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PRECISAMOS FALAR SOBRE O CORPO GORDO DA MULHER NO
CONTEMPORÂNEO: A FOTOGRAFIA DE FERNANDA MAGALHÃES
COMO PRÁTICA DE LIBERDADE
WE NEED TO TALK ABOUT BODY FAT WOMAN IN
CONTEMPORARY: THE FERNANDA PHOTOGRAPHY MAGALHÃES
AS FREEDOM OF PRACTICE
Sara Moreira1
RESUMO
Inseridos nos parâmetros sutis de controle dos modos de vida, o devir dos corpos restringem-
se a estigmas disfarçados em plataformas divulgadas em nome da saúde e do bem estar.
Anulando a singularidade dos corpos, estamos em vigia a fim de que as estatísticas públicas
sejam favoráveis. No meio dessa gama toda, o que resta ao corpo gordo da mulher? Por meio
da cartografia de Gilles Deleuze e Félix Guatarri utilizaremos o Diário de Bordo como um
dispositivo de análise que pretende escavar a partir da experimentação do corpo da mulher
gorda instaurada na obra da fotógrafa Fernanda Magalhães, um caminho em prol da liberdade
do ser; uma atitude de resistência aos padrões que tangenciam os corpos. A proposta insere-se
nas apostas de Michel Foucault e demais interlocutores que nos auxiliam a pensar o corpo
como campo de problematização, criação e resistência. Pretendemos compor uma ética de
escrita sustentada na inventividade que relaciona a pesquisa com a vida.
Palavras-chave: Corpo; Fernanda Magalhães; Gordura; Subjetividade; Clínica.
ABSTRACT
Inserted in the subtle control parameters lifestyles, becoming the bodies are restricted to
disguise stigmas disclosed platforms in the name of health and well-being. Aborting the
uniqueness of the bodies, we are on the lookout to ensure that public statistics are favorable.
In the midst of the whole range, which remains the fat woman's body? Through mapping of
Gilles Deleuze and Felix Guattari we will use the Diary as an analytical device that you want
to dig from the trial body fat woman brought in the work of photographer Fernanda
Magalhaes, a path for freedom of being; an attitude of resistance to the standards that tangent
bodies . The proposal is included in Michel Foucault betting and other partners that help us to
think the body as for a field, creation and resistance. We intend to compose a sustained
writing ethics inventiveness that relates the research to life.
1 Psicóloga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do
Espírito Santo. E-mail: [email protected]
Key-words: Body; Fernanda Magalhães; Fat; Subjectivity; Clinic.
Falamos com a vida, com corpo, com a história...
Nesta escrita o corpo feminino quer existir, quer pulsar... Quer explodir: “O Corpo é
uma multidão excitada, uma espécie de caixa de fundo falso que nunca mais acaba de revelar
o que tem dentro. E tem dentro toda a realidade” (ARTAUD, 1995, p. 78). Escolhemos
eixos: Os parâmetros sutis de controle dos modos de vida, a produção dos corpos, os estigmas
disfarçados em plataformas divulgadas em nome da saúde e do bem estar que sufocam as
vidas. Arquitetadas sem pretensões singulares, os corpos estão em vigia a fim de que as
estatísticas públicas sejam favoráveis. Falta respiração para os corpos: “O corpo é como que
separado da experiência, anestesiado aos efeitos do convívio de heterogêneos e, portanto,
surdo à exigência de criação de sentido para os problemas singulares que se delineiam nesta
exposição”. (ROLNIK, 1998, p.3). A partir dos eixos propomos: Onde é possível resistir? O
que resta ao corpo? O que resta a quem não atende as expectativas torrentes de formas, de
medidas e de ideais?
A resistência opera nas práticas de liberdade por que “se há relações de poder em todo
o campo social, é porque há liberdade em todo lugar” (FOUCAULT apud MAGALHÃES,
2008, p.13). Práticas de liberdade que operam no interior das relações de poder, que apontam
para apostas produtoras de vida na que nomeamos “hoje” na tentativa de não permitir o
império de dominações dos saberes. Falamos da contemporaneidade, um tempo que produz
discursos sobre de modo a inscrever sobre qualificações que robotizam as subjetividades2.
Definições sobre corpo: milhões. Para o que fazer com ele: manuais. A partir dessas
suposições, partimos da compreensão de que existe um corpo gordo feminino no
contemporâneo e a pergunta que nos move é: o que fazer com o que fazem com ele?
O imediatismo midiático faz seu o lugar de verdade e não permite espaço ao
transcendental e à criatividade, há apenas escolhas de padrões conforme Rolnik (2002). Um
processo que segundo a autora é da lógica da invenção e não da criação. O discurso alimenta
campos de controle. As ciências médicas, desde o seu surgimento, divulgam saberes
2 Entendida aqui como um processo em construção que não se restringe ao individual, mas como uma rede de
processos existenciais inerentes a realidade que modulam como os sujeitos atuam no mundo.
indiscutíveis que prometem afastar os sujeitos de possíveis acometimentos físicos que
ameaçam a vida. Discursos em nome da saúde traduzidos em possibilidade de vida
institucionalizando padrões que devem orientar modos que vão desde os minuciosos
comportamentos posturais até a adesão a tratamentos invasivos.
O corpo sempre foi um lugar fecundo para a tecnologia de poder que fazem viver para
deixar morrer3. De acordo com Oliver (2006) no século XVIII, o corpo gordo era utilizado
como sinônimos de horror. Até que no século XIX, o gordo passou a fazer parte dos discursos
médicos, transformando a gordura em patologia. Até o século XX poucos estudos
progrediram nesse cenário. Quando o conceito de risco advindo da epidemiologia foi
incorporado aos dados estatísticos, finalmente o gordo passou à doente.
Pensar nessas transmutações histórias em relação ao corpo gordo nos remete a uma
passagem intitulada “O peso da leveza” cuja escrita nos mobiliza a entender que lugares para
o corpo gordo e para o corpo magro são deslocados para finalidades diferentes a medida que
os interesses sociais são modificados. Uma passagem precisa ser acolhida nesse texto para
encorpar as trajetórias que estamos trilhando:
Foram inúmeras as sociedades que acolheram com alegria a presença dos
gordos e desconfiaram da magreza, como se esta expressasse um déficit
intolerável para com o mundo. Magreza lembrava doença e o peso do corpo
não parecia um pesar. Entretanto, no decorrer deste século, os gordos
precisaram fazer um esforço para emagrecer que lhes pareceu bem mais
pesado do que o seu próprio peso (SANT’ANNA, 2011, p. 20-21).
Assistimos saltitar classes, estereótipos e ideias que tentam roubar os quereres e
robotizar as relações no/ com os corpos. Esses são meios para que o poder se instaure e se
justifique. Cada corpo imprime a lógica social em que se insere e cabe a ele repetir
substancialmente o que, muitas vezes no desconhecimento, é obrigado a realizar. Arsenais
bélicos que não são requintes exclusivos da modernidade, pois em todas as sociedades o corpo
é posto como objeto cercado de controles e coações (FOUCAULT, 2001).
No meio de toda essa selvageria discursiva, violentos são os efeitos de todas essas
artimanhas fascistas justificadas em boas intenções. Anestesiada, a sociedade contemporânea
segue sua trajetória reproduzindo que a gordura é um mal, um pecado, um sintoma. As
subjetividades são capturadas para eleger corpos que sejam modelos de prazer, de rapidez, de
3 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Cóllège de France (1975-1976).
reconhecimento, pois existe um mercado subjetivo: “[...] essa grande fábrica, essa grande
máquina capitalística inclusive aquilo que acontece conosco quando sonharam quando
devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos e assim por diante”
(GUATARRI; ROLNIK, 1996, p. 16).
A mulher gorda está ainda mais condenada. É divulgada como sexualmente
indesejável; restando-lhes a absolvição por meio do exercício físico, da contagem de calorias
ou da opção cirúrgica. A essa mulher, resta-lhes a troca de dietas, a indicação das amigas
magras aos centros de estética, a hipnose que promete emagrecer: “[...] o ‘corpo obeso’ no
mundo do capital fica à mercê das imposições da Indústria Cultural [...] se por um lado este
corpo é um produto esteticamente indesejado [...], do outro [...] é um corpo consumista, seja
de tratamentos – estético, medicamentoso, dietoterápico – ou até mesmo de alimentos”
(ALMEIDA, 2005, p. 1).
Polir contemporâneas formas que não sejam apenas as tradicionalmente tidas como
perfeitas, remete essa pesquisa para que exista vida onde houver e é por esta via do pensar que
se pretende contribuir para que outros afetos sejam recriados a fim de que os ditames sobre os
corpos sejam reeditados: “Uma prática micropolítica que só tomará seu sentido com
referência a um gigantesco rizoma de revoluções moleculares que proliferam a partir de uma
multidão de mudanças mutantes [...]” (RIEUX, 2005, p.2). Por isso precisamos evocar a arte
ou a sua força: “A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha”.
(DELEUZE, 1992, p. 215). A arte como um cais de porto no litoral. Um modo de seguir em
que o exercício de liberdade seja cunhado como uma obra em sua plena potência. O desafio é
a ampliação dos corpos, dos sentidos, da criação: [...] como desfazer o rosto, liberando em nós
as cabeças exploradas que traçam linhas de devir [...] Como quebrar até mesmo nosso amor
para nos tornarmos, enfim, capazes de amar? Como tornar-se imperceptível? (DELEUZE;
PARNET, 2004, p 59).
Precisamos nos conectar com outras linguagens que nos permitam outras experiências
com o que está naturalizado deixando de lado a omissão com o que nos implica precisamos
evocar a luta:
[...] hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação [...] e
contra a exploração [...] é a luta contra as formas de assujeitamento, isto é,
de submissão da subjetividade, que prevalecem. Talvez a explosividade
desse momento tenha a ver com a extraordinária superposição dessas três
dimensões. (PERLBART, 2003, p. 41).
Por isso falamos “com” a vida, “com” as vidas que as fotos de Fernanda Magalhães
representam, com as vidas em combate contra as tentativas de dominação do corpo gordo das
mulheres, cansados de tanta “falação” que tende a silencia-los ou traçar para eles canais de
concerto e domesticação. Tornar-se foto... Fazer os corpos gordos acontecerem!
Recuos, escolhas, fotografias e caminhos...
Escolhemos falar da gordura quando ela vira arte, quando o corpo gordo não está se
escondendo, mas se revelando num fazer que ultrapasse lugares que ele já ocupa... Assim
como a fotógrafa, escritos em forma de Diário de Bordo (BARROS; PASSOS, 2009) foram
escolhidos para um contar voltado para uma experimentação... Colocando-nos em viagem
ousamos uma cartografia com a fotografia. A rima é intencional. Pensar o acompanhamento
da foto, seus efeitos... Incômodos, graça e beleza que ultrapassam códigos da razão. Falamos
mais de sentidos do que de rigores: “Restaria saber quais são os procedimentos do cartógrafo.
Ora, estes tampouco importam, pois ele sabe que deve “inventá-los” em função daquilo que
pede o contexto em que se encontra. Por isso ele não segue nenhuma espécie de protocolo
normalizado4” (ROLNIK, 2006, p.66).
O terreiro do cartógrafo é o mundo. E seus passos são o próprio caminho, por que não
sabemos diferenciar mais os atores das experiências à medida que traçamos rastros que
orientam o que nos colocamos a disposição de fazer. Acionar as sensibilidades, evocar
estratégias políticas, manejar o que nos colocamos a problematizar... A cartografia não quer
ser pega, mas ousamos dizer que ela nos dá as mãos nesse processo de encontro com
Fernanda Magalhães pois: “O que define, portanto, o perfil do cartógrafo é exclusivamente
um tipo de sensibilidade, que ele se propõe fazer prevalecer, na medida do possível, em seu
trabalho” (ROLNIK, 2006, p. 67).
Neste trajeto, Foucault é companheiro que nos ajuda a pensar as políticas do corpo,
sua construção e seus efeitos. E isso implica pensar a docilidade do corpo, a normatividade e
o biopoder arquitetado sobre a vida. Um corpo dócil que pode ser submetido ao desejo alheio;
4 O destaque foi feito pela autora.
um corpo que pode ser aperfeiçoado (FOUCAULT, 2001). Imersos em relações de poder em
que existem poderes destinados a falar por nós: “[...] somos julgados, condenados,
classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a certo modo de viver ou morrer”
(FOUCAULT, 2014, p. 180).
Alguns saberes são eleitos para que se produza a vida, que ela aconteça em sua
máxima força de existência e dos permita a falsa sensação de certeza. Mas apenas algumas
vidas entram para as estatísticas, corroboram para a manutenção de práticas estatais e
fortalecem os poderes em ascensão. Em consequência do fazer viver outras vidas destinam-se
ao esquecimento dos dias; o padecimento, a morte. Apesar de existirem, são vidas dilaceradas
pelos discursos bonitos. O biopoder define os “comos” da vida, define regras gerais sobre as
existências singulares desde a proibição da masturbação infantil até as segregações virulentas
que desencadeiam as exclusões raciais.
Tudo em nome de uma normatividade que impere e retire os homens de sua pré-
disposição fajuta a uma degenerescência. Negamos, abafamos essa inventada tendência
humana e em prol dessa vida que é permitida a partir da morte do outro; corpos dóceis: “É
dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e
aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2001, p.118).
Vivemos sobre a égide na norma. Não é por acaso que atravessam sobre essas
verdades eleitas a distinção entre normalidade e patologia, conforme Canguilhem (2011)
desenvolve seus escritos. Existe uma necessidade de homogeneização científica a fim de
organizar e controlar os corpos. Um controle que passa a fazer parte dos processos de
subjetivação; da vivência íntima, do cotidiano das pessoas. Modos-subjetividades inerentes a
como as pessoas agem no mundo... Do invisível, do delicado poder do controle alheio nos
tornamos tanto meio quanto cúmplices: “Teremos que reconhecer que o inimigo não está só
nos imperialismos dominantes. Ele está também em nossos próprios aliados, em nós mesmos
[...]” (GUATARRI; ROLNIK, 1996, p.48).
Deleuze (1992) ao falar de arte e escrita nos chama muito a atenção para o
engendramento de uma postura não apenas acadêmica, mas de vida quando: “É preciso falar
de criação como traçando seu caminho entre impossibilidades [...] A criação se faz em
gargalos de estrangulamento” (DELEUZE, 1992, p. 71). Nesta perspectiva, é importante
compreender também a problemática de quais relações de poder é preciso movimentar. De
qual sociedade fala-se: “[...] São as sociedade de controle que estão substituindo as sociedades
disciplinares. Controle é o que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que
Foucault reconhece como nosso futuro próximo [...]” (DELEUZE, 1992, p.220).
Circunscrever esta experimentação por meio das artes a fim de exprimir do corpo
gordo o contrário do conformismo. Encontramos na sua tese de Fernanda Magalhães (2008)
“Corpo re-construção: ação ritual performance” pistas que compõe o corpo desta pesquisa:
Expor através do corpo ficou represado. Um corpo fora do padrão deve
ser contido, assim, a certa altura da vida, parei de encenar e de dançar.
Esta contenção extravasou-se pelo trabalho fotográfico, através do corpo,
em suas performances. O autorretrato e as autobiografias vieram à tona
(MAGALHÃES, 2008, p.84).
Conexões menos duras de afirmação de que o corpo obeso existe, luta e anseia pela
vida e pelo exercício de suas potencialidades. Vida de experimentações, de desobediências, de
imanentes forças de desejo: “A verdadeira vida se manifesta, assim, como uma vida outra que
faz irromper a exigência de um mundo diferente” (FOUCAULT, 2011, p. 313-314).
Insistimos, resistimos, apostamos em linhas de fuga sobre as paisagens naturalizadas por que
acreditamos que: [...] a análise [...] entre relações de pode e intransitividade da liberdade, são
uma tarefa política incessante; e que é mesmo isso a tarefa política inerente a toda existência
social (FOUCAULT, 2014, p.136).
O arrepio que passa na pele de quem conheceu a arte de Fernanda Magalhães será
transposto neste trabalho, como a escrita de um caderno íntimo de anotações. Não
acreditamos que com isso fôssemos desenvolver um trabalho conformado, muito pelo
contrário. Fernanda ativa sensações que transbordam. A cada encontro com a suas imagens:
novas paisagens, novos desafios de enfrentamento do corpo. Duas pontuações são necessárias.
A primeira é que escolhemos trabalhar com 10 (dez) fotografias de diferentes trabalhos (de
1993 a 2008) por acreditarmos na potência e nos sentidos das mutações dos registros
fotográficos. A ordem das imagens não implica uma linearidade temporal, pelo contrário, por
se tratar de uma experimentação artística, tentamos ao máximo nos livramos desses
pressupostos. Abaixo das imagens, foram transcritos trechos do Diário de Bordo, em
destaque, em fonte Berlin Sans FB, tamanho 11.
A viagem se inicia, a arte convoca a nossa presença...
Fig. 01 Auto Retrato no Rio de Janeiro, 1993, Fernanda Magalhães, portfólio da artista.
Ela estava sozinha, estava branca como a parede e só restava um ponto de sombra iluminando
aquele corpo amarrado em si mesmo, escondido do mundo. Existia uma solidão latente assim
como um desejo de omitir-se na própria sombra que a gordura produzira. Um corpo sem nome,
sem rosto e sem data.
A gordura que é escondida, amarrada. A gordura que incomoda, afasta e perturba.
Logo pensamos na construção disso, dos motivos para a invisibilidade de alguns. E penso nas
inomináveis formas de se produzir corpos encarcerados em paredes brancas. Desde outrora,
quando se pensou em uma organização social para que a vida humana fosse possível já
nascemos ensinadas: “Por exemplo, se você é uma mulher, de tal idade e de tal classe, é
preciso que você se conforme a tais limites. Se você não estiver dentro desses limites, ou você
é delinquente ou você é louca” (GUATARRI; ROLNIK, 1996, p.43).
Muitos são os berços que nos acomodam que nos acolhem neste mundo e definem
nossos padrões. Sem saber, quase tudo é calcificado dentro de uma lógica que não mais se
refere à figura de um soberano, entretanto continuamos miseráveis pedintes de líderes
velados5 que enlatam os corpos, tornando-os objeto:
5 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Cóllège de France (1975-1976).
Fig. 02 Série Fotos em conserva, 2000-2004, Fernanda Magalhães.
A gordura enlatada. A gorda subvertendo a ordem do corpo magro desenformado da forma
compartilhada pelas subjetividades capturadas. O corpo inesperado, o seio controverso. A ironia
ao dispor de todos. É a gordura incomodando. É a própria fôrma gorda que permite contornos
mais frouxos, contornos novos.
Fig. 03 Gorda 26, Fernanda Magalhães, 1995, portfólio da artista.
O vulto e a lembrança. Até o vulto embaçava as vistas dos acomodados leitores daquele corpo
gordo. Até o vulto era gordo. E todo o meu contorno escrevia um texto que percorria a minha
intimidade.
Não existem formas de vida, existem formas de se viver. A quem pertence o direito de
afirmar tal premissa? São essas as preconizações que tentam reger os comportamentos
humanos. São essas as entrelinhas mescladas de sufocamento que calam o exercício da
diferença e possivelmente explique as dificuldades cotidianas tão presentes quando falamos
de vida. Criou-se uma dificuldade de se viver, existir tornou-se penoso para os corpos. São
rostos que não se sentem capazes de se afirmar com o corpo, são corpos preocupados em se
adequar para gozarem de uma vida “normal”. A fotografia de Fernanda Magalhães fala:
Fig. 04 Classificações Científicas da Obesidade, Fernanda Magalhães, 2000. Portfólio da artista.
Só formas. Mais nada além do que a forma. A forma frígida de classificar a vida. Não existiam
vidas, eram marcas condenatórias que me fizeram esculpir da dor a arte. Era muita regra para
pouco respiro. Era muita doença para muita massa. Isso cansa.
Fig. 05 Classificações Científicas da Obesidade, Fernanda Magalhães, Balaio Brasil, Sesc Belenzinho, São
Paulo, dezembro de 2000.
A obesidade classificada, mortificada nos anais científicos. O medo diante da gordura que mata. O
contorno que define e adoece. O reconhecimento do gordo como um ser adoecido por si próprio.
O contorno docilizado do obeso. A experimentação de se enquadrar neste parâmetro. O gordo
como objeto da ciência para suplantar novas terminologias. O temor da nova onda: paradigmas
do corpo saudável.
Fig. 6 Gorda 9, Fernanda Magalhães, 1995, portfólio da artista.
Estava inteira, feito Vênus que me inspirou. Disfarcei o que a própria gordura já disfarçava: a
minha origem. E fui colocada ao lado para me submeter ao seu pior julgamento.
E o que extrair disso? Como dizer ao mundo que o corpo existe? “É preciso falar de
criação como traçando seu caminho entre impossibilidades [...] A criação se faz em gargalos
de estrangulamento” (DELEUZE, 1992, p. 71). Fernanda nos mostra o caminho de que o
corpo pode ser saboreável:
Fig. 08 Gorda 16, Fernanda Magalhães, 1995. Portfólio da artista.
Eu só queria ser gorda. Apenas gorda e fazer riso com isso. Eu só queria mostrar ao mundo que
ser gorda era possível. Ser gorda é ser gente. Gorda pra ser comida de garfo e faca, por que eu
não queria ser engolida e sim saboreada.
Acreditamos que Fernanda Magalhães diria que sua arte pretende “Horrorizar a quem
se comparou a mim”:
Fig. 09 De Viés, 2001, Fernanda Magalhães. Disponível em:
http://www.flickr.com/photos/foto_recife/5147598432/sizes/l/in/photostream/. Acesso: 30 nov. 2015.
Não bastava ser uma. Quis ser quatro. Quatro âncoras de felicidade e pose de domingo de manhã.
Estava inteira, nua ou vestida e feliz. Queria exibir-me de curto ou longo, com ou sem. Minhas
pernas existiram naquele momento e apenas me restava enfeitar aquela parede cicatrizada com
ramos verdes da minha varanda. Havia poucos cabelos, mas muita pele a disposição de quem me
observara aos quatro cantos. Meus braços não me silenciavam, assim como meus pés. Eram
grossos o suficiente para horrorizar quem se comparou a mim.
A potente e magnética força do ser: “Esta contenção extravasou-se pelo trabalho
fotográfico, através do corpo, em suas performances. O autorretrato e as autobiografias
vieram à tona” (MAGALHÃES, 2008, p.84).
Fig. 10 Auto Retrato Nu no RJ, 1993, Fernanda Magalhães, portfólio da artista.
Uma gorda sensual. Peitos de desejo, corpo inscrito e marcado pelo espaço que ocupa. O prazer
da maciez do branco corpo que se mostra inteiramente, sem tabus. Uma gorda que deseja, que
sacrifica sua vagina em prol dessa pulsante e magnética potência de ser.
Fig. 11 Auto Retrato Nu no RJ, 1993, Fernanda Magalhães, portfólio da artista.
De tudo, recortei os seios. Naquela hora eles bastavam. Diziam tudo sobre o resto do que me
pertencia. Mal cabiam entre minhas mãos, eram grandes o suficiente para representarem o todo.
Estavam em evidencia naquele entorno rosa, o feminino sobreposto ao feminino. Eram seios de
mulher farta, de mulher que mostra o que tem de muito.
Provocações sem censura, conforme o próprio relato da fotógrafa. Um choque para os
que estão embebidos de verdades profetizadas sobre o modo de ser do corpo. Fernanda
constrói uma estética combatente, aberta e livre a julgamentos exteriores como consequência
do incômodo de sua obra de uma beleza às avessas. É desconstrução à luz de um corpo que
inscreve sua própria forma de ser fora da convenção. Nojo, horror, náusea, espanto,
curiosidade, surpresa. Que sejam todas as expressões diante de um corpo que pulsa e grita;
que exige da vida um lugar. Precisamos ontem, hoje, amanhã e depois: conexões menos duras
de afirmação de que o corpo obeso existe, luta e anseia pela vida e pelo exercício de suas
potencialidades. Vida de experimentações, de desobediências, de imanentes forças de desejo:
“[...] Ela se torna, com os cínicos, uma vida escandalosa, inquietante, uma vida 'outra',
imediatamente rejeitada, marginalizada [...]. A verdadeira vida se manifesta, assim, como uma
vida outra que faz irromper a exigência de um mundo diferente” (FOUCAULT, 2011, p. 313-
314). Ousar com afeto.
Existe um corpo! E diante desses escritos a partir de Fernanda Magalhães, é preciso
viver a vida como prática de liberdade. A originalidade de Foucault está em perceber na
estética da existência6 modos de afirmação da liberdade e da criação. Como nos diz Foucault:
“a existência é a matéria primeira e mais frágil da arte humana, e também seu dado mais
imediato” (FOUCAULT, 1994, p. 630-631) logo, desejo para um trabalho que apenas inicia:
que ele seja corpo-âncora, corpo-alvorada. Para tal é preciso reconstituir esse corpo-sujeito
desmitificando a sombra da vida: “[...] modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida
uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”
(FOUCAULT, 2004, p. 272).
Não podemos perder a nossa vivacidade latente de reinvenção dos corpos, o singular
precisa habitar nossas escolhas e ética precisa nos ajudar a pensar os corpos em sua
singularidade em imanência com a coletividade por isso a importância de problematizar a
história do corpo e seu fecundo lugar de produção de tecnologia e manufatura da vida. O
pensamento contestador nos move aos questionamentos. Precisamos falar da arte por que a
arte fala de nós. E insistir nela é resistir, por que a resistência nos chama, em meio a tantas
opressões à experiência. Precisamos mexer na ferida que está em vias de cicatrização. Re-
fazer. Refazer-nos.
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