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  • 8/20/2019 Beatriz Cechinel

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    UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC

    CURSO DE DIREITO

    BEATRIZ CECHINEL

    O TRABALHO PRISIONAL COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL:

    ANÁLISE DO TRABALHO OPORTUNIZADO ÀS MULHERES ENCARCERADAS

    NO PRESÍDIO SANTA AUGUSTA, EM CRICIÚMA-SC, NO ANO DE 2010.

    CRICIÚMA, JUNHO 2011.

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    BEATRIZ CECHINEL

    O TRABALHO PRISIONAL COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL:

    ANÁLISE DO TRABALHO OPORTUNIZADO ÀS MULHERES ENCARCERADAS

    NO PRESÍDIO SANTA AUGUSTA, EM CRICIÚMA-SC, NO ANO DE 2010.

    Trabalho de Conclusão de Curso, apresentadopara obtenção do grau de bacharel no curso deDireito da Universidade do Extremo SulCatarinense, UNESC.

    Orientador(a): M.Sc. Mônica Ovinski deCamargo Cortina

    CRICIÚMA, JUNHO 2011.

     

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    BEATRIZ CECHINEL

    O TRABALHO PRISIONAL COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL:

    ANÁLISE DO TRABALHO OPORTUNIZADO ÀS MULHERES ENCARCERADAS

    NO PRESÍDIO SANTA AUGUSTA, EM CRICIÚMA-SC, NO ANO DE 2010.

    Trabalho de Conclusão de Curso aprovado pelaBanca Examinadora para obtenção do Grau debacharel, no Curso de Direito da Universidadedo Extremo Sul Catarinense, UNESC.

    Criciúma, 22 de junho de 2011.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Mônica Ovinski de Camargo Cortina - Mestre - (UNESC) - Orientadora

    Prof. Valter Cimolin - Mestre - (UNESC)

    Prof. Alfredo Engelmann Filho - Especialista - (UNESC)

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    Dedico esta monografia a duas pessoas, Nina e

    Tita, que em nenhum momento mediram

    esforços para realização dos meus sonhos, que

    me guiaram pelos caminhos corretos, me

    ensinaram a fazer as melhores escolhas, me

    mostraram que a honestidade e o respeito são

    essenciais à vida, e que devemos sempre lutar

    pelo que queremos. A eles devo a pessoa que

    me tornei, sou extremamente feliz e tenho

    muito orgulho por chamá-los de pai e mãe.

    AMO VOCÊS! 

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeço a Deus pelas oportunidades que me foram dadas na vida,

    principalmente por ter conhecido pessoas e lugares interessantes, mas também por

    ter vivido fases difíceis, que foram matérias-primas de aprendizado.

    Aos meus pais, Tita e Nina, que abriram mão de seus sonhos para

    apostar na minha educação, acreditando que este é o maior legado que eles

    poderiam me deixar, por ser as pessoas que mais me apóiam e acreditam na minha

    capacidade, meu eterno agradecimento pelos momentos em que estiveram ao meu

    lado, me apoiando e me fazendo acreditar que nada é impossível; Pai, homem peloqual tenho maior orgulho de chamar de pai, sempre dedicado e batalhador; Mãe, por

    todo amor que sempre teve comigo, por ser tão dedicada e amiga, pessoa que sigo

    como exemplo.

    A minha avó Honorata (in memoriam), por ter sempre torcido e rezado por

    mim e para que meus objetivos fossem alcançados, avó que tive como mãe em

    muitos momentos.

    A tia Zélia, por ter sempre me apoiado e acreditado em mim, pessoaimportantíssima em minha vida, a qual tenho enorme amor e carinho, que mesmo

    estando longe contribuiu significativamente para que eu me torna-se a pessoa que

    sou hoje.

    A tia Mariléia, por todo amor e carinho que sempre teve por mim, por toda

    a preocupação, sendo sempre aquela mãezona sempre disposta a ajudar, que devo

    eternamente gratidão, que, talvez, se não fosse ela eu não estaria concluindo este

    trabalho.Aos meus irmãos, que mesmo sendo aquela irmã chatinha, que não

    gosta de som alto, nem da TV ligada, sempre respeitaram e me trataram com

    carinho e amor.

    Ao meu namorado, que com muito amor e paciência, enfrentou todas as

    angústias e aflições que senti durante a realização deste trabalho.

    Aos amigos que fiz durante o curso, pela amizade que construímos em

    particular aos mais próximos, em ordem alfabética (Angela, Bika, Cássio, Cris, Fê,

    Grazi, Juliana, Laura, Rafael, Renata, Tamy e Vergilio) por todos os momentos que

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    passamos durante esses cinco anos meu especial agradecimento. Sem vocês essa

    trajetória não seria tão prazerosa.

    A Paula, minha amigona, a que não fiz quando pequena, mas que esteve

    presente na minha vida como irmã, tanto nos bons momentos (viagens, festas, risos,

    comilanças) como nos momentos ruins (que não foram poucos), guardo em meu

    coração, e desejo tudo o que há de melhor nessa vida.

    Aos meus colegas de trabalho (Chalton, Guilherme e Diogo), pela

    compreensão durante a realização desta monografia.

    A todos os professores do curso de Direito, pela paciência, dedicação e

    ensinamentos disponibilizados nas aulas, cada um de forma especial contribuiu para

    a conclusão desse trabalho e consequentemente para minha formação profissional,em especial a Professora Monica Ovinski de Camargo Cortina, pelo ensinamento e

    dedicação dispensados no auxilio à concretização dos projetos de pesquisa e

    também dessa monografia.

    A todas as detentas do presídio Santa Augusta, que voluntariamente

    aceitaram participar dessa pesquisa, e assim contribuíram para o enriquecimento

    desse estudo.

    Por fim, gostaria de agradecer aos meus amigos e familiares, pelo carinhoe pela compreensão nos momentos em que a dedicação aos estudos foi exclusiva, a

    todos que contribuíram direta ou indiretamente para que esse trabalho fosse

    realizado, meu eterno AGRADECIMENTO.

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    “Não se nasce mulher, torna-se.”

    Simone de Beauvoir  

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    RESUMO

    A presente monografia teve como objetivo estudar as consequências ediscriminações vividas pelas mulheres em situação de prisão, em especifico emrelação ao trabalho prisional a elas oportunizado no Presídio Santa Augusta, emCriciúma-SC. Este trabalho foi realizado com a utilização do método dedutivo, numapesquisa essencialmente teórica, qualitativa, contando com a utilização de materialbibliográfico e documental legal referente aos assuntos trabalhados no primeiro esegundo capítulo. Num segundo momento, a partir de etapa anterior, quantitativa,quando foram coletados dados sobre o perfil sociodemográfico das mulheres presas,através de questionários, analisou-se os dados referente ao trabalho prisionaldesenvolvido na Ala feminina do Presídio Santa Augusta no ano de 2010. Os

    resultados alcançados indicam que o trabalho desenvolvido pelas mulheres nãoatende o caráter ressocializador   estabelecido na Lei de Execução Penal (Lei7.210/84), pois é mecanizado, não desenvolve habilidades laborativas que seriamúteis na vida em liberdade e não remunera de forma adequada, entre outros.Também foi possível detectar as discriminações vividas por estas mulheres noambiente carcerário, como abandono familiar, visitas íntimas em lugares imprópriose o manuseio de material refugado pelos homens presos para o trabalho ládesenvolvido. As discriminações vividas pelas mulheres no ambiente carcerário etambém através do trabalho prisional só confirmam os reflexos dos preconceitosenfrentados socialmente pelas mulheres livres, notadamente no mercado detrabalho. Diante dos estudos realizados ao longo da monografia, concluiu-se que

    através de muitas lutas as mulheres alcançaram a independência e espaço nomercado de trabalho, mas permanecem ainda as desigualdades salariais e deascensão na carreira, fatos que são percebidos através de outras discriminaçõesnos estabelecimentos carcerários. Desta forma, a promoção dos direitos dasmulheres encarceradas, através de políticas públicas específicas, será essencialpara que se garanta efetivamente a igualdade prevista na Constituição Federativa doBrasil.

    Palavras-chave: discriminação; gênero; mercado de trabalho; trabalho prisional;

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    SUMÁRIO 

    1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09 

    2 SURGIMENTO DA PENA DE PRISÃO E A INSERÇÃO DO TRABALHO NO

    ESPAÇO PRISIONAL, SOB A ÓTICA DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA .................... 11 

    2.1 A era dos suplícios, as modificações do modelo punitivo e a definição da

    pena de prisão como pena principal do Estado capitalista ................................. 11 

    2.2 O cárcere e a fábrica: a função do trabalho prisional a partir da

    aproximação entre os modelos de punição e trabalho fabril no século XVIII e

    XIX ............................................................................................................................ 18 

    2.3 A inserção do trabalho nos estabelecimentos prisionais na atualidade para

    fins de inclusão social: comentários sobre o trabalho prisional nos moldes da

    Lei de Execução Penal (Lei nº 7.214/84) ................................................................ 21

    2.4 Finalidade da pena de prisão no contexto da sociedade contemporânea ... 25 

    3 GÊNERO E O PAPEL DA MULHER NO MERCADO DE TRABALHO ................ 29 

    3.1 Gênero e feminismo: aspectos conceituais ................................................... 29 

    3.2 A inserção da mulher no mercado de trabalho .............................................. 34 

    3.3 As peculiaridades do trabalho feminino na contemporaneidade ................. 37 

    3.4 A discriminação da mulher no mercado de trabalho ..................................... 40 

    4 ANÁLISE DOS DADOS SOBRE O TRABALHO PRISIONAL OPORTUNIZADO

    ÀS MULHERES DETENTAS NO PRESÍDIO SANTA AUGUSTA EM CRICIÚMA-SC,

    NO ANO DE 2010 ENQUANTO POSSIBILIDADE DE REINSERÇÃO SOCIAL...... 45 

    4.1 O surgimento do Presídio Feminino e uma breve descrição sobre a Ala

    Feminina do Presídio Santa Augusta ................................................................... 45 

    4.2 O trabalho desenvolvido no Presídio Santa Augusta em Criciúma-SC sob a

    ótica da legislação atual enquanto possibilidade de reinserção social ............. 49 

    4.3 Gênero e trabalho prisional: a discriminação de gênero na definição e

    realização do trabalho prisional no presídio Santa Augusta .............................. 57 

    5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 62 

    REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 67 

    APÊNDICE ................................................................................................................ 72 

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    1 INTRODUÇÃO

    O feminismo emergiu enquanto movimento de mulheres nas sociedades

    modernas para lutar pela igualdade de gênero e também pelo direito ao

    reconhecimento de sua diversidade, perante uma sociedade patriarcal. Tal

    necessidade surgiu porque as mulheres eram tratadas como objetos e não como

    sujeitas, sendo, portanto, propriedade do pai e, posteriormente, do marido. No

    entanto, através do movimento feminista, algumas políticas públicas e a própria

    conscientização das mulheres, esse quadro mudou e pode-se dizer que atualmente

    as mulheres conquistaram a liberdade, uma vez que decidem suas vidas notrabalho, na faculdade, nas viagens, moram sozinhas, são livres para fazerem suas

    próprias escolhas, sem precisar da autorização de um homem.

    Neste contexto é possível verificar que a sociedade atual foi moldada a

    partir dos parâmetros masculinos e esse modelo foi destinado a eles: os tipos e as

    condições de trabalho foram feitos para os homens, as prisões foram criadas,

    estruturadas e destinadas aos homens. A inserção das mulheres no ambiente

    carcerário exigiu certas adaptações e, com o presente trabalho, busca-se estudar asconsequências e discriminações vividas pelas mulheres que passam a pertencer a

    esse mundo, que por muito tempo foi exclusivamente masculino, em especifico em

    relação ao trabalho prisional oportunizado as mulheres detentas.

    Para cumprir com o objetivo proposto, o presente trabalho monográfico

    divide-se em três capítulos. No primeiro capitulo buscar-se-á verificar qual era o tipo

    de punição aplicado durante o Absolutismo, visto que esse era o modelo de

    dominação política onde o poder estava concentrado nas mãos do rei. Nesseperíodo, observar-se-á qual foram as circunstâncias que influenciaram na

    modificação das penas, que eram chamadas penas supliciantes, aplicadas ao corpo

    do delinqüente e passaram a ser focado na aplicação das privações de liberdade, já

    no século XIX. Por fim, analisar-se-á a função do trabalho prisional no contexto atual,

    como meio de inclusão social nos moldes da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84).

    No segundo capítulo, examinar-se-á o papel do feminismo para as

    conquistas dos direitos das mulheres, uma vez que foi pela persistência e firmeza de

    mulheres militantes, que em alguns casos deixaram de lado família e filhos, para

    lutar pela igualdade de direitos, que hoje são garantidos constitucionalmente tanto

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    para homens, como para mulheres (direito ao voto, direito ao trabalho).

    Posteriormente será analisado o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, no

    espaço que foi reservado exclusivamente aos homens por longa data. Tal ingresso

    permitiu que as mulheres conquistassem a independência financeira e seu

    reconhecimento profissional na sociedade. Ao ingressar no mercado de trabalho as

    mulheres passaram a se submeter, geralmente, a duplas ou triplas jornadas de

    trabalho, além de enfrentar os dilemas entre a carreira profissional, a constituição da

    família e a maternidade. Devido a estes fatos e outros mais, a CLT reconhece

    direitos peculiares às mulheres, os quais serão analisados no presente capítulo. Por

    fim, estudar-se-ão os tipos de discriminação vivenciados pelas mulheres no mercado

    de trabalho, o tipo de atividade que desenvolvem, o salário que recebem, a formacomo são tratadas, entre outros.

    No terceiro capítulo, será brevemente exposto sobre o surgimento das

    prisões femininas, bem como o surgimento da Ala Feminina do Presídio Santa

    Augusta, em Criciúma-SC. Posteriormente, serão analisados os dados coletados a

    respeito do trabalho prisional desenvolvido nesse estabelecimento prisional, assim,

    poderá ser feita análise juntamente com a legislação atual, buscando saber se o

    trabalho desenvolvido no presídio atende o papel ressocializador previsto pela Lei deExecução Penal. Por fim, analisar-se-á a discriminação vivida pelas mulheres

    durante o período de permanência no ambiente carcerário, buscando,

    principalmente, verificar se a mulher também sofre discriminação referente ao

    trabalho desenvolvido no presídio e pesquisar quais os sentimentos e as impressões

    vividas por essas mulheres.

    Neste sentido, o presente trabalho pretende colaborar com os estudos de

    gênero, ao abordar as atuais situações de discriminação contra as mulheres, queainda são presentes na sociedade, em específico, estudar o universo das mulheres

    detentas.

    O método utilizado será o dedutivo, em pesquisa do tipo teórica, com a

    utilização de material bibliográfico e documental legal referente aos assuntos

    trabalhados no primeiro e secundo capítulo. Na última parte da monografia, a partir

    do referencial teórico já consolidado nos capítulos anteriores, haverá a análise

    qualitativa de dados coletados em pesquisa anteriormente realizada na Ala Feminina

    do Presídio Santa Augusta, de forma a cumprir os objetivos aqui propostos.

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    2  SURGIMENTO DA PENA DE PRISÃO E A INSERÇÃO DO TRABALHO NO

    ESPAÇO PRISIONAL, SOB A ÓTICA DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

    O objetivo desse capítulo é demonstrar que por muitos séculos, o

    indivíduo que comete um delito, na sociedade, é punido. No entanto, o tipo de

    punição aplicada ao delinquente diverge, depende da época em que for aplicada.

    Nesse primeiro momento, o objetivo é analisar as modificações do modelo

    punitivo. Desde o tipo de punição aplicado no estado absolutista, onde o poder se

    concentrava nas mãos do monarca, até o momento em que as penas deixam de ser

    supliciantes e passam a focar a privação de liberdade.Posteriormente, analisar-se-á a inserção do trabalho no âmbito prisional,

    expondo sua real finalidade e, posteriormente, o trabalho prisional no contexto atual,

    nos moldes da Lei de Execução Penal n. 7.210/84 (BRASIL, 2010-c).

    Assim, o objetivo do capítulo é demonstrar que através dos tempos, os

    comportamentos sociais mudaram e assim, também, as penas aplicadas aos

    indivíduos.

    2.1 A era dos suplícios, as modificações do modelo punitivo e a definição da

    pena de prisão como pena principal do Estado capitalista

    Até o fim do século XVIII e começo do século XIX, os indivíduos que

    praticavam crimes eram submetidos às penas físicas supliciantes, modelo punitivopredominante no estado absolutista Francês.

    A figura do Rei, central no modelo absolutista, demonstrava seu poder

    através do suplício aplicado publicamente, correlacionando a pena com “[...] o tipo

    de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a

    gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas”

    (FOUCAULT, 1987, p. 31). Nesse sentido, o suplício era uma pena intensa e

    dolorosa, mas regulada, pois havia um código em que detalhava como e em que

    intensidade deveria ser aplicada, fazendo com que o supliciante tivesse “mil mortes”,

    pois a vida lhe era tirada através de tanto sofrer (FOUCAULT, 1987, p. 31). Exemplo

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    disso é ilustrado por Foucault, com a narração da morte supliciante de Damiens, no

    século XVIII na França:

    Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe haviaatenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na

     junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força,levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, edepois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços,com as espáduase axilas a as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aosossos;os cavalos, puxando com toda a força, arrebataram-lhe o braço direitoprimeiro e depois o outro. (1987, p. 10).

    A pena era aplicada sobre o corpo com muita crueldade, fazendo com

    que o sofrimento sentido transparecesse na verdade, para que em seus últimos

    minutos de vida o sujeito confessasse sua culpa. Desta forma, “O verdadeiro suplício

    tem por função fazer brilhar a verdade”. (FOUCAULT, 1987, p. 37-39). 

    O que manteve os suplícios como modelo punitivo por mais de três

    séculos foi a política do medo, fazer com que as pessoas enxergando o sofrimento

    alheio se sentissem amedrontadas em cometer algum crime, em afrontar o seu

    soberano (FOUCAULT, 1987, p. 43). “A certeza da punição deveria afastar o homem

    do crime” (FOUCAULT, 1987, p. 13), isso porque o castigo seria inevitável e tão

    cruel quanto aquele que se presenciava.

    Por outro lado, o fato do suplício ser aplicado em praça pública tinha

    como finalidade demonstrar a soberania do rei, sendo este também um ritual político,

    pois ao desobedecer às regras cometendo o crime, o súdito não atacava apenas a

    vítima, mas também afrontava a soberania do rei. As penas severas demonstravam

    o poder do monarca, constituíam-se em instrumento do soberano para restabelecer

    seu poder que havia sido lesado pela prática do crime (FOUCAULT, 1987, p. 41-42).

    Não teria sentido a prática do suplício em sigilo, pois se pretendia com o espetáculo

    mostrar para o povo o sofrimento do condenado, nesta prática a preocupação maior

    era mostrar de quem era o poder e não exatamente realizar a justiça (FOUCAULT,

    1987, p. 49-43). Eram nesses rituais que o soberano cometia o mesmo crime que

    estava sendo punido como forma de espetáculo, despertando em algumas pessoas

    o sentimento de justiça, em outras o medo, mas figurando como uma ameaça

    promovida pelo poder desproporcional e desmedido do rei  (FOUCAULT, 1987, p.

    52). 

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    O soberano está presente à execução, não só como poder que vinga a lei,mas como poder que é capaz de suspender tanto a lei quanto a vingança.Só ele como senhor deve decidir se lava as mãos ou as ofensas que lheforam feitas; embora tenha conferido aos tribunais o cuidado de exercer seupoder de justiça, ele não o alienou; conserva-o integralmente para

    suspender a pena ou fazê-la valer. (FOUCAULT, 1997, p. 49)

    Apesar de toda a barbárie dos suplícios para evidenciar o poder do rei,

    havia a possibilidade de se perdoar o condenado. Quando o carrasco no ritual do

    suplício alcançava seu objetivo, este era ovacionado e aplaudido, porém, quando

    com todo o ritual preestabelecido ainda assim fracassava, não conseguia matar,

    sofria punição e como a tradição mandava, o condenado era perdoado, havia a

    cobrança do povo para que se fizesse cumprir o costume e desta forma, o sujeito

    escapava da morte (FOUCAULT, 1987, p. 45).

    A presença do povo durante o acontecimento do suplicio era fundamental,

    além de espectador, convidado a presenciar as atrocidades praticadas contra o

    condenado, também servia para testemunhar a punição e ter certeza de sua prática

    (FOUCAULT, 1987, p. 49).

    Durante esta época, existiam várias formas de punição: o enforcamento, a

    roda, lapidação, esquartejamento, decapitação, afogamento, queimadura, açoites,

    marcação a ferro, a fustigação, entre outros. Todas estas penas eram aplicadas no

    corpo do condenado, sendo que muitas vezes o condenado era terrivelmente

    massacrado mesmo depois de morto. O povo assistia uma atrocidade, que não

    servia apenas para punir o homem pelo seu crime, mas também para humilhá-lo,

    para que ele compadecesse moralmente.

    Um corpo liquidado, reduzido à poeira e jogado ao vento, um corpodestruído parte por parte pelo poder infinito do soberano, constitui o limite

    não só ideal, mas real do castigo. [] suplício aparentemente paradoxal,pois se desenrola quase inteiramente depois da morte, e a justiça não fazoutra coisa que estender sobre o cadáver seu teatro magnífico, a louvaçãoritual de suas forças [] (FOUCAULT, 1987, p.44).

    Esses métodos de punição tornaram-se inaceitáveis e repudiantes para a

    sociedade que rapidamente clamava por outros meios de penalidade. “O rigor das

    penas deve ser relativo ao estado atual da nação”, desta forma, no transcorrer do

    desenvolvimento da sociedade, o povo evolui e torna-se necessário a mudança no

    modelo de dominação política, que por sua vez, acaba amenizando as penas

    (BECCARIA, 2004, p. 64).

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    O suplício tornou-se rapidamente intolerável. Revoltante, visto daperspectiva do povo, onde ele revela à tirania, o excesso, a sede devingança e o “cruel prazer de punir”. Vergonhoso, considerada daperspectiva da vítima reduzida ao desespero e da qual ainda se espera quebendiga “o céu e seus juízes por quem parecem abandonadas”

    (FOUCAULT, 1987, p. 63).

    Assim, com a ascensão do capitalismo e da burguesia, enquanto

    detentores de um novo modelo de dominação política e econômica, o sistema

    punitivo foi conduzido a uma reforma, na busca de mitigar as sentenças impostas.

    No contexto do século XVIII onde se preconizavam tratamento mais humano para

    estas penas, impostas aos indivíduos que praticavam crimes, paulatinamente

    desaparece o suplício e devido a valorização da liberdade surge a pena de prisão

    por excelência a qual coincide com o início da transformação da sociedade feudal

    para capitalista (LEMOS, MAZZILLI, KLERING, 1998).

    Desta forma, é clara a transformação dos mais diversos setores da

    sociedade incluindo-se o religioso, pois da idéia de pecado, da transgressão de

    preceitos religiosos passa-se a penalização destes atos, onde o conceito de pecado

    é tipificado em crime e as respectivas punições acabam por obter sua legitimação.

    Uma série de acontecimentos levou a emergência da pena privativa de

    liberdade como pena principal no novo modelo punitivo. A ascensão política de uma

    nova classe social: a burguesia1, o aumento de crimes contra o patrimônio e ainda o

    surgimento do capitalismo foram alguns dos motivos para a reforma punitiva.

    Buscava-se também retirar o poder absoluto das mãos do Soberano e erigir um

    sistema em que a punição seria mais igualitária e proporcional aos crimes

    cometidos, não dependendo apenas da vontade pessoal do monarca.

    O Iluminismo também foi um dos movimentos a favor da reforma das leis

    e da administração da justiça penal. Demonstrando-se contra as puniçõeshorrendas: “O Iluminismo vem dar a expressão aos anseios de mudanças com

    exigência de um regime de segurança jurídica e de respeito à pessoa” (BARROS,

    2001, p. 46). Desta forma, “A pena ganha uma finalidade não escatológica, mas

    1 Segundo Bobbio, Matteuci e Pasquino (2004, p. 119) “O termo burguesia não tem sentido unívoco,podendo-se dar do conceito pelo menos duas definições (se não mais) alternativas. Num primeirosentido [...] entende-se por Burguesia a camada social intermediária, entre a aristocracia e a nobreza,

    detentoras hereditárias do poder e da riqueza econômica, e o proletariado, composto de assalariadosou mais genericamente de trabalhadores manuais. Num sentido mais fecundo e mais atual [...] Aburguesia, pois, seria a classe que detém, no conjunto. os meios de produção e que, portanto, éportadora do poder econômico e político. Seu oponente seria o proletariado que, desprovido destesmeios, possui unicamente sua força de trabalho”.

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    terrena, dirigida à prevenção do cometimento de outros crimes” (RODRIGUES,

    2001, p. 31).

    Beccaria foi o grande precursor da visão humanista do direito penal,

    defendia a moderação das penas, a substituição da pena capital pela prisão

    perpétua e também a proporcionalidade das penas. Uma vez que a pena privativa de

    liberdade buscava prevenir futuros crimes (FERNANDES, 2000, p. 70), Beccaria “[...]

    salientava que a pena atroz é injusta, odiosa e inútil, sendo verdadeira barbárie

    agasalhada pela maioria dos governos absolutistas” (FERNANDES, 2000, p. 92)

    Neste contexto, não há mais lugar para vadios, preguiçosos, desonestos

    e ladrões, o que justifica a relevância da manutenção e o crescente surgimento de

    instituições totais e da pena privativa de liberdade por excelência como vias deutilização para aplicação da dominação por meio de implementação de políticas e

    projetos para reeducar, docilizar e realizar a exploração sobre essas massas de

    desocupados (SÁ, 1996, p. 27).

    Sabe-se que pena privativa de liberdade sempre foi utilizada desde os

    povos primitivos, porém com finalidade diversa dos dias atuais. O seu objetivo era

    guardar o corpo para uma futura punição, o que na época não era considerado uma

    pena suficiente - acrescentavam a ela outros castigos - no entendimento de que aprisão era apenas uma medida preventiva até que se fosse decidido que tipo de

    punição o corpo sofreria (OLIVEIRA, 2003. p. 47).

    Observa-se que com o transcorrer dos séculos foi-se alterando os modos

    de punição para adequá-lo às alterações sócio-econômicas que se apresentavam

    em cada época.

    No século XIX as penas tornaram-se mais humanitárias, a privação de

    liberdade foi reconhecida como o novo modelo de punição (OLIVEIRA, 2003. p. 47).  A pena não possuía caráter perpétuo, pois se entendia que a esperança de um dia

    voltar a liberdade é o que levava o indivíduo a ter disciplina e a se arrepender do

    crime, desta forma, o detento deveria permanecer só o tempo necessário para a sua

    reeducação (BARROS, 2001, p. 51), e cabia “à administração do presídio, a

    transformação do preso” (BARROS, 2001, p. 49).

    Inicialmente a pena privativa de liberdade era exclusivamente processual.

    Os condenados aguardavam na prisão o castigo, de outra natureza, quelhes seria imposto em caso de condenação. [...] Já as penas restritivas deliberdade não se destinavam a manter o condenado encarcerado e sim a

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    limitar-lhe a liberdade de locomoção. Eram muito aplicadas e se cumpriamde forma extremamente dura (BARROS, 2001, p. 41-42).

    Bitencourt afirma que é ingênuo se pensar que as penas privativas de

    liberdade surgiram pelo simples fato da intolerância da sociedade às penas de morte

    e a necessidade de humanização das penas, afirma que existem vários outros

    fatores importantes encobertos atrás deste pensamento. Como o número excessivo

    de pessoas carentes que poderiam praticar delitos ou mendicância, a valorização da

    liberdade no século XVI, as razões econômicas, entre outros (BITENCOURT, 1993,

    p. 33-35).

    Assim, Rusche e Kirchheimer afirmam que na verdade as mudanças que

    resultaram na privação de liberdade como pena não foram as considerações

    humanitárias, mas sim o desenvolvimento econômico da época, que descobria nos

    detentos um grupo em potencial ao trabalho, que devia ser treinada como mão de

    obra (2004, p. 43).

    O desenvolvimento do capitalismo dependia diretamente da oferta de

    mão-de-obra, desde que barata e disciplinada para o trabalho. Com a escassez da

    mão-de-obra, os burgueses, detentores dos meios de produção, pressionavam os

    poderes políticos a tomar uma atitude, pois “o crescimento continuado da indústriarequeria a criação de uma grande reserva de força de trabalho” (RUSCHE,

    KIRCHHEIMER, 2004, p. 47-53).

    Devido a escassez, foram editadas normas para tabelar salários máximos

    e para evitar o aumento dos custos com a mão-de-obra, também se proibiu os

    trabalhadores de pararem seus trabalhos para reivindicar aumento salarial e

    utilizaram também o trabalho infantil de todas as maneiras possíveis, no mais das

    vezes pela simples troca por uma refeição (RUSCHE, KIRCHHEIMER, 2004, p. 55-56).

    Este ponto em comum da transformação dos métodos de punição e do

    modelo econômico da sociedade é ponto culminante para a inserção do trabalho no

    ambiente carcerário em vista da premente necessidade de acumulação de capital

    exigida pelo novo sistema econômico emergente. De tal sorte que “[...] a primeira

    forma de prisão estava, então, estreitamente ligada às casas de correção2 

    2 “A essência da casa de correção era uma combinação de princípios das casas de assistência aos

    pobres (poorhouse), oficinas de trabalho (workhouse) e instituições penais” (RUSCHE,KIRCHHEIMER, 2004, p.69). “Estas instituições foram criadas, geralmente, para tratar a pequenadelinqüência” (BITENCOURT, 1993, p. 25). 

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    manufatureiras” [...] “Seu objetivo principal era transformar a força de trabalho dos

    indesejáveis, tornando-a socialmente útil” (RUSCHE, KIRCHHEIMER, 2004, p.99-

    69).

    As famosas casas de correção eram constituídas por mendigos aptos,

    vagabundos, desempregados, prostitutas, ladrões e quando mais tarde estas

    instituições se firmaram, também foram aceitas crianças rebeldes (RUSCHE,

    KIRCHHEIMER, 2004, p. 69).

    Se falando das casas de correção, usadas como instrumento de

    dominação, “servem para impor a hegemonia de uma classe sobre a outra,

    eliminando toda possibilidade de que possa surgir uma ação que ponha em perigo a

    homogeneidade do bloco de dominação sócio-econômica” (BITENCOURT, 1993, p.31).

    As casas de correção acabaram sendo formadas por indivíduos

    completamente heterogêneos e com o tempo esse ambiente “se transformou em

    pena propriamente dita, na qual o aspecto de terror e intimidação se sobrepôs

    completamente à finalidade reeducativa original” (MELOSSI, PAVARINI, 2006, p.

    186).

    O surgimento dessas casas estabelece uma conexão entre a mão de obrado recluso e a prisão. Afinal, por meio do trabalho o recluso era reeducado, além do

    que era uma forma de não desperdiçar a mão de obra e também controlá-la

    (BITENCOURT, 1993). Nesse efeito, “a penitenciária nasce e se consolida como

    instituição subalterna à fábrica, e como mecanismo pronto a atender às exigências

    do nascente sistema de produção industrial.” (DE GIORGI, 2006, p. 44).

    Com o novo modelo de sistema penitenciário acreditava-se que o trabalho

    e a disciplina modificariam o indivíduo. Objetivando, desta forma, minimizar avadiagem e a ociosidade (BITENCOURT, 1993, p. 24). O trabalho desenvolvido na

    prisão sob a influência do capitalismo deixa claro que o interesse maior era gerar e

    obter lucros para o Estado e para os particulares, mantendo os detentos em ordem,

    disciplinados pela vida do trabalho, como verdadeiros proletários e não apenas

    privá-los da liberdade (BITENCOURT, 1993, p. 36).

    O cárcere representa a materialização de um modelo ideal de sociedade

    capitalista industrial, um modelo que se consolida através do processo de“desconstrução” e “reconstrução” contínua dos indivíduos no interior dainstituição penitenciária. O pobre se torna criminoso, o criminoso se torna

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    prisioneiro e, enfim, o prisioneiro se transforma em proletário (DE GIORGI,2006, p. 45).

    O trabalho prisional transformava o criminoso em um proletário

    disciplinado e pronto para ingressar na sociedade industrial da época, além do que

    beneficiava os empresários no quesito salarial, já que havendo muita oferta de mão

    de obra, disporiam da liberdade de reduzir os salários dos trabalhadores livres

    (MELOSSI, PAVARINI, 2006, p. 211-212).

    O ingresso do empresário capitalista na penitenciaria e a conseqüentetransformação do cárcere em fábrica – mediante um violento processo deindustrialização das oficinas – virou de cabeça para baixo a situação de

    estagnação que afetava a “reforma penitenciaria” (MELOSSI, PAVARINI,2006, p. 201).

    Desta forma, “a penitenciaria é, portanto, fabrica de proletários e não de

    mercadorias” (MELOSSI, PAVARINI, 2006, p. 212). Assim, “o cárcere tem um

    objetivo muito preciso: a reafirmação da ordem social burguesa deve educar o

    criminoso a ser proletário socialmente não perigoso, isto é, ser não proprietário sem

    ameaçar a propriedade” (MELOSSI, PAVARINI, 2006, p. 216).

    Em síntese, utilizando o trabalho como meio de coerção para manter adominação e a ordem, as penitenciarias cumprem um papel de empresas

    explorando absurdamente seus apenados. Disciplinando os indivíduos para que em

    liberdade reproduzam o aprendido na prisão.

    2.2 O cárcere e a fábrica: a função do trabalho prisional a partir da

    aproximação entre os modelos de punição e trabalho fabril no século XVIII e

    XIX.

    A pena de prisão como instrumento de exploração tinha a intenção de

    docilizar, treinar e disciplinar os indivíduos encarcerados como uma peça em uma

    máquina, sob a pretensão de recuperar o delinquente. Buscava-se disciplinar o

    detento de forma que aceitasse a subordinação e a consequente absorção da idéia

    de exploração, de forma que tivesse o entendimento que era a única forma de sua

    existência. Ao indivíduo, detento, eram ensinadas funções que o restringiam a

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    determinadas colocações futuras nas fábricas, que pudesse mantê-lo sob a

    constante dominação e possibilidade de ser manobrado e utilizado conforme o

    interesse da classe dominante. Portanto, tem-se assim a prática sistemática de

    coisificação do indivíduo, que significa tratar o ser humano como objeto, dirigido para

    um determinado fim que não lhe beneficia (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 232).

    Refletindo sobre a pena como instrumento de docilização dos corpos,

    afirma Foucault:

    Não é como atividade de produção que ele é intrinsecamente útil, mas pelosefeitos que toma na mecânica humana. É um princípio de ordem e deregularidade; pelas exigências que lhe são próprias, veicula, de maneirainsensível, as formas de um poder rigoroso; sujeita os corpos a movimentosregulares, exclui a agitação e a distração, impõe uma hierarquia e umavigilância que serão ainda mais bem aceitas, e penetrarão ainda maisprofundamente no comportamento dos condenados, por fazerem parte desua lógica: com o trabalho (1987, p. 203).

    Desta forma, o trabalho penal tem um efeito econômico e de simples

    produção de indivíduos mecanizados3  segundo as exigências de uma sociedade

    industrial que necessita de proletários. “O trabalho se torna, nesta situação, a única

    alternativa possível à inércia e ao ócio forçado. É de fato a única tábua de salvação

    para escapar da loucura, que, de outra forma, parece inevitável” (MELOSSI;

    PAVARINI, 2006, p. 223).

    A disciplina institucional se transforma em disciplina do corpo. A desordemfísica deve-se transformar em ordem física. Nesta educação do corpo,valem algumas regras. [...] O trabalho é um prêmio, que é negado oususpenso a quem não “colabora” com o ‘processo educativo (MELOSSI,PAVARINI, 2006, p. 221-223).

    Assim, o trabalho prisional ocupa os indivíduos e os mantém fora dosdesvios de sua imaginação, constituindo-se em relação de poder, onde o individuo é

    submetido ao aparelho de produção. “Mantendo a ordem e a disciplina garante-se

    uma boa administração, habilitando, dessa forma, a instituição no que tange ao seu

    sistema de representação” (LEMOS; MAZZILI; KLERING, 1998, p.133).

    A prisão também deve transformar os detentos. “A prisão deve ser um

    aparelho disciplinar exaustivo, deve tomar a seu cargo todos os aspectos dos

    indivíduos: seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento

    3 Desenvolvem trabalhos repetitivos, com agilidade, como se fossem máquinas. 

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    cotidiano, sua atitude moral, suas disposições”, enfim ela coloca o apenado em

    condição completamente submissa ao sistema prisional (LEMOS, MAZZILI,

    KLERING, 1998. p. 131).

    Segundo Foucault (1987, p. 204) “o trabalho pelo qual o condenado

    atende a suas próprias necessidades requalifica o ladrão em operário dócil”,

    concretizando a pretensão da recuperação pelo trabalho. O objetivo final é que os

    apenados “[...] aceitem uma ordem e uma disciplina que os faça dóceis instrumentos

    de exploração” (BITENCOURT, 1993, p. 31).

    Enquanto fruto de uma sociedade classificada por FOUCAULT comosociedade de controle, a prisão tinha seus pressupostos assentados nos

    ideais presentes à época, os quais se baseavam no modelo econômicocapitalista. Tal modelo se inspirava na idéia de proteção dos bens deprodução e se impulsionava através da tensão decorrente dos conflitosentre classes (SILVA, 2009, p.121). 

    Não obstante o que já foi expresso nas linhas anteriores, é de suma

    importância salientar que a finalidade da pena de prisão na sua origem era de

    explorar as massas excluídas do processo de produção para docilizar, treinar e

    formar uma mão-de-obra reserva. Todavia, a pena privativa de liberdade atualmente

    não se restringe a este fim, mas busca se relegitimar para atender outros objetivos

    do capitalismo avançado:

    É exatamente este o sentido em que o cárcere permanece vivo, pois aindaque as características da força de trabalho tenham mudado tãoradicalmente (não havendo mais a grande necessidade do adestramentodos corpos), as condições econômico-social sofreram profundasmetamorfoses chegando-se a ponto da imposição de um controle maisintenso e efetivo da vida, alterando também a função das estratégias decontrole, isto porque agora o capital além de utilizar os instrumentos

    proporcionais pela nova soberania (em função das alterações do modo deprodução capitalista), se relaciona perfeitamente à nova realidade domercado de trabalho, utilizando-se dos dispositivos e tecnologias decontrole para, não mais (ou não somente) disciplinar corpos, mas,principalmente em função da produção de uma massa de excluídos,revitalizar-se em razão das condições de exploração da mão-de-obra, daprecariedade e insegurança impostas à força de trabalho na nova economiaflexível, possibilitando assim, o direcionamento de políticas penais cada vezmais de caráter excepcional, estabelecendo íntima relação entre sistemapenal e o modo de produção capitalista. (GRAZIANO SOBRINHO, 2009,p.158)

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    Inevitavelmente, o mais forte domina o mais fraco, assim, as

    penitenciarias e os empresários têm feito bom uso da mão-de-obra prisional, de

    certa forma explorando os detentos em troca de lucro.

    2.3 A inserção do trabalho nos estabelecimentos prisionais na atualidade para

    fins de inclusão social: comentários sobre o trabalho prisional nos moldes da

    Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) 

    Através da influência do capitalismo, rapidamente as penitenciáriaspassaram a utilizar a mão de obra da pessoa presa para a produção. Portanto, para

    beneficiar o capital privado a prisão se transforma em uma fábrica, onde se pode

    dispor de trabalho disciplinado e barato (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 201).

    Observa-se que, desde que se extinguiram os suplícios como forma depunição até a atualidade, o trabalho prisional passou a exercer papelpredominante na execução penal, dentro das sociedades capitalistas. Eesse fato pode estar ligado à própria concepção que se tem do trabalho

    como um todo (LEMOS; MAZZILLI; KLERING, 1998, p. 135).

    Assim, ao se compreender a história do trabalho nas prisões pode-se

    entender melhor a questão contemporânea do sistema prisional.

    Uma vez que o Código Penal e o Processual Penal não versam sobre a

    execução das penas, foi criada a Lei de Execução Penal, com o objetivo de sanar

    esta falta de regulamentação. Assim, em 11 de julho de 1984, foi promulgada e no

    dia 13 do mesmo mês, publicada a Lei de Execução Penal nº 7210/84 (BRASIL.

    2010-c), na qual o trabalho prisional passou a ser tratado formalmente como meio de

    reabilitação do condenado (WANDERER, 2007, p. 26).

    No entanto, não há dados científicos que comprovem que o trabalho

    prisional resulta na socialização4 do detento, uma vez que desde o surgimento da

    pena de prisão o trabalho está presente e não tem servido como instrumento para

    conter os níveis de reincidência criminal. Esta percepção evidencia que o surgimento

    do trabalho prisional nada mais é do que uma forma de punição. “Isso determina

    4 O termo se refere a tornar sociável o indivíduo que esta fora do convívio social devido a condutasreprováveis pela sociedade.

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    uma situação na qual o teor de vida do detido é sempre inferior ao mínimo do

    trabalhador livre ocupado” (MELOSSI, PAVARINI, 2006, p. 84).

    Entretanto, de acordo com a legislação de execução penal o trabalho

    prisional deve ter finalidade educativa e produtiva, como emerge dos comentários

    doutrinários sobre o tema:

    [] educativa porque, na hipótese de ser o condenado, pessoa semqualquer habilitação profissional, a atividade desenvolvida noestabelecimento prisional conduzi-lo-á, ante a filosofia da Lei de ExecuçãoPenal, ao aprendizado de uma profissão. Produtiva porque, ao mesmotempo em que impede a ociosidade, gera ao condenado recursosfinanceiros para o atendimento das obrigações decorrentes daresponsabilidade civil, assistência a família, despesas pessoais e, até,

    ressarcimento ao estado por sua manutenção (SILVA; BOSCHI, 1986, p.39).

    Neste efeito, o trabalho no ambiente prisional é visto como um método de

    reeducar  a pessoa presa, a fim de que tenha disciplina, que ocupe o seu tempo com

    o trabalho, evitando pensamentos e atitudes fora dos padrões do controle social

    penal. “O tempo ocioso pode se converter no pior inimigo do recluso, não só porque

    no entender das autoridades sugere vadiagem e fracasso do tratamento

    ressocializador, mas também porque favorece o envolvimento em ilegalidades”(ESPINOZA, 2004, p.146). Diante disto, percebe-se que o Estado prevê o trabalho

    da pessoa presa como uma obrigação podendo-se visualizar o afirmado no art. 31

    da LEP: “O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na

    medida das suas aptidões e capacidades” (BRASIL, 2010-c).

    O trabalho, como dever social, enfatiza a responsabilidade pessoal dopreso, como a de todo homem, ao assumir seu posto na sociedade. A

    finalidade educativa e formativa do trabalho tem como resultado atribuir aopreso uma profissão para reincorporá-lo na sociedade e reinseri-lo comoforça produtiva na população ativa da nação (ALBERGARIA, 1987, p. 54-55).

    Como incentivo ao exercício do trabalho prisional criou-se o direito de

    remição da pena, instituindo que para cada três dias de trabalho, um dia deve ser

    debitado da sentença do detento (art. 126, § 1º, da LEP) (BRASIL, 2010-c). Nestas

    condições, visualiza-se uma possibilidade de escolha frente ao trabalho prisional,

    sendo direito do detento a remição, é facultado a ele optar pelo trabalho ou não, “élegítimo que o interno só se proponha a trabalhar para ter a pena reduzida. Admitir o

    contrário acarretaria a aceitação de uma finalidade moralizante da remição,

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    inadmissível na vigência do Estado de direito” (BARROS, 2001, p. 185). Observa-se,

    portanto, que o trabalho prisional é visto como uma forma da pessoa diminuir o seu

    tempo de pena.

    E não poderia ser diferente, pois, como parte das condições de integraçãosocial oferecidas ao preso que é, não pode ser renunciado pelo legislador epelas autoridades competentes para acompanhar a execução da pena,mas, no que ao condenado se refere, só pode ser uma oferta que ele é livrepara aceitar ou não” (BARROS, 2001, p. 184). 

    A Lei de Execuções Penais (BRASIL, 2010-c), ainda prevê que o trabalho

    do apenado deve ser remunerado, como normatizado no artigo 41, inciso II, em valor

    que não deve ser inferior a 3/4 (três quartos) do salário mínimo (artigo 29, caput ). Aremuneração, mesmo que legalmente fixada abaixo dos valores destinados aos

    trabalhadores livres, é importante instrumento de retribuição pelo trabalho penal e

    descaracteriza o trabalho como forçado ou de caráter escravo. Mesmo quando não

    atende a remuneração estabelecida em lei, o apenado está disposto ao trabalho,

    visando à remição da pena: “Ansiosos para sair da prisão o mais rápido possível,

    quase todos os detentos estão dispostos a trabalhar, mesmo sem receber”

    (ALBERGARIA, 1987, p. 292). “A remição tem a função de mitigar o mal causadopela intervenção penal ao viabilizar a menor duração da pena privativa de liberdade”

    (BARROS, 2001, p. 183).

    No que se refere à jornada de trabalho da pessoa presa, determina a Lei

    de Execução Penal, em seu artigo 33, que: “A jornada normal de trabalho não será

    inferior a seis, nem superior a oito horas, com descanso nos domingos e feriados”.

    Contudo, lembra a norma que deverá haver “proporcionalidade na distribuição do

    tempo para o trabalho, o descanso e a recreação” (artigo 41, inciso V, da LEP),

    garantido, dessa maneira, o “exercício das atividades profissionais, intelectuais,

    artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena”

    (artigo 41, inciso VI, da LEP) (BRASIL, 2010-c).

    Na perspectiva de boa parte das pessoas presas o trabalho ofertado nos

    estabelecimentos prisionais é de suma importância, pois no mais das vezes esse é o

    único meio de subsistência e ainda serve como uma forma de ocupar o tempo. A

    pessoa presa possui um interesse diferente, em se falando de trabalho, do que um

    trabalhador em meio livre, pois no presídio o trabalho tem caráter utilitário, não se

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    vinculando ao lucro e nem ao consumo (ESPINOZA, 2004, p. 145-146). Nesse

    sentido, o trabalho prisional deve ser visto sob outra dimensão:

    O trabalho no interior da prisão deve ser pensado de uma perspectivadiferente da que o caracteriza na sociedade. Dimensões como salário,direitos trabalhistas e qualificação possuem importância reduzida face aoutros elementos presentes no universo prisional. O trabalho prisionalcoloca em destaque outras questões associadas à família, auto-estima, ao

     jogo das relações entre eles, benefícios institucionais, ocupação do tempo einstrução. Neste contexto, ele representa a via de retorno à legitimidadesocial e ao mercado, apontando para a possibilidade - pelo menos teórica -de “recuperar-se” (TRISOTTO, 2005, p. 96).

    Sob a ótica da pessoa presa, o trabalho pode ser de extrema importância

    para sua subsistência e também para evitar a ociosidade, como mencionadoanteriormente. Todavia, nos moldes em que o trabalho prisional hoje é ofertado e

    realizado em boa parte dos estabelecimentos prisionais, não cumpre com os

    mínimos requisitos para que a pessoa, quando em liberdade, consiga utilizar o que

    aprendeu na prisão e enfrente um mercado de trabalho competitivo. Isto porque o

    tipo de trabalho ofertado consiste, via de regra, em trabalhos manuais, que fora do

    estabelecimento prisional tem difícil comercialização e resulta em pouco retorno

    financeiro. De fato, o tipo de trabalho que é ofertado pouco colabora para umamelhor formação profissional, prejudicando assim uma futura reinserção no mercado

    de trabalho.

    É difícil sustentar o discurso da prisão como local de ressocialização 

    sendo que a pessoa é tirada do convívio social para ser reeducada em um ambiente

    completamente desfavorável a este objetivo, uma vez que no presídio pessoas que

    cometeram pequenos e grandes crimes são tratadas de igual forma, convivendo nos

    mesmos ambientes, sendo difícil uma reeducação (PASTORE, 1989, p. 82). Infere-se, pois, que antes mesmo da proclamada função ressocializadora, o cárcere deve

    ter a finalidade de, ao menos, não dessocializar  (RODRIGUES, 2001, p. 52).

    Thompson conclui que o resultado de associar cárcere e ressocialização 

    resulta em algo contraditório: “Parece, pois que treinar homens para uma vida livre,

    submetendo-os a condições de cativeiro, afigura-se tão absurdo como alguém se

    preparar para uma corrida, ficando na cama por semanas.” (2002, p. 12–13).

    Com o estigma de ex-detento existe uma grande dificuldade na reinserção

    do apenado no mercado de trabalho, somado ao fato de que, em sua maioria, a

    pessoa presa tem apenas o ensino fundamental incompleto.

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    O cuidado crescente que a sociedade punitiva dispensa ao encarceradodepois do fim da detenção, continuando a seguir sua existência de milmodos visíveis e invisíveis, poderia ser interpretado como a vontade deperpetuar, com a assistência, aquele estigma que a pena tornou indelévelno indivíduo. (BARATTA, 1999, p. 187).

    Esses aspectos demandam para uma maior vulnerabilidade da pessoa

    egressa do sistema carcerário reincidir no crime, tendo em vista as dificuldades de

    se sustentar economicamente.

    O trabalho prisional deveria servir como instrumento de aprendizagem

    para uma profissão, e assim, garantir a reinserção social do detento quando em

    liberdade e contribuindo na capacitação do preso para ganhar honestamente sua

    vida depois da prisão. Que este trabalho fornecesse conhecimento para queconseguisse se reestruturar, que não fosse apenas uma forma de manter a ordem e

    a disciplina ou uma forma de apenas mantê-los ocupados e alienados. “O maior

    drama do egresso é estar marcado. Ele não obtém emprego por ser marcado. Ou

    porque, tendo os vizinhos marginalizado sua família, o egresso agora tem de

    enfrentar uma cidade estranha. Ali ninguém mais o conhece [...]”(PASTORE, 1989,

    p. 36)

    A aprendizagem de uma profissão no ambiente prisional colaboraria paraa reinserção social  do preso, para que a pessoa consiga, ao sair da prisão, uma

    estabilidade financeira com o que aprendeu. No entanto, o trabalho desenvolvido

    nas penitenciarias não faz com que os detentos desenvolvam habilidades que lhe

    garantam emprego no meio social.

    2.4 Finalidade da pena de prisão no contexto da sociedade contemporânea 

    Desde que foi instituída como pena principal do sistema penal, ainda no

    século XIX, a pena de prisão passou por inúmeras transformações, também em

    relação a sua finalidade. Diversos filósofos se preocuparam em estruturar teorias

    para justificar a aplicação das penas no Estado de Direito, o que deu estrutura para

    as chamadas teorias da pena. Essas teorias se dividem em: absoluta ou

    retribucionista e relativas ou prevencionistas. Das últimas se subdividem ainda:

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    Teoria Preventiva Geral (caráter negativo, caráter positivo), Teoria Preventiva

    especial (caráter negativo, caráter positivo) e Teoria Mista ou Unificadora.

    As penas retributivas, ou ainda, absolutistas eram aquelas utilizadas

    durante a época em que o poder encontrava-se absoluto nas mãos do monarca e do

    Estado. “A idéia que então se tinha da pena era a de ser um castigo com o qual se

    expiava o mal (pecado) cometido”. É dada a pena a função de fazer justiça já que é

    por meio dela que o indivíduo pagará pelo crime cometido (BITENCOURT, 1993, p.

    100-102).

    Como afirma Bitencourt (1993, p. 103-107) alguns dos defensores da

    pena absolutista foram Kant e Hegel. “Kant elabora sua concepção retributiva da

    pena sobre a idéia de que a lei penal é um imperativo categórico5”. Para Hegel “apena é a negação da negação do direito”.

    Para Mir Puig, a fundamentação hegeliana da pena é – ao contrário dakantiana – mais jurídica, na medida em que para Hegel a pena encontra sua

     justificação na necessidade de restabelecer a vigência da vontade geral ,simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pela vontade do delinqüente(BITENCOURT, 1993, p. 106).

    Para os defensores das teorias absolutistas a pena possui um fim em simesma, pois punindo o condenado pelo crime praticado, a pena esgota sua

    finalidade em retribuir a ele o mal causado pelo crime. “Na retribuição ou retaliação

    se encaixam as teorias de que é justo devolver o mal a quem praticou o mal e,

    inversamente, praticar o bem para quem também o pratica” (CAMARGO, 2008, p.

    24).

    Houve muitas críticas as teorias retributivas da pena, em especial as

    críticas feitas por Claus Roxin. Sendo que ele primeiramente afirma que “a teoria

    retributiva fracassa diante da função de traçar um limite em relação ao conteúdo do

    poder estatal”. Em segundo “se se afirma sem restrições a faculdade estatal de

    penalizar formas de condutas culpáveis, continua insatisfatória a justificação da

    sanção da culpa”. E em um terceiro quesito afirma que a pena na verdade é a

    vingança por um crime já cometido, já que o mal causado pelo crime seria

    irreparável, sendo impossível “eliminar um mal (o delito) com outro mal (a pena)

    (BITENCOURT, 1993, p. 112-113).

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    Na transição do estado absoluto para o estado liberal surgiram as Teorias

    Relativas da pena, estas por sua vez buscavam a prevenção dos crimes, eram

    voltadas para toda a sociedade com o intuito de que com a certeza de uma punição

    o indivíduo não cometeria o crime. As teorias preventivas da pena se subdividem

    em: prevenção geral e prevenção especial.

    Um dos defensores da prevenção geral foi Beccaria, que possuía uma

    concepção utilitarista da pena. Defendia que a pena não fosse uma punição pelos

    erros cometidos, mas que fosse uma forma de prevenir futuros erros. Desta forma,

    não haveria necessidade de tornar as penas atrozes, mas a certeza de ser punido

    levaria os indivíduos ao não cometimento de crimes (BITENCOURT, 1993, p. 41).

    “Para a teoria da prevenção geral, a ameaça da pena produz no indivíduo umaespécie de motivação para não cometer delitos” (BITENCOURT, 1993, p. 117).

    A prevenção geral, defende que “a ameaça da pena produz no indivíduo

    uma espécie de motivação para não cometer delitos” (BITENCOURT, 1993, p. 117),

    por sua vez, também pode ser dividida em negativa ou positiva.

    A prevenção geral negativa busca intimidar as pessoas, através de um

    temor generalizado com a certeza da punição, assim, o objetivo do Estado é que o

    medo de ser punido seja maior que o desejo de delinquir, fazendo com que o sujeitonão cometa o delito (SOUZA, 2010).

    A prevenção geral positiva, busca prevenir os delitos através da punição

    do delinqüente, mas de forma equilibrada, diferente do que prevê a prevenção geral

    negativa (SOUZA, 2010).

    A prevenção especial, diferentemente da geral, objetiva prevenir o

    cometimento de outro crime por um egresso do sistema penal, “dirige-se

    exclusivamente ao delinquente em particular, objetivando que este não volte adelinquir” (BITENCOURT, 1993, p. 121), também podendo ser dividida entre

    negativa e positiva.

    O projeto disciplinar encontra-se quase sempre articulado, na literaturacorrecionalista, segundo ambas as finalidades da prevenção especial, valedizer, aquela  positiva  da reeducação do réu e aquela negativa  da suaeliminação ou neutralização, as quais, frise-se, não se excluem entre si,mas concorrem, cumulativamente, para definição do objetivo da penaenquanto fim diversificado e dependente da personalidade, corrigível ou

    5  “Os imperativo encontram sua expressão no ‘dever-ser’”. “Os imperativos, sejam categóricos ouhipotéticos, indicam aquilo que resulte bom fazer ou omitir, não obstante se diga ‘que nem sempre sefaz algo só porque se representa bom fazê-lo” (CAMARGO, 2008, p.24). 

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    incorrigível, dos condenados. Esta duplicidade do fim, positiva e negativa, écomum a todas as três orientações nas quais é possível distinguir com basenas suas motivações filosóficas e políticas, as diversas teorias da prevençãoespecial, ou seja, desde as doutrinas moralistas de emenda  àquelasnaturalistas da defesa social , bem como àquelas teleológicas da

    diferenciação da pena (FERRAJOLI, 2010, p. 246).

    A prevenção especial negativa busca a neutralização do delinqüente,

    “corrigir ao incorrigível, intimidar ao que for intimidável e fazer inofensivos àqueles

    que não são corrigíveis nem intimidáveis” (ROXIN apud SOUZA, 2010), para que

    deixem de ser ameaças a sociedade (SOUZA, 2010).

    A prevenção especial positiva busca a reeducação dos delinqüentes

    corrigíveis e intimidáveis, com o objetivo de que reeducando o delinquente, ele não

    cometerá mais crimes na sociedade (SOUZA, 2010).

    Atualmente, a teoria aplicada é a teoria mista ou unificadora, a qual busca

    condensar principais pontos das teorias retributiva e preventiva, a fim de que a

    certeza de ser punido previna o delito, da mesma forma que cometendo um delito

    será retributivamente punido (SOUZA, 2010).

    Tais teorias buscam justificar e legitimar a aplicação da pena nos limites

    do Estado de Direito, porém seus resultados receberam críticas desfavoráveis, tendo

    em vista que nenhuma das teorias conseguiu legitimar as penas. No entanto é

    possível verificar que no ordenamento jurídico brasileiro,6  apesar da Constituição

    Federal de 1988 silenciar a esse respeito, adotou-se expressamente mais de uma

    teoria em outras leis penais.

    6  “[...] a Lei dos Crimes Hediondos tem como valor preponderante a prevenção geral negativa,enquanto na Lei de Execução Penal prepondera a ressocialização (finalidade preventiva especialpositiva). Por sua vez, a Lei dos juizados Especiais Criminais teria finalidade de reparação do dano(finalidade retributiva).” (NERY, 2005).

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    3. GÊNERO E O PAPEL DA MULHER NO MERCADO DE TRABALHO

    O objetivo desse capítulo é apresentar os direitos e conquistas obtidos

    pelas mulheres através das lutas empreendidas pelos movimentos feministas e

    analisar se estes direitos são efetivamente cumpridos.

    Num primeiro momento, será feito um estudo sobre o surgimento do

    feminismo e a importância destes movimentos para a conquista dos direitos das

    mulheres. Posteriormente, analisar-se-á sobre o ingresso das mulheres no mercado

    de trabalho e quais as consequências, positivas e negativas, dessa conquista,

    examinando os direitos reconhecidos às mulheres, pela CLT. Por fim serãoestudados os tipos de discriminação vividos por elas, frente à sociedade patriarcal7.

    3.1 Gênero e feminismo: aspectos conceituais

    As diferenças biológicas entre homens e mulheres são evidentes, noentanto, para além dessas distinções o processo de desdobramento histórico da

    sociedade ocidental produziu a construção do masculino e feminino,  em torno de

    papéis direcionados à cada sexo. Desde a infância o menino aprende a fazer coisas

    de menino e a menina a fazer coisas de menina, são criados de formas distintas,

    para exercerem funções diferenciadas. De acordo com o que a sociedade acredita

    ser natural  de cada sexo.

    [...] a diferenciação de qualidades físicas e biográficas entre os sexossempre desempenhou um papel importante na divisão de tarefas, fazendocom que determinadas atividades passassem a ser consideradas femininase masculinas (LEITE, 1985, p. 57).

    Essa diferença cultural entre masculino e feminino apesar de ser vista de

    uma mesma forma por sociedades distintas, como o homem representando o público

    e a mulher o privado, também possui peculiaridades de maneira considerável em

    7 O patriarcalismo se refere a uma sociedade onde basicamente quem domina é o “pai” ou o homem,sendo o feminino submisso a esse poder. Desde a Grécia antiga este tipo de organização socialpredomina. 

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    cada cultura, como se pode observar o contraste existente entre o oriente e o

    ocidente, uma região de interior e uma região metropolitana sendo perceptível que

    “[...] é a cultura que molda o temperamento de cada sexo em cada organização

    social, havendo, na maioria das vezes, diferenças no condicionamento dos homens

    e no das mulheres” (FERREIRA, 1996, p. 50).

    Logo pode-se considerar que o papel do homem e da mulher se encontraminseridos num sistema hierárquico de prestigio culturalmente ordenado eque a esfera de atividade social predominantemente associada aos homensengloba a predominantemente feminina. Nesta linha de análise, o sistemade gênero é uma estrutura de prestígio e um catalisador da organizaçãosocial (FERREIRA, 1996, p. 54).

    A categoria gênero foi criada com o intuito de congregar estudos sobre os

    papéis sexuais, incluindo questões relacionais entre os sexos e sua configuração

    social. Ao apresentar uma leitura diferencial sobre as supostas diferenças entre

    homens e mulheres, os estudos de gênero culminaram em se opor ao determinismo

    biológico, o qual pressupõe que sexo biológico é o que pauta as diferenças sociais

    entre homens e mulheres. No entanto, as diferenças sociais existentes entre ambos,

    não são diferenças biológicas, naturais dos sexos, e sim diferenças  construídas

    culturalmente e disseminadas pelas pessoas em sociedade. Neste norte, a palavra

    gênero, é utilizada para evidenciar as diferenças sociais entre homens e mulheres,

    independente do sexo biológico.

    O termo gênero  foi usado inicialmente entre as feministas americanas,

    “[...] que queriam enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções

    baseadas no sexo”. Homens e mulheres eram analisados por um termo recíproco.

    Já que é importante estudar a história dos sexos, sem que se separe o feminino do

    masculino (SCOTT, 1995, p. 72). Posteriormente o termo passou a ser utilizado porfeministas de todo o mundo.

    O feminismo como movimento social da contemporaneidade é datado do

    século XIX, dividindo-se em etapas ou ondas, conforme referenciado pelas

    estudiosas do tema.

    A primeira onda desenvolveu-se no final do século XIX, tendo como foco

    principal as reivindicações políticas, sociais e econômicas, como o direito da mulher

    de votar, ser eleita e receber herança (PEDRO, 2005, p. 80). “Num movimentoexclusivista, dominado por mulheres brancas heterossexuais de classe média”

    (FRASER, 2007, p. 292). 

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    A segunda “onda” do feminismo surgiu depois da Segunda Guerra

    Mundial, seu foco foi o direito da mulher sobre seu próprio corpo, o direito ao prazer,

    enfrentando fortemente o patriarcado existente na época (PEDRO, 2005, p. 80). “[...]

    um movimento maior e mais inclusivo que permitiu integrar as preocupações de

    lésbicas, mulheres negras e/ou pobres e mulheres trabalhadoras” (FRASER, 2007,

    p. 292).

    A luta pela inclusão não se apresenta como alteração das relações de

    gênero, mas como um complemento para o bom andamento da sociedade, sem

    mexer com a posição do homem, as mulheres lutavam para ser incluídas como

    cidadãs (PINTO, 2003, p.14-15).

    No Brasil, o surgimento do feminismo se deu no fim do século XIX. Asmulheres que lutavam por igualdade, na época, em sua maioria vinham de famílias

    com acesso a educação formal e condições econômicas privilegiadas, distantes dos

    padrões comuns e focaram os esforços para lutar contra a cultura patriarcal que

    vigorava. A porta de entrada para a luta da mulher por seus direitos foi, em todo o

    ocidente, os direitos políticos, já que depois de muitos anos, elas conseguiram

    garantir o direito ao voto, que no Brasil ocorreu somente no ano de 1932 (PINTO,

    2003, p.28).Num segundo momento, no Brasil se deu o ‘’feminismo difuso’’ formado

    por mulheres que não se preocupavam apenas com os direitos políticos, buscavam

    outros direitos, em um campo mais vasto, defendiam a educação das mulheres,

    falavam do interesse do homem em afastar a mulher do mundo público e também

    falavam em sexualidade e divórcio (PINTO, 2003, p.14-15).

    O terceiro momento, vivido no Brasil, foi o feminismo de forma anarquista,

    sendo que as feministas “defendem a libertação da mulher de uma forma radical,tendo na maioria das vezes a questão da exploração do trabalho como central”

    (PINTO, 2003, p.14-15). Esse movimento data do início do século XX, longe das

    lutas por direitos políticos e é marcado por:

    [...] um conjunto de manifestações de operários e de intelectuais deesquerda sobre a condição da mulher mostra com muita clareza que, jánaquele momento, a questão de gênero era percebida como um aspectoorganizador de um dos elementos estruturantes das desigualdadespresentes nas relações de trabalho (PINTO, 2003, p.34).

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    As mulheres anarquistas empreenderam a luta pelos direitos das

    mulheres operárias, direitos no trabalho, diferentemente do primeiro movimento

    feminista, que buscava especificamente direitos políticos.

    Conclui-se que houve de fato, se não um movimento feminista na época,

    uma movimentação feminista que se expressou de diferentes formas, com diferentes

    graus de radicalidade e mesmo com diferentes ideologias (PINTO, 2003, p.38).

    Com o tempo, as mulheres ganharam novos papéis na sociedade, tanto

    no meio político, como no trabalho e em outros espaços. No entanto, o patriarcado

    persistia, fazendo com que a mulher, muito lentamente, conquistasse novos direitos.

    Como um exemplo, cita-se o Código Civil brasileiro, de 1916, o qual

    considerava as mulheres casadas relativamente incapazes, determinando que elasprecisavam da autorização dos maridos para atos comuns da vida civil, tais como

    trabalhar, viajar. As mulheres somente poderiam assumir a autoridade masculina

    contida no  pátrio poder   na ausência do homem, como dispunham os artigos 186,

    242, 380, 385, 393, entre outros, do Código Civil de 1916. Apenas em 1962 foi

    aprovado o Estatuto da Mulher Casada, a Lei Ordinária n° 4.121/62, que concedeu

    às mulheres a mesma autoridade do pátrio poder masculino, propiciando que elas

    conquistassem um patamar de igualdade, o que resultou no homem e na mulhercompartilhando os mesmos direitos e obrigações um para com o outro (SILVA,

    2008).

    Como afirma Leila Barsted, 1999:

    Este estatuto amenizou as discriminações, alterando, por exemplo, aredação do citado artigo 233 do código civil (que estabelecia o marido comoo chefe da família com direito de representa-la legalmente), que passou ater a seguinte redação: ‘O marido é o chefe da sociedade conjugal, função

    que exerce com a colaboração da mulher no interesse comum do casal edos filhos’. A partir de 1964, marido e mulher passaram a ter os mesmosimpedimentos legais, necessitando do consentimento mútuo para, porexemplo, dar fiança, alienar imóveis, oferecer bens em hipoteca, dentreoutros (apud PINTO, 2003, p. 47).

    Assim é possível afirmar que foi imprescindível a existência de

    movimentos feministas para a mulher conquistar a igualdade social. No Brasil, os

    primeiros grupos feministas surgiram em 1972 ‘’eram grupos de reflexão, informais

    que reuniam mulheres que se conheciam anteriormente e tinham um caráter

    bastante privado. As mulheres uniam-se por amizade, afinidades intelectuais e até

    políticas” (PINTO, 2003, p. 49).

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    Durante muito tempo o movimento feminista no Brasil ficou restrito a um

    número muito específico e fechado de mulheres, uma atividade privada. Em 1975,

    houve um movimento inaugural do feminismo no Brasil, o ano ficou marcado pela

    decisão da ONU em considerar o ano como internacional da mulher, criando um

    novo status para a questão ‘’mulher’’. O movimento teve um importante papel na

    busca pela sexualidade, corpo, aborto, contracepção (PINTO, 2003, p. 56).

    Durante muitos anos o movimento feminista lutou pelos direitos das

    mulheres conquistando inclusive, em 1985, junto ao Ministério da Justiça, a criação

    do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, apoiado pelo então presidente da

    república José Sarney. O Conselho se ocupou de assuntos diversos, relativos aos

    direitos das mulheres, como a luta por creches, o direito reprodutivo e até sexual.Mas, sua maior conquista foram as contribuições para o texto da Constituição

    Federal de 1988, como o reconhecimento da igualdade entre homem e mulher

    (PINTO, 2003, p. 72).

    O feminismo não é, entre nós, uma ridícula cópia de coisas importadas,reformistas: é um movimento libertador que olha atento para a estruturasócia, sem estimular ódios, mas cansado do chamado ‘machismo’, que,repetimos, não se refere a um comportamento humano generalizado

    (CARDOSO, 1980, p. 9).

    Num sentido mais amplo, afirma-se que o feminismo é um movimento

    político, que questiona as relações de poder, a opressão e a exploração que

    determinadas pessoas sofrem por outras. É contrário ao pensamento patriarcal e

    neste sentido, propõe uma transformação social, econômica, política e ideológica da

    sociedade (TELES, 1993, p. 10).

    Nos dias de hoje, o feminismo não é tão forte como nas décadas de 1970

    e 1980, mas isso não quer dizer o fim das demandas do movimento, já que de outra

    forma é presente na sociedade atual e mesmo havendo uma dissociação entre o

    pensamento feminista e o movimento, houve uma profissionalização muito grande

    dos movimentos por meio da criação das ONGs8 (PINTO, 2003, p. 91).

    Na sociedade atual, há o feminismo difuso, que ‘’não tem militantes nem

    organizações e muitas vezes é defendido por homens e mulheres que não se

    identificam como feministas” (PINTO, 2003, p. 93).

    8 Organizações não governamentais.

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    Foi através do movimento feminista que a mulher conquistou a grande

    maioria de seus direitos. Hoje, de certa forma, por já ter adquirido independência e

    em algumas situações a igualdade, o feminismo não é tão presente como

    antigamente. No entanto, é inegável que as mulheres num geral, buscam a cada dia

    seus direitos, sem a necessidade de uma militância presente. A sociedade patriarcal

    dificulta a tão almejada igualdade, porém, a busca por direitos iguais persistirá sem

    dúvidas.

    3.2 A inserção da mulher no mercado de trabalho

    A inserção da mulher no mercado de trabalho se deu, em maior grau, com

    as 1ª e 2ª Guerras Mundiais (1914-1918 e 1959-1945, respectivamente), quando os

    homens foram chamados para a guerra e a mulher precisou assumir os negócios da

    família, para o seu próprio sustento e de sua prole.

    Quando cessou a guerra, muitos homens morreram, outros tantos

    voltaram incapacitados para o trabalho, fato que fez com que a mulher passasse aintegrar o trabalho assalariado na esfera pública definitivamente, deixando sua casa

    e os filhos para trabalhar fora do ambiente doméstico (PROBST, 2007, p.02).

    Com a consolidação do sistema capitalista o consumo e a tecnologia

    passaram a fazer parte da vida das pessoas, a busca por conforto, bens, móveis

    mais modernos, mudaram o conceito de economia e a deterioração dos salários, a

    necessidade econômica obrigou a mulher a participar do mercado de trabalho a fim

    de complementar o orçamento familiar.

    Sobretudo nas camadas mais pobres da população, mas também nascamadas médias inferiores, nas quais se fizeram sentir mais violentamenteos efeitos desse processo de empobrecimento, tornou-se cada vez maisnecessária a participação das mulheres em atividades remuneradas,visando a complementação do orçamento doméstico (CARDOSO, 1980, p.59).

    Foi nesse quadro, de industrialização e urbanização, que a mulher

    encontrou um espaço definitivo no mercado de trabalho.Noutro norte:

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    [...] profundas transformações nos padrões de comportamento e nos valoresrelativos ao papel social da mulher, intensificadas pelo impacto dosmovimentos feministas e pela presença feminina cada vez mais atuante nosespaços públicos, facilitam a oferta de trabalhadoras. A queda dafecundidade reduz o número de filhos por mulher, sobretudo nas cidades e

    nas regiões mais desenvolvidas do país, liberando-a para o trabalho. Aexpansão da escolaridade e o acesso das mulheres às universidadescontribuem para este processo de transformação. A consolidação de tantasmudanças nos padrões de comportamento é um dos fatores que explicariama persistência da atividade feminina na década de 80, que, ao contrário daanterior, teve como marca registrada a crise econômica, a inflação e odesemprego (BRUSCHINI, 1994, p. 180).

    Mesmo com inúmeras dificuldades, as mulheres souberam buscar seus

    direitos e de alguma forma ser reconhecidas, porém o tipo de trabalho, com a

    mesma jornada, função e mesma formação educacional e profissional, comparadaao masculino, foi encarado por muito tempo como complementar ao dos homens,

    pois na maioria das vezes as mulheres trabalhavam em funções de baixa

    qualificação e com baixa remuneração, exercendo cargos sem prestígio algum. “A

     justificativa desse ato estava centrada no fato de o homem trabalhar e sustentar a

    mulher. Desse modo, não havia necessidade de a mulher ganhar um salário

    equivalente ou superior ao do homem“ (PROBST, 2007, p. 02).

    Fato que marcou a luta das mulheres por melhores condições de trabalho

    foi o que ocorreu na Indústria Têxtil Cotton, em Nova Iorque, em 08 de março de

    1857. As operárias fizeram uma greve, reivindicando seus direitos, sua indignação

    pelos baixos salários, pelas jornadas extenuantes e pediram melhores condições de

    vida. No entanto, foram fortemente reprimidas e muitas mulheres morreram

    queimadas pelo incêndio provocado na fábrica, com o objetivo de afastar as

    grevistas. Porém, somente no ano de 1910, durante uma conferência na Dinamarca,

    ficou decidido que o dia 8 de março passaria a ser o "Dia Internacional da Mulher".

    Nesse efeito, com o trabalho fora de casa, a mulher era duplamente

    explorada, pelo trabalho doméstico e o da fábrica, uma vez que ela não se

    desobrigou das antigas funções, como cuidar da casa e dos filhos.

    Desta forma, muitas mulheres são levadas a trabalhar apenas meio

    período, buscando cumprir seu papel de mãe-esposa-trabalhadora, outras preferem

    interromper esporadicamente sua vida profissional, e, ainda, por diversos motivos,

    algumas mulheres preferem cumprir uma jornada integral de trabalho, assumindo a

    chamada dupla jornada, precisando ser literalmente malabaristas, para conciliar

    suas funções.

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    Se por um lado, as mulheres eram encorajadas a assumir os trabalhos quelhe eram oferecidos, por outro lado eram ‘bombardeadas’ com mensagenscontraditórias, que acentuavam que o seu verdadeiro lugar era em casa atratar da família. O discurso típico dos anos 50, que referia os malefíciospsicológicos que uma mulher casada e com filhos a trabalhar fora de casa,

    poderia provocar nos seus filhos, constituiu uma mensagem dedesencorajamento, provocando sentimentos de culpa e ansiedade para asmulheres que assumiam múltiplos papéis (NOGUEIRA, 2001, p. 136).

    Mesmo com os planos de ser mãe e a vontade de encontrar um

    companheiro ou companheira para constituir família, as mulheres da atualidade

    almejam novos ideais.

    Ao serem reconhecidas como sujeitas de direitos pela sociedade, as

    mulheres começaram a adiar estas ambições tradicionais do padrão feminino, seus

    sonhos e as cobranças sociais e passam a olhar para si mesmas com outros olhos,

    a terem novas aspirações, como se formar em uma universidade, seguir uma

    carreira profissional para ser valorizada por seu trabalho, mesmo que isso lhe custe

     jornadas duplas ou triplas de serviço.

    É neste sentido que um maior número de mulheres em cargos altos e com

    maior qualificação se insere no mercado de trabalho de forma mais igualitária a cada

    dia. Nesse sentido, “[...] a necessidade e as possibilidades que a mulher tem de

    trabalhar fora de casa dependem tanto de fatores econômicos quanto da posição

    que ela ocupa na unidade familiar” (AQUINO, MENEZES, MARINHO, 1995, p. 181).

    Desta forma, é imprescindível que haja uma colaboração em casa, por seu parceiro,

    nas atividades domésticas ou ainda com os filhos. “Sem a reeducação dos homens

    de forma a funcionarem como parceiros iguais em situações afectivas e familiares ou

    o suporte constante de outro adulto, o stress torna-se imenso e prejudicial para

    muitas mulheres” (NOGUEIRA, 2001, p. 144).

    Acreditava-se que a independência financeira conquistada pelo trabalho,

    traria às mulheres autonomia. No entanto, o que se vê nas mulheres que

    conquistaram independência é sobrecarga de atividades, uma vez que a

    independência foi conquistada, mas não houve mudanças nos ambientes privados,

    nem se mudou a velha crença de que a mulher é responsável pela criação dos filhos

    (PEREIRA, 2007, p. 44).

    A busca por equilíbrio entre o trabalho doméstico e o trabalho externo

    perpetua. No entanto, a mulher se sente culpada por não dedicar um maior tempo afamília, o que faz com que ela limite seu espaço profissional, consentindo com uma

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    renda inferior, num trabalho de menor prestigio e menos promissor, mas que lhe

    propicie condições de conciliar os papéis de mãe-esposa com o de trabalhadora.

    3.3 As peculiaridades do trabalho feminino na contemporaneidade

    Após o ingresso da mulher no mercado de trabalho, é possível verificar

    que em muitos casos preferia-se ofertar as vagas de emprego para as mulheres,

    devido aos baixos salários por elas recebidos, ao invés de contratar a mão de obra

    masculina. Isso era tolerado socialmente, uma vez que o trabalho feminino nãopossuía benefícios e o Estado se via indiferente com a situação (NASCIMENTO,

    2003, p. 857). Nesse sentido, os direitos trabalhistas e previdenciários não

    alcançavam as mulheres, pois não havia:

    [...] nenhuma limitação da jornada de trabalho, idênticas exigências dosempregadores quanto às mulheres e homens, indistintamente,insensibilidade diante da maternidade e dos problemas que pode acarretarà mulher, quer quanto às condições pessoais, quer quanto às

    responsabilidades de amamentação e cuidados dos filhos em idade deamamentação, etc (NASCIMENTO, 2003, p. 857).

    Com o passar do tempo, se criaram normas para beneficiar as mulheres

    no âmbito trabalhista, o ordenamento jurídico da época buscava proteger o trabalho

    feminino, assim, acabou gerando uma discriminação, já que em muitos casos era

    mais vantajoso se contratar a mão de obra masculina do que a feminina, pois os

    homens não possuíam o que era então considerado como “regalias”. Entretanto,

    [...] o trabalho do homem também era sobreexplorado e nem por isso sepensou em providências semelhantes; o que comprova que o interesse de“proteger” não era mais que recordar o verdadeiro lugar da mulher nasociedade de então (em casa, cuidando da família). Em segundo lugarporque, em não havendo normas “protetivas”, os salários inferiores pagosàs mulheres poderiam contribuir para o desemprego da força de trabalhomasculina, já que a opção pelo trabalho da mulher seria mais econômicapara o capital. Essa “inversão social” punha em risco a organizaçãohierárquica da família e, conseqüentemente, a autoridade do marido(LOPES, 2006, p. 410).

    Diante disto, foram criados alguns fundamentos para se garantir

    benefícios ao trabalho feminino fora de casa, os quais serão a seguir examinados.

  • 8/20/2019 Beatriz Cechinel

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    Os fundamentos fisiológicos, que expressam a fragilidade da mulher, sustentam que

    ela não possui a mesma força física que o homem, devendo assim ocupar um cargo

    compatível com suas características físicas. O fundamento social, que garante as

    mulheres ter seu trabalho protegido, já que nem todas as atividades industriais ou

    comerciais são adequadas para as mulheres, uma vez que possui responsabilidades

    ligadas aos filhos, como o parto, a amamentação, o acompanhamento escolar, e

    ainda, as atividades domésticas, que não devem ser prejudicadas pelo trabalho fora

    de casa (NASCIMENTO, 2003, p. 858).

    Esse direito do trabalho “protetor” aos poucos deixou de existir, abrindo

    espaço para o direito “promocional”, isso ocorre quando o Estado deixa de

    considerar as mulheres seres inferiores, incapazes, abrindo mão das legislações queprotegem o trabalho das mulheres e passando a tratar de forma mais igualitária o

    trabalho masculino e o feminino. Eliminando determinadas proibições, o Estado dá

    livre acesso as mulheres ao mercado de trabalho (NASCIMENTO, 2003, p. 859).

    E neste efeito, a Constituição Federal brasileira, de 1988, trouxe uma

    nova concepção de igualdade entre homem e mulher. A redação do art. 5º, inc. I

    prevê que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e

    que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos daConstituição” (BRASIL, 2011-b). E, ainda, acrescenta em seu art. 7º, inc. XXX que é

    proibida a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão

    por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

    Assim também discorre a CLT, em seu art. 5º: “A todo trabalho de igual

    valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo” (BRASIL, 2011-a) e nos

    artigos 372 ao 377 garante às mulheres a proibição de se publicar vagas de

    emprego priorizando determinado sexo, i