08 Revista Espaco Etica 001 117-132 Revista-EE Kelly-Alves

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 Podemos falar de ética nas práticas de consumo?         9        7        7         2         3        5         8         0         2         2         0         0         3     I     S     S     N      2     3     5     8       0     2     2     4 SÃO PAULO, ANO I, N. 01, JAN./ABR. DE 2014

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Os 50 anos do golpe civil-militar de 1964motivaram uma pesquisa da educação baseada em uma revisão bibliográfica e de documentos do período no intuito de entender as políticas educacionais da década de 1960, com ênfase especial na reforma social proposta por João Goularte as continuidades e rupturas causadas pela orientação conservadora dos ditadores militares.A autora mostra como a aliança que o governo de Jango fez com a Igreja Católica para implantar um Movimento de Educação de Base garantirá a continuidade do projeto pela ditadura.

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  • Podemos falar de tica nas prticas

    de consumo?

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    ISSN 2358-0224

    So Paulo, ano I, n. 01, jan./abr. de 2014

  • Espao ticaEducao, GEsto E consumo

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    O golpe civil-militar de 1964 e os movimentos de educao de base e cultura popular

    Kelly Ludkiewicz Alves1

    ... no podemos agir como rolo compressor,

    mas como fermento da transformao2.

    (Dom Avelar Brando Vilela)

    Os 50 anos do golpe civil-militar de 1964

    motivaram uma pesquisa histrica da edu-

    cao baseada em uma reviso bibliogrfi-

    ca e de documentos do perodo no intuito

    de entender as polticas educacionais da

    dcada de 1960, com nfase especial na

    reforma social proposta por Joo Goulart

    e as continuidades e rupturas causadas pela

    orientao conservadora dos ditadores militares.

    A autora mostra como a aliana que o governo de

    Jango fez com a Igreja Catlica para implantar um Movimento de Educao

    de Base garantir a continuidade do projeto pela ditadura.

    1 Doutoranda do Programa em Educao: Histria, Poltica, Sociedade da Pontifcia Uni-versidade Catlica de So Paulo. Bacharel e Licenciada em Histria pela USP e mestre em Educao e Cincias Sociais pela PUC-SP. Trabalhou como professora visitante do Departa-mento de Comunicao Social da Faculdade de Cincias Sociais da Universidade Nacional de Timor-Leste.

    2 Frase com a qual o bispo encerra uma carta escrita em 13 de junho de 1966 para Ray-mundo Augusto de Castro Moniz Arago, Ministro da Educao do ditador Castelo Branco.

    Educao

    consERvado

    RismoditaduraREfo

    Rma socia

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    I O incio da dcada de 1960 no Brasil: o povo precisa de educao

    e conscincia!

    O perodo do governo de Joo Goulart, que antecede o golpe civil-militar

    de 1964, um momento de significativa mobilizao social para formar as ba-

    ses polticas e econmicas brasileiras, de modo a construir e garantir a consoli-

    dao dos direitos da populao desfavorecida. As reformas de base propostas

    por Jango na Mensagem ao Congresso Nacional, feita em 1964, so em grande

    medida uma resposta governamental para a concretizao desse projeto. En-

    tretanto, para garantir sua efetivao por meio de um governo capaz de man-

    ter seu poder poltico em longo prazo, era necessrio ampliar pelo voto popular

    as bases que davam apoio ao governo de Jango, em um pas cuja constituio

    impedia aos analfabetos o direito de participao poltica. Assim, ao longo dos

    primeiros anos da dcada de 1960, as polticas educacionais voltadas para a

    populao adulta acontecem com o estabelecimento de uma estreita relao

    entre as aes polticas e as aes educativas (SCOCUGLIA, 2000).

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    Destaca-se que nesse momento a educao tinha um importante papel

    para aqueles que buscavam transformar as estruturas sociais brasileiras, ao

    mesmo tempo em que a alfabetizao de adultos se reafirmava como estra-

    tgia para a formao de eleitores. Essa viso com relao ao papel poltico

    da educao de adultos era compartilhada por polticos radicais de direita

    e de esquerda, mas cada um com caminhos polticos e aes prprias. A

    primeira era mais centrada na manuteno do status quo; j a segunda bus-

    cava se integrar s aes que se voltavam para a promoo de mudanas

    na sociedade brasileira, participando dos movimentos que representavam os

    interesses das classes mdias e populares (SCOCUGLIA, 2000).

    Esses grupos, compostos em sua maioria pela classe mdia urbana e

    por estudantes universitrios, propunham uma educao de base que esti-

    vesse alm da formao de eleitores para a consolidao da democracia. O

    que podemos perceber a partir de sua atuao o fato de que nos primei-

    ros anos da dcada de 1960 as aes educativas voltadas para a educao

    de adultos no estavam limitadas escolarizao.

    Tais aes so fruto das discusses que aconteceram durante o II Con-

    gresso Nacional de Educao de Adultos, realizado em 1958, no qual as cr-

    ticas ao modelo de educao de base desenvolvido pelo governo nos anos

    anteriores so expostas pelos membros dos movimentos que atuavam na

    alfabetizao e educao dos adultos. Os textos e documentos trazem se-

    veras crticas educao oficial, acusando-a de ser elitista e bancria. Os

    debates denunciavam as polticas oficiais educativas, comprometidas com

    a elitizao do saber e a manipulao populista (FVERO, 1983, p. 8). Nes-

    sa ocasio foi explicitada no somente a falncia das campanhas realiza-

    das anteriormente principalmente as desenvolvidas no mbito do De-

    partamento Nacional de Educao (DNE) , como tambm a importncia

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    de se criar experincias locais que visassem busca de solues para os

    problemas reais das comunidades: eles enfatizam o papel da educao

    como instrumento de recomposio do poder poltico e das estruturas so-

    ciais fora dos supostos da ordem vigente: reintroduz-se a reflexo sobre o

    social no pensamento pedaggico brasileiro (PAIVA, 1983, p. 163).

    Como modelo alternativo propunha-se que a educao de adultos fos-

    se realizada com a formao de pequenos grupos que promovessem ex-

    perincias em comunidades locais. Nesse contexto se insere, por exemplo,

    a atuao de Paulo Freire. O objetivo desses movimentos era atuar nas

    comunidades do interior do pas, como j estavam fazendo outros movi-

    mentos como, por exemplo, a Campanha Nacional de Educao Rural, que

    desde o incio da dcada de 1950 desenvolvia em diversas regies do pas

    atividades de formao de lderes rurais, em centros de aperfeioamento

    de professores, auxiliares de enfermagem e auxiliares rurais, que atuavam

    como uma espcie de assistentes sociais (FVERO, 2006).

    Como podemos observar, os anos que antecedem o golpe civil-militar

    de 1964 so marcados pelo que poderamos chamar de uma efervescncia

    cultural e poltica e pelo questionamento dos rumos que a cultura brasilei-

    ra parecia tomar. Seus crticos denunciavam o perigo que poderia advir da

    forte penetrao da cultura de massa tomando o termo amplamente

    utilizado pelos autores da Escola de Frankfurt e de elementos classifica-

    dos como aliengenas, em referncia intensa influncia cultural exercida

    pelos Estados Unidos.

    Em torno desse debate eram discutidas e diferenciadas categorias como

    arte do povo e arte popular, cultura alienada, cultura dasalienada e cultura

    popular (BERLINCK, 1984). A cultura popular nasce ento como movimento

    que reivindica um papel de oposio em relao cultura moderna, classi-

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    ficada como instrumento de dominao ideolgica de uns grupos sobre os

    outros (BERLINCK, 1984). Essas duas ltimas categorias revelam a expectati-

    va dos movimentos ligados cultura popular como sendo os representantes

    de um projeto poltico de superao das desigualdades e da explorao do

    trabalho por meio da cultura, capaz de promover a conscientizao e, conse-

    quentemente, a ao poltica com a organizao das classes populares.

    Tal conscincia para a vida poltica seria gestada em um processo revo-

    lucionrio no qual a cultura exercesse um papel determinante, formando,

    juntamente com as condies materiais objetivas, um conjunto terico-

    prtico capaz de levar as massas conquista de poder. A cultura popular

    estava comprometida com a promoo de atividades voltadas para a for-

    mao da conscincia ativa das massas, levando-a percepo de que o

    movimento real da histria confunde-se com seu prprio destino. Seus de-

    fensores acreditavam que as classes populares precisavam tornar-se cons-

    cientes das aes que necessitavam praticar para conquistar as posies

    dominantes, e isso somente seria possvel por meio de aes que dialogas-

    sem com os interesses do povo em adquirir uma cultura que lhe possibili-

    tasse elevar sua compreenso da realidade e lhe permitisse romper com a

    dominao ideolgica das aparncias.

    A cultura popular s o quando se transforma num processo

    que permite a livre expresso dessa complexa rede em que se

    articulam, em interaes ricas e variadas, mveis subjetivos, e

    possibilidades objetivas, propsito de grupos e paixes indivi-

    duais, meios disponveis e finalidades ambiciosas, acaso for-

    tuito e leis necessrias, interesses particulares momentneos

    e interesses gerais permanentes, sede de diverso e fome de

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    instruo, aperfeioamento profissional e trabalho poltico, exi-

    gncias materiais e necessidades culturais, o viver a hora pre-

    sente e o fazer da sociedade futura. [...] a cultura popular deve

    ser a expresso cultural da luta poltica das massas, entenden-

    do-se por essa luta algo que feito por homens concretos ao

    longo de suas vidas concretas (BERLINCK, 1984, p. 67).

    Segundo propunham os defensores da cultura popular, as foras respon-

    sveis pelo esclarecimento da conscincia das massas com relao sua

    realidade deveriam surgir nas condies concretas da vida das classes po-

    pulares e, por isso, um trabalho autntico com a cultura popular deveria ser

    gestado na prtica. Nesse ponto podemos ver uma relao bastante prxima

    com o trabalho de base feito pelos movimentos que se dedicavam educa-

    o de adultos, promovido pelos diversos grupos que atuaram no incio dos

    anos de 1960. Tais experincias so desdobramentos desse projeto que bus-

    cava a apropriao para fins polticos dos meios de produo cultural. Esses

    movimentos promotores de educao popular buscaram, de algum modo,

    construir espaos para a manifestao cultural das massas com o objetivo de

    transform-los em organizaes produtoras de cultura popular. Dessa ampla

    mobilizao pela promoo de uma cultura popular revolucionria decorre o

    que chamamos de educao popular (FVERO, 1983).

    De acordo com um documento elaborado e distribudo em 1963 pela Ao

    Popular grupo ligado juventude catlica leiga , em que so apresentadas

    aos militantes do movimento as bases do entendimento acerca da cultura popular,

    o que ocorre naquele momento um movimento de polarizao ideolgica da

    cultura contempornea. De um lado dessa polarizao esto aqueles que se pro-

    pem o desafio de transformar em instrumento de realizao do homem uma cul-

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    tura vista como instrumento de dominao: Um movimento de cultura popular

    dever promover a elaborao da cultura com o povo, fazendo-o participante da

    comunidade cultural, e no criar uma cultura para o povo (FVERO, 1983, p. 24).

    Pode-se dizer, ento, a partir da leitura dos autores que escreveram traba-

    lhos sobre o perodo, e que em muitos casos so pessoas que atuaram nesses

    movimentos, que ocorre nesse momento da histria brasileira um amplo movi-

    mento didtico-conscientizador (HOLLANDA; GONALVES, 1985). Dele fazem

    parte diversos movimentos de alfabetizao de adultos, que foram implemen-

    tados, principalmente, na regio Nordeste do Brasil entre os anos de 1961 e

    1964. Dentre eles se destacam o Movimento de Cultura Popular de Pernambu-

    co (MCP); a Campanha de P no Cho tambm se Aprende a Ler, no Rio Gran-

    de do Norte; o Movimento de Educao de Base (MEB), que atuou nas regies

    Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e tambm no estado de Minas Gerais. Alm

    desses movimentos, que chegaram a atuar nos primeiros anos da dcada de

    1960, temos a proposio do Plano Nacional de Alfabetizao (PNA), que seria

    conduzido por Paulo Freire, mas teve sua implementao interrompida com o

    golpe. Ademais, verifica-se ainda a atuao de grupos como os Centros de Cul-

    tura Popular da UNE (CPC) atuando em vrios estados brasileiros e fortemente

    engajados no Rio de Janeiro, promovendo espetculos teatrais em favelas, nas

    portas das fbricas e em sindicatos. Esses movimentos

    [...] propuseram-se a alfabetizar adultos, mas segundo se pode

    depreender da ideia de seus lderes, na perspectiva da valoriza-

    o da cultura e da educao popular. Embora continuassem sob

    o patrocnio do Estado, sob seu financiamento, esses movimen-

    tos transcenderam o controle estatal e imiscuram-se na socie-

    dade civil, aprofundando suas razes (SCOCUGLIA, 2000, p. 51).

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    No que se refere s polticas governamentais, Joo Goulart implementou

    o Plano Nacional de Educao (PNE) como parte integrante de seu projeto

    de desenvolvimento nacional por meio das Reformas de Base. Tendo como

    base a LDB n 4.024 de 1961, que previa um investimento na educao de no

    mnimo 12% dos impostos arrecadados, o governo Goulart, por meio do PNE,

    pretendia basicamente dar acesso educao a todos os que estivessem em

    idade escolar, diminuir de forma considervel o nmero de analfabetos no

    Brasil e expandir o ensino superior. Assim, temos um aumento considervel

    nos investimentos pblicos em educao entre 1961 e 1964: 593% federal;

    331% estaduais; 355% municipais (VIEIRA, 1987 apud SCOCUGLIA, 2000).

    Como resposta concreta a essa poltica de investimento em educao, o

    governo de Jango tinha como expectativa vencer o voto de cabresto por meio

    das eleies. Tal possibilidade era agora mensurvel e j havia sido observada

    na dcada anterior com o aumento de 50% da participao popular nas elei-

    es entre os anos de 1950 e 1960, ainda que esse aumento de participao

    no tivesse alterado profundamente a configurao poltica brasileira (SCO-

    CUGLIA, 2000). Esse interesse do governo em fomentar o desenvolvimento da

    educao de adultos dialoga, por um lado, com os interesses religiosos da Igre-

    ja Catlica na educao de adultos, como estratgia para ampliar a f catlica,

    e, por outro, para garantir que as reformas estruturais acontecessem de forma

    controlada e tranquila como era esperado pelos setores catlicos progressistas:

    Era praticamente consensual que o saber-poder presente na

    educao dos adultos teria que ser controlado. Assim que sua

    implantao seguiu os parmetros polticos ditados pelos gru-

    pos que venceram a disputa, os quais lideraram os movimentos

    de alfabetizao at abril de 1964 (SCOCUGLIA, 2000, p. 47).

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    O incio da dcada de 1960 , desse modo, um momento de intenso

    debate em torno do papel da educao de adultos no Brasil. De um lado,

    os defensores da erradicao do analfabetismo como forma de acabar com

    o poder das oligarquias que dominavam o Congresso e que pretendiam

    um modelo de educao de adultos mais alinhado aos interesses governa-

    mentais. De outro, aqueles que, defendendo uma educao para alm da

    formao de eleitores, enfatizavam a importncia de formar sujeitos que

    fossem conscientes de sua posio na sociedade. Inseridos nesse debate,

    catlicos ligados s correntes mais radicais da Igreja e marxistas so os

    principais ativistas do grupo que prope uma educao de adultos com-

    prometida com a cultura popular e sua difuso (PAIVA, 1983).

    II Represso e acomodao dos movimentos de educao de base

    e cultura popular

    Com o golpe civil-militar de 1964 iniciado pelo presidente interino Ranieri

    Mazzili que empossou o Marechal Castelo Branco, foram encerradas, por meio

    da Portaria 237 do Ministrio da Educao, de 14 de abril de 1964, todas as

    portarias implementadas durante o governo de Joo Goulart, o que represen-

    tou a suspenso de verbas e o encerramento das polticas educacionais ges-

    tadas durante o governo de Jango. Tal medida evidencia a inteno do regime

    em solapar todas as polticas desenvolvidas por Jango durante seu governo,

    as quais, como vimos, estavam bastante comprometidas com a educao das

    populaes camponesas. Na ocasio da criao da Portaria 237:

    O Ministrio da Educao fazia divulgar, pela imprensa, um

    levantamento do material usado na campanha de alfabetiza-

    o, com o arrolamento de um vasto equipamento fotogrfi-

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    co, avaliado em vrios milhes de cruzeiros e publicaes de

    carter subversivo que seriam em seguida expostas visita-

    o pblica (BEISIEGEL, 2004, p. 181).

    Os movimentos que se dedicavam cultura popular e educao de

    adultos, como o MCP, a Campanha de P no Cho e os CPCs foram vio-

    lentamente reprimidos e fechados pela ditadura poucos dias aps o golpe.

    O Plano Nacional de Alfabetizao, cuja inaugurao havia sido marcada

    simbolicamente para o dia 13 de maio na cidade de Caxias, foi suspenso

    por meio do Decreto n 53.886, tambm de 14 de abril de 1964. O MEB,

    entretanto, foi o nico dos movimentos do perodo a sobreviver aps o

    golpe, depois de um perodo de fechamento que durou cerca de trs meses.

    O MEB foi criado em 1961 por meio de uma aliana feita entre a Igreja

    Catlica, representada pela Confederao Nacional dos Bispos do Brasil

    (CNBB), e o Ministrio da Educao. Seu objetivo era realizar um trabalho

    de alfabetizao e de educao de base das populaes do meio rural, por

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    meio de escolas radiofnicas criadas nas regies atendidas pelo projeto. A

    proposta nasceu como fruto do incentivo dos grupos que propunham um

    modelo de alfabetizao e educao popular que valorizasse a experincia

    e buscasse a melhoria integral das condies de vida do homem rural, por

    meio da reflexo sobre as questes de sade, trabalho, educao, habita-

    o que envolviam seu cotidiano e a sociedade.

    Como o governo no se preocupou com a agricultura, a estru-

    tura agrria, isto , a organizao do campo ficou velha. por

    isso que a reforma agrria importantssima para o Brasil, e

    tem que vir de todo jeito, na lei ou na marra... [...]. Ao mesmo

    tempo que se deve aumentar as riquezas, que se deve pensar

    em dividir. [...] Mas, no campo, existe uma grande desigualda-

    de entre os homens. Uns tm muito e outros nada tm, pois

    na vida do campo predominam os contratos injustos de ar-

    rendamento e parceria, pssima distribuio da propriedade,

    fazendo com que a propriedade sirva como meio de explora-

    o da terra e dos homens do campo (Material para a 7 aula

    de Ed. Poltica. MEB Recife, 27 mar. 1963).

    Os programas educativos eram transmitidos aos alunos por emissoras

    catlicas localizadas nas cidades mais prximas ao lugar onde estava ins-

    talada a escola radiofnica, geralmente em locais cedidos pelos propriet-

    rios das fazendas, mas tambm em sales paroquiais, centros comunitrios

    ou casas particulares. As aulas eram transmitidas diariamente pelo rdio

    com programao especial nos fins de semana. Para desempenhar as ati-

    vidades cotidianas de organizao da escola, controlar a frequncia dos

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    alunos e realizar o papel de mediao entre os alunos e a coordenao do

    Movimento foi criada a funo de monitor, exercida, geralmente, por al-

    gum alfabetizado e com forte influncia entre as pessoas da comunidade.

    O MEB teve forte penetrao no meio rural, mais precisamente nas regies

    Norte, Nordeste e Centro-Oeste do pas, atuando tambm nos movimentos de

    sindicalizao rural de algumas regies. O Movimento estava presente em 13 es-

    tados brasileiros no incio de 1964. Em 1961 contava com 11 sistemas e em 1964

    havia ampliado para 55. Em 1963 o MEB atingiu o nmero mximo de escolas

    radiofnicas: 7.353. Em 1964 possua 25 emissoras de rdio para a transmisso

    de seus programas educativos. Entre tcnicos, administradores e supervisores,

    trabalharam no Movimento quase 600 pessoas. Entre 1961 e 1965, o nmero de

    alunos concluintes foi de aproximadamente 380 mil. Ao longo de sua existncia,

    o Movimento capacitou 13.770 pessoas, entre professores, supervisores, anima-

    dores populares e monitores. Desse grupo, 7.500 eram monitores voluntrios

    (ARANTES et al., 1984; WANDERLEY, 1984 apud SCOCUGLIA, 2000).

    A permanncia da atuao do MEB aps o golpe se deveu interferncia

    da CNBB, mais especificamente de bispos conservadores que propuseram ao

    governo militar a reestruturao do Movimento por meio de sua descentraliza-

    o em torno das dioceses locais. Com isso pretendiam tomar para si a direo

    do Movimento e amenizar o contedo poltico radical que estava presente no

    MEB desde sua criao, afastando dirigentes leigos ligados s coordenaes

    nacional e estaduais, oriundos dos grupos que pertenciam a correntes mais ra-

    dicais do catolicismo e que haviam se engajado nas propostas do Movimento,

    trabalhando desde sua origem na estruturao de seus programas educativos.

    E quando o cristo se engaja num movimento patrocinado di-

    retamente pela hierarquia que resolve assumi-lo, claramente,

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    deve compreender tambm a mentalidade pluralista reinante

    em nosso meio catlico e no pretender exigir de seus Pas-

    tores tomadas de posio agressivas e tendentes a favorecer

    seus pontos de vista ideolgicos, por mais respeitveis que

    sejam, como se fossem os nicos verdadeiros (Carta escrita

    por Dom Avelar Brando Vilela, arcebispo de Teresina. Rio de

    Janeiro, 13 jun. 1966).

    No texto dirigido s equipes estaduais e diocesanas do MEB, Dom Ave-

    lar presta esclarecimentos sobre uma carta enviada por ele ao ministro da

    Educao. Diante da tempestade que, segundo ele, havia desabado sobre

    o Movimento, o bispo sugere aos dirigentes leigos os trs caminhos que o

    MEB poderia tomar diante do momento poltico vivido pelo pas: encerrar

    imediatamente as relaes com o Ministrio; entrar na faixa da polmica

    direta; tomar o caminho do dilogo com a dignidade que convm ao mo-

    vimento, mas disposto a ceder algo que no importasse em sacrifcio da

    causa e de seus objetivos essenciais (Carta escrita por Dom Avelar Bran-

    do Vilela, arcebispo de Teresina. Rio de Janeiro, 13 jun. 1966).

    No texto, o bispo explicita a impossibilidade de manuteno das pro-

    postas iniciais que motivaram a criao do MEB, diante da nova conjuntura

    poltica brasileira. Caso o Movimento rompesse a parceria estabelecida

    com o Ministrio da Educao, perderia sua principal fonte de recursos

    financeiros, o que, alis, passou a ser tema recorrente aps o golpe, devido

    s discrepncias entre as verbas oramentrias destinadas ao Movimento

    e as efetivamente liberadas. Se optasse pelo embate direto, perderia o di-

    reito de continuar exercendo suas atividades, sem contar a intensificao

    da perseguio por parte do regime contra muitos de seus membros, tendo

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    em vista o fato de que desde o incio da ditadura houve forte perseguio

    poltica contra os coordenadores locais e os monitores que atuavam no

    trabalho de base. Muitos integrantes foram presos e diversas escolas ra-

    diofnicas foram fechadas.

    A reestruturao proposta pelos conservadores catlicos parecia, na-

    quele contexto, a alternativa possvel para que o MEB pudesse continuar

    a desenvolver seu trabalho de educao de base, por meio de acordos

    que resultassem em processos de acomodao estabelecidos com a di-

    tadura. Em 1965 a CNBB assume a gesto do MEB, aps a aprovao, no

    ano anterior, do documento Diretrizes do Monsenhor Tapajs, e promove

    a reestruturao de alguns pressupostos metodolgicos do Movimento e

    adequaes em seu discurso pedaggico.

    Os materiais produzidos passam a deixar de lado uma viso mais

    emancipadora e revolucionria sobre a condio de vida do homem rural,

    decorrncia de uma efetiva integrao social e poltica, e comeam a defi-

    nir a educao popular como responsvel pela integrao cultural dos in-

    divduos. Alm disso, a reestruturao leva ao afastamento de diversos di-

  • Espao ticaEducao, GEsto E consumo

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    aRtiGosSo Paulo, Ano I, n. 01, jan./abr. de 2014 131

    rigentes que atuavam nas coordenaes estaduais e locais, e de militantes

    que desenvolviam o trabalho de base junto populao, como era o caso

    dos monitores. Muitos deles foram alvos da perseguio do regime militar,

    por sua atuao nos movimentos de alfabetizao e cultura popular, mas

    tambm por estarem engajados em outros espaos de militncia, como os

    sindicatos rurais e as Ligas Camponesas.

    A continuao do MEB nos moldes em que fora concebido comea a

    mostrar-se insustentvel devido a fatores que levaram ao seu futuro des-

    mantelamento: problemas com a liberao de verbas para a manuteno da

    estrutura inicial do projeto; perseguio e afastamento de militantes leigos,

    principalmente os ligados ao trabalho de base, que eram as pessoas respon-

    sveis pela elaborao dos contedos e roteiros de aulas radiofnicas; fe-

    chamento de sistemas que operavam em alguns estados da regio Nordeste,

    com a mudana de foco do Movimento para a regio Norte do pas.

    A busca da histria pela verdade envolve sutilezas. Nesse caso, cha-

    mar a ateno para as dimenses da acomodao e da represso que

    operaram ao longo dos primeiros anos da ditadura, alterando as trajet-

    rias e as experincias dos movimentos de cultura popular e de educao

    de base que atuaram nos primeiros anos da dcada de 1960. Compreen-

    der tais relaes fundamental para conhecer com mais profundidade de

    que forma a configurao poltica consolidada aps o golpe civil-militar

    foi capaz de modificar processos em curso na sociedade brasileira muitas

    vezes adaptando as demandas desses movimentos a suas estruturas pr-

    prias. No que se refere alfabetizao de adultos, a criao do Movimen-

    to Brasileiro de Alfabetizao, que ficou conhecido pela sigla Mobral,

    emblemtica da forma como a demanda popular pela alfabetizao fora

    apropriada pelo regime militar.

  • Espao ticaEducao, GEsto E consumo

    REvista

    aRtiGosSo Paulo, Ano I, n. 01, jan./abr. de 2014 132

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    Imagens: BBC Brasil, www.freeimages.com e www.rgbstock.com