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Aliberdade não se concede, conquista-se. Que a conquistem os negros!" Lucinda Canelas A Mário Domingues devem-se, nos anos 20, os primeiros textos da imprensa portuguesa a defender a independência das colónias. Hoje poucos conhecem este anarquista que denunciou as brutalidades do império em

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Aliberdadenão se concede,conquista-se.Que aconquistemos negros!"

LucindaCanelas

A MárioDominguesdevem-se, nosanos 20, osprimeiros textosda imprensaportuguesaa defender aindependênciadas colónias. Hojepoucos conhecemeste anarquistaque denunciouas brutalidadesdo império em

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África e que, como Estado Novo,trocou os jornaispela ficção. Umbreve ensaio voltaagora a recuperarparte da suahistória.

0bilhete de identidade basta

para que comecemos a fa-lar de uma história singular- a de um rapaz que nas-ceu na Ilha do Príncipe nofinal do século XIX, filho de

um homem branco e de uma ango-lana que para lá tinha sido levada

para trabalhar nas plantações decacau. Quem lhe faz o registo, já emPortugal, onde chegou com apenas18 meses para viver com a famíliapaterna numa casa onde não faltavanada, não tem sequer a certeza dodia exacto em que nasceu - Junhoou Julho de 1899 - nem do nome dasua mãe: "Congala" ou "Manga" é o

que consta no espaço que lhe é des-

tinado, assim, sem quaisquer apeli-dos, ao passo que o pai tem direitoa nome completo (António Alexan-dre José Domingues).

"Isto era o que acontecia com os

escravos, não se lhes conheciam ape-lidos", diz José Luís Garcia, sociólo-

go que há mais de 20 anos reúneinformação sobre o jornalista e es-

critor Mário Domingues (1899-1977),um dos primeiros que em Lisboa le-vantou a voz pela independência das

colónias em África, na década de1920, numa série de artigos que sãoverdadeiros manifestos de defesados direitos humanos sustentados

pelos ideais anarquistas e, ao mesmo

tempo, notas de denúncia das bar-baridades cometidas pelo impérioportuguês.

No artigo de 20 páginas que ago-ra publica no volume Media and ?

the Portuguese Empire (Coord. deJosé Luís Garcia, Chandrika Kaul,Filipa Subtil e Alexandra Santos, Ed.

Palgrave Macmillan, 2017), uma edi-

ção em inglês que reúne 17 ensaios

que analisam as relações entre o

poder e a informação e olham parao império português tomando osmedia como agentes das lutas so-ciais e políticas, José Luís Garciaconcentra-se em alguns dos artigosque Domingues escreveu nos anos1920 nas páginas do diário anarquis-ta A Batalha.

Estes artigos, defende o sociólogo,revelam três atitudes de base: umaoposição sistemática a todas as for-mas dissimuladas de escravatura, quecontinuava a existir nos territóriosportugueses em África sob o rótulode trabalho forçado; a denúncia doracismo que atravessava toda a polí-tica e administração coloniais; e aconsciência da importância da inde-

pendência africana.A Batalha é, a partir de 1919, um

jornal que critica abertamente a es-

tratégia republicana para os territó-rios africanos e apoia as reivindica-

ções da população negra em Portugalcontinental e nas colónias. É neste

quadro, em que se "começa a conso-lidar uma consciência anticolonialem alguns sectores", que Mário Do-

mingues escreve artigos "absoluta-mente visionários inspirados pelasleituras que faz sobre o movimentoidentitário dos afro-americanos", diz

José Luís Garcia."Vários jornalistas do Batalha co-

meçam a escrever sobre a corrupçãoentre os funcionários administrati-vos das colónias, sobre o tratamentoprivilegiado que é dado a muitas em-

presas que têm lá actividade, sobreo racismo, a perseguição aos negrosque reivindicam os seus direitos e

que têm jornais próprios (O Ango-lense ou A Verdade) para o fazer e,sobretudo, sobre o trabalho escra-vo", explica, expondo um regime deservidão que não é muito diferentedaquele em que milhares viviam an-tes da abolição da escravatura em

todo o território português, em 1869.

"Mas o Mário Domingues é o primei-ro a defender claramente a indepen-dência das colónias portuguesas deforma coerente num jornal portu-guês de grande popularidade", dizeste sociólogo que tem na cabeçauma exposição e na gaveta um livrosobre este jornalista que desde cedomostrou ter uma inclinação para aescrita e uma apetência invulgar pa-ra as línguas (inglês, alemão e fran-cês). "0 facto de ler jornais e revistasinternacionais e de estar a par dasmais actuais reivindicações de direi-tos humanos que vinham dos Esta-dos Unidos fazem dele um caso mui-to singular."

Domingues saúda a criação, em1921, do Partido Nacional Africano,naturalmente anticolonial, que ABatalha apoia de imediato, e acom-panha o pensamento de activistasda justiça racial como o norte-ame-ricano W.E. Burghardt Dv Bois e o

jamaicano Marcus Garvey, uma das

figuras mais importantes do movi-mento nacionalista negro. "Ele tirapartido da sua diferença racial e

politiza-a. É um mulato que pega nasleituras que faz sobre a identidade e

os direitos dos negros e adapta-as àrealidade que conhece."

José Luís Garcia, sociólogo eautor do artigo sobre MárioDomingues

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Montagem fotográficapreparada para a capa dosemanário Detective

Liberdade pela lutaPara melhor compreender os artigosde Domingues n'A Batalha importaolhar para o contexto em que são pu-blicados, só brevemente enunciadono ensaio que Garcia assina no volu-me Media and the Portuguese Empire.A República empenha-se em dar con-tinuidade à política colonial da mo-

narquia, que iniciara uma nova fase

nas relações com África nas duas úl-timas décadas do século XIX, com a

ocupação militar e administrativa dos

territórios ultramarinos, escreve este

investigador do Instituto de CiênciasSociais no artigo A Batalha e a questãocolonial, que publica com o colegaJosé Castro em 1995 na revista acadé-mica Ler História.

É com a República que nas décadasde 1910 e 1920 os brancos se come-

çam a estabelecer em força nas coló-nias portuguesas em África e que a

presença militar se consolida, abrin-do caminho a uma administraçãocivil cada vez mais abrangente, quebeneficia da aprovação do "estatuto

jurídico das populações indígenas",lembram os autores. "Os vectoresfundamentais desta construção ide-

ológica são a ideia da vocação colo-nial civilizadora dos portugueses e o

paternalismo humanitário em rela-

ção aos negros", defendem Castro e

Garcia, falando de uma "missão civi-lizadora" que não passa de um falso

pretexto para pôr em prática um pro-jecto político que tem sobretudo

grandes motivações económicas.0 aumento da população branca

nos territórios alimentou, natural-mente, o racismo. É neste quadro queDomingues assina no jornal anarquis-ta uma série de artigos denunciado-

res, alguns deles verdadeiros mani-festos, ainda que apoiados em factos,em que desmonta o sistema colonia-lista e o que o sustenta, defendendoa independência de África.

Escreve o primeiro desses artigos("0 Ideal da Independência", 5 de

Julho de 1922) depois de ler outro queo deixou indignado, assinado pelocolega Cristiano Lima ("Na FeiraMayer. Uma exibição cruel e aviltan-

te", 28 de Junho de 1922), e nele asse-

gura que "o espírito separatista" exis-

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te em quase toda a África Portuguesa,"revigorado a cada perseguição, ro-bustecido pela própria tirania de al-

guns brancos sem escrúpulos".Cristiano Lima parte de uma bar-

raca de feira em que um homembranco com o rosto pintado de pretoserve de alvo aos que lhe atiram bolasde pano e serradura para ganhar umcharuto - por cima desta "diversão"

podia ler -se "o preto que resiste atodos os portugueses" - para denun-ciar uma "brutal e inútil selvajaria"com que compactuam todos os quepermanecem em silêncio perantetamanho ataque à dignidade humana

que evoca "épocas longínquas de es-cravidão e despotismo", mas semnunca se referir às condições em quevivem os negros nas colónias.

0 que escreve Domingues logo noprimeiro título da série, por seu tur-no, não deixa dúvidas sobre o quepensa do domínio colonial, garan-tindo ser missão de todos proclamara verdade corajosamente: "O sepa-ratismo alojou-se definitivamenteno cérebro e no coração do negroescravizado e vexado por uma co-

lonização iníqua. [...] Porque nãohouve ainda quem, público e raso,afirmasse desassombradamente quetalvez não tardem dez, 15 ou 20 anos

que Portugal corra o risco de ficarsem colónias para explorar, sem ne-

gros para tiranizar?" E continua: "Às

infâmias praticadas pelo despotismobranco, em África, só um ideal de

independência se pode opor comeficácia", instando os negros a luta-rem pela sua liberdade. "A liberdadenão se concede, conquista-se. Quea conquistem os negros! Têm ou nãoos negros direito à independência?Têm. Como alcançá-la? Lutando."

E termina, num artigo carregadode interrogações e exclamações queparece destinar-se mais a ser ouvido

que lido, apelando a uma grande ma-nifestação dos negros de Lisboa comoforma de tornar pública a urgênciada libertação das colónias. "Deseja-mos ardentemente a independênciado povo negro, porque somos parti-dários da independência de todos os

povos[...]."Noutro texto, o último desta série

a que deu o nome Para a história da

colonização portuguesa, apela a queos "organismos negros" exijam deimediato o fim dos castigos corporais,a amnistia para todos dos presos po-líticos, a equiparação de salários en-tre brancos e negros e a liberdade de

trabalho e imprensa, em consonância

com outros movimentos revolucio-nários que vão surgindo no planointernacional. "É preciso que o negroportuguês ingresse também nessemovimento colossal que tem por ob-

jectivo a independência de África.""Ele não escreve sobre a libertação

das colónias portuguesas como se

fosse uma utopia distante. Nem o faz

como se este movimento se pudesseisolar de outros que se opõem ao im-

perialismo europeu e aos seu sistemade dominação", sublinha José LuísGarcia. "O Mário Domingues faz exi-

gências muito concretas e quer verresultados."

Uma tristezaDomingues não seria o único na re-

dacção do A Batalha a defender estes

ideais independentistas e a denunciaras atrocidades do colonialismo por-tuguês, mas é o primeiro a escreverabertamente sobre a libertação dosterritórios ultramarinos.

Claro que tudo isto é publicado porum diário vinculado aos ideais anar-

quistas e não está isento de contradi-

ções. São artigos que defendem osdireitos humanos em geral e o direitodos negros a serem livres em parti-cular, mas não podem ser isoladosde um contexto em que as reivindi-

cações do proletariado também estãomuito presentes. "Mas o Mário Do-

mingues fala muito mais de raça e da

emancipação dos negros" do que os

seus colegas Cristiano Lima e Ferrei-ra de Castro. "Quase todo o seu tra-balho tinha a ver com o facto de eleser um homem negro a trabalharnum meio dominado por homensbrancos e a viver numa sociedade emque aos negros não eram reconheci-

dos os mesmos direitos que aos bran-cos", acrescenta Garcia.

Domingues chegou a Lisboa com

apenas 18 meses para viver com os

avós paternos num ambiente de clas-

se média. O pai queria que recebesseuma educação séria e a casa dos avós

proporcionou-lhe um ambiente se-

guro. Nunca mais viu a mãe e, duran-te anos, por causa da informação quelhe era transmitida pela família pa-terna, acreditou que morrera quandoele era ainda bebé.

Há uma passagem em O Meninoentre Gigantes - romance autobio-gráfico que publica em 1960 numaedição cuja capa é assinada pelo filho,o pintor surrealista António Domin-

gues - em que a avó do protagonistafoge às perguntas que ele lhe faz so-

bre a mãe ao pegar numa camisa debebé que estava guardada numa ga-veta. "Havia nele uma tristeza quevinha da ausência da mãe e do factode ter descoberto que as pessoas quelhe mentiram sobre ela foram das quemais amou na vida. Essa mágoa ficou.Falava muito da mãe, do facto de elaser negra", diz José Luís Garcia, quechegou a conversar com pessoas queo conheciam bem e a quem a nora,Adelina Domingues, confiou muitasdas suas fotografias e documentos.

Em Lisboa acaba por fazer, contra-riado, o curso comercial no antigoColégio Francês, começando a traba-lhar como ajudante de guarda-livros,mesmo tendo consciência da atrac-

ção que sentia pela escrita. Foi pelaficção, aliás, que chegou ao jornalis-mo, carreira que viveu intensamentedurante 20 anos. Publicou o seu pri-meiro conto no diário A Batalhaquando tinha apenas 19, tendo escri-

to e até ajudado a criar outros jornaise revistas (ABC, Ilustração, África Ma-

gazine, Imprensa Livre, Repórter X,Detective).

Sempre no meioAté ao final de 1919, começos de 1920,Mário Domingues assinou sobretudo

ficção e crítica de arte (era um entu-siasta de modernistas como Amadeode Souza-Cardoso e Almada Negrei-ros), escreve Garcia, embora defen-dendo que é natural que alguns dos

artigos contra a política colonial quejá antes disso A Batalha publicava sob

anonimato fossem, na realidade, do

jornalista. "É o estilo dele, a ironiacom que escreve", diz o sociólogo,fazendo referência a um em particu-lar em que o autor aborda o problemada escravatura nas roças de São To-

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mé, descrita como a mais prósperadas colónias portuguesas, procuran-do desmontar o sistema falacioso de

contratação dos chamados "servi-

çais", completamente explorados e

deixados à mercê das vontades dos

proprietários das grandes fazendasde cacau. Mas depois, e até ao come-

ço dos anos 1930, assina a série da

colonização portuguesa, transforma-da num apelo ao "belo ideal da inde-

pendência africana".São 30 artigos em que denuncia

mortes e violações, em que ataca as

companhias que usam a abusam da

força para disciplinar os seus traba-lhadores que tratam como escravos,em que contesta as limitações à liber-dade de imprensa e em que expõe a

falsidade da "missão civilizadora dos

portugueses" em África. "Falar debrancos e negros implica falar da co-

lonização, e a colonização, mesmohoje, não pode ser definida senãonuma palavra - crime", escreve numdos textos desta série em que passaem revista 500 anos de império.

"0 primeiro artigo em que fala deuma África independente é de umafalta de cautela deliciosa e vai pagaro resto da vida por ela." Porquê?"Porque fica eternamente no meio- vê-se inicialmente arredado peloEstado Novo e pelo salazarismo e,depois, é menosprezado pelo anti-salazarismo e por aquela parte daelite portuguesa que se habituou amenorizar o jornalismo e a literaturade aventuras, coisas muito importan-tes para a criação de imaginários."

Domingues viveu sempre esta con-

dição de quem está "no meio", con-

dição que começa na cor da sua pele:"Não podemos esquecer que ele feztudo o que fez sendo um mulato, comtudo o que isso implicava no Portugaldo seu tempo." Por isso, e sobretudo

pelo carácter visionário e pela quali-dade da sua escrita, José Luís Garcianão podia deixar de o incluir no vo-lume que a Palgrave Macmillan lan-

çou em Dezembro (disponível empapel e em versão digital): "Eu nãopodia perder a oportunidade de o

apresentar no plano internacional

que ele merece, já que em Portugalestá ainda muito longe de ser devida-mente reconhecido."

O jornalista e escritor durante asreportagens para o Detective:numa está a pedir esmola na ruae noutra a ser detido

O Bilhete de Identidade de Mário Domingues

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Um não-alinhadoEntre os artigos de opinião e a repor-tagem, género a que dedica boa par-te da sua energia em jornais como o

Detective, chegando a disfarçar-se de

mendigo, pedindo esmola e dormin-do nas ruas para depois poder es-

crever, a partir de dentro, sobre o

apoio aos mais pobres e sobre as

condições de vida nas prisões, Mário

Domingues continuou a ter tempopara a ficção, publicando o primeirolivro em 1923, Audácia de um Tímido,a que se seguiram Anastácio José

(1927), O Preto do Charleston (1930),Uma Luz na Escuridão (1937) ou járeferido O Menino entre Gigantes(1960), romance em que, dando voza Zezinho, um menino mulato edu-cado em Lisboa que não pode seroutro se não o próprio autor, escre-ve: "Eu ficara sucumbido como se

me vibrassem uma bofetada à trai-

ção. Era a primeira vez que me fa-ziam sentir, de maneira humilhante,a cor negra da minha pele. Talveznão acredites, Marisa adorada: eununca fizera até então reparo em

que era muito diferente das pessoasque me cercavam."

"Percebi a dada altura que persistirna minha carreira jornalística era pre-judicar a minha carreira nas letras",diz num programa da RTP, em Agos-to de 1970, justificando o abandonodos jornais. Em momento algum do

programa em que a RTP o acompa-nha pelas ruas da Costa da Caparica,onde vivia, se lhe ouve qualquer co-mentário às limitações à liberdade de

imprensa impostas pelo Estado Novo,o que é natural, já que a sua entre-vista passa quatro anos antes da re-

volução que depõe a ditadura.Trocado o jornalismo pela ficção,

passa a dedicar-se aos romances po-liciais e de aventuras, sob pseudóni-mo - Os Mistérios da índia, Segredosda Espionagem Oriental, Perdidos em

África -, conseguindo viver da suaescrita, como queria desde a adoles-cência: "Durante dez/15 anos escrevi

uns 160 ou 170 livrinhos desses decerca de 200 páginas, recheados de

aventuras, cheios de imprevistos,com índios e cowboys, viagens extra-ordinárias por regiões do mundo que

eu nunca tinha visto."A estes romances seguiram-se as

biografias de figuras da história de

Portugal que serviam na perfeição aretórica do Estado Novo (D. ManuelI ou Padre António Vieira). E isto ten-do ainda no "currículo" traduções deCharles Dickens e George Eliot. "OMário Domingues era um escritornotável. Primeiro foi um jornalistaincrível, repórter impressionante, e

depois transformou-se no nosso Emi-lio Salgari [o italiano que criou o cor-sário Sandokan]. Nunca parou deescrever porque sempre quis viverda escrita", diz Garcia.

Mas, se foi autor de uma obra tãovasta quanto diversificada, e sobre-tudo de uma série de textos pioneirosno que toca à defesa da independên-cia das colónias portuguesas, por querazão permanece praticamente es-

quecido e, com raras excepções, con-finado a publicações académicas?

Porque durante o Estado Novo trocaos artigos revolucionários nos jornaispor livros de cowboys e de aventuras?

Porque a dada altura decide escreversobre os "heróis" que tanto agrada-vam ao regime e acaba por ele con-decorado?

"Fica oculto porque não alinhacom o PCP. Termina a vida poucocrítico, mas sem deixar o anarquismonem a ideia de viver apenas da escri-

ta, condição típica e desgraçada dointelectual do século XX. É um não-

alinhado", acrescenta este investiga-dor que está habituado a estudar as

relações entre os media e o poder po-lítico - Garcia coordenou, com TâniaAlves e Yves Léonard, a obra Salazar,o Estado Novo e os Media, que saiu noano passado com a chancela das Edi-

ções 70 -, e que gosta de tratar os

jornais como "arquivos da realidade"e não como meras ferramentas ins-trumentalizáveis ao serviço de umprograma que lhes é exterior.

Com o Estado Novo, lembra, a cen-sura aperta-se muitíssimo, intensifi-cando-se no começo nos anos 1960,com o conflito colonial. "O Mário Do-

mingues volta a usar da sua intuiçãoe do seu pragmatismo e decide queo melhor é deixar de escrever sobreo projecto de independência para

África e para os africanos." Uma co-bardia? "Não, de todo. Durante osalazarismo escreve incessantemen-te biografias e livros de cowboys e

espionagem precisamente para con-tinuar a ser livre, independente. Sim-

plesmente percebe que um negro a

escrever o que ele escrevia nos jor-nais estaria tramado. Não acredito

que tenha deixado de pensar comopensava."

Domingues morreu em 1977, o quesignifica que assistiu à libertação das

colónias portuguesas, na sequênciada revolução de 1974. Garcia não temdificuldade em imaginá-lo radiantecom a notícia. "Tudo o que ele escre-ve tem uma intenção profundamen-te humanista. Sempre que fala da

independência, do trabalho escravoou da destruição da identidade e dasculturas indígenas é para defender,em primeiro lugar, os mais elemen-tares direitos humanos, a políticavem depois."

"As infâmias

praticadas pelo

despotismo branco,

em Áírica, sõ um

ideal de

independência se

pode opor com

eficácia", escreve

Mário Domingues,

instando os negras a

lutarem pela sua

liberdade. "Têm ou

não os negros direito

â independência?Têm. Como alcançá-la? Lutando."