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OPINIÃO/ OPINION Endemias e Meio Ambiente no Século XXI Endemics and the Environment in the 21 st Century José R. Coura 1 COURA, J. R. Endemics and the Environment in the 21 st Century Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 8 (3): 335-341 jul/set, 1992. In the introduction the autor defines health as the "adaptation of man to environment, preserving his physical, functional, mental and social integrity". He extends the concept of development to "good living conditions, including food, housing, education, health care, social welfare, security, recreation, safety, and freedom". The relationship between development and health is associated with natural and artificial resources and environments and with human behaviours such as population growth, crowding and migrations. Man is "Nature's host and his own victim". Although the 1978 Alma-Ata Conference predicted "Health for all by the year 2000", the world's health deteriorated in the last decade because of the economic crisis and a population increase of about one billion persons that could not be matched by sendees such as health, education, transportation, food, housing and social security. Infectious diseases are responsible for 34% of deaths in the developing world and only 1% in developed countries. Yearly, 15 million children die from infectious diseases and/or malnutrition and 93% of avoidable deaths occur in the developing countries. There is no direct correlation between economic development and health quality; it depends on health and social organization, Keywords: Health; Development; Environment; Endemic Diseases; Morbi-Mortality 1 Departamento de Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). Avenida Brasil, 4.365, Rio de Janeiro, RJ, 21045-900, Brasil. O homem vive em um planeta onde ele cons- trói as suas casas e de onde ele tira o seu sustento. Na terra ele nasce e para a terra ele retorna após a sua morte. Com estas palavras quase bíblicas Martí-Ibañez (1958) inicia a introdução do clássico livro "Ecologia da Doen- ça Humana'', de autoria de Jacques May (1958), onde continua: Mentalmente o homem pode viajar pelo universo através do tempo, mas física e efetiva- mente ele está ligado a um lugar na terra, e qualquer modificação nessa relação afeta pro- fundamente a sua vida. Então, ele tem que se adaptar ao meio para organizar a sua existên- cia no tempo e no espaço, porque a terra é o seu símbolo de estabilidade. Os mapas mostram a sua posição no planeta e as plantas, a sua localização, como o calendário e o relógio mostram a sua posição no tempo. e acrescenta: Por milhares de anos o homem viveu uma vida "bidimensional" em um mundo tridimen- sional. No início, como a mais parada das criaturas, percorreu depois toda a terra e os mares até que um dia, tendo explorado todo o espaço horizontal, ele se decidiu a conquistar o espaço vertical. A tecnologia, abolindo dis- tâncias, tem permitido a ele vertiginosas jorna- das através do espaço cósmico, mas pela sua inquietude espacial o homem está pagando um preço. Sua estabilidade mental e física está sendo destruída. SAÚDE E MEIO AMBIENTE A saúde tem sido conceituada ao longo do tempo de diversas maneiras, desde a concepção simplista do seu antônimo, ou seja, a "ausência de doença", até concepções muito agrangentes,

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OPINIÃO/ OPINION

Endemias e Meio Ambiente no Século XXIEndemics and the Environment in the 21st Century

José R. Coura 1

COURA, J. R. Endemics and the Environment in the 21st Century Cad. Saúde Públ., Rio deJaneiro, 8 (3): 335-341 jul/set, 1992.In the introduction the autor defines health as the "adaptation of man to environment,preserving his physical, functional, mental and social integrity". He extends the concept ofdevelopment to "good living conditions, including food, housing, education, health care, socialwelfare, security, recreation, safety, and freedom".The relationship between development and health is associated with natural and artificialresources and environments and with human behaviours such as population growth, crowdingand migrations. Man is "Nature's host and his own victim".Although the 1978 Alma-Ata Conference predicted "Health for all by the year 2000", theworld's health deteriorated in the last decade because of the economic crisis and a populationincrease of about one billion persons that could not be matched by sendees such as health,education, transportation, food, housing and social security.Infectious diseases are responsible for 34% of deaths in the developing world and only 1% indeveloped countries. Yearly, 15 million children die from infectious diseases and/or malnutritionand 93% of avoidable deaths occur in the developing countries. There is no direct correlationbetween economic development and health quality; it depends on health and social organization,

Keywords: Health; Development; Environment; Endemic Diseases; Morbi-Mortality

1 Departamento de Medicina Tropical do InstitutoOswaldo Cruz (Fiocruz). Avenida Brasil, 4.365, Rio deJaneiro, RJ, 21045-900, Brasil.

O homem vive em um planeta onde ele cons-trói as suas casas e de onde ele tira o seusustento. Na terra ele nasce e para a terra eleretorna após a sua morte. Com estas palavrasquase bíblicas Martí-Ibañez (1958) inicia aintrodução do clássico livro "Ecologia da Doen-ça Humana'', de autoria de Jacques May (1958),onde continua:

Mentalmente o homem pode viajar pelouniverso através do tempo, mas física e efetiva-mente ele está ligado a um lugar na terra, equalquer modificação nessa relação afeta pro-fundamente a sua vida. Então, ele tem que seadaptar ao meio para organizar a sua existên-cia no tempo e no espaço, porque a terra é oseu símbolo de estabilidade. Os mapas mostrama sua posição no planeta e as plantas, a sua

localização, como o calendário e o relógiomostram a sua posição no tempo. e acrescenta:

Por milhares de anos o homem viveu umavida "bidimensional" em um mundo tridimen-sional. No início, como a mais parada dascriaturas, percorreu depois toda a terra e osmares até que um dia, tendo explorado todo oespaço horizontal, ele se decidiu a conquistaro espaço vertical. A tecnologia, abolindo dis-tâncias, tem permitido a ele vertiginosas jorna-das através do espaço cósmico, mas pela suainquietude espacial o homem está pagando umpreço. Sua estabilidade mental e física estásendo destruída.

SAÚDE E MEIO AMBIENTE

A saúde tem sido conceituada ao longo dotempo de diversas maneiras, desde a concepçãosimplista do seu antônimo, ou seja, a "ausênciade doença", até concepções muito agrangentes,

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como a adotada pela Organização Mundial daSaúde, que a define como um estado de com-pleto bem-estar físico, mental e social, e nãoapenas a ausência de doença ou enfermidade.

O conceito simplista de saúde apenas como"ausência de doença" é exclusivamente organi-cista, ignorando os aspectos sociais e ecológi-cos, de fundamental importância para o bem-estar físico, mental e social. Por outro lado, aconcepção da Organização Mundial da Saúde,em que pese representar uma verdadeira con-quista doutrinária inexeqüível e inexata. Porexemplo, uma pessoa viajando em um ônibusapertado, submetida ao calor dos trópicos ou aofrio de outras latitudes, não estaria em um"completo bem-estar físico"; o jovem quebrigasse com a sua namorada ou o político quetivesse perdido uma eleição não estaria em um"estado de completo bem-estar mental e social".Entretanto, seria um exagero considerá-losdoentes por esses motivos; talvez, no máximo,pudéssemos considerá-los desadaptados tempo-rariamente. Ao contrário, um indivíduo acometi-do recentemente de um câncer de grande poten-cial evolutivo poderá estar temporariamente,antes de sabê-lo, em um estado de "completobem-estar físico, mental e social", quando narealidade é portador de uma grave doença.

Perkins (1938) define saúde como um estadode relativo equilíbrio da forma e função docorpo que resulta do seu ajustamento dinâmicobem-sucedido com as forças que tendem aalterá-la, e acrescenta: não é um intercâmbiopassivo entre a substância do corpo e as forçasque o impelem, mas uma resposta ativa traba-lhando para o seu ajustamento. Por outro lado,René Dubos (1968) diz que medicamente falan-do, o homem é mais um produto do seu meiodo que de sua herança genética, e reforça: asaúde dos seres humanos não está determinadapor suas raças, e sim pelas condições sob asquais vivem.

Embora a definição de saúde de Perkins(1938) seja bem mais realista do que a formula-da pela Organização Mundial da Saúde, porconsiderar o componente adaptativo, ela nãoconsidera os aspectos psicossociais, enquanto aconceituação de Dubos (1968), bem maisabrangente, nega exageradamente o componentegenético, tomando-se inaceitável do ponto devista científico.

Creio que poderíamos associar a visão de"adaptação" de Perkins com a de modus vivendide Dubos e a de integração da OrganizaçãoMundial para uma definição mais completa erealística de saúde como a "adaptação do ho-mem ao meio, preservando a sua integridadefísica, funcional, mental e social". Dessa forma,além de incorporarmos as noções fundamentaisde "adaptação" e de "preservação", substituiría-mos o subjetivo "bem-estar", da OrganizaçãoMundial da Saúde, por "integridade" (Coura,1991).

A saúde nos trópicos, bem como nos climasfrios e temperados, depende de uma série deadaptações físicas, fisiológicas, ecológicas eculturais, dentro de um aprendizado secularpara a manutenção do equilíbrio próprio decada espécie, principalmente nos chamadosanimais de sangue quente.

Alterando o seu metabolismo, o consumo deoxigênio, a estrutura e fisiologia da pele, amobilidade ou plasticidade vascular e os meca-nismos centrais de regulação térmica, o homemperde ou ganha calor em maior ou menorquantidade dentro dos limites de sua temperatu-ra crítica homeotérmica. Ultrapassados esseslimites, ele tem que lançar mão de meios natu-rais ou artificiais (abrigos, banhos, ventilação,aquecimentos ou refrigeração) para o seu con-forto e sobrevivência.O frio é um elemento discriminador por exce-

lência, enquanto o calor e a umidade favore-cem, extraordinariamente, o desenvolvimento davida, a exuberância da fauna e da flora e, emconseqüência, uma maior interação entre asdiversas espécies, elevando o trópico ao grandecentro dinâmico da vida (Latif, 1959).

A maior coexistência das espécies, no entan-to, se, de um lado, enriquece a natureza nas re-giões tropicais e subtropicais, principalmente notrópico úmido, de outro, favorece a proliferaçãode germes e parásitos, o desenvolvimento dereservatórios e de vetores biológicos, induzindo,em conseqüência, o aumento das doençasinfecciosas e parasitárias chamadas metaxêni-cas, ou seja, aquelas que possuem reservatóriose vetores biológicos na natureza.

Max Sorre (1955), em Fundamentos Biológi-cos da Geografia Humana, trata das relaçõesentre o homem e o meio e dos fatores físicos,ambientais e humanos (sociais, culturais e

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biológicos), que, em confronto com os chama-dos "complexos patogênicos", englobando opróprio homem e o seu habitat, reservatórios,agentes e vetores biológicos, dificultam acolonização e reduzem a produtividade e odesenvolvimento econômico de um lado, masaumentam a resistência do homem, que se tornaforte para enfrentar e vencer as dificuldades domeio, como os sertanejos de Euclides da Cu-nha.

Embora sejam poucas as doenças exclusivasdos trópicos, não se pode negar a existência deuma patologia tropical. O inesquecível SamuelPessoa (1960) conceituou doença tropical como"Moléstia de ocorrência freqüente nos trópicose de observação rara, quando ainda não vistasnos países de clima temperado", enquantoAlmeida Prado (1965), citado por Carlos daSilva Lacaz em sua excelente Geografia Médicado Brasil (1972), diz: Na verdade, não se podeseparar a existência da doença do substratocausal que a produz; no fundo, são, portanto,as condições climáticas que fundamentam elegitimam o conceito de doenças tropicais. Aessa questão de nomemclatura, acrescenta,sobrepaira sempre uma ponta de mal-contidonacionalismo.

No ano de 1926, o Professor Carlos Chagasinaugurava a Cátedra que me honra continuarna Universidade Federal do Rio de Janeiro, comestas palavras que me fascinaram a juventude,converteram-me ao estudo da Medicina Tropicale constituem, desde então, a minha bíbliaprofissional, porque se confirmaram ao longodos 32 anos que a exerço: Em aspectos pecu-liares à nosologia dos países quentes, autoriza-se a sistematização de estudos que fazem assun-tos da cadeira de Medicina Tropical

O clima não constitui fator etiopatogênicodireto de qualquer entidade mórbida bem-definida, mas, por ele, a doença se transformae modifica, e dele se originam as variantesnosológicas apreciáveis nas diversas regiões daterra.

Nos países quentes tropicais e subtropicais,as mesmas influências cósmicas, as mesmasenergias criadoras que estimulam e favorecema vida animal e vegetal imprimem à patologiahumana características regionais, que a defi-nem e, assim, alteram a feição genética dapatologia cosmopolita.

A riqueza da flora e da fauna patogênicas éo fator predominante na nosologia dos paísestropicais. As espécies parasitárias, especialmen-te os protozoários, aí são mais abundantes eapresentam modificações biológicas, que, asmais das vezes, aumentam os efeitos de seuparasitismo nocivo; mas, além disso, vivem eproliferam nos trópicos outras parasitas, quenão prescindem das condiçõess climáticasdessas regiões e só nelas encontram os elemen-tos naturais indispensáveis a seu metabolismoe a sua multiplicação.

As realizações práticas da higiene e da medi-cina tropicais vieram destruir o velho precon-ceito de uma fatalidade climática, que se tradu-za na inadaptação das raças originárias dospaíses frios e temperados às regiões maisquentes da terra.

O modelo científico vai dominando a doençanos trópicos, e assim desaparecem as restriçõesgeográficas á vida sadia e à atividade humana,e desse modo se dilatam os domínios da civili-zação e do trabalho produtivo.

Nada restringe agora a expansão dos povosnessas regiões fertilíssimas da terra, porque oacerto do método profilático, baseado no deter-minismo do contágio infectuoso, torna a vidapossível sob todas as latitudes e protege ohomem contra a doença em quaisquer con-dições climáticas (Chagas, 1926).

Em uma visão ecológica mais moderna doprocesso saúde/doença, podemos afirmar queele se situa na intercessão entre as pessoas comos seus genes e comportamentos, migrações eaglomerações, o meio natural — clima, recursosnaturais, suprimento de água e alimentos,parasitos, reservatórios e vetores, de um lado, e,de outro, o meio artificial criado pelo própriohomem com a industrialização — máquinas eveículos, poluição do ar, da água e dos alimen-tos, radiações e ameaças diversas; enfim, ohomem é hóspede da natureza e vítima de sipróprio. Segundo Goethe, a natureza nos rodeiae nos cinge; vivemos dentro dela e lhes somosestranhos; fala conosco, mas não nos revela osseus mais íntimos segredos (Latif, 1959).

DESENVOLVIMENTO E SAÚDE

Quanto ao conceito de desenvolvimento,

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adoto-o no seu sentido mais amplo, da aqui-sição de bens e serviços que assegurem aohomem uma boa qualidade de vida em termosde alimentação e habitação, educação e saúde,trabalho e recreação, previdência e assistênciasocial, segurança e liberdade, e não apenas odesenvolvimento econômico das nações, comoé freqüentemente considerado (Coura, 1982).

Apesar da previsão da Conferência de Alma-Ata, realizada em 1978 com a participação de134 países, de "Saúde para Todos no ano2000", segundo a Comissão Internacional dePesquisa em Saúde para o Desenvolvimento(1990), a saúde do mundo piorou na últimadécada. Embora tenha sido verificado, naconferência de avaliação realizada em Riga,também na União Soviética, em 1988, quehouve uma melhora "na consciência sobrecuidados primários de saúde", os indicadoresmostram uma piora efetiva nas condições desaúde. Essa piora se deve, principalmente, àcrise econômica da década de 80 na AméricaLatina, Ásia e África, onde, nos países subde-senvolvidos, o produto interno bruto caiu dequatro para 1,7% e os investimentos em saúdeforam cortados em até 50%. Por outro lado, ocrescimento populacional, com a demanda demais empregos, educação, saúde e outros servi-ços sociais, não tem sido acompanhado poresses países.

Anualmente nascem 90 milhões de pessoas nomundo e morrem 49 milhões, deixando umsaldo de 41 milhões que, adicionados ao contin-gente de 5 bilhões já existentes, têm que seraumentados, educados e receber cuidados desaúde e outros serviços sociais e que, em futuropróximo, irão aumentar o coeficiente reproduti-vo mundial. Embora a população mundial tenhacomeçado a decrescer desde o final da décadade 70, de um máximo de 2,3% ao ano, não seprevê que ela se estabilize antes do final dopróximo século, quando atingirá 10 bilhões depessoas portanto, o dobro da população atual.Nas próximas três décadas, é previsto umcrescimento populacional da ordem de umbilhão de pessoas por década, de modo que, nofinal do último decênio deste século, deveremoster uma população mundial de 6 bilhões dehabitantes em demanda para os serviços desaúde, habitação, alimentação, transporte, segu-rança e uma boa parte para a educação.

A expectativa de vida nos países subdesenvol-vidos é, em média, quase um terço menor doque nos países industrializados, que atingem até80 anos, como no caso do Japão e países nórdi-cos da Europa, cuja vida média pode atingir atéduas vezes a dos países mais pobres e desassis-tidos do mundo. Essa expectativa está direta-mente relacionada à mortalidade infantil, quedepende de fatores nutricionais e de atençãomédica, social e educacional, mas não necessa-riamente de renda per capita, como são exem-plos Cuba, Costa Rica e Chile, na AméricaLatina, e Sri Lanka, Tailândia e Filipinas, naÁsia, que, por condições políticas, ideológicas,sociais, culturais ou históricas, conseguirammelhores condições de saúde e baixa mortalida-de infantil, com renda per capita modesta.

O Brasil tem hoje uma posição relativamentteconfortável em relação aos seus indicadores desaúde, mas muito aquém de suas possibilidades.Com uma renda per capita de 1.810 dólares/a-no, segundo fontes do Banco Mundial (1988),o nosso país tem uma expectativa de vidamédia de 65 anos, isto é, 15 anos menos do quenos países mais desenvolvidos, e uma mortali-dade infantil ainda muito alta, de 65 por milnascidos vivos, principalmente se comparadocom o México, com renda per capita semelhan-te a uma mortalidade infantil de 48 por mil, emais ainda quando comparado com países comoCuba, Costa Rica, China, Tailândia e Filipinas,com menos da metade da nossa renda percapita e com mortalidade infantil de, respecti-vamente, 15, 18, 33, 41 e 46 por mil nascidosvivos. Este fato se deve, primordialmente, ànossa política defasada nas áreas de saúde eeducação e na má distribuição de renda.

Dos 49 milhões de pessoas que morrem porano no mundo, 11 milhões são nos paísesindustrializados e 38 milhões nos países subde-senvolvidos, onde as doenças infecciosas eparasitárias são responsáveis por 34% dasmortes, representando de todas as causas aprimeira. Nos países subdesenvolvidos, morremanualmente 15 milhões de crianças de doençasinfecciosas e/ou má nutrição. O mais importantedos desafios que enfrentamos é que 93% dasmortes evitáveis ocorrem justamente nos paísessubdesenvolvidos.

Segundo o recente relatório da ComissãoInternacional de Pesquisa em Saúde para o

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Desenvolvimento (1990), as principais causasde mortalidade nos países subdesenvolvidossão, pela ordem, as doenças infecciosas eparasitárias (34%), doenças do aparelho circula-tório e diabetes (13%), causas perinatais (7%),câncer, injúrias e intoxicações e doenças pulmo-nares crônicas, com aproximadamente 5% cadauma. Em contraste, nos países industrializados,as principais causas de morte são as doenças doaparelho circulatório, o câncer, as injúrias eintoxicações e as doenças pulmonares crônicas;nesses países, as doenças infecciosas e parasitá-rias são responsáveis apenas por 1% das mor-tes.

Dos 34% de mortes por doenças infecciosase parasitárias nos países subdesenvolvidos, 15%devem-se às doenças respiratórias agudas,inclusive sarampo e coqueluche; 10% às diar-réias; quase 6% à tuberculose; e mais de 2% àmalária. Aproximadamente 7 milhões de novoscasos de tuberculose ocorrem anualmente nomundo, com 2,5 milhões de mortes, represen-tando essa doença um quarto das doençaspreveníveis nos países subdesenvolvidos. Ape-sar de a Organização Mundial da Saúde terlançado, em 1955, um "Programa de Erradi-cação da Malária", esse programa foi um verda-deiro fracasso, uma vez que temos hoje mais de800 milhões de novos casos da doença nomundo por ano, com um milhão de mortesanuais. O fracasso foi devido, de um lado, àresistência dos plasmódios aos quimioterápicos,principalmente do P. falciparum à cloroquina,dos anofelinos ao DDT, e, de outro, a falhasoperacionais.

A pandemia de SIDA/AIDS que vem se insta-lando no mundo, de forma crescente, desde oinício da última década, embora ainda nãoconstitua uma das maiores causas de mortalida-de entre as doenças infecciosas, do ponto devista global, o seu potencial evolutivo, a altaletalidade, o crescimento exponencial de suaincidência e de outras infecções associadas, aolado das grandes repercussões sociais que vemtrazendo, inclusive com lotação de leitos numaverdadeira avalanche, se apresenta como umdos maiores desafios para a década em quevivemos. Para uma idéia de sua magnitude,uma pesquisa recente revelou que 50% dasmulheres com idade entre 20 e 30 anos emUganda e 20% dos neonatos eram sorologica-

mente positivos para o HIV naquele país.Os principais desafios relacionados à saúde,

em geral, e às doenças infecciosas e parasitá-rias, em particular, a serem enfrentados noúltimo decênio do século XX e primeiro doséculo XXI, principalmente nos países emdesenvolvimento, podem ser situados em doisplanos: político-administrativo e técnico-científi-co. No plano político-administrativo, a decisãodos governos de colocarem a saúde e educaçãocomo prioridades nacionais absolutas, traduzi-das em recursos para as atenções primária,secundária e terciaria à saúde, integradas emníveis horizontal (assistência plena) e vertical(campanhas de vacinação, tratamento em massae seletivo de endemias e surtos epidêmicos,controle de vetores e reservatórios domésticos)e de educação básica da população, incluindo ocomponente saúde, é fundamental.

No plano técnico, são indispensáveis estudospara a otimização do desempenho dos serviçosde saúde, com a maior eficiência e o menorcusto possível; utilização racional dos conheci-mentos existentes na prevenção das doençasinfecciosas; investimento em pesquisa para ocontrole de endemias; aperfeiçoamento devacinas existentes — coqueluche, febre tifóide,cólera, meningites, tuberculose, lepra, raiva,influenza e pneumococo — e barateamento deoutras, como a da hepatite B; desenvolvimentode novas vacinas para as doenças respiratóriasagudas, diarréias infecciosas e doenças sexual-mente transmitidas, inclusive a AIDS e doençasparasitárias como a malária, a esquistossomosee as leishmanioses — de difícil controle. Odesenvolvimento de novos inseticidas para ocontrole de vetores e de drogas para o trata-mento de doenças parasitárias não-existentesnos países industrializados, como a malária, adoençca de Chagas e as leishmanioses, bemcomo a urgência de uma vacina para o denguee outras arboviroses, é um imperativo que cedoou tarde terá que ser enfrenmtado pelos paísesdo Segundo e Terceiro Mundos.

Mais do que nunca, os investimentos empesquisas básicas, tecnológicas e operacionaisnão-transferíveis em serviço de saúde sãonecessários no último decênio do século XX eprimeiro do século XXI, se quisermos nosaproximar da quimera da OMS de "Saúde paraTodos no Ano 2000" (OMS, 1981).

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No que se refere especificamente às doençasinfecciosas e parasitárias e à medicina tropical,que atingiu os países subdesenvolvidos comoprimeira causa de morte, com uma taxa imorale inaceitável em relação aos países industriali-zados, de 34 vezes mais, podemos vencer, emgrande parte, esse desafio se aplicarmos astécnicas existentes com a vontade política deoutros países já citados, com economia seme-lhante à nossa.

Não adiantam os jargões teóricos de "Saúdepara Todos no Ano 2000" e de que "a saúde éum direito do povo e um dever do Estado" senão nos convencermos de que a saúde e aeducação são direitos do povo e deveres doEstado e do povo, que também deve trabalharpara defender a sua saúde e colaborar para asua educação, solidário com o Estado. Docontrário, jamais venceremos os desafios destaou das décadas futuras.

RESUMO

COURA, J. R. Endemias e Meio Ambienteno Século XXI. Cad. Saúde Públ, Rio deJaneiro, 8 (3): 335-341, jul/set, 1992.Na introdução do trabalho, o autor definesaúde como a "adaptação do homem ao meio,preservando sua integridade física, funcional,mental e social". Por outro lado, amplifica oconceito de desenvolvimento como uma "boaqualidade de vida em tremos de alimentação,habitação, educação e saúde, seguridadesocial, recreação, segurança e liberdade".A relação entre desenvolvimento e saúde estáassociada com os recursos e meios naturais eartificiais e com os comportamentos dapopulação humana, tais como crescimentopopulacional, aglomeração e migrações. Ohomem é "hóspede da natureza e vítima de sipróprio".Embora a Conferência de Alma-Ata de 1978tenha previsto "Saúde para todos no ano2000", a saúde do mundo piorou na últimadécada devido à crise econômica na AméricaLatina, Ásia e África. Ao lado da criseeconômica, o crescimento da população, decerca de um bilhão de pessoas por década,não pôde ser acompanhado pelos serviços de

saúde, educação, transporte, alimentação,habitação e seguridade social.As doenças infecciosas são responsáveis por34% das mortes no mundo subdesenvolvido esomente 1 % nos países desenvolvidos.Anualmente, 15 milhões de crianças morrempor doenças infecciosas e/ou má nutrição, e93% das mortes evitáveis ocorrem exatamentenos países em desenvolvimento. Não há umacorrelação direta entre desenvolvimentoeconômico e qualidade da saúde; ela dependeda organização dos serviços sociais e desaúde.

Palavras-Chave: Saúde; Desenvolvimento;Meio Ambiente; Doenças Endêmicas; Morbi-Mortalidade

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