art. 3°, iv, da Cr/88).

vê-se, pois, que a improbidade administrativa não estárelacionada a qualquer situação de desbordamento de preceitosmorais ou mesmo a desvios de pouca monta do erário, passíveisde correção por outras vias punitivas, como, por exemplo, de ca-ráter disciplinar no plano administrativo.

Destaca que, tendo sido encampado o princípio da digni-dade da pessoa humana como direito fundamental, ele deve ser uti-lizado conjuntamente com o princípio da proporcionalidade para, apartir da ponderação, evitar ilegítimas restrições a tais direitos. Men-ciona como parâmetro a técnica utilizada no direito germânico paraidentificar a "justa medida"5 na restrição aos direitos fundamentais.

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5 assim se manifesta Garcia (2006, p. 106-107): “De acordo com scholler, 'na aferiçãoda constitucionalidade de restrições aos direitos fundamentais, o Tribunal FederalConstitucional (alemão) acabou por desenvolver, como método auxiliar, 'a teoria dosdegraus' (Stufentheorie) e a assim denominada 'teoria das esferas' (Sphãnrentheorie).De acordo com a primeira concepção, as restrições a direitos fundamentais devemser efetuadas em diversos degraus. assim, por exemplo, já se poderá admitir umarestrição na liberdade de exercício profissional (art. 12 da lei Fundamental) por qual-quer motivo objetivamente relevante (aus fedem sachlichen Grund), ao passo queno degrau ou esfera mais profunda, o da liberdade de escolha da profissão, tida comosendo em princípio irrestringível, uma medida restritiva apenas encontrará justificativa

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Portanto, se o dano causado ou o benefício auferido não é expres-sivo (como a destruição de uma folha de papel comum, utilizaçãode um grampo para fins privados, etc.6), que seu ato atingiu in totum

o fim previsto na norma e que, no contexto em que o ato foi prati-cado, o erro de direito era plenamente escusável, a aplicação dalei n. 8.429/92 apresentará nítida desproporção com o ato, estandoausente a proporcionalidade em sentido estrito, pois o ônus impostoao agente em muito superará a lesividade de sua conduta:

não sendo identificada a prática de um ato objetivamente re-levante, não se poderá ascender, sequer, ao "primeiro degrau"da escala de restrição dos direitos, o qual seria atingido com amera aplicação da lei n° 8.429/92. Os "degraus subsequentes",por sua vez, serão galgados na medida em que for identificadaa relevância do ato, valorada a sua potencialidade lesiva e cons-tatada a reprovabilidade da conduta do agente, o que permitiráque seja aferida a sanção que se afigura mais justa ao caso [...].

Prossegue reforçando que, detectada apenas a improbidadeformal, deve incidir apenas as sanções de ordem política ou adminis-trativa, de natureza e grau compatíveis com a reprovabilidade do ato.

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para salvaguardar bens e/ou valores comunitários de expressiva relevância deameaças concretas, devidamente comprovadas, ou pelo menos altamente pro-váveis". Evidentemente, operação como essa, à luz do direito pátrio, não deverásopesar uma ordem axiológica supralegal; na alemanha, ao revés, é constante aadoção dessa técnica pelo Tribunal Constitucional, o que, não obstante as críticas,encontra ressonância no direito positivo daquele país.”.6 Esses exemplos são fornecidos por Garcia. Embora bastantes ilustrativos, elessão extremos e acabam por não fornecer um parâmetro para que se possa excluira configuração do ato ímprobo. a lei n. 9.469, de 10 de julho de 1997, que, entreoutras providências, regulamenta a atribuição do advogado-Geral de União pre-vista no art. 73, vi, da lei Orgânica da advocacia da União (lei Complementar n.73, de 10 de fevereiro de 1993, que possibilita, entre outras hipóteses, a desistên-cia em ações de interesse da União), estabelece, em seu art. 1º-a, que o “advo-gado-Geral da União poderá dispensar a inscrição de crédito, autorizar o nãoajuizamento de ações e a não-interposição de recursos, assim como o requeri-mento de extinção das ações em curso ou de desistência dos respectivos recursosjudiciais, para cobrança de créditos da União e das autarquias e fundações públi-cas federais, observados os critérios de custos de administração e cobrança”. jáno seu art. 1º-b. estatui que “os dirigentes máximos das empresas públicas fede-rais poderão autorizar a não-propositura de ações e a não-interposicão de recur-sos, assim como o requerimento de extinção das ações em curso ou de

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Obtempera, contudo, que a atipicidade (material) não tem o pro-pósito de abrir as portas da impunidade, e, nessa linha, a “suaaplicação deve manter-se adstrita às hipóteses em que a con-substanciação da improbidade venha a ferir o senso comum, im-portando em total incompatibilidade com os fins sociais da normae as exigências do harmônico convívio social (art. 5°, caput, daliCC)”. lembra, em conclusão, frase atribuída a jellinek, que sin-tetizaria a ideia de proporcionalidade: "não se abatem pardaisdisparando canhões".

Osório (2007, p. 89-90) alerta para a visão da improbi-dade administrativa sob a ótica da moral privada, o que resultaem um “indevido controle da vida privada dos agentes públicose a distorção fundamental do conceito de probidade no campoético-normativo”. Observa que, em face da prodigalidade do di-reito em criar tipos sancionadores da falta de probidade, não rarohá confusão por parte do povo sobre esses conceitos, “imagi-nando que probo seria o sujeito moralmente correto do ponto de

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desistência dos respectivos recursos judiciais, para cobrança de créditos, atualiza-dos, de valor igual ou inferior a r$ 10.000,00 (dez mil reais), em que interessadasessas entidades na qualidade de autoras, rés, assistentes ou opoentes, nas con-dições aqui estabelecidas” (ambos, artigos 1º-a e 1º-b, incluídos pela lei n. 11.941,de 2009). Como se vê, embora a configuração de atos de improbidade dependada análise de cada caso concreto, esses dispositivos nos permitem a reflexão nosentido de que, se a União ou as entidades públicas estiverem desistindo de valoresde até r$ 10.000,00, é possível admitir que, avaliadas as provas produzidas numaeventual ação judicial que questione um ato praticado imputando-o de ímprobo,possa ocorrer absolvição ainda que a lesão não se resuma aos valores ínfimos deuma folha de papel ou um grampo utilizado, conforme exemplos de Garcia. vejaque no âmbito penal a matéria já objeto de decisão pela sexta Turma do superiorTribunal de justiça, ao apreciar o rEsp 250631 / Pr, da relatoria do Ministro PauloGallotti (Dj de 18.02.2002, p. 525): “recurso Especial. Penal. Descaminho. Prin-cípio da insignificância. aplica-se o princípio da insignificância ao não pagamentode impostos em valores que o próprio Estado expressou o seu desinteresse pelacobrança. recurso especial não conhecido. acórdão. vistos, relatados e discutidosestes autos, acordam os Ministros da sexta Turma do superior Tribunal de justiça,na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade,não conhecer do recurso, nos termos do voto do sr. Ministro relator. Os srs. Mi-nistros Fontes de alencar, vicente leal e hamilton Carvalhido votaram com o sr.Ministro relator. ausente, justificadamente, o sr. Ministro Fernando Gonçalves”.

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vista de seus deveres privados” (fidelidade num matrimônio, pa-gamento de uma dívida junto ao vizinho, ajuda aos pobres quepedem esmolas, etc.). Defende que “aos agentes públicos se as-segura o supremo direito à imoralidade, dentro de limites maisestreitos, é certo”, e por isso considera incorreta a tese que buscaidentificar na improbidade uma imoralidade comum. Pondera, noentanto, que o regime jurídico de direito público é mais severo erigoroso que outros, o que reduz sensivelmente a vida privadados agentes públicos, sem indicar o desaparecimento desta.

sustenta, pois, que a improbidade não se identifica coma “mera imoralidade, mas requer, isto sim, uma imoralidade qua-lificada pelo direito administrativo”, pois também os agentes pú-blicos gozam dos direitos fundamentais à intimidade, àprivacidade, ao desenvolvimento livre de seus privados estilosde vida e personalidades. Dessa forma, os agentes públicos te-riam “espaços privados nos quais podem praticar atos imorais,desde que esses atos não transcendam os estreitos limites daética privada, não afetem bens jurídicos de terceiros”.

O problema da falta de probidade administrativa deve serreduzido, segundo Osório, ao universo da ética pública, no con-texto de normas jurídicas especificamente protetoras das funçõespúblicas, dos valores imanentes às administrações Públicas eaos serviços públicos.

acresce que a definição de improbidade como “uma imo-ralidade administrativa qualificada” merece uma justificação.nesse ponto, a bem da verdade, os preceitos dos arts. 5º, lxviii,lxix e lxxiii, 37, caput, § 4º, 142, vi, e 85, v, todos da Constitui-ção Federal brasileira, versariam normas de ética institucional, oude moralidade administrativa. a moral administrativa seria “fontedo dever de probidade administrativa que se encontra no art. 37,§ 4º”, pois esse dever seria uma espécie de moralidade, ou seja,“probidade é espécie do gênero moralidade administrativa”, de talforma que a “improbidade é imoralidade qualificada”, ou seja, “toda

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improbidade deriva de uma imoralidade administrativa, mas nemtoda imoralidade constitui uma improbidade administrativa”. asse-vera também a correção em se afirmar que o dever de probidadedescende de uma “ética institucional peculiar ao setor público, tra-duzindo um ponto de encontro entre normas éticas e jurídicas, noslimites da segurança e da capacidade de serem previstas as deci-sões dos operadores do direito” (OsÓriO, 2007, p. 88-89).

no sentido, portanto, de uma correta aplicação da lei n.8.429/92 (lei Geral de improbidade administrativa - lGia7) e comos olhos voltados para o seu artigo 11, o qual seria, na sua visão,o ponto de partida para a interpretação desta lei, Osório (2007,p. 326) afirma que, interpretados de forma leviana os deveresconsagrados na lGia, redundaria em que qualquer ilegalidadepoderia ser entendida como improbidade. no entanto, a regrageral será muito diferente, direcionando com precisão para o ca-ráter excepcional da lGia e de seus tipos sancionadores paraalcançar condutas marcadamente danosas e patológicas, de talforma que nem toda parcialidade, desonestidade, ilegalidade ouimoralidade administrativas configuram uma improbidade admi-nistrativa, automaticamente.

Como se pode inferir das posições doutrinárias, o conceitode improbidade administrativa não é de fácil intelecção. É preciso,pois, esforço investigatório com eficiência para que os elementosque caracterizem a ocorrência de improbidade administrativasejam identificados e, nesse contexto, os princípios da precauçãoe da prevenção, desenvolvidos no âmbito do direito ambiental,podem ser úteis na análise do contexto fático em que se deu aconduta do administrador objeto de questionamento.

vamos analisar agora o conceito de sociedade de riscopara, depois, buscarmos a resposta à indagação que o presentetrabalho pretende dar solução.

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7 Osório (2007, p. 182 e ss.) rotula lei n. 8.429/92 de “lei Geral de improbidade adminis-trativa” por considerá-la um “Código Geral da Conduta” dos agentes públicos brasileiros.

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O Que vem a ser uma sOciedade de riscO?

luhmann(1993, p. 3), quando discorre sobre a concepçãode risco, observa que atualmente o risco é procurado por umaampla variedade de áreas especiais de pesquisa e mesmo por di-ferentes disciplinas científicas. afirma que o tratamento estatísticotradicional sobre o cálculo do risco foi explorado pela investigaçãoeconômica. Fundamental nesse desenvolvimento foi a brilhanteabordagem feita por Frank knight. seu objetivo inicial era o de ex-plicar o lucro empresarial em termos da função de absorção in-certa. segundo luhmann, essa ideia não era nova, pois o autorFichte já a teria introduzido no que diz respeito à propriedade daterra e à diferenciação de classe. no moderno contexto da econo-mia, porém, ela tem permitido a união astuta das teorias macro emicro-econômica. assevera que a distinção de knight entre riscoe incerteza tem, no entanto, petrificado em uma espécie de dogma- de tal forma que a inovação conceitual recebe a censura de nãoter aplicado o conceito corretamente.

no entanto, anota luhmann, outras disciplinas não en-frentam o problema de explicar o lucro das empresas, nem estãopreocupadas com as diferenças e as ligações entre as teorias domercado e da empresa. indaga, então: “por que então elesdevem tirar o conceito a partir desta fonte?”. Mais à frente, luh-mann sustenta que para a sociologia deveria ser o tópico do riscosubsumido embaixo de uma teoria da sociedade moderna, e de-veria ser formado pelo aparelho conceitual disso. Mas, adverte,não haveria nenhuma tal teoria, e as tradições clássicas que con-tinuariam guiando a maioria dos teóricos no campo da sociologiaforneceriam poucas aberturas de tópicos como ecologia, tecno-logia e risco, sem falar dos problemas da autorreferência. res-salta que não se pode, nesse ponto, discutir as dificuldadesgerais da pesquisa interdisciplinar, pois há cooperação ao nível

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de projeto e campos de pesquisa que pode ser definida comotransdisciplinar (cita como exemplo a cibernética e a teoria desistemas). nesse contexto, a pesquisa dos riscos poderia repre-sentar uma nova possibilidade.

Contudo, afirma que as consequências negativas da par-ticipação por diversas disciplinas e áreas de pesquisa especiaisseriam mais evidentes. não haveria nenhuma definição do riscoque pudesse satisfazer os requisitos da ciência. Pareceria quecada área da pesquisa envolvida estaria satisfeita com a orienta-ção fornecida pelo seu particular contexto teórico. Em funçãodisso seria de se indagar se, em áreas de pesquisa individuais, eaté na cooperação interdisciplinar, a ciência saberia sobre o queestaria falando. se só para razões epistemológicas poderíamosnão assumir que uma coisa como o risco existe, e que ele é sóuma matéria de descobrimento e investigação. a aproximaçãoconceitual constituiria o que está sendo tratado. O próprio mundoexterior não conheceria ele próprio nenhum risco, já que ele nãosaberia nem distinções, nem expectativas, nem avaliações, nemprobabilidade - exceto as produzidas autonomamente por siste-mas de observação no meio ambiente ou outros sistemas.

alerta luhmann (1993, p. 6) para o fato de que, quandobuscamos definições do conceito de risco, imediatamente encon-tramo-nos obscurecidos, com uma impressão de sermos incapazde ver além do nosso próprio para-choque dianteiro. Mesmo ascontribuições focando o tópico diretamente não conseguiriamapreender o problema de forma adequada. O conceito do riscoseria frequentemente definido como uma “medida”, contudo, sefosse só um problema da medição, não estaria suficientementeclaro sobre o que seria todo o distúrbio. Os problemas da mediçãoseriam problemas da convenção, e, em todo caso, os riscos damedição (assim como de erros de medição) não seriam os mes-mos como o que estaria sendo medido como um risco. Tais exem-plos poderiam ser multiplicados infinitamente, paradoxalmente

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nas ciências exatas especialmente, já que elas pareceriam as-sumir que a exatidão tem de ser expressa na forma de um cálculoe que o uso da língua diária consequentemente não necessitarianenhuma precisão. seria, contudo, geralmente concordante quenão se deve dar muita importância para questões de definição,já que as definições serviriam só para delimitar, não apropriada-mente para descrever (excluindo explicar) o objeto sob investiga-ção. a despeito de tudo, se não fosse de modo nenhum claro como que se supõe que cada um estivesse tratando, seria bastanteimpossível começar a investigar.

E, justa ou injustamente, ao sociólogo seria permitido as-sumir que essa imprecisão ofereceria a oportunidade de trocartópicos conforme a moda e a opinião, com mudança de patroci-nadores e turnos em atenção ao público. assim, teríamos a boarazão para concernir-nos inicialmente com a delimitação do ob-jeto da pesquisa dos riscos. Entende, desse modo, que teria boasrazões para se preocupar inicialmente com a delimitação do ob-jeto de pesquisa do risco.

Dispara luhmann (1993, p. 8) que as civilizações antigasteriam desenvolvido técnicas bastante diferentes para tratar comproblemas análogos, e, por isso, não teriam tido nenhuma ne-cessidade de uma cobertura de palavra, o que agora entende-mos pelo termo “risco”. a humanidade sempre teria estadonaturalmente preocupada com a incerteza sobre o futuro.

a maioria dessas civilizações, contudo, sempre confiouem práticas proféticas, que - embora incapazes de fornecer se-gurança fiável - sem embargo assegurariam que uma decisãopessoal não teria acordado “a ira dos deuses” ou de outros po-deres impressionantes, mas teria sido salvaguardada pelo con-tato com as forças misteriosas do destino. Em muitos aspectoso complexo semântico do pecado (conduta que contradiz instru-ção religiosa) também representa um equivalente funcional, jáque ele pode servir para explicar como se sucede o infortúnio.

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no comércio marítimo oriental antigo houve já o quepode ser descrito objetivamente como consciência dos riscos,acompanhada pelas respectivas instituições legais, que, em pri-meiro lugar, deveriam ser apenas distinguidas de programas deprofecias, apelações a deuses tutelares, etc., mas que de umponto de vista da lei - particularmente o tanto quanto a distribui-ção de papéis entre os fornecedores da capital e os marinheirosfosse envolvido - claramente exerciam a função de seguros. Talfato, com relativa continuidade até a idade Média, influenciou alei marítima do comércio e a lei do seguro marítimo.

Mesmo na antiguidade não cristã não teria havido, con-tudo, nenhuma consciência de decisão totalmente desenvolvida.assim, o termo “risco” teria aparecido primeiro no período transi-cional entre a idade Média e a primeira era moderna.

a etimologia da palavra seria desconhecida, segundoluhmann8. alguns suspeitariam que ela tivesse origem arábica.na Europa, a palavra poderia ser encontrada em documentosmedievais, mas ela teria vindo à tona só com o advento da im-prensa escrita, na fase inicial, ao que parece na itália e na Es-panha. não haveria nenhum estudo abrangente da etimologia eda história conceitual do termo, e isso seria compreensível desdeque a palavra, no início, aparece por vezes raramente e é usadaem uma grande variedade de contextos. Ela encontra aplicaçãosignificativa nos campos de navegação e do comércio. O seguromarítimo é um primeiro exemplo de controle dos riscos planejado,mas em outro lugar também encontramos formulações como “ad

risicum et fortunam” ou “pro securitate et risico” ou “ad omnem

risicum, periculum et fortunam dei” em contratos nos quais al-guém deve suportar uma perda no caso da sua ocorrência.

O termo risco teria permanecido, contudo, limitado a essedomínio, mas teria se estendido a partir de 1500, provavelmente

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8 busca, então, desenvolver a concepção sociológica de risco, sob a ótica do perigo(lUhMann, 1993, p. 17-22).

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com a expansão da impressão. anota que scipio aminirato teriaescrito, por exemplo, que seja quem fosse que propagasse umrumor geraria um risco (rischio) de ser perguntado onde teria ob-tido a sua informação. Também Giovanni botero teria escrito “chi

non risica non guadagna” e, seguindo uma velha tradição, distin-guiria essa máxima de projetos vãos e temerários. annibaleromei teria reprovado quem “non voler arrischiar la sua vita per

la sua religione”. Em uma carta dirigida a Claudio Tolomei porluca Contile, no século xv, seria encontrada a formulação: “vi-

vere in risico di mettersi in mano di gente forestiere e forse bar-

bare”. Desde que a língua existente tenha palavras para “perigo”,“ventura”, “possibilidade”, “sorte”, “coragem”, “medo”, “aventura”,etc., à sua disposição, poderíamos assumir que um novo termoentra em uso para indicar uma situação problemática que nãopoderia ser expressa de forma suficientemente precisa com o vo-cabulário disponível. De outro lado, a palavra ultrapassaria o con-texto original (por exemplo, na citação “non voler arrischiar la sua

vita per la sua religione”), de tal forma que não seria fácil recons-truir as razões do novo conceito, que nasce com base nessasocorrências casuais do termo.

beck (1992) afirma que a multiplicidade de definições dosriscos da civilização com o aparecimento de “mais e mais riscos”,possibilita a dramatização de “outro risco” para defender a utiliza-ção de um produto perigoso, bem como a manipulação conceitualpara assegurar o seu próprio negócio9. Destaca o autor a possi-bilidade de que as causas de efeitos danosos, como, por exemplo,a destruição florestal, serem manipuladas ao sabor de concep-ções individuais e apoiadas em explicações científicas elaboradaspara defesa de determinado ponto de vista. beck indaga:

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9 “The Multiplicity of Definitions: More and More risks. The theoretical content andthe value reference of risks imply additional components: the observable conflictualpluralization and multiplicity of definitions of civilization's risks. There occurs, so tospeak, an overproduction of risks, which sometimes relativize, sometimes supple-ment and sometimes outdo one another. One hazardous product might be defended

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O automóvel seria “o poluidor principal da nação” e assim overdadeiro “assassino florestal”? Ou é finalmente tempo parainstalar aparatos de alta qualidade e última geração de car-vão? Ou resultaria demasiado possivelmente inútil, desde queos poluentes que causam a morte da floresta sejam entregues“gratuitos à nossa entrada” (ou “gratuitos à nossa floresta”) daschaminés e escapamentos de países vizinhos?

aqueles que se encontram no pelourinho público comoprodutores dos riscos refutariam as acusações como pudessem,com a ajuda "de uma contra-ciência" que gradualmente está seinstitucionalizando na indústria, e tentariam fazer entrar outrascausas e, assim, outros causadores. O quadro reproduzir-se-ia.O acesso aos meios de comunicação, portanto, se tornaria cru-cial. a insegurança dentro da indústria intensificar-se-ia: ninguémsaberia quem seria o próximo a ser batido pela anátema da mo-ralidade ecológica. Os bons argumentos, ou, ao menos, os argu-mentos capazes de convencer o público, se tornariam umacondição para o êxito dos negócios. Os publicitários, “os artíficesde argumentação”, conquistariam seu espaço na organização(bECk, 1992, p. 32).

Essa passagem de beck é bastante interessante de re-gistrar, tendo em vista demonstrar que a manipulação da próprianoção de risco hoje pode estar umbilicalmente ligada a uma co-municação “adequada”, o que vale também para a atividade ad-ministrativa dos governos, os quais procuram mascarar errosatravés de informações nem sempre fidedignas. não é infrequente

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by dramatizing the risks of the others (for example, the dramatization of climaticconsequences “minimizes” the risk of nuclear energy). Every interested party at-tempts to defend itself with risk definitions, and in this way to ward off risks whichcould affect its pocketbook. The endangering of the soil, plants, air, water and ani-mals occupies a special place in this struggle of all against all for the most beneficialrisk definition, to the extent that it expresses the common good and the vote ofthose who themselves have neither vote nor voice (perhaps only a passive fran-chise for grass and earthworms will bring humanity to its senses). This pluralism isevident in the scope of risks; the urgency and existence of risks fluctuate with thevariety of values and interests. That this has an effect on the substantive elementof risks is less obvious” (bECk, 1992, p. 31).

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o uso dos meios de comunicação para alardear medidas admi-nistrativas “imprescindíveis” para conter, como “única” soluçãoviável, resultados negativos de situações fáticas consumadas ouem andamento.

jaeger (2001, p. 16 e ss.), ao responder à pergunta “o queé risco?”, afirma que, no uso comum, risco tem uma larga variedadede conotações: o medo de riscos específicos; a preocupação coma interdependência dos sistemas humanos e tecnológicos; a incer-teza quanto a lucro ou perda financeiros; o medo das forças malé-volas da natureza; ou a emoção da aventura, ou a preocupaçãosobre a competência e a probidade daqueles que administram osriscos. apesar da variação no uso, contudo, essas noções unificamcaracterísticas que fundam a significação do risco. Todos os con-ceitos do risco pressupõem uma distinção entre predeterminaçãoe possibilidade, já que, se o futuro foi predeterminado ou indepen-dente de atividades humanas presentes, a noção "do risco" não fazsentido. seja qual for a variação na conotação, o risco contém aideia da possibilidade de um resultado, ou seja, a possibilidade éum elemento indispensável do risco. a incerteza seria o segundoelemento componente do risco. na sequência, adota como conceitode risco: “a situation or event in wich something of human value(including humans themselves) has been put at stake and wherethe outcome is uncertain”.

a administração dos riscos implica, prossegue jaeger(2001, p. 17), que os resultados indesejáveis podem ser às vezesevitados, e, onde inevitáveis, podem ser mitigados se as conexõesentre causa e efeito forem feitas de forma apropriada. assim, o riscotipicamente é normativo, bem como descritivo ou analítico. isto é,o risco implica o juízo de avaliação sobre o desejo de resultados.

as considerações anteriores sobre a conceituação doque é risco em muito aproximam essa teoria do campo de deci-sões que o administrador público tem que tomar para atender ointeresse público.

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O princípio da prevenção e da precaução em matéria de risco

luhmann (1993, p. 29), ao concluir o capítulo de sua obraonde procura trabalhar o conceito de risco, tece rápidas consi-derações acerca do “problem of prevention”, o qual, segundo ele,medeia a decisão e o risco. Por prevenção quer luhmann dizer,em linhas gerais, preparar-se para perdas incertas e futuras atra-vés da procura da redução da probabilidade da ocorrência des-sas perdas ou da sua própria extensão. a prevenção poderia serassim praticada tanto em caso do perigo como em caso do risco.Poder-se-ia se precaver até contra perigos não atribuíveis às pró-prias decisões. nós treinamos, por exemplo, no uso de armas,fazemos certas provisões financeiras de emergência, ou cultiva-mos amigos que podemos procurar se precisarmos de ajuda, re-flete luhmann. Contudo, tais estratégias de segurança são umaexibição suplementar. a motivação geral que estaria por trás des-sas providências seria a percepção de que a vida neste mundoé carregada de incertezas10.

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10 Prossegue luhmann afirmando que, pelo contraste, se estivermos tratando como risco, a situação seria em aspectos significantes diferentes, já que nesse casoa prevenção influiria na vontade de tomar riscos e isso afeta uma das condiçõesda ocorrência da perda. se houvesse um método de construção mais ou menosresistente a terremoto, cada um seria mais prontamente inclinado a construir emuma área propensa a terremoto. Um banco seria mais disposto a conceder umempréstimo se o interessado pudesse fornecer garantias suficientes. Para a loca-ção de uma estação de produção de energia nuclear, as possibilidades de rapi-damente evacuar a população civil (isso teria paralisado um projeto em longisland) seria um aspecto bastante importante. Mas o ciclo de redução e aumento de risco, determinado pelo fator de “estar pre-parado”, iria muito além disto, segundo luhmann. Os estudos no comportamentodos gerentes de riscos evidenciariam que eles demonstram uma tendência bas-tante comum de superestimar o seu controle sobre o curso de desenvolvimentode perigos possíveis, ou mesmo firmar a sua decisão rejeitando dados disponíveise obtendo estimativas diferentes, mais favoráveis. Em outras palavras, cada umativamente procura a confirmação da suposição que o curso de eventos perma-necerá receptivo para controlar. Esse tipo de comportamento poderia também serdescrito como uma estratégia de distribuição dos riscos. O risco primário da deci-são - que seria o primeiro assunto - seria absorto, completado e enfraquecido por

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Quem procedeu ao estudo no direito brasileiro sobre osprincípios da prevenção e da precaução de forma bastante didá-tica foi leite e ayala (2004), os quais anotam que esses princípiossão reputados estruturantes para a organização do Direito do

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um risco secundário, que, desde que ele seria também um risco, pode, em certascircunstâncias, aumentar o risco primário. nesse caso, o risco de eliminação dorisco permaneceria um risco. Desde que ambos, riscos primários e riscos de pre-venção, seriam riscos, implicariam os problemas de avaliação dos riscos e acei-tação. Mas a sua dependência mútua fá-lo-ia uma matéria complexa e que seria,para todas as intenções e propósitos, imprevisível. bem que poderíamos enxergara prevenção com olhos diferentes e aceitá-la de forma mais disposta, porque elaserve como segurança contra um risco primário. buscaríamos e encontraríamosum risco de álibi. saberíamos os riscos implicados em instalações técnicas e es-taríamos, por isso, mais dispostos a confiar no pessoal contratado numa relaçãode emprego para controlar tais riscos, ou na redundância de outro tipo. Finalmente, o problema em discussão também teria um aspecto político. Para aavaliação política do risco aceitável, permissível, a tecnologia de segurança, bemcomo todas as outras medidas tomadas para diminuir a probabilidade da ocorrênciade perdas ou reduzir perdas ou dano em caso de acidentes, desempenhariam umpapel considerável; o alcance da negociação seria presumivelmente encontradonesse campo e não naquele de opiniões divergentes quanto ao risco primário.Mas precisamente esse desenvolvimento levaria a política a um território enga-nador. só não é exposto ao habitual e à subavaliação de riscos, que inicialmenteprovoca a politização dos tópicos, mas também a torcimentos que resultariam dofato que cada um considera o risco primário como controlável ou incontrolável,dependendo do resultado que cada um estaria esperando realizar. Cada avaliaçãodos riscos seria e permaneceria um contexto atado. nem psicologicamente nemem condições sociais prevalecentes estaria lá uma preferência abstrata de riscosou a falta da preferência. Mas o que aconteceria se o contexto que produz a pró-pria avaliação dos riscos for um novo risco?Conclui luhman afirmando que seria necessário, nesse contexto, rever a distinçãode risco e perigo, em especial em relação à política. Mesmo se ele fosse só umaquestão de perigo no tocante à catástrofe natural, a omissão da prevenção tornar-se-ia um risco. seria aparentemente mais fácil distanciar alguém politicamente deperigos do que de riscos - mesmo onde a probabilidade da perda ou a extensãoda perda é maior em caso do perigo do que naquele do risco; e presumivelmentetambém independentemente da questão (mas isso necessitaria uma investigaçãometiculosa) de como a prevenção fiável em cada caso seria e o que ela custaria.Mesmo se a prevenção está disponível para ambos os tipos da situação, poderia ser semembargo relevante se o problema primário é tratado como perigo ou risco. Exemplificacom uma situação ocorrida na suécia, onde teria sido politicamente oportuno evacuar umgrande número de pessoas pelo helicóptero de uma área onde ocorreria um teste de ummíssil, muito embora a probabilidade e a extensão da perda no caso de um choque dehelicóptero fosse muito maior do que a possibilidade que uma única pessoa viesse a seratingida pelo entulho do míssil que cairia na área que era habitada de modo esparso. Masum caso foi, ao que parece, avaliado como um risco, enquanto o uso do helicóptero (alémdisso bastante incorretamente) só como um perigo (lUhMann, 1993, p. 29-31).

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ambiente. Esses princípios definiriam, em essência, um Direitodo ambiente de conteúdo precaucional e de antecipação. Evi-denciariam a importância da orientação de antecipação e o con-trole da previsão dos riscos, que ocuparia posição de destaquenos modelos democráticos participativos que qualificam os sis-temas constitucionais contemporâneos.

leite e ayala (2004) sustentam que, para a compreensãoda diferenciação do círculo de aplicação de cada princípio ser rea-lizada, é possível estabelecer uma distinção entre perigo e risco,estando presente, nas duas espécies de princípios, o elementorisco, mas sob configurações diferenciadas. Entretanto, afirmamque, se fosse a pretensão a união semântica das categorias derisco (atual e concreto ou potencial) e de perigo, seria possívelconsiderar que o princípio da prevenção se dá em relação ao pe-rigo concreto, enquanto, em se tratando do princípio da precau-ção, a prevenção é dirigida ao perigo abstrato.

O conteúdo cautelar do princípio da prevenção seria di-rigido pela ciência e pela detenção de informações certas e pre-cisas sobre a periculosidade e o risco fornecido pela atividade oupelo comportamento, que, assim, revelaria uma situação de maisverossimilhança do potencial lesivo que aquela controlada peloprincípio da precaução.

a prevenção se justificaria pelo perigo potencial de quea atividade sabidamente perigosa poderia produzir efetivamenteos efeitos indesejados e, em consequência, um dano ambiental,logo, prevenindo de um perigo concreto, cuja ocorrência seriapossível e verossímil, sendo, por essa razão, potencial. sua apli-cação, portanto, procuraria evidenciar que seria provável que aatividade perigosa se demonstrasse de fato perigosa, ou seja,concretamente perigosa, evidenciando que seria possível queviesse a produzir os efeitos nocivos ao ambiente.

a emissão de efeitos poluentes ou degradadores pelaatividade perigosa seria potencial, provável e verossímil. seria

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objetivada a prevenção ou a cautela contra o risco de dano oulesão oriunda da possibilidade de que a atividade perigosa pro-duzisse concretamente os efeitos nocivos proibidos.

Dessa forma, não bastaria, simplesmente, que se tivessecerteza do perigo da atividade (periculosidade da atividade), masdo perigo produzido pela atividade perigosa. Ou, em outras pala-vras, de que a atividade perigosa colocasse o ambiente, poten-cialmente (de forma verossímil), em estado de risco (ou deperigo). Esta (atividade perigosa) deveria demonstrar também ve-rossímil capacidade de poluir ou degradar, entendendo-se, paraos efeitos da aplicação do princípio da prevenção, no seguintesentido: seria possível (juízo de verossimilhança) que a atividadeperigosa poluísse ou degradasse. logo, medidas preventivas se-riam necessárias (já que a origem do risco seria conhecida).

anotam leite e ayala (2004) que toda a análise sistemá-tica dos riscos de qualquer atividade deveria compreender, ne-cessariamente, a observação de três elementos: a avaliação, agestão e a comunicação dos riscos. O âmbito funcional da apli-cação do princípio da precaução se circunscreveria ao da gestãodos riscos, relacionado diretamente com o desenvolvimento dasatividades de participação generalizada nos processos políticosde tomada de decisões, e aí residiria a importância de sua qua-lidade para o desenvolvimento das instituições democráticas.

a incidência do princípio da precaução se adstringiria à hi-pótese de risco potencial, ainda que esse risco não tivesse sido inte-gralmente demonstrado, não pudesse ser quantificado em suaamplitude ou em seus efeitos, devido à insuficiência ou ao caráter in-conclusivo dos dados científicos disponíveis na avaliação dos riscos.

Portanto, o domínio específico de sua aplicação envol-veria a necessidade de resolução de problemas a partir de baseslimitadas de conhecimento, circunstância que enfatiza sua com-preensão a partir de uma dimensão programadora, que se con-centraria em buscar alternativas de tomada das melhores

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decisões possíveis, objetivando a superação dos estados de in-certeza. Uma atuação precaucional exigiria a tomada de deci-sões, ainda que o conhecimento disponível no momento nãoestivesse em condições de permitir uma correta avaliação dosriscos, com a finalidade de justificar ou fundamentar as ações oumedidas necessárias.

reconhecer a incerteza que permea a identificação e aavaliação dos riscos não permitiria sustentar, no entanto, que aaplicação do princípio da precaução prescindiria de tais ativida-des, pois seria a partir da avaliação que os graus de incertezacientífica poderiam ser estabelecidos, e, em consequência, fixa-se até que ponto a incerteza científica precisaria ser superadamediante decisões, e principalmente, se possível, qual o nível derisco considerado inaceitável.

Mesmo não sendo possível atingir um nível integral decompreensão dos riscos, dever-se-ia procurar caracterizá-los damelhor forma possível e da maneira permitida pelo conhecimentodisponível, com o objetivo de estabelecer diretrizes para a aplica-ção concreta do princípio da precaução e reduzir o nível de incer-teza verificado.

Denotam leite e ayala (2004) que a jurisprudência comuni-tária europeia, em diversas ocasiões, vem delineando as condiçõesa partir das quais poderiam ser justificadas medidas precaucionais,e cita, entre outros casos, o Pfizer (Tribunal de 1ª instância da Co-munidade Europeia),

no qual se discutiu a pertinência da implementação de medi-das precaucionais diante dos riscos à saúde humana, que es-tariam associados ao uso da virginiamicina como aditivo naalimentação animal. nesse caso, a afirmação dos riscos con-sistia na possível transferência da resistência antimicrobiana,do animal para o homem, resultando em redução da eficáciade certos medicamentos, contexto a partir do qual puderamser estabelecidas várias diretrizes de orientação para a apli-cação do princípio, sendo a mais importante, no sentido deque o princípio da precaução autorizava a decisão por medi-das preventivas sem que fosse necessário aguardar até que

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a realidade dos riscos e a gravidade de seus efeitos potencial-mente adversos estivessem plenamente demonstrados pormeio de provas científicas concludentes.

anota que no acórdão considerou-se expressamente que:

[...] salvo esvaziando-se o princípio da precaução do seu efeitoútil, a impossibilidade de realizar uma avaliação científica com-pleta dos riscos não pode impedir a autoridade pública com-petente de tomar medidas preventivas, se necessáriorapidamente, quando tais medidas sejam indispensáveis aten-dendo ao nível de risco para a saúde humana determinado poresta autoridade como sendo inaceitável para a sociedade.

não se exigiria, portanto, a demonstração exaustiva ecompleta sobre a existência de riscos, sua identificação e especi-ficação, caracterização ou demonstração segura sobre a extensãode seus efeitos, apreciação que se submete a um juízo de veros-similhança, que orienta a formação científica da convicção da atri-buição da qualidade de periculosidade ao comportamento. se acerteza não é pressuposto para uma atuação precaucional, pro-curar conhecer da melhor forma possível e permitida os graus deincerteza que permeiam a decisão é condição de relevante consi-deração na aplicação do princípio.

Prudência ou abstenção?

kourilsky (2001) desenvolve um raciocínio para demons-trar que o princípio da precaução e prevenção deve ser analisadocom profundidade para que não seja entendido como “absten-ção”. alerta que o cerne conceitual e operacional do princípio daprecaução residiria no aprofundamento do conceito de risco, ouseja, seria necessário dar conteúdo ao conceito de risco. nessacondição, indaga se poderíamos passar de uma compreensãoabstencionista para uma prática ativa do princípio da precaução.

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alerta que seria preciso ficar atento ao significado das palavras,pois o risco deve ser distinguido do perigo. O perigo seria aquiloque compromete a segurança, a existência de uma pessoa oucoisa. já o risco seria um perigo potencial, para mais ou paramenos, previsível. O risco não seria um perigo. Um perigo seriaalgo prejudicial à saúde. anota que há cerca de cem anos umalonga controvérsia teria abalado os parisienses sobre os riscosque poderiam envolver a instalação de uma rede de esgotos sub-terrânea: alguns temiam que ela espalhasse germes, que lon-dres e Estocolmo já tinham há anos. Enfim, não se verificouqualquer risco, mas um risco potencial pode ser zero. Poder-se-iam diminuir os riscos de um acidente de um avião ou de um au-tomóvel, mas não se poderia atingir o risco zero. no que dizrespeito aos riscos potenciais, o risco seria criado pela hipótese,e teoricamente poderia ser zero, a menos que a operação inte-lectual declarasse plausível anulá-lo e decidisse que a hipótesedevesse ser ignorada. Eles poderiam pensar que a velocidadesuperior a vinte milhas por hora é intrinsecamente perigosa parao organismo, mas o risco seria considerado hoje nulo, quer dizer,seria simplesmente colocado de lado. Passa, então, a analisar oprincípio da precaução e da prevenção.

afirma que a distinção entre o risco potencial e o riscocomprovado teria sua raiz na diferença entre prevenção e pre-caução. Precaução seria relativa aos riscos potenciais e preven-ção aos riscos comprovados. Muito frequentemente seconfundiria precaução e prevenção. Geralmente, pensa-se queos riscos potenciais seriam pouco prováveis e eles seriam in-conscientemente assimilados aos riscos comprovados, cuja pro-babilidade de controle seria ainda menor. isso seria, na suaconcepção, duplamente errado. Em primeiro lugar, as probabili-dades não seriam da mesma natureza (no caso da precaução,que seria a probabilidade de que a hipótese estivesse correta;no caso da prevenção, a periculosidade seria estabelecida e

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seria a probabilidade do acidente). além disso, e principalmente,os riscos potenciais, apesar do seu caráter hipotético, poderiamter uma alta probabilidade de realização. na prática, porém, aprecaução, sustenta kourilsky, poderia ser entendida como o pro-longamento dos métodos de prevenção aplicados aos riscos in-certos. analisa, também, a distinção entre precaução eprudência. À semelhança de qualquer ação humana, o exercícioda precaução apresentaria um risco. O primeiro seria o de seequivocar na definição e avaliação dos riscos potenciais. Estesseriam, por vezes, impossíveis de se quantificar (“riscos não-pro-babilizáveis”), porque as observações seriam incompletas ou osinstrumentos atingiriam seus limites práticos e teóricos. assim,inevitavelmente, há coincidências entre a vacinação realizada emuma população inteira e o aparecimento de uma doença particu-lar em um pequeno número de pessoas vacinadas.

se a frequência de coincidências é demasiada baixa, a corre-lação, como a ausência de correlação, será impossível de se estabe-lecer através de estatísticas. Esta é uma verdadeira lei de incerteza,tão implacável como a que rege a física de eletróns. E deveria ser res-saltado que o instrumento estatístico dá, naturalmente, resultados maise mais aleatórios à medida que estaria interessado em fenômenos maise mais raros. aqui estaria um verdadeiro limite teórico que não poderiaser afastado apenas pelo aumento do tamanho da amostra analisada.Mas esse aumento de tamanho, por sua vez, amplia as incertezas deinterpretação pela necessidade de ter em conta outros fatores (porexemplo, geografia).

O estabelecimento de medidas de precaução poderialevar a erros, se todas as consequências não tiverem sido pesa-das com antecedência. nem sempre seria fácil. O processo queteria levado, em 1987, ao Protocolo de Montreal sobre a proteçãoda camada de ozônio seria exemplar, pois levou a uma ação pla-netária. Talvez tivesse sido mais prudente se ater a alguns as-pectos da sua implementação. Os países ricos teriam feito um

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esforço para pagar os mais pobres, mas, para os frigoríficos,gases substitutos comprovadamente menos eficientes e o pro-cesso de destruição dos equipamentos antigos, peças, etc., te-riam criado certa confusão. Dever-se-ia estar ciente, ainda, quemedidas radicais de proibição poderiam fechar o campo experi-mental e eliminar qualquer possibilidade de provar ou refutar ahipótese que teria conduzido à decisão e, assim, inovações po-tencialmente úteis seriam, então, permanentemente retiradas.Daí a necessidade geralmente reconhecida para se desenvolveruma área de investigação. além disso, seria ingênuo ignorar quea precaução tem um custo e que seria, em geral, amplamente di-vulgado na comunidade. Por último, as medidas de prevençãopoderiam ser prejudiciais para os indivíduos não geradores derisco potencial. Estes teriam, então, direito a reclamar uma inde-nização do Estado ou da justiça. Do mesmo modo, aqueles queestão por trás do risco potencial poderiam contestar decisõescontrárias aos seus interesses e obter também reparação se aavaliação dos riscos potenciais estivessem errados.

no total, não seria um trocadilho afirmar que o princípioda precaução deveria reger a aplicação da precaução. Essa apa-rente tautologia reflete o fato de, bem como a prevenção, a pre-caução é filha da prudência. aplica-se ao público e ao privado,onde suas decisões têm riscos potenciais ou comprovados. aprudência exigiria se considerar a possibilidade e as consequên-cias das suas ações e as providências necessárias para que seevitasse causar dano a outrem. no âmbito da prudência, o prin-cípio da precaução exprimiria a demanda social para a reduçãode risco. Ela exigiria um reforço da prevenção e da utilização deferramentas adequadas para gerir riscos potencialmente gravese irreversíveis, cuja probabilidade de ocorrência seria baixa epouco conhecida.

as convergências entre precaução, prevenção e prudênciapoderiam justificar que se substituísse o princípio de precaução por

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um princípio de prudência, que abrangeria precaução e prevenção.Essa opção parece ser pouco realista da forma como o princípioda precaução é difundido. Poderia, contudo, ser útil para guardarna memória, se persistente a incompreensão sobre o significadodo princípio da precaução - por exemplo, se uma fração tão signi-ficativa da opinião continuasse a incluir o princípio da precauçãocomo uma regra sistemática de abstenção ou se fosse a alternativapara evitar bloqueios e promover um melhor entendimento nas dis-cussões internacionais.

a respOnsabiliZaÇÃO dO exercente dO cargO públicOnuma sOciedade de riscO

Cunha (2004, p. 115) observa que, em 1989 e 1990, oprincípio da precaução foi, respectivamente, consagrado comoprincípio geral da política ambiental pela Comissão Econômicadas nações Unidas para a Europa, e foi, universalmente, consa-grado na Declaração do rio de janeiro.

afirma que a sociedade evolui e a evolução acarretarianovos problemas, que postulariam novas soluções. a ordem ju-rídica teria a função de encontrar princípios ou regras metodoló-gicas para a solução desses problemas, diferendos ou interessesque colidem, onde o princípio da precaução deve ser encaradocomo um princípio metodológico, de procedimento, subjacenteao processo decisório e seu fundamento.

Finca que o domínio por excelência do princípio da pre-caução seria o do ambiente, área onde o risco releva e mais efeitosé apto a produzir, mas o princípio teria evoluído no sentido da apli-cabilidade nas mais diversas áreas do direito nas quais o conceitode risco apresentasse características análogas às verificadas na

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área do direito do ambiente. Cita, como exemplos, os direitos doconsumo, nomeadamente com a introdução das chamadas con-dições gerais dos contratos e a consequente proibição de inclu-são de cláusulas que possam significar o aproveitamento dadebilidade dos consumidores; e o do urbanismo, onde o tecidonormativo, através dos institutos planificadores, com os múltiplosplanos de ordenamento do território, pretende determinar, comantecedência, eventuais danos, para que estes possam ser co-rrigidos na fonte, com medidas do foro cautelar.

Cunha entende, pois, aberta a possibilidade de se aplicaresse princípio a outros ramos do direito.

nessa linha, Ericson e haggerty (1997, p. 51) obtempe-ram que vários ramos do direito, além da área criminal, têm sidoinstrumentos para interpretar práticas sociais do risco. E a lei civilespecialmente teria se expandido em nome do controle de risco.baseados em Pries, afirmam que a função principal da lei civilmoderna seria controlar o risco.

nesse sentido, porque não indagar: podem ser não só oprincípio da precaução e da prevenção, mas mesmo as noçõesde risco, desenvolvidas no âmbito do direito ambiental, utilizadastambém para a avaliação de decisões tomadas e que podem sesubsumir nas hipóteses de ato ímprobo previstas na lei de im-probidade administrativa? Ora, se formos analisar a atividade ad-ministrativa no seu cotidiano, verificaremos que a tomada dedecisão envolve, muitas vezes, situações que podem resultar emdanos não só às pessoas (administrados), como também preju-ízo ao erário. Então, sem muita dificuldade, pensamos que a res-posta a essa indagação seria, como apoio nas noçõesconceituais que foram até aqui desenvolvidas em relação à im-probidade administrativa e ao risco, positiva. E essa conclusãonão seria aqui uma afirmação leviana, desprovida de sustentaçãocientífica ou mesmo um oportunismo. não, absolutamente não.Percebe-se, indubitavelmente, a intersecção que há entre o

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dever de good governance (boa gestão pública, boa governação)e a administração de riscos.

Mas não se pretende aqui uma conduta de abstençãosempre que houver dúvida. Muito ao contrário. não só porque aconduta omissiva do administrador público pode lhe custar umprocesso judicial, mas levando em conta também que em deter-minadas situações a boa governação implica em natural contra-riedade de interesses de particulares, como acentua aragão(2005, p. 108-111) quando se refere à questão da legitimidade eà aceitação das decisões na democracia em termos de boa go-vernância e a síndrome social “sim, mas não no meu quintal”:

Por isso, a promoção da governância passa muito mais peloincremento da legitimidade, do que pelo reforço da autoridade.Da legitimidade acrescida resultará, idealmente, a aceitaçãovoluntária, pelos cidadãos, das directrizes da entidade decisó-ria, dispensando-se o recurso a meios de implementação co-activa das decisões. É nesta distinção que se baseia algumadoutrina para distinguir a governância do governo (ou gover-nação). na primeira, o respeito por regras apresentadas semcoação seria espontâneo, no segundo, estaria implicada a im-posição coerciva de normas. Contudo, esta parece-nos seruma visão demasiado redutora, por duas ordens de razões.antes de mais, porque mesmo com graus elevados de gover-nância, a imposição coerciva de certas normas pode ser um malnecessário. Estamos a pensar naquelas normas que, para tra-zerem benefícios para todos, não podem deixar de impor en-cargos a alguns. Por exemplo: a construção de um novo hospitalpsiquiátrico, de um novo cemitério, de um novo aterro, sendoprojectos de interesse comum, são normalmente rejeitados pre-cisamente por aqueles que se encontram fisicamente mais pró-ximos de tais instalações, porque residem, trabalham oupassam férias nas imediações. Quando o sindroma social "sim,mas não no meu quintal" se manifesta em toda a sua extensãocontra um "uso do solo localmente indesejável", formas especí-ficas de governância podem atenuar significativamente os sin-tomas, mas dificilmente eliminarão a totalidade da doença.Por outro lado, no extremo oposto, mesmo o cumprimento es-pontâneo pode ser determinado por causas bem diferentes dosimples reconhecimento da legitimidade.

Entendemos que a lei de improbidade administrativa é umadas intervenções legais (conforme anteriormente já mencionado)

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que teve por objetivo propiciar mecanismos de controle dos ris-cos de desvios administrativos11 que, na recente história demo-crática brasileira, e observando os fenômenos mundiais, tem sidoconstatados e comprovados pelos mecanismos de controle in-ternos da própria administração. as condutas previstas especial-mente nos “notadamente” dos artigos 9º, 10 e 11 da lei n.8.429/92 foram, naquele modelo, desenhadas em função da ex-periência de desvios administrativos passíveis de perpetraçãopor pessoas investidas, de forma transitória ou definitiva, em car-gos ou funções públicas.

Quando o administrador se vê diante de situações defato em que há margem de opção administrativa com apoio nadiscricionariedade, indubitavelmente deve se servir dos critériosde risco e estar orientado pelos princípios da precaução e pre-venção na tomada de decisão. a decisão administrativa deve serinclusive sempre motivada12 em casos tais, pois, conforme ver-bera Mello (2001, p. 63):

Motivo e motivação. 31. não se confunde o motivo do ato ad-ministrativo com a “motivação” feita pela autoridade adminis-trativa. a motivação integra a “formalização” do ato, sendo umrequisito formalístico dele (cf. 46 e ss.). É a exposição de mo-tivos, a fundamentação na qual são enunciados (a) a regra deDireito habilitante, (b) os fatos em que o agente se estriboupara decidir e, muitas vezes, obrigatoriamente, (c) a enuncia-ção da relação de pertinência lógica entre os fatos ocorridos eo ato praticado. não basta, pois, em uma imensa variedade

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11 Mecanismos que, inclusive, servem para perseguir os desmandos administrati-vos praticados no âmbito da gestão ambiental: “a má gestão pública do patrimônioambiental, com danos ao patrimônio público resultantes de graves equívocos ad-ministrativos ou de atuações dolosas, é outra hipótese emblemática, que tem me-recido crescente intreresse. Essa modalidade de conduta ímproba é relativamenterecente, mas tende a ganhar força. Os maus gestores da área ambiental devemser fiscalizados com suporte na lGia. Todavia, há campos muito nebulosos. ine-xiste uma definição rígida de improbidade ambiental. Costuma-se considerar osníveis de ilegalidade, bem assim o montante dos danos e a objetiva conduta doinfrator” (OsÓriO, 2007, p. 378).12 sobre a necessidade do dever de fundamentação das decisões administrativasveja-se: vieira de andrade (2007).

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de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agentetomou como base para editar o ato. na motivação transpareceaquilo que o agente apresenta como “causa” do ato adminis-trativo, noção que será melhor esclarecida a breve trecho(conf. ns. 43 e ss.).

além, disso, como registra o mesmo administrativista,

O desvio de poder, com alheamento a qualquer finalidade pú-blica, é um vício que encontra espaço para medrar precisa-mente quando o agente público está no exercício decompetência discricionária. a doutrina caracteriza generica-mente o desvio de poder como ilegitimidade específica destacategoria de atos nos quais a administração dispõe de certaliberdade. no desvio de poder, praticado com fins alheios aointeresse público, a autoridade, invocando sua discrição admi-nistrativa, arroja-se à busca de interesses inconfessáveis. Ébem de ver que o faz disfarçadamente, exibindo como capado ato algum motivo liso perante o direito.Trata-se, pois, de um vício particularmente censurável, já quese traduz em comportamento insidioso. a autoridade atua em-buçada em pretenso interesse público, ocultando dessarte seumalicioso desígnio. sob a máscara da legalidade, procura àesconsa, alcançar finalidade estranha à competência que pos-sui. Em outras palavras: atua à falsa-fé. Enquanto de públicoo ato se apresenta escorreito, na verdade possui uma outraface que se forceja por ocultar, já que é constituída de má-morte e orientada por escopos subalternos. Dele se podedizer, com Caio Tácito, que a ‘ilegalidade mais grave é a quese oculta sob a aparência de legitimidade'. a violação maliciosaencontra os abuso de direito com a capa da virtual pureza.(MEllO, 1992, p. 63)

Com apoio nas lições de jean rivero e Waline, lembraque, embora observem essas dificuldades, acentuam tambémque, por força da compostura esquiva, não se pode exigir umaprodução da prova com ela incompatível, sob pena de não seviabilizar o controle jurisdicional dessas condutas viciadas.lança, então que a convicção pode resultar de um “feixe de in-dícios convergentes”. Portanto, a teoria dos riscos desenvolvidosno âmbito do direito ambiental, e os princípios que dela defluemservem de apoio para, num feixe de indícios convergentes, deli-near a conduta ímproba do agente público.

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Mais. O agente público deve não só pautar sua condutaprocurando se servir da teoria do risco e dos princípios dela fun-dantes da precaução e prevenção com vistas a moldar sua deci-são de forma a torná-la também, sob essa ótica, proporcional erazoável. Deve também atuar no momento de decidir para queela própria, a decisão, não seja, na sua execução, uma fonte depossíveis desvios e atos de improbidade. significa isso que o ad-ministrador pode ser responsabilizado, com apoio na lei de im-probidade administrativa, por ter tomado uma decisão que, nãoobstante ter avaliado os riscos e se pautado nos princípios daprecaução e prevenção para dar solução à situação de fato en-frentada, tenha propiciado na sua execução desvios administra-tivos que poderiam ter sido plenamente identificados no momentoda decisão tomada. Ou seja, embora a decisão tomada tenha le-vado em conta os riscos que ela importaria do ponto de vista desua finalidade para dar solução, o administrador público não teriaavaliado de forma adequada os riscos que ela poderia represen-tar como meio de propiciar a prática de atos ímprobos no mo-mento de sua implementação. Está o administrador obrigado aadotar providências, em face do princípio da eficiência e da boagovernação, que impeçam ou dificultem ao máximo desvios deconduta das pessoas que irão executar a decisão.

cOnclusÃO

Como se vê, há um entrelaçamento entre as noções derisco e os princípios fundantes dessa teoria, especificamente, nocaso estudado, os princípios da precaução e da prevenção, e apostura que o administrador público, o agente público, deve ado-tar na sua tomada de decisão do ponto de vista concomitante da

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razoabilidade e proporcionalidade. isso resulta numa contribuiçãosignificativa da teoria do risco no que se refere à aferição da con-duta administrativa adotada e à configuração da improbidade ad-ministrativa do ponto de vista material.

a motivação da decisão tomada é, nesse contexto, desingular importância, pois dela é que se poderá inferir se, no de-cidir, estava o agente público atento aos riscos dessa tomada dedecisão e se atendeu aos princípios da precaução e da preven-ção. no entanto, a insuficiente motivação do ponto de vista daavaliação dos riscos não impede que isso seja aferido e, casoconstatado o não atendimento ou observância dos riscos possao administrador, em qualquer uma das hipóteses previstas na ti-pologia da improbidade administrativa, ser responsabilizadonessa perspectiva.

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