Dagnino - Um Debate Sobre a Tecnociencia

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Um Debate sobre a Tecnocincia: neutralidade da cincia e determinismo tecnolgicoRenato Dagnino 1. INTRODUO .............................................................................................................3 1.1. 1.2. 1.3. Sobre o carter do debate.....................................................................................4 Sobre outras possibilidades de classificao ........................................................6 Sobre o tratamento em conjunto da cincia e tecnologia: o conceito de

Tecnocincia ..................................................................................................................10 1.4. 1.5. 2. Duas outras aclaraes.......................................................................................14 Sobre a estrutura do trabalho ..............................................................................18

A PRIMEIRA ABORDAGEM: FOCO NA C&T ..........................................................18 2.1. 2.2. A Neutralidade da C&T........................................................................................21 O Determinismo Tecnolgico ..............................................................................31 A formulao original de Marx......................................................................32 Relaes sociais de produo e foras produtivas ......................................38 O Determinismo Tecnolgico e a teoria econmica no-marxista ...............43 Marx aceitava o Determinismo Tecnolgico?...............................................46 Uma tentativa de concluso .........................................................................52

2.2.1. 2.2.2. 2.2.3. 2.2.4. 2.2.5. 3.

A SEGUNDA ABORDAGEM: FOCO NA SOCIEDADE............................................54 3.1. A Tese Fraca da no-neutralidade ......................................................................55 Os avanos e os limites do Construtivismo ..................................................56 57 61

3.1.1.

A contribuio de Langdon Winner A contribuio de David e Ruth Elliott As abordagens scio-tcnicas Consideraes finais 3.1.2. 3.1.3. 70 64

Mais algumas crticas ao Determinismo Tecnolgico...................................76 Crticas marxistas ao Determinismo Tecnolgico.........................................77 77

A Escola de Frankfurt e a Teoria Crtica da Tecnologia

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A contribuio de David Dickson 81 A contribuio de Stephen Marglin A contribuio de Harry Braverman A contribuio de Michael Burawoy A contribuio de Andrew Feenberg 3.1.4. 3.2. 82 85 90 93

A produo de C&T e a reproduo do capital.............................................99

A Tese Forte da no-neutralidade. ....................................................................109 As principais formulaes e o debate at a queda do Muro ....................110

3.2.1.

A contribuio de David Dickson 110 A crtica ao socialismo real: Benjamin Coriat A viso de Andr Gorz A crtica de Braverman 3.2.2. 115 118 113

A transio ao socialismo e a nova percepo da C&T pelo marxismo .....119

A crtica maosta de Charles Bettelheim 120 A crtica de Chesnais e Serfati viso produtivista Istvn Mszros: para alm do capital 131 David Noble e a luta desigual 134 130

Os economistas radicais norte-americanos e a transio 141 4. CONSIDERAES FINAIS......................................................................................146 4.1. 4.2. 4.3. A primeira soluo de compromisso: a contribuio de Andrew Feenberg .......149 A segunda soluo de compromisso: a contribuio de Hugh Lacey................158 Em direo a uma outra soluo de compromisso............................................167 O primeiro conjunto de proposies metodolgicas: quatro vises sobre a Tecnocincia 172

O segundo conjunto de proposies metodolgicas: instrumentalizao primria e secundria 177 O terceiro conjunto de proposies metodolgicas: Adequao Scio-tcnica 186

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1. Introduo Este trabalho fruto de nossa experincia de docncia e pesquisa no campo dos Estudos Sociais da Cincia e Tecnologia ESCT (o campo dos estudos que investiga a relao Cincia, Tecnologia e Sociedade - CTS). Embora com finalidade eminentemente didtica, ele reflete, como no poderia deixar de ser, nossa vivncia, que transcorreu em paralelo, como analista da poltica policy - de C&T brasileira (e latino-americana) e como participante - no ambiente da politics - de sua elaborao. De uma forma bastante genrica e mesmo ingnua, mas adequada finalidade deste trabalho, possvel classificar o modo como os ESCT abordam esta a relao em duas grandes categorias. A primeira, possui como foco privilegiado de anlise, ou como elemento determinante da dinmica da relao, o seu primeiro plo, a C&T; enquanto que, a segunda, a Sociedade. Este primeiro modo de abordagem, que aqui denominamos correndo o risco do simplismo com foco na C&T, se caracteriza pela suposio de que a C&T, que pelas razes atinentes ao prprio emprego da expresso Tecnocincia mais adiante apresentadas vamos tratar em conjunto e no singular, avana contnua e inexoravelmente, seguindo um caminho prprio, podendo ou no influenciar a sociedade de alguma maneira. Para a segunda abordagem, que aqui denominamos com foco na sociedade, o carter da C&T, e no apenas o uso que dela se faz, como prope a primeira, socialmente determinado. E, devido a essa funcionalidade entre a C&T e a sociedade na qual foi gerada, ela tende a reproduzir as relaes sociais prevalecentes. Pode, at mesmo, segundo uma viso mais radical, a inibir a mudana social. Levando adiante esta tentativa de classificao, poderamos dizer que cada uma dessas abordagens d origem a dois conjuntos de idias coerentes com cada uma delas e que so aqui denominados variantes das mesmas. s duas variantes associadas primeira abordagem com foco na C&T chamamos: da Neutralidade da C&T e do Determinismo Tecnolgico. E, segunda com foco na sociedade damos o nome de Tese fraca da no-neutralidade (ou do Construtivismo), e Tese forte da no-neutralidade.

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Como j apontado, o objetivo bsico deste trabalho didtico. Ele revisa uma extensa bibliografia em busca de momentos e passagens em que se aborda o tema em foco e trata, por um lado, de classific-la de acordo com a taxonomia acima proposta. Por outro, sem pretenso de originalidade, busca esboar uma viso de conjunto da contribuio de

FOCO na C&T: a C&T avana contnua, linear e inexoravelmente, seguindo um caminho prprio A C&T no influencia a sociedade (Neutralidade da C&T)

FOCO na SOCIEDADE: o desenvolvimento da C&T no endgeno, mas influenciado pela sociedade As caractersticas da C&T so socialmente determinadas (Tese fraca da no-neutralidade) Devido sua funcionalidade, ela inibe a mudana social (Tese forte da noneutralidade)

A C&T determina o desenvolvimento econmico e social (Determinismo tecnolgico)

um grande nmero de autores, recorrendo freqentemente s suas prprias formulaes, de maneira a permitir ao leitor formar sua opinio acerca de uma problemtica pouco tratada entre ns, mas que julgamos da maior importncia para a realidade brasileira atual. Alguns aspectos so considerados como merecendo aqui uma aclarao preliminar. O primeiro sobre o carter do debate que este trabalho pretende analisar e promover, abordado no item que segue, o segundo sobre a existncia de outras possibilidades de classificao da bibliografia e das contribuies ao tema e, o terceiro, acerca do conceito de Tecnocincia, ou sobre a convenincia de tratar em conjunto cincia e tecnologia.

1.1. Sobre o carter do debate O debate que nos interessa investigar, sobre a relao Cincia, Tecnologia e Sociedade, pode ser entendido como situado em torno da pergunta de se os efeitos negativos da tecnologia compensam os seus benefcios. Os partidrios do progresso reivindicam a "razo" como sua aliada, enquanto seus adversrios defendem "a humanidade" contra as mquinas e as organizaes sociais mecanicistas. Devem os seres humanos submeter-

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se lgica da maquinaria, ou a tecnologia pode ser redesenhada para melhor servir aos seus criadores? Essa pergunta, da qual em certo sentido depende o futuro da civilizao industrial, no apenas de natureza tcnica, mas sim poltica. Se a tecnologia neutra, os imensos e freqentes distrbios sociais que causa e os impactos ambientais negativos que ocasiona so efeitos acidentais de progresso e no haveria muito que fazer. O cenrio est pronto para um debate a favor e contra a tecnologia que, no obstante no o foco deste trabalho. Ele rejeita este dilema e argumenta que a questo no a tecnologia nem o progresso em si mesmos, mas a variedade de possveis tecnologias e caminhos de progresso entre os quais devemos escolher. Para abordar a questo colocada por essa escolha, necessrio, em primeiro lugar, visualizar o conjunto de valores de natureza tica, esttica e cultural embutido na tecnologia, que a coloca num plano que transcende o da eficincia. A postura que tende a ver a Cincia como algo puro e a contrasta com valores pertencentes a uma outra esfera, a v como um processo causal, muito distinto daquele que origina esses valores, que simplesmente expressam preferncias subjetivas. Tal postura foi criticada, desde os anos 60, pela Escola de Frankfurt e seus seguidores, que rejeitam a separao entre valores e fatos no pensamento moderno e tratam a tecnologia como algo relacionado moldura das prticas sociais; no como racionalidade pura, mas como inserida num sistema cuja dinmica est governada por valores. O que faz com que, desse ponto de vista, a ordem tecnolgica aparea na sua contingncia como um possvel objeto de crtica e ao polticas. Mas a abordagem da questo da escolha entre as tecnologias e caminhos de progresso alternativos demanda, em segundo lugar, entender por que nem mesmo a crtica da Escola de Frankfurt, que avanou consideravelmente no tratamento do tema deste trabalho - a neutralidade da tecnologia e as teorias do Determinismo Tecnolgico a ela relacionadas no foi capaz de evitar o debate polarizado e apontar o caminho de sua superao. A superao da situao em que a alternativa aceitao acrtica dos argumentos a favor do progresso tcnico era a sua rejeio incondicional levou a uma percepo distinta, tanto daquela dos partidrios e como dos adversrios do progresso tcnico. A tecnologia moderna passou a ser entendida, ento, nem como uma salvao nem como

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uma caixa de ferro. Ao contrrio, ela um elemento essencial de um marco de referncia cultural pleno de problemas, mas sujeito a ser transformado (Feenberg, 1995:2). Uma outra maneira - mais direta e tambm mais abrangente de colocar essa questo indagar, como tm feito recentemente filsofos da cincia, acerca de como a cincia pode promover o bem-estar humano. E mais, de que a cincia, sendo um produto humano, s poderia ser avaliada nesses termos (Dupr, 1993). Isto porque a pesquisa em diversos campos percebida cada vez mais como sofrendo influncias, em funo dos valores particulares de certas elites e, em conseqncia, tendendo a produzir pesquisas que resultam em benefcios privados freqentemente prejudiciais para a maioria. A idia de que a cincia pode ser avaliada no s pelo valor cognitivo (epistmico) de seus produtos tericos, mas tambm por sua contribuio justia social e o bem-estar humano, sendo uma avaliao cognitiva positiva uma condio para que outras formas de avaliao, envolvendo outros valores, tenham sentido, tem sido considerada como um tema merecedor de debate por aqueles que enfocam a cincia tendo como pano de fundo normativo a transformao social (Lacey, 200*). Critrios que servem de embasamento para uma teoria da mudana tecnolgica democrtica, que permita explicar porque as decises sobre alternativas tecnolgicas dependem, do ponto de vista qualitativo e quantitativo, do ajuste possvel entre elas e os interesses e crenas dos grupos sociais que influenciam o processo de concepo, passam ento a ser objeto de discusso. Discusso esta que se tem limitado, verdade, queles que entendem o processo de concepo da tecnologia como possuindo estreita relao com aspectos sociais, ao contrrio do que propem os argumentos deterministas da neutralidade da tecnologia. *?Que percebem a existncia de situaes em que a participao pblica na concepo de mecanismos e sistemas tecnolgicos levou a uma significativa diferena em termos de suas implicaes, e que a distribuio desigual do poder entre os atores sociais, de influenciar sobre o processo de concepo da tecnologia, pode contribuir para a injustia social.

1.2. Sobre outras possibilidades de classificao conveniente ressaltar nesta Introduo a existncia de outras propostas de classificao com objetivo semelhante. Isto apesar de que o seu entendimento possa ser

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prejudicado pelo fato de que alguns dos elementos a que se referem s serem tratados nas sees seguintes. A primeira delas, sugerida por Osorio (200*), ainda que focalizada no tema da tecnologia, , no apenas um exemplo a destacar, como um contraponto quela aqui proposta. No trabalho citado, o autor comenta que existem pelo menos outras duas, alm da sua prpria, em que baseia sua contribuio. A de Quintanilla (2001), segundo a qual as abordagens acerca da tcnica e da tecnologia podem ser agrupadas em trs categorias: aquelas com orientao instrumental, cognitiva, e sistmica. E a de Mitcham (1994), cuja nfase sobre as diferentes formas de manifestao da tecnologia: como conhecimento, como atividade (produo, utilizao), como objetos (artefatos), e como vontade tcnica. O trabalho de Osrio, por possuir um objetivo semelhante ao deste trabalho - apresentar uma proposta de classificao da contribuio de outros autores a seguir comentado com algum detalhe. Sua classificao est composta por trs categorias ou enfoques: instrumental, cognitivo e sistmico ( a este ultimo que ele destina maior ateno e subdivide em sub-categorias). O Enfoque Instrumental ou artefatual considera que as tecnologias so simples ferramentas ou artefatos construdos para realizar tarefas; so resultado do conhecimento tcnico emprico (artefatos artesanais) ou cientfico (artefatos industriais). Ao considerar unicamente o aspecto artefatual da tecnologia e assumir seu carter neutro esse Enfoque tende a conferir aos cientistas e engenheiros, o direito exclusivo de decidir o que tecnologicamente "correto e objetivo", inibindo a participao da sociedade. Por outro lado, ao separar os objetos tecnolgicos do tecido social considera que as tecnologias so produtos neutros que podem ser utilizados para o bem o para o mal, sendo a sociedade a nica responsvel pelo seu uso, j que, em princpio, a tecnologia responderia apenas a critrios de utilidade e eficcia e nada teria a ver com os sistemas polticos ou sociais. Ao lado dessa viso, que de acordo com a classificao aqui proposta se identificaria com a da Neutralidade da C&T, e dentro do mesmo Enfoque, o autor coloca aquela que aqui denominamos de viso do Determinismo Tecnolgico, segundo a qual a tecnologia determina a organizao social. O Enfoque Cognitivo parte da diferenciao entre tecnologia e tcnica, entendendo a primeira como produto da aplicao da cincia e a segunda como um conjunto de habilidades que se obtm atravs da atividade emprica, sem o concurso do

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conhecimento cientfico. Ao rejeitar a noo de tecnologia como cincia aplicada, este Enfoque questiona a idia de progresso humano baseado na cincia, e seu corolrio: de que quanto mais se desenvolver a cincia, mais tecnologia teremos, e, por conseguinte, mais progresso econmico, o que nos traria mais progresso social. Tal resultado coloca este enfoque muito prximo ao que aqui chamamos de Tese fraca da no-neutralidade. A ltima categoria proposta por Osorio a de Enfoque sistmico. Sua formulao parte de contribuies, como as de Quintanilla (1988), relativas ao tratamento da tecnologia como um sistema de aes intencionalmente orientadas transformao de objetos concretos para obter de forma eficiente um resultado valioso, de Pacey (1999), que entende a tecnologia como uma prtica social composta por uma srie de componentes inter-relacionados, e de Hughes (1983) que prope uma noo de sistema tcnico em que haveria que levar em conta seus componentes de carter fsico, cognitivo (conhecimentos) e organizacional, os atores e, em particular, a dinmica do prprio sistema. Ao entender a tecnologia, no como dependente da cincia representada com um conjunto de artefatos, mas como produto de uma unidade complexa, em que participam os materiais, os artefatos e a energia, assim como os agentes que a transformam, para este enfoque o fator fundamental do desenvolvimento tecnolgico seria a inovao social e cultural, a qual envolve no somente as usuais referncias ao mercado, como os aspectos organizativos, os valores e a cultura. Uma das variantes deste Enfoque, que o Osorio denomina de Scio-ecosistema Tecnolgico, recolhe de autores do construtivismo a idia de que as pessoas envolvidas com a produo de conhecimento no apenas interpretam de modo diferente os fatos cientficos e os artefatos tecnolgicos, como concebem (projetam), a partir desta interpretao, artefatos tecnolgicos distintos (Pinch e Bijker, 1987). Ao propor o entendimento dos sistemas tecnolgicos como construes sociais, isto , como fruto da interao dos distintos grupos sociais relevantes que convivem no seu interior, este enfoque abre caminho para um aumento da considerao da participao da sociedade nas decises sobre a orientao da C&T e a sua transformao. Aproxima-se, neste sentido, esta variante, do que neste trabalho denominamos Tese forte da noneutralidade.

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Uma outra classificao, mais prxima da nossa, a proposta por Jos Luis Lujan (1992) que divide os autores que abordam a relao entre a tecnologia e a sociedade e nos estudam a influncia da tecnologia sobre a sociedade e nos que estudam a influncia da sociedade sobre a tecnologia. Diego Aguiar (Aguiar, 2002), em sua cuidadosa e detalhada reviso conceitual crtica sobre o Determinismo Tecnolgico, toma essa classificao como ponto de partida e, interpretando-a de forma radical, arma um cenrio de disputa entre os dois tipos de determinismo - tecnolgico e social - que passa a contrastar. A adoo dessa postura, que compartilhada, entre outros, por Kreimer e Thomas (2000), justificada pela observao de uma pretensa tenso entre duas linhas monocausais deterministas social e tecnolgica - que se estariam manifestando no mbito dos estudos sociais da tecnologia uma tenso. Embora no estejamos inteiramente de acordo com essa viso, tanto que a tipologia que criamos muito distinta, no h como negar que ambos os trabalhos so excelentes, especialmente no que respeita apresentao que se faz das idias dos autores que tratam o tema. E que uma de suas concluses, de que tanto a abordagem predominante, que se concentra sobre os efeitos da tecnologia, tomando esta como um determinante, uma varivel independente, como a que busca explicar as mudanas tecnolgicas mediante causas sociais, so inadequadas, por ns plenamente aceita. Focando sua ateno na primeira abordagem, Aguiar (2002) classifica as contribuies que analisa tomando como balizamento o que chama de duas teses fundamentais do Determinismo Tecnolgico: a mudana tecnolgica causa da mudana social e a tecnologia autnoma e independente das influncias sociais (algo semelhante ao que aqui denominamos, respectivamente de variante do Determinismo Tecnolgico e da Neutralidade da Cincia e Tecnologia). Partindo dessa assimilao entre o que consideramos duas variantes, e realizando uma crtica do Determinismo Tecnolgico fundamentada na perspectiva dos Estudos Sociais da Tecnologia, ele chega a uma proposta que busca escapar do falso dilema entre os dois determinismos abandonando, no apenas a idia de que a tecnologia pode ser tratada como uma caixa preta como a de que existiriam o tecnolgico, o social, o poltico, o econmico, etc., como fatores independentes, substituindo aquela representao que considera simplista pela metfora Construtivista do tecido sem costuras.

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No h como negar que o ponto de partida epistemolgico que adota essa proposta para abordar a dinmica da mudana social e tecnolgica agudo e consistente. Entretanto, o fato de que ela, em parte devido classificao que adota, elide a questo poltica que nos parece fundamental, relacionada ao papel que a tecnologia dever cumprir na construo de uma alternativa sociedade atual, no nos parece, pelas razes que iremos apresentar mais adiante, a mais adequada. E justamente por essa razo, por seu carter policy oriented, que o presente trabalho, ao contrrio desses e de outros que consultamos, procura, a partir mesmo da prpria tipologia que prope, abordar as vrias vises contrastando diferenas sob certo ponto de vista menores, mas que explicitam os aspectos mais propriamente polticos envolvidos. A isso se deve a insistncia com que se coloca em debate interpretaes de autores marxistas com aquelas alinhadas com outras correntes de pensamento. A opo pela utilizao dessa tipologia no implica, como ficar claro na ltima seo, a subestimao daquela que sugere um desses autores marxistas de maior importncia para o tema aqui abordado Andrew Feenberg em torno das quatro vises que identifica no cenrio da discusso a tecnologia.

1.3. Sobre o tratamento em conjunto da cincia e tecnologia: o conceito de Tecnocincia Uma caracterstica metodolgica deste trabalho a pretenso de, paulatinamente, seguindo a prpria ordem histrica em que se desenvolve o debate sobre o tema, mostrar as contradies e inconsistncias que este vai revelando e a insuficincia de muitas das idias e posies propostas para explicar a realidade observada. A este respeito, cabe um destaque opo de referir-nos em conjunto cincia e tecnologia; a ponto de fazer este binmio - C&T - concordar gramaticalmente muitas vezes com a terceira pessoa do singular. Tratamento este no nosso entender cada vez mais justificado pela emergncia do conceito de Tecnocincia. E isso apesar de que, mais adiante, se ver como, quando se trata, no de uma anlise de natureza descritiva, mas de uma proposio normativa, prospectiva, em relao mudana considerada como necessria na rbita da C&T para alavancar um processo de transformao scioeconmica, tratemos em separado as atividades cientfica e tecnolgica.

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Em nossa percepo, o que estamos acostumados a chamar de cincia e tecnologia so coisas que a contemporaneidade torna cada vez mais inseparveis. At mesmo os limites das atividades que as originam se tm tornado quase indistinguveis. Os mesmos fundamentos do mtodo histrico que nos levam a considerar as Revolues Cientfica, do Sculo XVII, e a Industrial, iniciada no sculo XVIII, como processos relativamente independentes, obrigam a classificar o processo de fecundao recproca, sistemtica e crescente entre cincia e tecnologia que se materializa a partir da segunda metade do sculo XX e se acentua ainda mais no sculo atual, como algo distinto (Nez, 2000). O fato de que a imagem da cincia como uma atividade de indivduos isolados em busca da verdade no coincide com a realidade social contempornea, por um lado, e de que C&T tm sido crescentemente impulsionadas pela busca de hegemonia mundial das grandes potncias e pelas exigncias do desenvolvimento industrial e as pautas de consumo que ali se geram e difundem para as sociedades que imitam esses processos de modernizao, por outro, no podem ser subestimados. Pelo contrario, eles no parecem apontar uma tendncia de mudana meramente quantitativa; ao que tudo indica estamos frente a uma transformao qualitativa, a uma ruptura em relao trajetria passada. Na realidade, nem o corte temporal nem o espacial, normalmente usados para diferenciar a cincia, ou pesquisa bsica, da tecnologia, ou pesquisa aplicada, tm atualmente sentido. Definir a segunda como aquela cujo objetivo produzir conhecimento com perspectiva de aplicao imediata e a primeira como a que gera um conhecimento de aplicao no apenas longnqua como incerta, no coerente com a evidncia emprica que mostra uma dramtica reduo do tempo que medeia entre a inveno e a inovao. Essa reduo, evidente, interessa as empresas cuja sobrevivncia e expanso depende justamente da rapidez com que conseguem em seus laboratrios encurtar esse tempo. E justamente esse elemento central do ambiente concorrencial do capitalismo contemporneo, unida ao carter cada vez mais tcito, dificilmente transfervel e aproprivel do conhecimento tecnolgico, o que faz com que tambm o corte espacial, que define como aplicada a pesquisa que se realiza na empresa e como bsica a que se faz na universidade, perca sentido (Dagnino, 2001).

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Essa percepo est cada vez mais presente em autores filiados ao que se pode denominar Movimento CTS. Entre eles, Angotti (1991, p.13), afirma que ... h uma alimentao, uma sobreposio entre as atividades de Pesquisa e de Desenvolvimento; alguns laboratrios esto mais voltados para pesquisa bsica caracterizando uma ligao tnue; outros mais prximos de produtos de mercado caracterizando uma ligao forte entre essas atividades. Mas mesmo autores no filiados a esse Movimento, como Gibbons et al. (1994), reconhecem que o contexto da aplicao da cincia invade, determina, j est presente, enfim, no contexto da tradicionalmente chamada cincia bsica. Autores como Latour e Callon, ao explorar o conceito de Rede de Atores, avanam no sentido de propor uma espcie de tratamento conjunto da Cincia e da Tecnologia. A cincia no consistiria em pura teoria, nem a tecnologia em pura aplicao, seno que ambas seriam integrantes de redes de cujos ns tambm fazem parte todo tipo de instrumentos, seres e objetos relevantes atividade que se desenvolve no seu entrono. Os produtos da atividade cientfica - as teorias -, no poderiam ento continuar sendo separadas dos instrumentos as tecnologias, inclusive - que participam da sua elaborao. difcil saber a que se dedicam as pessoas que trabalham num laboratrio de uma grande empresa ou de uma universidade: fazem cincia ou fazem tecnologia? Talvez simplesmente faam Tecnocincia, atividade em que os velhos limites se encontram cada vez mais esmaecidos (Nez, 2000). Mas nossa opo para a anlise descritiva que aqui se faz no decorre simplesmente da percepo difundida de que a interpenetrao do que antes se diferenciava como sendo pesquisa bsica e aplicada as torna, cada vez mais, uma mesma coisa. Ela est associada postura que assumimos mais adiante de consider-las como determinantes do contexto social e, mais do que isto, capazes de inibir sua mudana. Mas para alguns o reconhecimento do aumento no nmero e na profundidade dos vnculos entre cincia e tecnologia, que um dos vetores que leva ao conceito de Tecnocincia, implica uma postura crtica engajada. Isto porque, segundo Oliveira (2003): Quanto mais se consolida o amlgama da Tecnocincia, menos espao sobra para o valor que se atribui ao conhecimento cientfico como um fim em si mesmo, independente das aplicaes.

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Para essa postura, o processo de consolidao da Tecnocincia, que se acelera com o neoliberalismo em funo, inclusive, das mudanas que impe s instituies que a produzem e financiam, e que levam sua crescente mercantilizao, selaria o fim do mito da cincia pura - a cincia considerada do ponto de vista de seu valor intrnseco. Adicionalmente, ao reconhecer a tendncia consolidao da Tecnocincia, que cada vez mais avalia a pesquisa pblica pela sua capacidade de gerar solues tecnolgicas apropriveis pelo mercado, como algo caracterstico e inerente e ao capitalismo contemporneo, essa postura sugere algo que merece ser mais bem explorado. Algo que tem a ver com a necessidade de aproveitar o lado potencialmente positivo daquele processo. Ao romper com os limites artificiais entre cincia pura e cincia aplicada, que tm sancionado a irresponsabilidade da comunidade de pesquisa, em especial, pela sua dramaticidade, dos pases perifricos, em relao sociedade que a mantm, ele aponta dois movimentos. O primeiro, relativo a aes envolvendo essa comunidade no sentido de incorporar ao processo de tomada de deciso que leva definio de sua agenda de pesquisa, necessariamente cada vez mais multidisciplinar, a oportunidade da aplicao de seus resultados na realidade social em que ela vive. O segundo dirigido a internalizar na sua atividade de pesquisa e de concepo de inovaes formas de trabalho norteadas pelos valores da solidariedade, da justia social e do respeito ao meio ambiente que substituam aqueles que, muitas vezes de maneira sutil, quase imperceptvel, contribuem para o entendimento do dano ambiental como uma externalidade e para potencializar a acumulao de capital e seus efeitos socialmente negativos. Essa conexo fundamental entre a cincia e a tecnologia que leva a que ambos os domnios possam ser pensados conjuntamente assimilada pela concepo dominante no pensamento oficial. Por presidir as decises referentes prtica da pesquisa, levando a que o termo cincia seja cada vez mais entendido como incluindo a tecnologia, ambas interpretadas segundo a racionalidade cientfico-tecnolgica, ele termina por conformar a prtica cientfica. No obstante, para ser fiel aos autores consultados e, em muitos casos, proporcionar ao leitor a dimenso histrica em que se desenvolve o debate, no se utiliza aqui o termo Tecnocincia. Adota-se, ao invs disso, uma soluo de compromisso: mantm-se a denominao tradicional de cincia e tecnologia, mas se utiliza para design-las a terceira pessoa do singular.

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H que ressaltar, entretanto, que alguns autores, entre eles Andrew Feenberg, a quem citamos reiteradamente ao longo deste trabalho justamente por consider-lo o que melhor avana, inclusive em relao s interpretaes marxistas anteriores, na caracterizao da Tese Forte, no emprega o conceito de Tecnocincia. Na realidade, no s d a entender no decorrer de sua obra, limitada anlise a tecnologia, em mais de uma passagem, que estaria mais alinhado com uma viso neutra de cincia, como critica explicitamente

ne utralid ad e d a tecn olog ia e da cin cia

d eterm in ism o tec no l g ico

tes e fraca d a n on e utralid ade

tese fo rte da n o ne u tralidad e

foco n a C & T

foc o n a S oc ied ad e

c o n t n u o(Feenberg, 1995:164) o emprego do conceito de Tecnocincia. Existem razes adicionais para a opo que fazemos. No cabe aqui explic-las, mas sim remeter o leitor interessado no contexto policy oriented que originou este trabalho a um outro (Dagnino, 2002). E indicar, adicionalmente, que elas se relacionam ao fato de que o debate que este trabalho pretende subsidiar no mbito dos atores diretamente envolvidos com a pesquisa e o seu fomento, visando a reorientar a Poltica Cientfica e Tecnolgica de um pas perifrico, tem por objetivo alavancar um estilo alternativo de desenvolvimento.

1.4. Duas outras aclaraes Ainda a ttulo de introduo, dois aspectos deste trabalho merecem destaque. O primeiro est representado na figura acima, onde se procura enfatizar a existncia de, mais do que uma bipolaridade ou separao estrita, um continuum que se estende entre aquelas duas abordagens extremas acima caracterizadas. Esta idia compreende desde uma posio extremada defendida por uns poucos que entendem at mesmo a tecnologia como sendo neutra passando pelos mais numerosos, que (quando indagados e na defensiva) aceitam a no neutralidade da tecnologia, mas

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entendem que o contexto engendrado pelas relaes sociais e econmicas e pelos imperativos de natureza poltica determinam profundamente o ambiente em que gerado o conhecimento cientfico e tecnolgico. Em conseqncia, este conhecimento internalizaria as caractersticas fundamentais deste contexto e se constituiria em algo funcional para o seu desenvolvimento e permanncia. Ou mais do que isto, os que entendem que no apenas a tecnologia e nem mesmo a cincia gerada num ambiente scio-econmico marcado pela desigualdade social pode servir para alavancar um processo de reduo desta desigualdade. Uma outra maneira de interpretar essa questo, que guarda estreita relao com o percurso adotado para apresentar este trabalho, a que leva em conta a evoluo histrica que tem tido o tratamento dos temas aqui levantados ou, mais precisamente, a interlocuo e debate que se estabelecem entre as abordagens e variantes. Ela aponta que a variante da neutralidade foi a que mais cedo se instaurou como forma de entendimento da natureza neutra e universal do conhecimento cientfico que, na verdade, recm se diferenciava e se opunha religio. Foi contra este entendimento que Marx teria enunciado a idia do Determinismo Tecnolgico, postulando que na polaridade dialtica entre as relaes de produo e as foras produtivas cabia a estas o papel dinmico e determinante. O pensamento marxista contemporneo, ao revisitar a obra de Marx e num esforo por entender as vicissitudes do socialismo real, abre caminho, via a crtica ao determinismo, aos desdobramentos que se seguem. Somando-se crtica proveniente de outras matrizes tericas e ideolgicas preocupadas com a questo do meio-ambiente, do armamentismo, da alienao, responsveis pela formulao do que denominamos tese fraca da no-neutralidade, o pensamento marxista adota crescentemente a Tese Forte como referncia para o entendimento das relaes entre Cincia, Tecnologia e Sociedade.

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DILOGO - DEBATEPensamento Religioso 1 Neutralidade da C&T 2 Determinismo tecnolgico 3 Tese fraca 4 Tese forte

O segundo aspecto que nos parece necessrio destacar ainda nesta introduo diz respeito s caractersticas da bibliografia abordada, que condicionaram o processo de elaborao deste trabalho e o seu formato final. Na grande maioria, ela no coloca o debate aqui abordado no centro de sua preocupao, o que faz com que os autores tendam a assumir uma postura ecltica e inconclusiva em relao aos elementos de nossa taxonomia; sobretudo se eles se referem a tecnologias ou sistemas tcnicos particulares, quando sua posio costuma ser uma equilibrada soluo de compromisso. Mas mesmo a bibliografia que trata especificamente da construo social da cincia no costuma abordar a questo de uma perspectiva poltica, semelhante a que orientou a concepo deste trabalho. Isto , no sua preocupao indagar a respeito do papel que pode desempenhar a C&T para a mudana social. Finalmente, ainda quando esta preocupao est presente, em muitos casos seu eixo de reflexo no o analticoconceitual, que caracteriza este trabalho, mas o histrico. Este fato obrigou a que, em dois momentos do trabalho, ele fosse adotado. O primeiro, na seo 2.1, quando se explica como, na transio do feudalismo para o capitalismo, teria ocorrido uma segmentao e hierarquizao do processo de trabalho, responsvel pelas caractersticas da C&T geradas. O segundo, na seo 2.2, quando se comenta um outro processo de transio, o do capitalismo para o socialismo, na Unio Sovitica, apontando para as distores que o emprego da C&T capitalista teria determinado, fruto de sua incompatibilidade com as relaes sociais de produo socialistas j em construo.

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Essas caractersticas da bibliografia fizeram com que as posies dos diferentes autores tivessem que ser garimpadas na sua obra orientada, de fato, para o tratamento de outras questes - e construdas em torno da questo central da neutralidade. Como se, num cadinho contendo metais em fuso, se inserisse um cristal de um outro metal e, em torno dele se fossem agrupando cristais que guardassem com ele alguma afinidade com o objetivo de produzir uma determinada liga metlica. Neste sentido, embora se use recorrentemente ao longo do trabalho o termo debate, h que salientar que ele raramente ocorreu de fato entre as posies aqui referidas (ou melhor, construdas). Nem mesmo quando, ao contrrio do que em geral se verificou, a questo da neutralidade assumiu alguma centralidade no mbito da preocupao dos autores. Ainda com respeito s caractersticas da bibliografia abordada, est o fato de que, como ocorre freqentemente, na obra de autores que se contrapem a vises que so num determinado momento ou local dominantes onde estas aparecem mais bem explicadas. por esta razo, mas no s por ela, que segunda abordagem e em especial a sua segunda variante da tese forte da no-neutralidade dedicada maior ateno. Finalmente, est o carter heterogneo da bibliografia. Embora ele possa ser esperado, no h dvida de que foi agravado pela nossa condio duplamente autodidata. Autodidata em termos de formao, o que nos deu a liberdade individualista e subjetiva (ou irresponsabilidade disciplinar), tpica de um outsider, que se sente livre para ir buscar onde lhe parea conveniente as respostas s suas perguntas. E autodidata em termos de profisso de professor - que se encontra na obrigao, se necessrio, de se arriscar a perigosos saltos mortais sem rede disciplinar de proteo para satisfazer a curiosidade desorganizada, s vezes incmoda, mas sempre legtima, de seus alunos. No h dvida, entretanto, que nossa filiao ao campo dos Estudos CTS, que implicou a adoo de um mtodo de pesquisa e a consulta bibliografia, ambos assumidamente interdisciplinares e policy oriented, tornou menos perigosas essas evolues. O fato de que em muitos casos o que se denomina aqui uma abordagem ou uma variante realmente o resultado de um debate entre autores e linhas de pensamento faz com que, s vezes, seja quase impossvel separar a crtica que faz um determinado autor s proposies herdadas e aquilo que em certos casos s mais tarde veio a se constituir propriamente numa proposta formulada como uma alternativa.

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1.5. Sobre a estrutura do trabalho Para cumprir seu objetivo, este trabalho est dividido em duas sees, que tratam das duas abordagens; alm desta, de introduo, e uma ltima, de consideraes finais. Cada uma dessas duas sees se divide em dois itens, que discutem cada uma das variantes dessas abordagens. Cada item se inicia por uma apresentao da idia ou conceituao da variante nele explorada para, em seguida, situar o leitor frente os principais aspectos da bibliografia consultada. Sua motivao mais geral no mbito da linha de investigao que temos perseguido nos ltimos anos avaliar a implicao da adoo de cada abordagem e variante para a elaborao da poltica de C&T, tendo como referncia a construo de um cenrio social e ambientalmente sustentvel para o desenvolvimento latino-americano. Coerentemente com essa motivao, o tratamento dado a cada abordagem e variante distinto. Devido ao proeminente papel que a viso do Determinismo Tecnolgico associada interpretao do Marxismo ortodoxo tem historicamente desempenhado no pensamento de esquerda latino-americano, ele tratado com mais detalhe do que outras variantes. No mesmo sentido, a importncia que vem assumindo o enfoque do Construtivismo, ou da Construo Social da C&T, na Amrica Latina levou a que tambm o seu tratamento fosse relativamente mais extenso. As crticas ou argumentos contrrios a uma dada variante ou viso a ela associada, sobretudo quando decorrem da aceitao de uma outra variante ou contribuem para a sua formulao, so abordadas quando da apresentao desta. Em alguns casos, no obstante, em beneficio da clareza da exposio essa norma no observada.

2. A primeira abordagem: foco na C&T De acordo com esta abordagem, a C&T entendida como infensas ao contexto sciopoltico, como possuindo um desenvolvimento linear em busca da verdade, endogenamente determinado, universal e inexorvel, ao longo do qual apenas existe a diferena entre uma tecnologia mais avanada (de ponta, mais eficiente, mais recente) e menos avanada (obsoleta, ineficiente, ultrapassada). uma concepo evolucionista, uma espcie de darwinismo tecnolgico, uma vez que a histria reduzida a um processo em que sobrevivem as tecnologias mais aptas, mais eficientes, mais produtivas.

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C&T seriam um assunto tcnico e no poltico; haveria uma barreira virtual que protegeria o ambiente de produo cientfico-tecnolgico do contexto social, poltico e econmico. Barreira esta que impediria que os interesses dos atores sociais envolvidos no desenvolvimento da C&T possam determinar a trajetria de inovao. Esta viso linear do desenvolvimento da C&T, como indicado, pode ser entendida como possuindo duas variantes. A primeira, da neutralidade, entenderia esta barreira como sendo, de fato, uma barreira impermevel nos dois sentidos. Isto , nem a C&T influenciada pelo contexto social nem possui um poder de determinar a sua evoluo, sendo ento desprovidas de valor e dele independente. Nem implicaes de tipo incremental na sua trajetria, como as sugeridas pela tese fraca, seriam plausveis. A segunda, do determinismo, entenderia esta barreira como sendo uma espcie de membrana impermevel no sentido da sociedade para a C&T, mas no no sentido contrrio. Isto , o desenvolvimento da C&T considerado como uma varivel independente e universal que determinaria o comportamento de todas as outras variveis do sistema produtivo e social; como se ela dependesse inteiramente das mudanas e da organizao tecnolgicas. O desenvolvimento econmico determinado pelo avano da C&T e a tecnologia a fora condutora da sociedade e um determinante da estrutura social.

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4 C&T 1 2 sociedade 1.Neutralidade 2. Determinismo 3. Tese Fraca 4. Tese Forte

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A variante do determinismo pode ser entendida ento, na perspectiva esquemtica proposta por este trabalho, e ao contrrio do que propem outras abordagens ao tema, como uma reao da neutralidade. Ela nega, ainda que parcialmente, a idia de que existiria uma barreira separando a C&T da sociedade. J a abordagem com foco na sociedade questiona a impermeabilidade da barreira no sentido da sociedade para a C&T. Isto , entende que esta determinada por aquela e, implicitamente aceita a impermeabilidade no sentido contrrio. A variante da tese forte acrescenta um elemento adicional a este questionamento na medida em que sugere que a intensidade desta determinao seria to forte a ponto de inibir a mudana social. E que, em conseqncia, a C&T capaz de construir a nova sociedade teria que surgir da sua apropriao por parte dos atores nela emergentes que, num dado momento, passam a buscar essa transformao, e de sua contaminao pelos novos interesses e valores que tendem a negar aqueles que originaram a velha. A figura acima, com as limitaes inerentes a um esquema cujo objetivo no explicar e sim fixar idias, oferece mais uma viso grfica das duas abordagens e suas variantes. Interpretaes sobre a C&T de grau de sofisticao consideravelmente diferentes e derivadas de viso de mundo ideologicamente to distintas quanto o liberalismo e o marxismo, a ponto de ser questionvel seu agrupamento e tratamento conjunto, convivem ao longo do espectro neutralidade-determinismo. Neste sentido, a proposio implcita no desenvolvimento que damos a este captulo, de que a variante do

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determinismo seria uma radicalizao daquela da neutralidade, no deve ser entendida como se estivssemos apontando para a existncia de um processo de derivao da segunda a partir da primeira.

2.1. A Neutralidade da C&T A idia da neutralidade do conhecimento cientfico tem sua origem nas prprias condies de seu surgimento como tal, a partir do sculo XV, como uma oposio ao conhecimento (ou pensamento) religioso. Este sim, era considerado como claramente no-neutro, uma vez que tinha por objetivo intervir na realidade social atravs dos fiis a ponto de pretender a sua transformao e a converter ou dar combate aos adeptos de outras crenas. Para muitos cincia e religio compartilhariam o mesmo objetivo: a verdade. A diferena seria que a cincia admite s a autoridade da razo e da experincia; a Palavra da Razo, enquanto a Religio s aceita a Palavra de Deus. A diferena seria a forma como avaliam a verdade e a falsidade. A cincia o faria atravs de argumentos racionais e procedimentos empricos, conferindo sua verdade um status privilegiado obtido pela aplicao de um mtodo de certificao, um procedimento racional de justificao. A religio, ou a crena religiosa, seria inseparvel da sua gnese e da sua prtica sociais, dos contextos scio-culturais, enquanto que a cincia teria uma lgica prpria, interna, autnoma em relao aos processos sociais (Lakatos, 1981). O Iluminismo foi o primeiro movimento importante que, ao mesmo tempo e no por acaso, questionou o pensamento religioso e potencializou a idia da neutralidade. O positivismo, a partir do final sculo XVIII, e tendo como base o pensamento de Bacon e Descartes, contribuiu para refor-la. O primado positivista de que a subjetividade devia ser contida dentro dos limites da objetividade e sua tentativa de reproduzir a realidade assim como ela d fora crena de que a cincia a expresso de uma verdade absoluta. Um conceito de progresso que se contrape radicalmente ao do pensamento religioso dominante, e o reconhecimento exclusivo dos fatos positivos, dos fenmenos observveis, como sua manifestao, aliado percepo de que os processos de natureza tcnico-cientfica principais portadores do progresso cresceriam em importncia em comparao com os polticos, aumenta a confiana na cincia como fonte, seno nica, privilegiada, do saber verdadeiro e universal.

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A idia de que a cincia est livre de valores, que hoje desempenha um importante papel na compreenso e na imagem pblica da Tecnocincia, est presente, segundo Koyr (1957), j nos trabalhos de Galileu. Segundo este autor, a viso de Galileu, de que "a natureza permanece surda e inexorvel aos nossos desejos" (p. 270) teria levado a que se passasse a "... rejeitar atravs do pensamento cientfico todas as consideraes baseadas em conceitos valorativos, tais como perfeio, harmonia, significado e desejo, e finalmente desvalorizao ltima do ser, o divrcio do mundo dos valores do mundo dos fatos" (Koyr,1957, p.4). Nessa viso, o mundo dos fatos seria explicado mediante estruturas, relaes, processos e leis a ele subjacentes sem que qualquer juzo de valor intermediasse essa explicao. A idia de que a cincia livre de valor, de que a cincia o domnio dos fatos - e os valores o domnio da tica apenas se tocam, mas no se interpenetram e que, portanto, este no influencia aquele, foi assim sintetizado por Poincar (1958, p.12) no incio do sculo XX: A tica e a cincia tm seus prprios domnios, que esto em contato mas que no se interpenetram. Um mostra-nos o objetivo que devemos aspirar, o outro, dado o objetivo, ensina-nos como alcan-lo. Dado que nunca se tocam, eles jamais se opem. Assim como no pode haver cincia imoral, no podem existir morais cientficas. A idia da neutralidade parte de um juzo fundacional difuso, ao mesmo tempo descritivo e normativo, mas abarcante e potente, de que a C&T no se relaciona com o contexto no qual gerada. Mais do que isto, que permanecer dele sempre isolada um objetivo e uma regra da boa cincia. E, finalmente, que ela pode de fato ser isolada. Ao entender o ambiente de produo cientfico-tecnolgica como separado do contexto social, poltico e econmico esta idia torna impossvel a percepo de que os interesses dos atores sociais de alguma forma envolvidos com o desenvolvimento da C&T possam determinar a sua trajetria. Essa idia leva impossibilidade de desenvolvimentos alternativos da C&T que coabitem em um mesmo ambiente. Ou seja, s existe uma nica C&T verdadeira. As diferenas contextuais geogrficas, culturais, ticas, entre outras, ficariam em um plano secundrio, subsumidas numa preocupao marginal com a "adaptao". Quando isto no ocorresse, surgiriam "anomalias" que poderiam se acumular com o passar do tempo e quebrar o paradigma vigente (Kuhn, 1989). Assim, as contradies se resolveriam naturalmente, atravs de caminhos iluminados pela prpria cincia, com novos conhecimentos e

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tcnicas que superariam racionalmente os antigos, sem que se colocasse em questo a ao e os interesses dos atores sociais no processo inovativo. Ela coerente com a noo de progresso como uma sucesso de fases ao longo de um tempo linear e homogneo dando origem a resultados melhorados sucessiva, contnua e cumulativamente. Esta percepo de senso comum, de que o presente melhor que o passado e que conduzir a um futuro ainda melhor, em busca de uma finalidade imanente a ser alcanada, est em evidente consonncia com a idia da neutralidade. O desenvolvimento da C&T seria, no plano do conhecimento, uma manifestao de uma realidade assim percebida. Seria um resultado do seu progressivo desvelamento, da contnua descoberta da verdade e por isso, nico, universal e coerente com o progresso. Ela entende, igualmente, que conhecimentos criados e utilizados por diferentes civilizaes poderiam ser apropriados para finalidades quaisquer, e por atores sociais diferentes, a qualquer tempo. Mais do que isto, supe que a acumulao pura e simples de conhecimentos cientfico-tecnolgicos seria suficiente para garantir o progresso econmico e social a todos. A C&T teria uma apropriao universal, seria um patrimnio da Humanidade. Em conseqncia, uma trajetria de qualidade e "excelncia acadmica" imposta produo cientfica e a eficincia e produtividade da tecnologia, avaliadas geralmente por critrios quantitativos, levariam ao desenvolvimento social.Mas a cincia no permitiria apenas o progresso econmico e social pondo fim

pobreza, o que se supunha traria felicidade e paz. Ela tambm ensinaria as pessoas a pensar racionalmente, o que levaria ao comportamento racional em todas as esferas de atividade. Graas cincia, a humanidade, ao livrar-se da poltica, implantaria o domnio da lgica e da razo, em substituio ao da emoo e da paixo, o que faria com que as prprias questes sociais e polticas pudessem ser tratadas de maneira cientfica, eliminando as disputas irracionais animadas por interesses polticos e produziria uma sociedade cada vez melhor.Esta idealizao, baseada no entendimento da C&T como sendo neutra passa por cima

do fato de que a prpria racionalidade contm valores. Os juzos de valor no s so vistos como no-cientficos, mas, tambm contrrios cincia. A prpria poltica passa a ser tratada como uma questo tcnica, e a razo de uma linha de ao poltica passa a ser entendida como passvel de ser demonstrada ou provada por meios ou critrios cientficos. O Cientificismo compartilha com o Positivismo a convico de que todos os processos sociais ou fsicos podem ser analisados, entendidos, coisificados,

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mediante uma colocao cientfica para encontrar uma soluo objetiva e politicamente neutra. A idia de modernidade, to cara ao Positivismo, tida como racional na medida em que suas fundaes cognitivas - cincia e tecnologia - eram superiores a de qualquer sociedade anterior. De acordo com ele, a racionalidade seria universal, independentemente de condies sociais e histricas. Questionar essa viso no era apenas desafiar a legitimidade da idade moderna, baseada na separao das esferas da vida social que nas sociedades anteriores se mantiveram indiferenciadas, mas enfraquecer o nico ponto de vista confivel a partir do qual se poderia fazer julgamentos sobre o mundo. No seu ncleo, estava a convico, compartilhada quase consensualmente, de que a tecnologia seria neutra, algo como um meio transparente, que no adiciona nada substantivo em relao aos fins que serve; simplesmente torna sua realizao mais rpida, em maior escala, ou de acordo a novas condies. Porque a tecnologia neutra, a deciso de utiliz-la poderia ser tomada atravs de critrios puramente racionais relacionados a melhorias mensurveis em eficincia. Esta viso, denominada por Feenberg (1999) de Teoria Instrumental da Tecnologia, ou Instrumentalismo, possui evidentes implicaes polticas. A racionalidade foi sempre considerada o fundamento para uma associao verdadeiramente livre entre indivduos. Sempre que metas comuns fossem o resultado da discusso, pessoas cooperariam sem coero. A concordncia em relao a metas sempre difcil. Mas sendo a eficincia um valor universal ele seria especialmente adequado para gerar acordos racionais. Mais do que isso, como a preocupao com a eficincia se estende para praticamente todos os domnios da sociedade, sua obteno passa a funcionar como uma estrutura universal, traduzvel e aplicvel em qualquer mbito da vida social. Essa viso a respeito do carter da C&T , ao mesmo tempo, coletivamente unificadora e individualista, tranqilizadora e preocupante. A tecnologia entendida como a soma de meios eficientes adquire, ento, uma relao emblemtica com a razo, e seu comando efetivo passa a ser crescentemente identificado com o projeto de racionalizao da sociedade. Em uma sociedade tecnolgica, o consenso poderia ser alcanado apesar da existncia de conflito acerca de metas e interesses ou, pelo menos, seria mais provvel, uma vez que as reas de discordncia seriam reduzidas para propores manejveis. Por isso, os Instrumentalistas, tal como sugere o Positivismo, acreditam que o consenso e a integrao sociais seriam a caracterstica central das sociedades avanadas.

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Esse cenrio, apesar de seu aspecto socialmente atraente, projeta uma sociedade tecnocrtica em que a ordem poltica est baseada em percia e conhecimento tcnicos em lugar de cidadania. Tal viso, descrita pela fico cientfica como sendo uma sociedade, ao mesmo tempo plena de horrores, mas fundamentada nas maravilhas cientficas e tecnolgicas, e perfeitamente racional, Feenberg (1999) denomina "distopias" (utopias negativas). Filsofos como Heidegger, crticos das sociedades distpicas em que o progresso tcnico visto como um aumento de eficincia neutro a ponto de converter-se num novo estilo de vida, propem o que Feenberg (1999) chama de Teoria Substantiva da tecnologia. Eles rejeitam a noo que tecnologia neutra e apontam que ela uma estrutura cultural que encarna valores prprios, particulares. Entre os autores que se tm dedicado a analisar em detalhe conceito de neutralidade, Agazzi (1996) merece ser citado pela classificao que oferece dos seus vrios sentidos e pela distino que a partir dela prope entre a cincia como conhecimento e a cincia como instituio no que respeita neutralidade. Segundo ele, a neutralidade pode ser entendida como possuindo as seguintes caractersticas: no envolvimento em relao ao objeto, independncia em relao a preconceitos, no estar a servio de nenhum interesse particular, liberdade em relao a condicionamentos, indiferena com respeito aos empregos que dela se faz. Essas caractersticas, que dizem respeito cincia enquanto conhecimento, no poderiam ser estendidas cincia enquanto uma atividade institucionalizada. Nesse caso, ela seria sempre permevel aos valores e interesses sociais e no poderia ser neutra. Essa distino leva a que se possa postular um carter no-neutro cincia como atividade e a manter a objetividade cientfica e o ideal de compromisso com a honestidade intelectual em relao s teorias e outras expresses do saber. Isto , que a cincia no pode ser neutra como atividade, mas que e deve s-lo como saber. Lakatos (1981, p.341) vai alm dessa viso ao considerar que a cincia no tem nenhuma responsabilidade social e que, pelo contrrio, a sociedade que tem uma responsabilidade para com a cincia: a de manter a tradio cientfica apoltica e descomprometida e permitir que a cincia busque a verdade de uma maneira determinada puramente por sua vida interna. De forma muito prxima ao argumento de senso comum empregado correntemente pela comunidade cientfica, ele deriva para o universo da tica e da poltica as consideraes

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acerca do uso que se possa fazer da cincia. Ambos seriam o conhecimento por antonomsia e, em si mesmos, no seriam nem bons nem maus, s as suas implicaes em relao sociedade poderiam s-lo. Pavn (s/d) ao criticar essa postura aponta para a existncia de dois ethos que, embora fundado sobre valores bem diferentes convivem pacificamente no mundo da cincia. O ethos positivista e racionalista, por um lado, que consagra verdade cientfica e, portanto, aos mtodos para certific-la, um valor supremo e autnomo. E o ethos antipositivista e antirracionalista, que nega a autonomia (essa vida interna que, segundo Lakatos, deve ser respeitada) da cincia e da tecnologia, e que exige da sociedade umcontrole social, moral e poltico.

interessante contrastar essa viso contempornea do problema com a trajetria que desde os anos 30 do sculo passado se pode observar a partir de Robert Merton. A contribuio da corrente de pensamento acerca das relaes entre a cincia e a sociedade liderada por ele, que teve um papel fundacional da Sociologia da Cincia norte-americana, uma referncia importante para entender o contexto normativo em que se desenrola o primado da racionalidade tcnica. Para esta corrente, que se contrape Sociologia do Conhecimento negando cincia o status privilegiado em relao a outros tipos de conhecimento que esta, at ento dominante, lhe conferia, a cincia entendida no como um processo individual, mas social (no sentido de coletivo), que envolve algum tipo de interao entre seus protagonistas e que se desenvolve no interior de uma organizao (instituio). Segundo ela, a cincia tende a sofrer os impactos do que ocorre na sociedade, mas cabe ao cientista, atravs da adoo dos instrumentos, regras e mtodos cientficos evitar tais impactos. Cabe por isso a ela a aplicao da sociologia para entender a forma como esses atores e instituies produzem o conhecimento, sem entrar nos aspectos relativos ao seu contedo, como fazia a Sociologia do Conhecimento. Essa corrente, ainda dominante no meio acadmico, foi sistematizada por Merton atravs de um conjunto de normas e valores, morais e ticos a respeito: os imperativos institucionais da Cincia. Merton trata a Cincia idealmente, como se ela estivesse disposio da humanidade (comunalismo). Para que este ideal se cumprisse, seria necessrio o distanciamento de influncias externas ao meio cientfico e que expressassem interesses - religiosos, polticos, econmicos ou de grupos sociais (universalismo). Aceita-se, portanto, um suposto desprendimento do cientista de sua

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concepo de mundo (desinteresse) e um rigor acadmico que garantiria a iseno do pesquisador. Seus interesses, crenas e valores estariam subordinados a critrios empricos, racionais e lgicos. O mtodo e a disposio do cientista em despir-se de juzos de valor seriam a garantia de que a cincia se mantivesse infensa s influncias polticas e sociais, que seus resultados fossem universais, que pudessem ser apropriados por qualquer sociedade, que fossem cumulativos; que a cincia estivesse em permanente evoluo. Os laboratrios, os observatrios, o local mesmo em que se d a produo da Cincia, e as caractersticas de produto que originam, no o foco de investigao da nascente sociologia da cincia mertoniana. A observao das relaes que se do entre os cientistas, despojados de interesses num territrio onde reina a racionalidade e onde os indivduos limitam-se a correta aplicao do mtodo cientfico, deixa de ser, a partir de ento, o objetivo dos estudiosos da prtica cientfica. Essa ruptura com a sociologia do conhecimento, que se ocupava da investigao sobre a forma como se dava a produo de conhecimento como produto da correta aplicao de um mtodo atravs de disciplinas, como a epistemologia ou a histria (internalista) da cincia, marca a trajetria da reflexo sobre as relaes entre Cincia, Tecnologia e Sociedade, A aceitao da hiptese de que os cientistas trabalham de um modo autnomo e livre de toda influncia exterior (em particular do mundo poltico) levaria rigorosa aplicao do mtodo cientfico e, portanto, obteno de conhecimento verdadeiro. Sobre isso, a sociologia no teria nada a dizer: o mtodo escapa do mbito de sua investigao. Ela s pode investigar os fatores sociais que recobrem os processos de gerao do conhecimento cientfico. Os imperativos institucionais da Cincia podem ser entendidos como normas de conduta da comunidade cientfica socialmente construdas que assegurariam, dentro de sua viso normativa-funcionalista da sociedade, sua funcionalidade em relao com outros grupos sociais. Eles no so necessariamente conservadores em relao manuteno das relaes de poder e de produo/reproduo do conhecimento contemporneo. Mas a suposta neutralidade defendida por Merton, e uma confuso entre o normativo (o que deveria ser) e o descritivo (o que ) termina dificultando aos cientistas a percepo de que as influncias "externas" so inevitveis. E isto, ao reforar o determinismo cientfico-tecnolgico e a inviabilidade de construo de alternativas, favorece a

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instrumentalizao da C&T no capitalismo enquanto um mero mecanismo de acumulao do capital. A possibilidade de conflito entre valores e verdade segundo essa viso seria afastada pela comunidade cientfica ao negar-se a investigar temas eticamente inconvenientes. A idia que a cincia (e deve ser sempre) livre de valor, implica que toda intruso leva a uma distoro. A esse respeito, Kuhn (1970, p.168) afirma que uma das regras Cincia seu alheamento em relao ao estado e sociedade. Ela seria a condio para que a comunidade cientfica seja reconhecida como um grupo profissional competente, capaz de desempenhar um papel de rbitro exclusivo dos assuntos cientficos. Essa idia da autonomia das prticas e das instituies nas quais a Cincia gerada, testada e avaliada seria, inversamente, uma condio para garantir a imparcialidade da avaliao e a neutralidade das teorias cientficas em relao aos valores predominantes na sociedade. A autonomia seria ao mesmo tempo um compromisso com a sociedade e uma proposta poltica. A cincia seria decidida pelos cientistas, que deveriam usar os recursos que a sociedade disponibiliza para suas pesquisas na busca da verdade, sempre entendida como neutra. Lacey (1999) apresenta o conceito de neutralidade de modo distinto dos autores a que nos referimos at aqui. O que, diga-se de passagem, ao mesmo tempo em que permite diferenciar mais precisamente entre as duas formas em que ele empregado, por eles, sugere uma reinterpretao de muitas de suas colocaes. Em primeiro lugar pela forma como o deriva de outros conceitos. De acordo com ele, a imparcialidade do juzo cientfico estaria associada idia de que valores sociais no devem estar entre os critrios usados para juzos cientficos. E, a autonomia da metodologia, garantida pelo fato dela servir apenas para entender fenmenos do mundo, no devendo as prioridades de pesquisa e a sua orientao serem influenciadas por valores. Essas duas perspectivas seriam para ele ideais, valores que esto por trs da prtica cientficas e que freqentemente no se verificam de fato. O conceito de neutralidade ao ser formulado por ele relacionando-o a essas duas perspectivas, permite a diferenciao de dois tipos de neutralidade. As teorias cientficas, por no privilegiar qualquer valor, por serem suas implicaes lgicas independentes (e avessas) a juzos de valor, exibiriam uma neutralidade cognitiva.

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Ao propor o conceito de neutralidade aplicada, Lacey se destaca de outros autores: as teorias cientficas, quando aplicadas, devem informar equilibradamente interesses de uma ampla gama de valores. A argumentao que desenvolve em seu livro, que pode ser sintetizada pela pergunta de se a cincia livre de valores, mostra como essas duas faces do conceito de neutralidade, que funcionam como um smbolo de integridade, legitimidade e prestgio da prtica cientfica e lhe imputam valor universal, explicariam porque esta prtica tem produzido as aplicaes tecnolgicas responsveis pelas radicais (e positivas) transformaes do mundo atual. Ao garantir o crescimento do conhecimento cientfico, que se daria sempre atravs do caminho da neutralidade e da imparcialidade, asseguradas pelo mtodo e pelas prticas controladas inerentes Cincia, a autonomia daria livre curso sua prpria dinmica interna. Garantiria Cincia (e aos cientistas) a prerrogativa de definir seus prprios problemas, de fazer suas prprias perguntas, identificar suas prprias prioridades da pesquisa, de modo a permitir sua busca incessante por desvendar as leis da ordem subjacente ao mundo dos fatos, impedindo qualquer intruso do mundo dos valores e dos interesses externos que, inevitavelmente, retardariam essa busca. Ao conferir comunidade cientfica a prerrogativa de decidir sobre o contedo da educao da cincia, a autonomia fecharia por duas vias realimentadas o crculo da neutralidade e imparcialidade da Cincia. Por um lado difundindo, mediante a educao cientfica, os imperativos da Cincia. Por outro, garantindo que somente indivduos que os aceitem possam integrar-se ao mundo da Cincia. Esse crculo ganha solidez quando a Cincia consegue estabelecer-se em espaos institucionais especficos nos quais suas prticas tm lugar, o que se conhece como a etapa da profissionalizao da pesquisa. A partir do momento em que ganha corpo um novo exerccio profissional, sujeito a um conjunto de normas e pautas de trabalho que articulam aqueles que exercem prticas similares e que passa a existir uma carreira, passa a existir tambm um ritual de iniciao determinado por regras conhecidas e aceitas por todos e a necessidade de recursos que proporcionem os meios de para sua subsistncia. Idealizaes que a comunidade cientfica cultiva com sucesso entre seus membros e difunde com competncia para a sociedade acerca de sua conduta como cientistas - a observncia de virtudes como a honestidade, desinteresse, transparncia em relao ao

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rigoroso escrutnio dos pares, humildade e coragem para defender suas teorias e seus achados cientficos so a outra face da idia de autonomia (Lacey, 1999). Na outra ponta, mas funcionando na mesma direo, a meno constante a situaes em que a Cincia se subordina a valores e interesses externos que vo desde o episdio de Lysenko e a estpida teimosia dos criacionistas, at o comprometimento com o segredo industrial necessrio gerao do lucro ou com os objetivos militares se refora a idia da autonomia como condio para o progresso da Cincia. Os imperativos da Cincia, formulados por Merton no plano normativo enquanto uma tica do cientista ainda se mantm dominantes. Apesar, como se ver adiante, de que essa viso tenha sido questionada no plano acadmico no ambiente do debate da Sociologia da Cincia contempornea. A cienciometria, os diversos instrumentos de avaliao quantitativa da pesquisa, assim como a falta de ferramentas de anlise qualitativa da produo acadmica, so o resultado deste tipo de compreenso neutra, instrumental, da C&T e esto disseminados enquanto "senso comum acadmico", apesar da existncia de debates, divergncias e controvrsias. A importncia dessa corrente de pensamento deriva do fato de que aquilo que era visto por muitos como uma tendncia natural do desenvolvimento da cincia, como uma caracterstica intrnseca sua neutralidade e universalidade passa a ser entendido como algo a ser buscado. Contudo, mais do que um fortalecimento, pela via da assimilao, de uma observao descritiva a uma recomendao normativa, isso passou a ser aceito como uma norma da instituio cincia, como algo cuja aceitao e observncia passa a ser entendido como uma condio de entrada dos candidatos a cientistas ao mundo da cincia. Os desdobramentos posteriores contribuio de Merton tiveram um marco importante no surgimento do Programa Forte de Edimburgo, onde autores como Bloor, Barner e Woolgar voltam a focar as questes relativas ao contedo do conhecimento tentando explicar como este, e o prprio conceito de verdade, era influenciado pela interao e negociao entre os atores que o produziam. Sua contribuio, conhecida como a Nova Sociologia do Conhecimento, adiciona maior realismo s explicaes anteriores, que se caracterizavam pela suposio mertoniana de que a cincia produzida num ambiente assptico, livre de interesses e valores, onde imperava o mtodo e a busca da verdade.

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Considerar que o conhecimento socialmente construdo (ou pelo menos construdo coletivamente pelos cientistas), que os processos tcnicos de produo de conhecimentos so processos sociais passveis de serem investigados como outros processos em que intervm atores sociais, implicou numa considervel inflexo na trajetria dos estudos sobre Cincia, Tecnologia e Sociedade. A sociologia, ao contrrio do que postulava Merton, deveria ter algo a dizer sobre aqueles processos, deveria consider-los seu objeto de estudo. A idia de que a Cincia no um territrio sagrado, onde s podem ingressar os iniciados, e sim algo similar a outros espaos de interao social, como o dos militares, da Igreja ou dos burocratas, a recoloca no foco da Sociologia, como um de seus objetos de anlise. A observao do espao da cincia, os laboratrios e os observatrios em que ocorrem os processos concretos de produo de conhecimentos passa a ser tarefa dos pesquisadores das cincias sociais. A hiptese construtivista defendida pela Nova Sociologia do Conhecimento, de que os processos cognitivos e os processos sociais devem ser analisados em conjunto de modo a estabelecer as possveis relaes entre eles no chega a levar a um abandono da questo central que nos ocupa: a idia da neutralidade da cincia.

2.2. O Determinismo Tecnolgico Embora correndo mais uma vez o risco de simplificar e generalizar indevidamente, se agrupa nesta categoria ou variante, vises sobre a C&T formuladas em mbitos tericos e ideolgicos consideravelmente distintos. Autores que limitam a discusso sobre a relao CTS s duas vises contrapostas entre Determinismo Tecnolgico e determinismo para posteriormente adotar a postura do construtivismo scio-tcnico consideram que eles pretendem uma explicao monocausal da mudana e uma espcie de reducionismo. Da mesma forma possvel identificar naqueles que assumem o Determinismo Tecnolgico uma viso evolucionista linear, alimentada pela fora da eficincia, que se apresenta como objetiva, neutra e livre de qualquer interveno social. Ademais, esta perspectiva se enquadra dentro das tentativas prprias do historicismo em buscar leis incondicionais que expliquem o desenvolvimento histrico das sociedades. Dado que essa variante tem como uma de suas primeiras formulaes clssicas a obra de Marx, iniciamos justamente com sua viso usando-a como eixo para facilitar o

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entendimento de outras contribuies identificadas com o Determinismo Tecnolgico. Isto porque, embora nem todos os autores aqui tratados se refiram explicitamente a ela, consideramos que essa forma de apresentao era a mais conveniente. 2.2.1. A formulao original de Marx No seu primeiro ensaio publicado - A misria da filosofia - em que questiona Proudhon, escrito entre 1846-47, Marx sugere uma relao de causalidade entre as foras produtivas e as relaes de produo que viria a ser interpretada pela maioria dos seus seguidores, como uma clara aceitao da viso do Determinismo Tecnolgico.O Sr. Proudhon, economista, compreende muito bem que os homens faam tecidos, materiais de linho e seda em determinadas relaes de produo. Mas o que ele no entendeu que essas relaes sociais determinadas so igualmente produzidas pelos homens, do mesmo modo que os tecidos de algodo, linho etc. As relaes sociais esto intimamente ligadas s foras produtivas. Adquirindo novas foras produtivas, os homens mudam o seu modo de produo, e mudando o modo de produo, a maneira geral de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relaes sociais. O moinho dar-vos- a sociedade com o suserano; a mquina a vapor, a sociedade com o capitalista industrial".

Como transparece na leitura de sua obra e como tm apontado muitos dos seus analistas, a compreenso da C&T desenvolvida por Marx contraditria em relao sua compreenso de como se d a construo do social. Nela se podem encontrar momentos em que a tecnologia apresentada como um elemento neutro, meramente instrumental, e que o decisivo ou importante a sua apropriao pela classe operria. Em outros, encontram-se afirmaes em que ela vista como trazendo em si, intrinsecamente, um elemento de subordinao e maior explorao do trabalhador. Finalmente, como na passagem acima citada, a C&T aparece como determinante das mudanas que ao longo da histria seriam responsveis pela sucesso dos modos de produo e pelo progresso social rumo ao comunismo. Vrios autores buscaram ilustrar essa viso do marxismo com estudos sobre algumas inovaes que teriam causado transformaes sociais profundas. White (1973), analisando a introduo e difuso do estribo na Europa argumenta que ele teria sido causa do surgimento do feudalismo. No seu entender, o estribo ao permitir uma combinao de maior estabilidade e eficincia do homem, das armas e do cavalo, o estribo teria possibilitado o surgimento de uma sociedade dominada por uma aristocracia guerreira e proprietria da terra. A necessidade de exerccio permanente, de cavalos especiais e de armaduras para defesa era uma maneira efetiva tornou o combate mais caro, mas mais efetivo para quem tivesse acesso a essa nova tecnologia. O feudalismo

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foi a organizao social que viabilizou seu emprego pelo suserano que proporcionava terras e aos servos a cavalo que defendiam sua propriedade. Merritt Roe Smith e Leo Marx, na sua excelente coletnea de artigos sobre o Determinismo Tecnolgico (Smith e Marx, 1996) mostram como interpretaes dessa natureza, freqentes na cultura ocidental terminam por converter-se em verses populares aceitas genericamente da histria moderna. Um outro caso bem conhecido cuja narrativa corrobora a viso do Determinismo o da bssola e outros instrumentos de navegao que teriam desencadeado, atravs das expedies que descobriram a Amrica e viabilizaram sua colonizao pelos europeus, a expanso do capitalismo. Na opinio de Nathan Rosenberg (1982), nenhum outro cientista social de importncia conferiu tanta importncia mudana tecnolgica como Marx. Segundo ele, a obra marca um ponto de inflexo na forma de estudar os desenvolvimentos tecnolgicos. Abandonando a forma tradicional, centralizada na figura do inventor singular e seu gnio, Marx prope uma abordagem social da tecnologia, e, ao mesmo tempo, incorpora o desenvolvimento tecnolgico como um elemento constitutivo das explicaes histricas. Duas idias a respeito do papel absolutamente central da mudana tecnolgica na histria, espalhadas e reiteradas em muitas de suas numerosas obras, merecem destaque. A primeira relativa proposio e de que haveria um contnuo desenvolvimento das foras produtivas. A segunda, que de certa forma corrobora a primeira, de que a meta da histria, algo que Rosenberg entende assim como um estado final que justifica o sofrimento da humanidade, uma sociedade na qual poderia ocorrer o desenvolvimento livre, sem obstrues, progressivo e universal das foras produtivas (Marx, 1857, Grundrisse). A primeira e menos ideologizada dessas idias, e provavelmente por isso mesmo, foi a mais explorada pelos historiadores da cincia alinhados com a viso do Determinismo. Segundo eles, a relao entre tecnologia e sociedade seria unidirecional: enquanto as mudanas sociais so provocadas pelo desenvolvimento tecnolgico, este seguiria um processo autnomo, de acordo a seus prprios ditames, como se a tecnologia se desenvolvesse separadamente do mbito social, como uma espcie de fator extrnseco que possui uma dinmica prpria. Em conseqncia, supem que as caractersticas internas das tecnologias atuais determinam os avanos tecnolgicos que se seguiro.

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Uma interessante e elucidativa analogia entre o Determinismo Tecnolgico e o que chama de determinismo climtico, teoria que teve seu apogeu nos sculos XVIII e XIX, mas que segue ainda viva em muitos ambientes, apresentada por Eduardo Aibar Puentes (2001). Segundo ela, o clima, um fator independente da vontade do Homem, o que determinaria as caractersticas da sociedade, e explica as diferencias culturais entre os povos, sua atitude em relao ao trabalho, etc, sem que pudesse ser afetado por ela. Merecem comentrio alguns elementos relativos inevitabilidade do progresso tecnolgico que permitiriam que se entendesse o desenvolvimento tecnolgico como uma sucesso de inovaes, cada uma conduzindo necessariamente seguinte. O primeiro deles, relativo simultaneidade, apia-se no fato de que muitas das idias que originaram inovaes importantes ocorreram a mais de uma pessoa ao mesmo tempo e de forma independente. O segundo, que diz respeito combinao das inovaes, bem ilustrado por William Ogburm (1922) quando afirma que dado o barco e a mquina de vapor, no inevitvel o barco de vapor?. O terceiro o que vincula o desenvolvimento tecnolgico ao aumento da eficincia de uma famlia de artefatos ou tecnologias que se daria ao longo de uma linha cronolgica mediante modificaes no projeto visando a alcanar a perfeio, simbolizada pelo seu estgio presente. O quarto elemento tem a ver com o entendimento da eficincia como o motor interno da inovao tecnolgica; como uma fora objetiva, neutra e margem de qualquer interveno social. O conceito de eficincia, definido como uma proporo entre inputs eoutputs, tem a pretenso de aplicar-se a qualquer sociedade, de transcender a

particularidade do social. O fato de que sua aplicao supe calcular propores entre coisas que possuem uma especificidade social, dado que referidas a um contexto particular que incorpora caractersticas sociais especficas, no universal, que lhes d significado e valor, faz com que o conceito de eficincia no possa ser entendido fora do mbito de uma determinada sociedade. O quinto se relaciona tendncia a analisar o desenvolvimento tecnolgico enfocando apenas os artefatos - os produtos acabados e no os processos de inovao e difuso e seus momentos de disputa, controvrsia, desestabilizao, os fracassos e desaparecimentos devidos, por exemplo, s particularidades das sociedades e culturas envolvidas. O que, compreensivelmente, tem dificultado a compreenso da sua relao com os aspectos sociais.

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O sexto elemento entender a tecnologia simplesmente como cincia aplicada, isto , que a tecnologia seria caracterizada pela aplicao sistemtica de conhecimentos cientficos a tarefas prticas com o fim de controlar coisas ou processos naturais, de especificar modos de fazer coisas, projetar produtos ou processos ou de conceber operaes de maneira racional e reprodutvel. Esse entendimento se apia na idia de que a cincia (conhecimento representacional: know that) a nica fonte de verdade e que, portanto, todas as outras formas de cognio (entre as quais o conhecimento ativado: know how), esto a ela subordinadas e dela dependem. A tecnologia, por ser a aplicao de conhecimentos previamente disponveis para resolver um problema projetar um artefato ou alcanar um objetivo, se reduz cincia aplicada. Uma derivao desse entendimento seria a idia de que o determinante em ltima instncia do desenvolvimento da sociedade seria o avano cientfico - o aceso objetivo realidade - uma vez que seria ele o responsvel pela gerao de conhecimentos novos e melhores passveis de serem materializados em tecnologias cada vez mais eficientes que as anteriores numa seqncia linear e independente de quaisquer outros aspectos. E que, em conseqncia, nem os grupos sociais envolvidos com esse processo nem a tecnologia mesma poderiam influenciar o progresso da cincia. Ou seja, que aceitar o Determinismo Tecnolgico seria uma mera conseqncia de algo inteiramente coerente com a sua lgica subjacente: a idia de que a uma teoria cientfica sucede outra melhor de acordo com uma dinmica interna, e que seus frutos tecnolgicos provocariam efeitos sucessivamente melhores para a sociedade que, afinal, a fonte de todo esse processo. Com o objetivo de melhor entender o Determinismo, alguns autores como Bruce Bimber em seu artigo Tres Caras del Determinismo Tecnolgico (Bimber, 1996) procura elucidar o que considera ambigidades e imprecises, tanto nas interpretaes da historia que reivindicam essa viso, como nas contribuies que as comentam ou criticam. Segundo ele, haveria ao menos trs interpretaes da histria que recebem o rtulo de Determinismo: normativa, nomolgica e das conseqncias imprevistas. Descartando como no deterministas de fato, tanto a interpretao normativa, dado que atribui o poder causal prtica social e s crenas do homem e no tecnologia ou a leis tecnolgicas, como a das conseqncias imprevistas, dado que ela simplesmente sugere a possibilidade efeitos sociais involuntrios e indeterminados, Bimber mostra que a explicao nomolgica, que argumenta que a sociedade evolui seguindo um caminho fixa e predeterminado, independente da interveno humana, a nica que efetivamente pode ser considerada de determinista.

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Animados pelo mesmo objetivo, Merritt Roe Smith e Leo Marx, comentando alguns dos artigos que reuniram em sua coletnea, propem o que chamam de um espectro de graus de determinismo que vai de um extremo hard at um outro extremo soft. No primeiro, o poder de provocar a mudana social atribudo prpria tecnologia e possui caractersticas de inevitabilidade e necessidade. No segundo, o agente causal histrico, independente e iniciador da mudana, no seria a tecnologia. E sim uma matriz social, econmica, poltica e cultural muito mais variada e complexa. Aguiar (2002), interessado no contraste que denomina Determinismo Tecnolgico versus Determinismo Social critica com razo essa classificao questionando acerca da diferena entre o Determinismo Tecnolgico soft e o Determinismo Social. Para entender porque essa ambigidade no foi removida pelo desenvolvimento ulterior do marxismo e porque a questo da tecnologia foi por ele colocada em um plano secundrio, conveniente retomar alguns dos seus conceitos que guardam com ela relao direta. Marx parecia defender que a mudana tecnolgica - o desenvolvimento das foras produtivas - era o principal motor da histria. Esta importncia era tamanha que, para ele, a forma como se fabrica os objetos usados pelo Homem (mais do que eles prprios) e os instrumentos que se utiliza para tanto, o que permite distinguir as distintas pocas econmicas (Marx, 1867, O Capital I). Como vimos, uma questo que se encontra no ncleo do materialismo histrico que, por sua vez, ocupa um lugar central no marxismo, a da relao entre as foras produtivas e as relaes de produo. Marx, por um lado, considera que as foras produtivas "determinam" ou "condicionam" as relaes de produo. Por outro, afirma reiteradamente que as relaes de produo tm um efeito decisivo sobre as foras produtivas, as quais so num dado momento "formas de desenvolvimento" e, noutros, "travas" para a mudana tecnolgica. Na figura seguinte, novamente correndo o risco de simplificar de modo inadequado uma abordagem to rica como a proposta por Marx para o entendimento da dinmica social e econmica, se apresenta um esquema cujo objetivo , como o dos anteriores, fixar idias. Nele se apresentam alguns dos conceitos necessrios para o entendimento da viso determinista indicando com nmeros as seqncias analticas referidas entre parnteses no texto.

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Segundo esta arriscada (mas no nosso entender conveniente) interpretao esquemtica do marxismo, as relaes sociais de produo - na sociedade - podem ser entendidas a partir das relaes tcnicas de produo (1) que se estabelecem no local de trabalho atravs da utilizao de meios de produo especficos (2). Estes, como aquelas, com uma natureza determinada (3) pelas foras produtivas (4) utilizadas correntemente num dado perodo estvel da Histria da Humanidade. O contnuo desenvolvimento das foras produtivas (avano) ocorreria atravs de um mecanismo exgeno ao ambiente social (5); seria determinado pelo avano "natural" e neutro do conhecimento cientfico que permitia o domnio da natureza pelo homem. Suposio coerente com a crena de que o desenvolvimento da humanidade seria linear, progressivo e contnuo tal como postulava o determinismo histrico tpico de muitas correntes filosficas nascidas no sculo XIX. As relaes tcnicas so observadas no gerenciamento do trabalho, nos mtodos e tcnicas incorporadas, alm das mquinas e equipamentos que constituem a estrutura voltada para a produo no local de trabalho. As relaes tcnicas de produo, em conjunto com as relaes sociais de produo (6) conduzem ao conceito de classe social (7). Tambm de natureza abrangente, o conceito de modo de produo (8) agregaria o conjunto apresentado. Marx, comparando o modo de produo feudal ao modo de produo capitalista aponta que, no feudalismo, a relao entre servo e senhor era marcada por fatores extraeconmicos, responsveis pela manuteno das relaes sociais de produo e as mudanas tcnicas no eram o elemento principal para a extrao do trabalho excedente. No capitalismo, o trabalhador livre contratado pelo patro, proprietrio dos meios de produo, realiza o trabalho necessrio (que lhe pago sob a forma de salrio em remunerao pela sua fora de trabalho) e o trabalho excedente (em geral obscurecido, por no ser claramente distinguido do trabalho necessrio, e apropriado pelo patro sob a forma de lucro, a ttulo de remunerao pela sua capacidade empreendedora), que leva acumulao do capital. A partir desta comparao, chega a uma concluso que, como posteriormente se ir mostrar, quando trataremos o tema da transio ao socialismo, um tanto contraditria. Isto , que uma das principais diferenas entre os dois modos de produo reside nas mudanas tcnicas que se verificam no sistema capitalista, que possibilitam a acumulao do capital, ao contrrio do que ocorre num modo de produo esttico, como o feudal.

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7

classe social

8

MODO DE PRODUO

relaes sociais de produo6 10 1 es tcn icas de p 2 + rodu o meios de produo

rela

9 4

foras produtivas

produ o

=

3

5

O conceito de classe social, embora estreitamente ligado posio que ocupa um dado grupo social em relao aos meios de produo, mais precisamente, no capitalismo, da propriedade ou no dos mesmos, est referido tambm superestrutura ideolgica conformada pela infra-estrutura econmica que resulta da interao das relaes sociais de produo com as foras produtivas. Como aponta Burawoy (1978, p.275): "Classe social torna-se o efeito combinado de um sistema de estruturas polticas, econmicas e ideolgicas encontrada em todas as arenas da atividade social".

2.2.2. Relaes sociais de produo e foras produtivas

A dinmica da histria, segundo esta interpretao do marxismo, estaria baseada na idia de existncia de uma contradio dialtica entre relaes sociais de produo e foras produtivas (9). O entendimento dominante da C&T nos ambientes marxistas, aquela que a v como um agente no apenas independente, mas determinante do ambiente histrico-social. O desenvolvimento das foras produtivas seria responsvel, tanto pelas mudanas radicais na forma de organizao da sociedade observadas na histria, como pelas

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transformaes incrementais que ao longo de um mesmo modo de produo fossem ocorrendo na base econmica e na sociedade em geral. Ele seria ao mesmo tempo responsvel pelo surgimento do capitalismo, quando as arcaicas relaes sociais de produo feudais com elas entrassem em contradio; pela sua expanso, quando as progressistas relaes sociais de produo que engendrava fossem capazes de aproveitar o estgio alcanado pelas foras produtivas; e, finalmente, pelo seu desaparecimento, quando um estgio superior destas levasse de novo a uma ruptura nas relaes sociais de produo. Momentos como este, caracterizados como sendo uma situao em que a contradio entre foras produtivas e relaes sociais de produo adquiriria uma importncia central na dinmica do modo de produo vigente, levariam ao surgimento das condies objetivas para a sua superao e para a emergncia de um novo modo de produo (10). A passagem que segue, do Prlogo Crtica da Economia Poltica, citada como sendo a expresso mais evidente da questo em anlise.Na produo social de suas vidas, os homens contraem relaes definidas que so indispensveis e independentes de sua vontade, relaes de produo que correspondem a uma etapa definida no desenvolvimento de suas foras produtivas materiais. Numa determinada etapa de seu desenvolvimento, as foras produtivas materiais de uma sociedade entram em conflito com as relaes de produo existentes ou - o que no mais que uma expresso legal da mesma coisa - com as relaes de propriedade dentro das quais tm estado trabalhando at o momento. De ser formas de desenvolvimento das foras produtivas estas relaes se transformam em sus prprias travas (Marx, 1859).

A passagem d a entender que ao longo do perodo de vigncia de cada modo de produo existiriam duas etapas. Uma etapa inicial em que haveria uma correspondncia entre as foras produtivas e as relaes de produo e, uma etapa posterior, em que ocorreria uma relao de contradio. A explicao de como uma entidade pode determinar outra quando se supe tambm que esta exerce uma influncia crucial sobre a primeira feita por autores marxistas como Cohen (1978). Ele argumenta que as relaes de produo em qualquer momento dado so o que so graas a sua capacidade de promover o desenvolvimento das foras produtivas (o que implica em assumir uma posio bastante distinta, se no contrria, ao Determinismo Tecnolgico) e se modificam quando j no possuem mais essa capacidade. O ponto importante a destacar da formulao de Marx e da explicao que oferece Cohen neste momento (uma vez que posteriormente se aborda em detalhe a questo da

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transio do capitalismo ao socialismo) que as relaes de produo em qualquer situao dada teriam uma primazia causal sobre as foras produtivas, e estas ltimas, uma primazia explicativa sobre as primeiras. Segundo essa explicao e particularizandoa para o caso do capitalismo, a misso histrica deste modo de produo seria a de desenvolver as foras produtivas. Sua existncia seria necessria porque as desenvolve e desapareceria quando j no o fizesse de maneira tima. De modo geral, inclusive para os modos de produo pr-capitalistas, a idia seria que o nvel de desenvolvimento das foras produtivas o que determina qu relaes de produo so, num dado momento h