A Criacao Do Diagnostico Na Psiquiatria Contemporanea

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 A CRIAÇÃO DE DIAGNÓSTICOS NA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

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texto importante sobre a discussão do diagnóstico psiquiatrico

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  • A CRIAO DE DIAGNSTICOS NA

    PSIQUIATRIA CONTEMPORNEA

  • Conselho Editorial

    Bertha K. Becker (in memoriam)

    Candido Mendes

    Cristovam Buarque

    Ignacy Sachs

    Jurandir Freire Costa

    Ladislau Dowbor

    Pierre Salama

  • A CRIAO DE DIAGNSTICOS NA

    PSIQUIATRIA CONTEMPORNEA

    Rafaela Zorzanelli Benilton Bezerra JrJurandir Freire Costa (orgs.)

  • Todos os direitos reservados. A reproduo no autorizada desta publicao, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violao da Lei n 9.610/98.

    Copyright dos autoresDireitos cedidos para esta edio

    Editora Garamond Ltda.Rua Candido de Oliveira, 43/Sala 101 - Rio Comprido

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    RevisoAlberto Almeida

    Editorao EletrnicaEditora Garamond / Luiz Oliveira

    CapaEstdio Garamond

    Sobre quadro de Miguel Hernndez B., Perfil de la musa ii, 2011. Esfuminho e pincel seco sobre tela 100 x 70 cm. foto Rodrigo Rub

    C946A criao de diagnsticos na psiquiatria contempornea / organizao Rafaela Zorzanelli , Benilton Bezerra Jr, Jurandir Freire Costa. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Garamond, 2014.

    276 p. 21 cm.Inclui bibliografiaISBN 9788576173908

    1. Psiquiatria. 2. Doenas mentais. I. Zorzanelli, Rafaela. II. Bezerra Jr, Benilton. III. Costa, Jurandir Freire.14-17842 CDD: 616.89 CDU: 616.89

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

  • SUMRIO

    Nota dos organizadores ...................................................................................7

    Introduo A psiquiatria contempornea e seus desafios ................................9

    Benilton Bezerra Jr.

    Parte 1: asPectos da histria das nosologias Psiquitricas em curso no sculo XX

    O lugar do diagnstico na clnica psiquitrica ................................................35Cludio E. M. Banzato e Mrio E. C. Pereira

    Sobre os DSMs como objetos culturais .........................................................55Rafaela Zorzanelli

    A Neurose como Encruzilhada Narrativa: Psicopatologia Psicanaltica e Diagnstica Psiquitrica ..................................69Christian Ingo Lenz Dunker

    Parte 2: os diagnsticos e seus usos

    O diagnstico da esquizofrenia no contexto dos servios de sade mental de base comunitria................................................................107Octavio Domont de Serpa Jr., Erotildes Maria Leal Nuria Malajovich Muoz, Catarina Magalhes Dahl

    Transtorno de ansiedade social no DSM-5: o paradoxo da ansiedade sem sujeito ............................................................131Rafaela Zorzanelli e JulioVerztman

    Transtornos Psicticos: A Propsito da Classificao Espectral do DSM-5 ...............................................................151Nelson Goldenstein

    As fronteiras disputadas entre normalidade, diferena, patologia ...................171Jurandir Freire Costa

    Parte 3: a Psiquiatria no conteXto do sus

    Classificaes em Sade Mental na Ateno Primria: mudam as doenas ou mudam os doentes? ..................................................191

  • Sandra Fortes, Daniel Almeida GonalvesEmilene Reisdorfer, Ricardo Almeida PradoJair de Jesus Mari, Lus Fernando Tfoli

    Do DSM-III ao DSM-5: Traando o Percurso Mdico-Industrial da Psiquiatria de Mercado ...........................................................................211Fernando Ramos

    Parte 4: infleXes nosolgicas sobre o camPo da infncia

    Riscos e limites do uso do diagnstico psiquitrico na infncia ....................233Ana Maria Rocha, Ana Elizabeth Cavalcanti

    O DSM entre a Novilngua e a Lingua Tertii Imperii ......................................253Rossano Cabral Lima

    Sobre os autores ..........................................................................................271

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    NOTA DOS ORGANIZADORES

    Esse livro rene as conferncias e mesas-redondas do even-to Debates em torno do DSM-5: Transtorno mental, psiquiatria e sociedade. O evento, organizado pelo grupo Pepas do Instituto de Medicina Social, se realizou em 30 de novembro de 2012 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A proposta de desdobr-lo em um livro deveu-se importncia acadmica e inte-lectual dos convidados reconhecidos professores de universidades brasileiras e ao esforo conjunto de trs instituies: a Escola de Sade Mental do Rio de Janeiro, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB), e o grupo Pepas/IMS.

    Naquela ocasio, o pblico era formado por pessoas com diferen-tes inseres no campo da sade mental: gestores de sade, alunos de ps-graduao e graduao, professores de ensino superior ligados ao campo da sade mental, profissionais de sade mental provenientes de dentro e de fora do Estado do Rio de Janeiro, usurios de servios de sade mental alm dos participantes on line, que puderam assis-tir ao encontro graas ao servio do Telessade/UERJ. O pblico participante forma o grupo de leitores potenciais desta coletnea de artigos.

    O motivo principal do evento de 2012 foi a futura publicao, em maio de 2013, da quinta reviso do DSM, o Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders DSM). De acordo com o site da Associao Americana de Psiquiatria, rgo responsvel pela organizao e pu-blicao dos manuais, a quinta edio do DSM marcaria a nova grade diagnstica em Psiquiatria e seria um dos principais acontecimentos no campo da sade mental contempornea. Em relao s edies anteriores, importante notar que essa foi a primeira vez que a re-

  • 8viso de uma classificao mdica foi aberta ao debate on line, e o primeiro esboo, disponibilizado em 2010, gerou inmeros debates entre leigos e especialistas.

    Tendo esse fato como disparador de inmeras questes relativas psiquiatria, psicanlise, psicologia, os temas dos artigos apre-sentados tm um eixo comum, qual seja, a discusso do impacto da criao de diagnsticos em psiquiatria. Acreditamos que o impacto repercute na formao de novas geraes de psiquiatras, na atuao dos profissionais dos dispositivos pblicos de ateno sade mental e, sobretudo, na relao entre esse saber especializado e o saber leigo. O ltimo tpico importante em virtude da grande difuso de as-suntos relacionados sade mental em revistas populares, matrias de televiso ou impressas, que influi diretamente nas concepes sobre as novas doenas e na percepo social dos limites entre normal e patolgico.

    O livro inclui as conferncias realizadas no evento e outros textos de participantes convidados. O intuito ampliar as abordagens poss-veis do tema tratado os rumos da psiquiatria contempornea tan-to no modus operandi dos profissionais da rea quanto na forma como os homens comuns passam a redescrever sentimentos e emoes de desconforto e infelicidade luz de categorias mdicas.

    Rafaela Zorzanelli Benilton Bezerra Jr.

    Jurandir Freire Costa

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    Introduo

    A PSIQUIATRIA CONTEMPORNEA E SEUS DESAFIOS

    Benilton Bezerra Jr.

    Em um artigo no qual analisa o estatuto do diagnstico psiqui-trico, Thomas Szasz afirma que a psiquiatria , entre outras coisas, a negao institucionalizada da natureza trgica da vida (SZASZ 1991: 1574). A frase condensa em poucas palavras o fundamental de sua anlise das problemticas relaes entre psiquiatria e sociedade. De sua perspectiva individualista libertria, Szasz via a psiquiatria como um dispositivo social de controle e domesticao da existncia social, que reifica experincias de angstia e dor subjetiva ao nome--las sob a forma de diagnsticos mdicos transformando-as assim em doenas da mente espera de vigilncia e interveno por parte de tcnicos.

    Desse ponto de vista, as intenes teraputicas da psiquiatria vi-sariam em ltima anlise a resguardar os indivduos de um encontro trgico, mas potente, com sua condio essencial: a de seres ontologi-camente abertos que, pela prpria conscincia de sua finitude, convi-vem inevitavelmente com frustrao, fracasso, sofrimento, dilacerao. Em contrapartida, essa mesma condio humana ofereceria, a quem se dispuser a buscar, algo impossvel a outros seres: o exerccio da liberdade. Ao nomear a angstia de existir por meio de categorias pa-tolgicas, a psiquiatria transforma uma condio ontolgica essencial num espao a ser regulado por discursos e intervenes de roupagem tcnica, cuja vocao moral normatizadora mal se esconderia por trs das reivindicaes de objetividade e neutralidade cientfica.

    A crtica de Szasz psiquiatria baseava-se numa frontal recusa s pretenses de cientificidade dos diagnsticos da disciplina. Para ele,

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    doena mental era nada mais que uma metfora, um mito, criado para tornar mais palatveis certos problemas da existncia individual e justificar controle e interveno sobre experincias e comportamen-tos desviantes ou socialmente indesejados numa determinada poca. Segundo Szasz, s se deveria usar o termo doena para eventos ou estados efetivamente associados a alteraes antomo-fisiolgicas cientificamente comprovadas, e no a problemas que dizem respeito esfera do sentido e da existncia. Na linguagem de hoje, somente na presena de marcadores biolgicos precisos se poderia legitima-mente falar em doena. Como isto no se aplicava s perturbaes do esprito, os diagnsticos psiquitricos lhe pareciam despidos de res-peitabilidade cientfica, sendo meros instrumentos de controle social por meio de julgamentos normativos discutveis: Se voc falar com Deus, voc est rezando; se Deus falar com voc, voc tem esquizo-frenia. Se os mortos falarem com voc, voc um esprita; se voc falar com os mortos, voc um esquizofrnico. (SZSAZ, 1973: 101).

    Examinando as posies de Szasz, curioso notar como ele se movimenta de forma singular, usando argumentos reducionistas e cientificamente centrados para defender uma crtica, de colorido existencial e humanista, ao mandato social da psiquiatria. No por acaso ele colocado ao lado de outros autores associados ao movi-mento antipsiquitrico, que insistia numa anlise psico-poltico-social do sofrimento mental e que, junto com a orientao psicodinmica do movimento psicanaltico, compunha nos anos 1960-1970 uma linha de resistncia s concepes biolgico-centradas da psicopato-logia que nessa poca comeavam a ganhar terreno e comeavam a construir as bases de sua futura expanso.

    No cenrio contemporneo, a crtica libertria de Szasz psi-quiatria pode parecer anacrnica. Em parte porque a dicotomia en-tre biolgico e existencial que dava lastro s suas argumentaes vem sendo desconstruda e redescrita pelos estudos em torno da plas-ticidade, da epigentica, do imageamento cerebral; em parte porque, apesar das promessas no cumpridas de demonstrao da natureza

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    estritamente biolgica dos transtornos mentais, a pretenso de an-corar a psiquiatria no campo slido das teorias e prticas cientficas tem ampliado seu raio de influncia, colocando em segundo plano verses mais sujeito-centradas da psiquiatria. Apesar disso, a histria do campo mostra que a tenso entre perspectivas que poderamos chamar grosso modo de cientficas (ou biolgicas) e humanistas (ou psicossociais), longe de representar um momento de imaturidade da disciplina , na verdade, um trao constitutivo desse campo singular que a psiquiatria. Ainda hoje essa tenso se manifesta no confron-to entre perspectivas que sublinham a complexidade da experincia humana de sofrimento (que pode ser descrita e compreendida de mltiplas formas, porm jamais explicada exaustivamente) e abor-dagens comprometidas com a biologia e as cincias do comporta-mento (que visam a categorizar, explicar e predizer empiricamente o comportamento humano) (BRENDEL, 2006: 9). A psiquiatria, mais que qualquer outro setor da medicina, atravessada pela tenso, ao mesmo tempo frtil e angustiante, entre duas vocaes, a do conhe-cimento e a do cuidado. Ela oscila inevitavelmente entre explicaes determinsticas da experincia e interrogao fundada na presuno de autonomia do sujeito. Esta dupla marca faz dela um empreendi-mento ao mesmo tempo cientifico e moral.

    De todo modo, no necessrio estar de acordo com crtica de Szasz para perceber que sua frase contm uma verdade indiscutvel: na origem da psiquiatria est a necessidade humana de tornar inteli-gvel e tolervel a complexidade e a ausncia fundamental de sentido que caracteriza a existncia. do encontro com a natureza trgica da vida, e dos afetos que esse encontro suscita, que nasce a neces-sidade de nomear, descrever, classificar, distinguir normativamente e tratar condies existenciais que nos causam dor e angstia. Com a conciso aguda que o caracteriza, Canguilhem, ao examinar como se formam nossas concepes de normalidade e patologia, resume essa tese geral afirmando O pathos precede o logos (CANGUILHEM, 2011).