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POLÍTICAS DE TERRA, POBREZA E DESENVOLVIMENTO RURAL: O CASO DO BRASIL

Edson Teófilo Danilo P. Garcia

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Brasília, abril de 2002

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ÍNDICE I - Antecedentes históricos_______________________________________________ 5

II - A experiência brasileira recente _______________________________________ 8

a) Uma avaliação dos impactos regionais dos assentamentos _____________ 10 A redefinição do cenário social e da demanda por políticas públicas _________ 11 A remodelagem do sistema agrário e a dinamização da vida econômica_______ 13 A criação de empregos e a melhoria da renda ___________________________ 15 Os assentamentos como fator de desenvolvimento _______________________ 18

b) A reforma agraria negociada: experiências recentes no Brasil _________ 18 Os resultados preliminares do Projeto Cédula da Terra ____________________ 20 O impacto do Projeto no mercado de terras _____________________________ 21

c) A Reforma Agrária e a formação do capital social ___________________ 22 Contradição entre coordenação e base nas organizações sociais _____________ 24

III - Da reforma agrária ao desenvolvimento rural: uma evolução necessária ____ 26

a) O foco territorial do Desenvolvimento Rural________________________ 27

b) O Brasil Rural: redescobrindo o território _________________________ 28

c) Recomendações estratégicas para a política de terras_________________ 29 i) Atualização do marco jurídico______________________________________ 30 ii)Modernização de cadastros e tributação ______________________________ 31 iii)Instrumentos adequados e combinados às distintas situações _____________ 31

BIBLIOGRAFIA _____________________________________________________ 35

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ÍNDICE DE TABELAS Tabela 1 - Metas atingidas pelo programa de reforma agrária do governo

(1995-2001) ................................................................................................ 8 Tabela 2 - Brasil. Indicadores médios do processo de avaliação da

desapropriação de terras para reforma agrária implementado pelo INCRA.................................................................................................................. 10

Tabela 3: Participação da área dos assentamentos na área total dos municípios pesquisados, segundo estrato principal de área. ...................................... 14

Tabela 4: Composição do rendimento médio bruto familiar anual total (*) – 1999/2000 ................................................................................................. 17

Tabela 5: Níveis de Renda Média Bruta Familiar Total, segundo faixas de Salário Mínimo, 1999/2000 (em %)(*) ....................................................... 17

Tabela 6: Preços da Terra de lavouras da FGV, custo por hectare Cédula da Terra e custo de desapropriação do INCRA ............................................. 21

Tabela 7:- O Brasil urbano “ampliado” de 1991 a 2000 ................................... 28 Tabela 8: O Brasil rural de 1991 a 2000........................................................... 29

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POLÍTICAS DE TERRA, POBREZA E DESENVOLVIMENTO RURAL: O CASO DO BRASIL

I - Antecedentes históricos

Uma das características mais marcantes do desenvolvimento brasileiro tem sido a capacidade de seguir adiante o processo de acumulação, contornando as evidências de que o crescimento econômico (e sua sustentabilidade) tem intima ligação com a distribuição de ativos, entre os quais a terra. A questão agrária é um dos exemplos mais emblemáticos da natureza conservadora do processo de desenvolvimento brasileiro. Ao longo do tempo a questão agrária tem sido apresentada em diversas formas e em intensidade variada; mesmo que seu significado nem sempre seja claro, ninguém ousa declará-la superada.

Apesar das profundas transformações sociais e econômicas do país, a raiz da questão continua sendo a vigência de um padrão de propriedade de terras arcaico, que mantém e sustenta um dos mais iníquos e ineficientes sistemas de distribuição e utilização de terras conhecidos atualmente. Todavia, é certo que a questão agrária hoje não é a mesma do fim do século ou dos anos 50.

De um lado, o crescimento da economia brasileira nas últimas décadas tratou de questionar a idéia de que a estrutura agrária colocava-se como um obstáculo ao desenvolvimento econômico do país; a ampliação do mercado interno1 e a globalização das economias ampliaram ainda mais o espaço para a expansão do padrão de acumulação excludente.

A própria questão da segurança alimentar — outro dos argumentos históricos em favor da reforma agrária — é redefinida a partir dos processos de integração econômica e globalização: a identidade entre segurança alimentar e auto-suficiência que orientava algumas políticas agrícolas no passado é substituída pelo conceito de self reliance, que enfatiza a capacidade de obter, e não de produzir, os alimentos.

De outro lado, as estruturas agrárias modernizaram-se: o agribusiness é hoje responsável por parcela significativa do produto agropecuário do país; parte do latifúndio adquiriu um caráter empresarial e os níveis de produtividade aumentaram de forma considerável; as relações “atrasadas” foram substituídas por relações “modernas”, embora ainda distantes dos padrões adotados pelos países desenvolvidos; o país transformou-se em produtor e exportador de produtos agro-industriais não tradicionais. Apesar dos efeitos negativos da crise dos anos 80, parte do setor agropecuário modernizou-se e pode ser hoje considerado como eficiente e competitivo.

No entanto, o sistema de propriedade da terra pouco se modificou — foi ao contrário reforçado com o fechamento das fronteiras, as quais funcionavam como válvulas de escape para pressões fundiárias, e pela conhecido processo de concentração da riqueza durante períodos de instabilidade monetária e crise de acumulação. Neste contexto, as transformações produtivas, longe de aliviar o problema agrário,

1 O modelo de desenvolvimento brasileiro, especialmente a partir dos anos 70, sustentou-se na expansão do mercado

interno de bens de consumo durável, identificados à cesta de consumo da classe média e alta, e nos investimentos de base. Tal modelo tem sido caracterizado como excludente , já que, apesar da redução relativa da pobreza, marginalizou parte significativa da população dos benefícios do progresso econômico.

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contribuíram para sua manutenção e até seu agravamento.

A modernização conservadora do latifúndio reforçou a concentração da propriedade da terra e o caráter excludente do modelo de desenvolvimento agropecuário; como regra geral as “relações arcaicas” foram substituídas por relações de assalariamento temporário, embora em muitas regiões sem qualquer proteção legal. Em algumas áreas subsistem ainda hoje, de forma disfarçada, regimes de trabalho compulsório, utilização de crianças e condições de trabalho totalmente condenáveis. A produção de subsistência foi em grande medida eliminada e os produtores expulsos para os centros urbanos; parcela significativa dos atuais minifúndios são hoje mais “lugar de moradia” que unidades de produção; os excedentes populacionais são rapidamente “escoados” para os grandes e médios centros urbanos, onde são rapidamente absorvidos em condições de vida miseráveis.

Mais recentemente, a magnitude e visibilidade dos problemas agrários foi amplificada pela prolongada crise que afetou parte da agricultura brasileira desde final dos anos 80, assim como pela cada vez mais evidente falta de alternativas de sobrevivência para a população rural sem terra e sem trabalho. Neste contexto, cresceram os conflitos e a violência no campo, chamando a atenção de toda a sociedade para a necessidade de que finalmente este problema fosse enfrentado de frente.

As diferentes visões sobre a questão agrária no Brasil

No Brasil, durante os anos 60, a questão agrária e particularmente a reforma agrária encontravam-se na ordem do dia, tanto nas discussões político-partidárias quanto nos meios acadêmicos. A alta concentração fundiária, a heterogeneidade do sistema produtivo e das relações de trabalho no campo, com a presença de formas pré-capitalistas como os foreiros, moradores parceiros e agregados, e as baixas condições de vida dos empregados rurais eram os principais componentes que configuravam a questão agrária naquele momento.

Entre os principais intérpretes das origens e das possibilidades de superação da questão agrária brasileira, hoje considerados "clássicos", estão Ignácio Rangel, Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Jr.. Embora estes autores apresentem uma visão particular e específica do problema, os dois primeiros têm uma perspectiva de análise comum. Para eles, a questão agrária configura-se devido às dificuldades que a implementação do sistema capitalista no campo encontra na estrutura arcaica da agricultura, herança de restos feudais da economia colonial. Deste ponto de vista, a solução da questão pressupõe a superação dos obstáculos ao pleno desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. Para Caio Prado Jr. a questão agrária é resultado do processo de desenvolvimento capitalista (Kageyama, 1993, p. 5-16).

Para Ignácio Rangel (1962), a resolução da questão agrária pressupõe fundamentalmente a passagem do complexo rural auto-suficiente para um conjunto de formas superiores de organização da produção mais conectadas com o mercado (empresas capitalistas privadas, cooperativas, pequenas explorações individuais). Como resultado dessa passagem aprofundam-se desequilíbrios e crises, que constituem dois problemas que definem a questão agrária: superprodução e superpopulação. A mão-de-obra excedente no campo e nas periferias urbanas dificilmente será reabsorvida pela economia capitalista. Portanto, a solução proposta pelo autor é tentar recompor a economia natural em pequena escala, com o objetivo de garantir ao menos a

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subsistência dessa população excedente, por meio de pequenos lotes familiares (hortas ou quintas) que não se restringiriam às zonas rurais, devendo beneficiar sobretudo as periferias urbanas (p. 23-27) .

Rangel desaconselha qualquer tentativa de mudança da estrutura agrária por meio da compra de terras com fundos públicos:

Ao contrário, o Estado deve intervir como supridor de terra, dispondo de suas próprias terras ou induzindo o proprietário privado a fazê-lo. No Brasil contemporâneo, o problema da terra é, essencialmente, uma questão de preço – questão econômica e não jurídica. Intervenção do estado como comprador inibira o movimento já iniciado de queda da taxa de valorização da terra, embaraçando a mudança da estrutura (Rangel, 1962, p. 26).

Alberto Passos Guimarães concentra seus argumentos na herança do latifúndio colonial que coloca obstáculos à superação das formas pretéritas de relações de trabalho, assentadas na coerção extra-econômica e nos laços de dependência pessoal. Para ele, a questão agrária emerge fundamentalmente da incompatibilidade entre estrutura agrária arcaica e o desenvolvimento capitalista. Sua proposta de superação passa pela reforma agrária enquanto luta pela eliminação do latifúndio improdutivo e atrasado (Kageyama, 1993, p.7-8).

Para Caio Prado Jr. a questão agrária assim como os problemas agrários são suscitados pelo próprio desenvolvimento do capitalismo, sendo, portanto problemas próprios desse tipo de economia, dentro de cujo marco deverão ser interpretados e enfrentados. Este autor move-se no plano da análise marxista, cujo suporte são as relações de produção e em particular as relações capitalistas de produção, presentes e dominantes na economia agrária brasileira. A questão agrária, para o autor, expressa na miséria material e na falta de amparo legal a que estão submetidas as massas rurais, não são fruto de restos feudais, mas sim do aprofundamento do próprio caráter capitalista do desenvolvimento econômico nacional. A solução da questão circunscreve-se, portanto, num primeiro momento, aos instrumentos e instituições disponíveis nos limites do sistema (limitação do direito de propriedade da terra, legislação trabalhista, salário mínimo, etc.) para num segundo momento converter-se em luta pela superação desse sistema (Kageyama, p.8-11).

É importante salientar que a análise da questão agrária feita por estes autores não se confunde com a concentração fundiária. Embora a propriedade da terra e as formas históricas de sua ocupação tenham papel fundamental na conformação dos problemas agrários no Brasil, a expressão desses problemas se dá no plano da população, seja sob a forma de um excedente estrutural de mão-de-obra (população excedente, de Rangel), formas extorsivas e extra-econômicas de exploração do trabalho (Alberto Passos Guimarães) ou desamparo legal que perpetua a pobreza rural (Caio Prado Jr.).

A análise da questão agrária que toma por base a renda da terra não leva em conta que, em uma economia capitalista, a terra está intimamente ligada à propriedade privada, é uma mercadoria, tem um preço e o acesso a ela está sujeito à dinâmica do mercado. Apesar da terra não ser uma mercadoria, tornou-se uma pela grande transformação operada no século XIX, na qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta a do feudalismo. Esta grande transformação permitiu que as atividades econômicas passassem a ser controladas, reguladas e dirigidas pelos mercados a ordem da produção e distribuição foi confiada ao mecanismo de preços. Neste sentido, a terra passou a ser comprada e vendida num mercado por um preço (Plata, L 2001).

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II - A experiência brasileira recente

No final de 1994, após 30 anos da promulgação do Estatuto da Terra, período que supera uma geração, houve tempo mais que suficiente para realizar amplas transformações sociais, como as ocorridas em outros países. Permanece até essa data uma “questão agrária” não resolvida. Os resultados do programa de reforma agrária até 1994 são inexpressivos frente à dimensão do problema agrário brasileiro em que milhões de famílias sem ou com pouca terra vivem em condições que oscilam entre a pobreza e a miséria. Até 1994, em torno de 300 mil famílias foram beneficiadas pelo governo Federal e pelos órgãos estaduais de terra em projetos de reforma agrária e de colonização, frente a uma demanda social por terra estimada em 4 milhões de famílias.2

A situação agrária após 1994 tornou-se bastante delicada tanto pelas ocupações (e posteriores desapropriações do INCRA) que resultaram na ampliação dos conflitos culminando com um massacre de camponeses em “eldorado de carajás” com 19 mortos. Esses graves fatos, que provocaram uma ampla mobilização nacional, levou o governo Federal a acelarar os processos de desapropriação de terras e assentamentos de trabalhadores rurais sem terras. Mais além, a partir de 1994 apresentaram-se condições políticas favoráveis para realizar modificações importantes para aumentar a eficiência do mercado de terras, graças ao compromisso efetivo do Poder Executivo de intervir nesta realidade, em grande medida resultado da forte pressão social que se consolidou na “Marcha dos Sem-terra” de abril de 1997.

Os conflitos de terras e a indefinição de políticas de terras mais agressivas levaram a importantes movimentos sociais a eleger a ocupação de terras como opção3. Este processo, liderado pelo Movimento dos Sem-terra – MST recebeu apoio social na sua fase inicial. Isso levou o governo federal a anunciar e implantar um processo de redistribuição de terras sem similar na história.

No período de 1995/01 o Governo Federal desapropriou 18.737.000 hectares, beneficiando 584.301 famílias. O custo por família diminuiu de R$ 19.412 para R$ 8.294 respectivamente entre 1995 e 2001, o preço médio por hectare desapropriado também reduziu-se, de R$ 382 para R$ 264 no mesmo período. A partir de 2000 o processo sofreu uma leve inflexão para cima.

Tabela 1 - Metas atingidas pelo programa de reforma agrária do governo (1995-2001)

nº famílias assentadas

Área Total Hectares (1000)

Custo por família (R$)

Preço por Hectare (R$)

1995 42.827 1.313,5 19.412,74 382,67 1996 61.674 4.451,9 16.385,04 343,21 1997 81.944 4.394,5 14.614,59 292,23 1998 101.094 2.540,6 10.116,34 287,49

2 A demanda social por terra no Brasil é estimada em 4 milhões de famílias pelo movimento social. Esse número, inclui

cerca de 2,5 milhões de minifundistas, mais assalariados, parceiros e arrendatários rurais. Provavelmente o número mais aproximado seria de 2 milhões de famílias ( considerando que nem todos os minifundistas e assalariados são demandantes de terras). Até o final de 2002 terão sido beneficiados cerca de 1 milhão se famílias nos últimos 15 anos.

3 No Brasil, a luta pela terra em 1992, segundo a Secretaria Nacional Comissão Pastoral da Terra, apresenta o

seguinte balanço: 185.996 pessoas sofreram as mais variadas formas de violência. As casas de mais de 700 famílias e as propriedades de outras 1.040 foram destruídas e mais de 1.600 foram vítimas de expulsão arbitrária (Cadernos CEAS, nº 148, 1994).

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1999 85.327 1.478,5 8.294,83 264,75 2000 2001

108.986 102.449

3.861,3 1.697,0

9.094,91 9.701,00

256,70

TOTAL 584.301 18.737,30 Fonte. INCRA (2002).Balanço da reforma agrária e da agricultura familiar .

Os dados da Tabela 2 baseiam-se em uma amostra formada por todas as fichas agronômicas de avaliação das desapropriações realizadas pelo INCRA no período compreendido entre 1997 e maio de 1999. Estas informações expressam os seguintes resultados da reforma agrária no governo FHC:

Do total de terra desapropriada apenas 21,1% estavam sendo utilizadas, 54,0% são terras não utilizadas, os outros 24.9% estão formadas por terras de preservação permanente, reserva legal e inapropriadas para a agropecuária, ou seja, apenas 75% das terras desapropriadas podem ser utilizadas para reforma agrária. Na verdade, as terras não utilizadas estavam nessa condição devido à sua baixa qualidade ou porque precisavam de grandes investimentos para poder ser produtivas. Distribuir esse tipo de terras significa criar grandes problemas aos beneficiados ou grandes investimentos, em crédito agrícola, por parte do Estado.

Em média, as terras desapropriadas que apresentam problemas simples de conservação e que são cultiváveis (Tipo I e II) somam 13,66% do total das áreas desapropriáveis; as que apresentam problemas de conservação de média complexidade (Tipo III) são 41,56% e as terras com problemas complexos de conservação, mas ainda cultiváveis (Tipo IV), representam 22,38% do total. As terras impróprias para cultivos intensivos, mas ainda adaptadas para pastagens e/ou reflorestamento e/ou vida silvestre (Tipo V) são 7,28%. Portanto, grande parte dos beneficiários que recebam estas terras necessitarão de investimentos significativos em tecnologia e crédito para transformar essas terras em produtivas. A nota agronômica média das terras desapropriadas, de 0,56, confirma este dado.

O preço pago por hectare de terra nas desapropriações, R$ 215,00, é baixo quando comparado com os preços da terra da Tabela 1. Por outro lado, levando-se em conta que as terras desapropriadas em média são do tipo V, na realidade este valor não resulta tão baixo.

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Tabela 2 - Brasil. Indicadores médios do processo de avaliação da

desapropriação de terras para reforma agrária implementado pelo INCRA

% Número de Processos 847 Período de avaliação 1997-1999 Área Avaliada (ha) 2.284.518 Uso do imóvel (ha) �� Preservação Permanente 137.553 6,16 �� Reserva Legal 328.477 14,70 �� Utilizada 471.550 21,10 �� Não Utilizada 1.207.449 54,03 �� Inaproveitável 89.743 4,02 Capacidade de uso do solo (ha) �� Tipo I 8.734 0,39 �� Tipo II 298.908 13,27 �� Tipo III 936.540 41,56 �� Tipo IV 504.362 22,38 �� Tipo V 148.281 6,58 �� Tipo VI 127.223 5,65 �� Tipo VII 36.642 1,63 �� Tipo VIII 192.535 8,54 �� Condição do Acesso 3,11 �� Nota Agronômica 0,56 Preços médios de avaliação �� Preço médio da Terra por hectare R$ 285 �� Preço médio das Benfeitorias por hectare R$ 71 �� Preço médio da Terra Nua por hectare R$ 215 Gasto Estimado por Família R$ 9.782 Fonte: Ficha Agronômica de desapropriação, INCRA. Junho, 1999.

O gasto médio por família nas desapropriações, R$ 9.782,00, indica apenas o valor da parcela de terra, enquanto que o Estado deverá ter outros gastos para alcançar a viabilidade econômica dos assentados.

Finalmente estes dados colocam em evidência os grandes problemas com os que terão que se defrontar tanto os beneficiários da reforma agrária quanto o Estado. A propriedade da terra é apenas uma condição necessária para a atividade agropecuária, junto a ela o Estado por meio das políticas públicas deve dar as condições para que os assentados tenham acesso a outros mercados como o de crédito, produtos, insumos e tecnologia. A distribuição da terra é apenas o primeiro passo na tentativa de que os pobres do campo tenham uma oportunidade de vida mais digna.

a) Uma avaliação dos impactos regionais dos assentamentos

Um estudo recente promovido pelo NEAD (HEREDIA et alli, 2001), traz informações valiosas sobre o impacto regional provocado pelos assentamentos de

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reforma agrária no Brasil4.

A forte concentração de assentamentos nestas regiões tem sua origem na crise dos sistemas agrários locais, conjugada a situações de extrema pobreza e à exacerbação de conflitos sociais endêmicos e à existência de movimentos ou organizações sociais. Os assentamentos estudados tiveram origem, em 95% dos casos, em disputas pela propriedade da terra. Os exemplos mais notáveis são a da região canavieira do Nordeste (crise do sistema canavieiro), a da zona cacaueira do sul da Bahia (crise do sistema baseado na grande propriedade cacaueira) e do Sertão do Ceará (crise da produção do algodão, secas prolongadas e crise das grandes propriedades pecuaristas).

Dados sobre a origem e o local de residência anterior dos assentados corroboram este fato: 68% da população pesquisada residia anteriormente na área rural; 70% residiam antes no mesmo município ou em municípios da mesma região; e 68% nasceram no mesmo município ou em municípios da mesma região. Acrescentando-se a estes número o fato de que cerca de 15% da população pesquisada nasceu após o assentamento, conclui-se que "endolocalidade" atinge taxas de cerca de 84%.

Apesar de bastante variável de acordo com a região considerada, o impacto demográfico dos assentamentos não pode ser desprezado. No entorno do Distrito Federal, por exemplo, a dinâmica populacional provocada pelos assentamentos parece diluída na dinâmica regional mais ampla, de intensa migração em direção à Capital e seu entorno, no caso do DF5. No entanto, " a população dos assentamentos rurais equivale a 23,73% do total da população rural (...)". Este percentual atinge 80% em Natailância, MG, 65% em São João d'Aliança, GO, e 63% em Riachinho, MG. Em Riachinho, MG, a população dos assentamentos equivale a 68% da população urbana e em Flores de Goiás, ela é superior à população urbana em 49%. (Ibid., p. 225-226).

Em algumas regiões, os assentamentos absorveram parte da população urbana marginalizada: no entorno do DF, 34% da população assentada residia na área urbana; no Sudeste do Pará, 22 %; no Sul da Bahia, 28%. Em alguns municípios, como no Oeste de Santa Catarina, os assentamentos provocaram, na segunda metade dos anos 90, uma inversão na tendência de queda da população rural observada no período anterior. A população rural de Abelardo Luz, que diminuiu entre 90 e 96, voltou a crescer ao ritmo de 6% ao ano entre 1.996 e 2.0006. Em Passos Maia, na mesma região, após uma redução de mais de 21% da população total e de 25% da população rural na década de 80, o movimento inverteu-se, em grande parte em razão dos assentamentos, que provocaram um aumento de 30% da população rural e de cerca de 35% da população total7.

A redefinição do cenário social e da demanda por políticas públicas

As conseqüências deste fenômeno são importantes. Antes, a referência básica dos municípios estava localizada nas grandes propriedades e era para elas que estava voltada grande parte os investimentos públicos em infra-estrutura (estradas, eletrificação, abastecimento de água, etc). Por outro lado, como tiveram sua origem em

4 Este estudo, patrocinado pelo NEAD (Núcleo de Estudos Agrários e de Desenvolvimento Rural, vinculado ao

Ministério do Desenvolvimento Agrário), foi realizado em 92 assentamentos de 6 regiões de alta concentração de assentamentos no Brasil: Sul da Bahia; Sertão do Ceará; Entorno do Distrito Federal; Sudeste do Pará; Oeste de Santa Catarina; Zona Canavieira do Nordeste.

5 O mesmo parece ocorrer no Sul da Bahia, com a migração em direção às metrópoles regionais de Itabuna e Ilhéus.

6 Entre 1.980 e 2.000, o aumento da população rural foi de 36%.

7 Sem dúvida, a emancipação do município também contribuiu para o aumento da população urbana no período.

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conflitos, é natural que, no início, os assentamentos tenham sido estigmatizados por parte da sociedade local, que freqüentemente os apontava como uma ameaça ("arruaceiros"), um elemento estranho ("forasteiros", "invasores").

Entretanto, em muitas das regiões estudadas, os assentamentos deram progressivamente origem a aglomerados populacionais8, que passaram atrair a atenção dos poderes públicos locais, em alguns casos, a ter predominância na definição de seus investimentos. Assim, apontam os autores da pesquisa, "em muitos casos, a criação dos assentamentos resulta em ampliação das demandas de infra-estrutura e em pressão sobre as prefeituras, responsáveis pela prestação de vários desses serviços, e também sobre o governo estadual." (Ibid., p. 218).

Alguns dos dados exemplificam este fenômeno. Em 86% dos projetos de assentamento há uma escola, a maioria delas (75%) criada depois do assentamento e a partir de reivindicações dos assentados (71%)9. Mais de 90% das crianças de 07 a 14 anos de idade estudam; 63% dos jovens de 15 a 19 anos estudam; e 19% dos jovens de 20 a 29 anos estudam. Estes dados devem ser comparados com outro, que reflete a situação anterior ao assentamento: 32% das pessoas de mais de 30 anos nunca freqüentaram a escola.

Por outro lado, em 64% dos assentamentos há também projetos de educação de jovens e adultos em andamento, em particular projetos do PRONERA - Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, patrocinado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, e projetos de ONGs. Mais de 20% dos assentados fizeram algum curso de formação técnica após o assentamento (menos de 4 % o fizeram antes).

Como na maior parte das áreas rurais do país, poucos assentamentos dispõem de postos de saúde e, mesmo nestes casos, a presença diária de profissionais de saúde é rara (apenas 4 casos). Desta forma, os assentamentos têm buscado atendimento médico nas sedes de município, exercendo sem dúvida pressão sobre os serviços prestados nestas sedes. Entretanto, em 78% dos projetos há agentes de saúde, custeados em grande parte pelas prefeituras.

Para a esmagadora maioria das famílias, o assentamento representa também a primeira oportunidade de acesso ao crédito, ao sistema bancário e ao mercado financeiro: se, antes, 93% dos entrevistados não tinham acesso ao crédito, 66% deles tomaram crédito em 98/9910.

Nem sempre as condições de acesso aos assentamentos e aos lotes são satisfatórias11, pois uma parte considerável dos investimentos pesados em infra-estrutura ainda resta a fazer. Entretanto, em 66% dos casos há transporte coletivo transitando pelo menos uma vez por semana dentro do assentamento (em 42% dos casos, várias vezes ao dia). Um dos casos emblemáticos é o de alguns municípios da Zona da Mata

8 Em 71% dos casos, os assentamentos têm adensamentos populacionais ou divisões espaciais comparáveis à dos

distritos ou das vilas ou bairros rurais. O caso extremo citado na pesquisa é o do Município de Floresta, no Pará, criado em grande parte em razão do aumento populacional provocado pelos assentamentos.

9 É importante assinalar que, em 73% dos casos estas escolas atendem até a 4ª série do Ensino Fundamental e, em

77% dos casos, têm turmas multisseriadas. O nível de escolaridade a que chegam os assentados varia consideravelmente de região para região, sendo mais elevado no Oeste Catarinense, no Entorno do Distrito Federal e no Sudeste do Pará.

10 80 % dos assentados havia obtido o crédito–fomento; 72,7%, o crédito– habitação; 74,6% o crédito–alimentação.

Assinale-se que 59% dos que tomaram crédito afirmaram ter dificuldades em razão da demoras no financiamento (78%).

11 Mais de 50% das estradas que dão acesso aos assentamentos pesquisados são intransitáveis durante as chuvas.

Em 30% dos casos, há lotes de difícil ou sem acesso, acesso; e em 37% dos assentamentos há problemas de tráfego durante o período das chuvas.

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Nordestina, onde antigas estradas foram abandonadas e novas foram construídas pela prefeitura, para dar acesso aos assentamentos.

As condições de moradia também melhoraram sensivelmente: 74% dos assentados vivem em residências de alvenaria, contra apenas 39% no passado; e em 78% dos assentamentos há energia elétrica (em 53% dos casos, na maioria ou em todos os lotes).

Para 59% das famílias, os espaços coletivos dos assentamentos são um importante local de encontro, seguidos das residências (53%) e dos espaços religiosos (apenas 18% dos casos). Os assentamentos proporcionaram também o surgimento de novas organizações (associações, cooperativas, núcleos, etc) e contribuíram para o fortalecimento das organizações e movimentos sociais no papel de mediação política. Em todas as regiões pesquisadas, por exemplo, em diversos municípios, os assentados participam dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, de Agricultura ou outros. Em muitos casos, assentados se candidataram a cargos públicos (vereador, prefeito, deputado) e, em alguns, foram eleitos, inclusive para prefeito.

A conquista, em matéria de cidadania e de desenvolvimento humano, é dupla. De um lado, a população assentada, antes marginalizada, passa a ter acesso às políticas públicas, ganha reconhecimento social e político. Por outro lado, os assentamentos e suas organizações passaram, progressivamente, a ser levados em consideração pelos municípios, pelo comércio e pelas forças políticas locais, passam a exercer um papel ativo na definição das políticas e dos investimentos públicos. Redesenha-se assim, em muitos casos, a ordem de prioridades estabelecidas pelos poderes locais. No município de Abelardo Luz, em Santa Catarina, por exemplo, "dirigentes municipais afirmam que, hoje, (...) 41% dos gastos com saúde e assistência social e 55% do transporte escolar teriam sido destinados aos assentados" (Ibid., p. 218).

A remodelagem do sistema agrário e a dinamização da vida econômica

O impacto dos assentamentos na concentração da propriedade da terra é bastante variável, de acordo com as especificidades das regiões. Os dados censitários disponíveis ainda não permitem medir com exatidão as mudanças ocorridas12. Entretanto, o estudo traz algumas comparações interessantes. No conjunto das regiões estudadas, os assentamentos abarcaram pouco menos de 12% da área total dos estabelecimentos agropecuários. Esta porcentagem é menor no Sul da Bahia e no Entorno do Distrito Federal (3 e 5%, respectivamente), mas atinge 23% no Sertão do Ceará e 40% no Sudeste do Pará. Estes dados dão uma dimensão do território incorporado à Reforma Agrária nestas regiões.

O desmembramento das grandes propriedades (mais de 500 ha, em 76 % dos casos) resultou, também, em todas as regiões, em um aumento considerável da área e do peso dos estabelecimentos familiares no sistema agrário local. Em algumas regiões, a área ocupada pelos assentamentos representa mais de 100% da área dos estabelecimentos nos estratos de área característicos da agricultura familiar, conforme demonstra a tabela abaixo.

12

O último censo agropecuário data de 1996, enquanto a maior parte dos assentamentos pesquisados foram criados na segunda metade dos anos 90 (a nível nacional, os assentamentos posteriores a 95 representam três quartos do total). Por outro lado, os assentamentos não são considerados como setores censitários, o que dificulta a realização de tabulações e análises mais acuradas de seus impactos diretos.

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Tabela 3: Participação da área dos assentamentos na área total dos municípios pesquisados, segundo estrato principal de área.

Região

Estrato de área

considerado

% dos lotes dos

assentados que se enquadram no

estrato considerado

Área dos lotes do estrato (criados até

1.997) comparadas com a área total dos

estabelecimentos do estrato

Sul da Bahia 0 – 50 ha 70% 5,5 % Sertão do Cera 0 – 50 ha 90% 113,2 % Entorno do DF 0 – 100 ha 98% 57,6 % Sudeste do Pará 0 – 100 ha 79% 119,5 % Oeste de SC 0 – 50 ha 90% 18,8 % Zona Canavieira do NE 0 – 20 ha 100% 142,7 % Total -- -- 62,0 %

Fonte: Heredia et alli, 2001, p. 262

Em alguns casos extremos, como em alguns municípios da zona da canavieira nordestina, a área dos estabelecimentos na faixa considerada foi multiplicada por 4 (Pedras de Fogo, Cruz Espírito Santo), 5 (Água Preta) ou 6 (Maragogi).

Ao contrário do que é muitas vezes afirmado, a pesquisa constatou que a reconcentração dos lotes vem ocorrendo em proporções muito pequenas: em 91% dos casos, as famílias originalmente assentadas ainda são as atuais responsáveis pelos lotes; e, em 96% dos casos, os assentados administram apenas o seu próprio lote.

Uma das primeiras conseqüências da substituição de latifúndios por uma produção de base familiar é a reorientação produtiva do sistema agrário local. Em algumas das regiões, a monocultura predominava nos latifúndios. Nos assentamentos, ao contrário, o leque de produtos é consideravelmente maior.

Dados agregados do conjunto da amostra demonstram a transformação ocorrida na pauta de produção das áreas incorporadas à Reforma Agrária. Seis grupos de produtos característicos da agricultura familiar das regiões pesquisadas representam mais de 70% do valor bruto da produção (VPB), excluídos os animais e as carnes: leite e derivados; mandioca e farinha de mandioca; milho; feijão; ovos e arroz. Alguns produtos de importância regional respondem por cerca de 20% do VPB do conjunto da amostra pesquisada: abacaxi, soja, inhame, cana-de-açúcar, fumo, maracujá, batata inglesa, abóbora, batata-doce e algodão. Mais de 70 outros produtos compõem o restante da pauta de produção dos assentamentos.

Também se diversifica a pauta de produtos da pecuária. Os bovinos de leite estão presentes em 52% dos assentamentos; as aves, em 80%; os suínos, em 34%; e os caprinos e ovinos, em 21% (em 74% dos assentamentos cearenses). Para o conjunto da área pesquisada, o rebanho leiteiro dos assentamentos representa 8% do informado pelo IBGE na Pesquisa Pecuária Municipal de 1.999; o rebanho suíno, 9%; o de aves, 14%; e o de caprinos e ovinos, 25%.

Muitos destes produtos são destinados ao processamento agro-industrial. Uma parte deste processamento é realizada por agroindústrias (como o algodão, no Ceará, ou o leite, em quase todas as regiões), mas uma parte não desprezível é realizada no

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próprio assentamento ou no seu entorno imediato (queijo e farinha de mandioca, no Entorno do DF; mel e farinha de mandioca, no Sul da Bahia; farinha de mandioca no Sudeste do Pará e na zona canavieira do Nordeste). Isto tem conseqüências diretas sobre as atividades econômicas a jusante da produção agrícola, nos assentamentos e fora deles.

A importância da dinamização das feiras e o fato de que isto ampliou a oferta de produtos para os consumidores locais são ressaltados em diversas entrevistas citadas no estudo. No caso do Sudeste do Pará, esta dinamização foi considerada importante, pois supria o mercado local em produtos alimentares de primeira necessidade, que eram antes difíceis de serem encontrados. No caso da Zona da Mata nordestina, “as feiras têm aumentado seu tamanho, alcançando novas ruas e, em alguns casos, aumentado sua periodicidade” (Ibid., p. 252).

Consumidores entrevistados nas feiras de Pedras de Fogo, na Paraíba, afirmam que os assentamentos provocaram um aumento da oferta de mercadorias e uma queda dos preços dos produtos alimentares. Assim, a diversificação da produção se traduz em uma importante oportunidade de melhoria no padrão alimentar, não somente dos assentados, mas também da população urbana.

Evidentemente, o uso de insumos nem sempre é um bom indicador de sustentabilidade dos sistemas de produção adotados13, mas pode ser um indicador do mercado criado pelos assentamentos para a indústria e os serviços situados a seu montante. Apenas 18% dos entrevistados declararam não ter utilizado nenhum tipo de insumo agrícola. Em cerca de 53% dos lotes, utiliza-se sementes ou mudas compradas fora do lote; em 42% insumos veterinários; em 40%, agrotóxicos; em 37%, adubos químicos; em 18%, fertilizantes orgânicos.

Também no mercado financeiro os assentados vêm ganhando espaço. O volume de financiamento tomado pelos assentados na safra 98/99 representou 12,5% do total do volume total de financiamentos concedidos à agricultura nos municípios pesquisados. Esta porcentagem é menor no Sul da Bahia (4%) e no entorno do DF (6%), mas atinge 58% no sudeste do Pará e 81% na Zona da Mata Nordestina.

A criação de empregos e a melhoria da renda

Pode-se perguntar qual os benefícios destes fenômenos para os próprios assentados? A pesquisa traz muitos dados como resposta. Antes do assentamento, 30% não tinham acesso nenhum à terra: 5% estavam desempregados; 11% eram assalariados temporários; 14% eram assalariados permanentes. Outros 50% tinham acesso precário à terra: 18% eram parceiros ou arrendatários; 17% eram membros não remunerados da família; 3% eram pequenos proprietários; 12% conjugavam acesso precário à terra e alguma forma de emprego (permanente ou temporário).

Esta precariedade muda radicalmente com o assentamento: 84% dos entrevistados afirmam que as condições de trabalho melhoraram. As razões ficam claras quando analisamos os dados sobre trabalho e emprego nos assentamentos. Nos 1.568 lotes pesquisados vivem 4.765 pessoas maiores de 14 anos que trabalham, o que representa cerca de 3 pessoas em média por lote. Se considerarmos todas as faixas de idade, em cada lote vivem, em média, 3,57 pessoas que trabalham. Destes, perto de 80% trabalham exclusivamente nos lotes (em média, 2,6 empregos por lote). Apenas 1% das

13

Em 40% dos lotes, o padrão tecnológico foi caracterizado pela pesquisa como "químico-intensivo". Em 64% dos lotes, entretanto, a intensidade de uso de insumos foi classificada de "baixa ou inexistente" (Ibid., p. 370).

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pessoas trabalha exclusivamente fora do lote. Mais da metade dos assentados que trabalham fora do lote o fazem somente no próprio assentamento, sendo que uma parte significativa deles em atividades não agrícolas (50% no Sul da Bahia e cerca de 20% em Santa Catarina e Zona da Mata paraibana). Apenas 25% dos que trabalham fora do lote o fazem somente fora do assentamento14. Além disto, os assentados criaram empregos para pessoas externas à família: em 36% dos lotes houve contratação de pessoas de fora do lote.

Trata-se, portanto, na esmagadora maioria dos casos, de empregos criados diretamente pelo assentamento e no assentamento15. Em menos de 12% dos lotes houve perda de membros por motivo de trabalho. Em compensação, em 23% dos lotes houve incorporação de novos membros na família (parentes em primeiro grau do chefe de família), o que resultou, em média, em 2,4 parentes por lote além da família nuclear (Ibid., p. 235 e 236)16. Vale assinalar que porcentagem destes outros membros da família que viviam antes em áreas urbanas é superior à verificada para os chefes de família e seus cônjuges.

Devemos acrescentar a estes empregos diretos os empregos não agrícolas criados ou estabilizados com os assentamentos, cujo dimensionamento não fazia parte do escopo da pesquisa (indústrias a montante e a jusante dos assentamentos, implantação de infra-estrutura, serviços públicos, comércio). Não fazia parte tampouco dos objetivos da pesquisa medir com exatidão a renda agropecuária e a renda total das famílias. Mas o trabalho permitiu realizar estimativas sobre a capacidade de geração de renda dos assentamentos. Foram considerados os seguintes dados: “renda oriunda do trabalho realizado fora do lote; renda oriunda da comercialização dos produtos agropecuários produzidos no lote; e outras rendas ou ajudas financeiras recebidas” (Ibid. p. 426).

É importante ressaltar que a renda oriunda da comercialização considerada aqui é uma estimativa da renda monetária potencial do lote e que não foram considerados os produtos que, segundo as declarações dos entrevistados, eram destinados exclusivamente ao autoconsumo17. É importante também lembrar, em particular no caso do Ceará, mas também em parte da Zona da Mata Nordestina, que os agricultores estavam sendo castigados por um longo período de estiagem.

A tabela abaixo demonstra que perto de 70% da renda bruta das famílias provêm do lote. A aposentadoria é a segunda maior fonte de renda das famílias assentadas (17%), o que reproduz um fenômeno apontado em diversos estudos sobre a agricultura familiar ou sobre a importância da previdência social nos mecanismos de distribuição de renda no país18.

14

Os autores da pesquisa sugerem prudência quanto a estes dados, pois consideram que “os assentados ficam temerosos de revelar sua inserção em outros tipos de trabalho, visto que este procedimento é condenado tanto pelo INCRA como pelos agentes de representação (sindicatos, MST, Igreja)” (Ibid. p. 412).

15 Expandindo-se estes dados para o conjunto dos assentamentos das regiões estudadas, temos a estimativa de

criação de 43.000 empregos diretos nos assentamentos. 16

Esta incorporação de novos membros na família, acompanhada pelo fato de que, quase 40% das famílias têm parentes em outros lotes do assentamento (Ibid., p. 235), contribuem para a recomposição dos laços familiares, fragilizados ou rompidos pela necessidade de deslocamento na busca de novas oportunidades de subsistência.

17 A estimativa da renda agropecuária considerou somente os produtos que, segundo as declarações dos assentados,

foram comercializados integral ou parcialmente. Multiplicou-se o volume total produzido pelo preço médio local na safra de 98/99.

18 Ver, em particular, Delgado (2000).

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Tabela 4: Composição do rendimento médio bruto familiar anual total (*) – 1999/2000

Sul da Bahia Sertão Ceará Entorno DF Sudeste Pará Oeste de SC Zona Canav. Total

R$ % R$ % R$ % R$ % R$ % R$ % R$ %

Renda Média Bruta Familiar do Lote (A) 2.872 70,3 576 41,1 3.712 71,3 3.416 70,7 4.291 81,5 1.750 60,8 2.568 68,6

Assala-riados Rurais

154 3,8 115 8,2 372 7,1 323 6,7 332 6,3 111 3,8 229 6,1

Assala-riados Urbanos

321 7,9 48 3,4 192 3,7 189 3,9 164 3,1 233 8,1 177 4,7

Autô-nomos 123 3,0 30 2,1 40 0,8 247 5,1 63 1,2 45 1,6 95 2,5

Outros 0 0,0 1 0,1 3 0,1 1 0,0 4 0,1 1 0,0 2 0,0

Renda MédiaFamiliar do Trabalho Fora do Lote (B)

S/inf. s/ativid. 30 0,7 7 0,5 0 0,0 11 0,2 30 0,6 71 2,5 27 0,7

Aposent Pension. 587 14,4 621 43,3 877 16,9 642 13,3 375 7,1 653 22,7 641 17,1

Outras Rendas Médias Familiares Externas (C)

Ajudas Financ. 0 0,0 4 0,3 7 0,1 7 0,2 7 0,1 13 0,4 7 0,2

Rendimento Médio Bruto Familiar Anual Total (A+B+C)

4.088 100,0 1.401 100,0 5.203 100,0 4.835 100,0 5.265 100,0 2.876 100,0 3.746 100,0

Fonte: Heredia et alli, 2001, p. 435. (*) Renda média considerando o total de informantes, inclusive aqueles sem rendimento. Para facilitar a visualização, eliminamos os centavos.

A renda média bruta familiar, para o conjunto da amostra, é de R$ 312,00 por mês, ou seja, pouco superior a 2 salários mínimos, variando de R$ 116,74, no Ceará, a R$ 438,72, no sudeste paraense. Embora com fortes variações regionais, a maior parte da população pesquisada supera o nível de pobreza19, conforme demonstra a tabela abaixo.

Tabela 5: Níveis de Renda Média Bruta Familiar Total, segundo faixas de Salário Mínimo, 1999/2000 (em %)(*)

Sul da Bahia

Sertão Ceará

Entorno do DF

Sudeste Pará

Oeste de SC

Zona Canavieira

Total

Sem rendimento 1,15 3,92 5,49 3,55 0,00 2,58 3,12 Até 1 S. M. 22,99 63,40 29,96 30,33 15,68 46,65 38,62 Mais de 1 até 2 S. M. 33,33 22,88 20,25 24,86 26,49 25,52 24,60 Mais de 2 até 3 S. M. 16,09 7,84 13,08 12,30 16,76 12,63 12,36 Mais de 3 até 5 S. M. 17,24 1,63 15,61 16,67 26,49 6,70 12,30 Mais de 5 S. M. 9,20 0,33 15,61 12,30 14,59 5,93 8,99 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Heredia et alli, 2001, p. 435. (*) O salário mínimo era, no momento da pesquisa, de R$ 151,00.

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Vale lembrar que, conforme dito anteriormente, os dados relativos ao trabalho externo ao lote podem estar sub-estimados.

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Em 83% dos casos, os assentados consideram que as melhorias se devem diretamente ao acesso à terra, seja porque este proporcionou um aumento da renda, seja porque melhorou o trabalho, seja porque melhorou a produção. Apenas 7% dos assentados considera que as condições de trabalho e emprego pioraram.

Também temos confirmação disto quando analisa-se o ritmo de capitalização dos lotes, indicador indireto do nível de renda de famílias agricultoras. Com efeito, a capitalização ocorre seja através do crédito, seja quando a renda familiar ultrapassa o patamar de rendimentos necessários à reprodução simples da família e da unidade de produção. A grande maioria (67%) das instalações produtivas foram construídas com recursos dos próprios assentados; 55% das máquinas e equipamentos individuais também foram financiadas com recursos próprios.

Os assentamentos como fator de desenvolvimento

Os assentamentos diversificaram seu sistema produtivo e os canais de comercialização, ampliaram a oferta de gêneros alimentícios e o consumo de bens e serviços agrícolas e não agrícolas, inclusive de bens duráveis20, criaram um número considerável de empregos diretos e indiretos, tanto no setor agrícola quanto não agrícola, ampliaram a demanda e os investimentos em infra-estrutura e em serviços básicos (saúde, educação, transporte), provocaram uma diversificação e uma dinamização da vida econômica dos municípios.

Surgidos da crise dos sistemas agrários locais, os assentamentos diversificaram e dinamizaram economia local e ampliaram consideravelmente as oportunidades de inserção econômica e social, não só para as famílias assentadas. Os assentamentos tornaram-se, em outras palavras, um fator importante de desenvolvimento.

b) A reforma agraria negociada: experiências recentes no Brasil

Recentemente, vêm ganhando forma programas de crédito fundiário que visam facilitar o acesso à terra aos agricultores sem terra ou com pouca terra. Seu objetivo é proporcionar crédito para a compra de terras a pequenos compradores que normalmente não teriam acesso a recursos do mercado financeiro. O Banco Mundial vem incentivando programas deste tipo, intitulados atualmente de Reforma Agrária baseada nas comunidades, que procuram outorgar um crédito de longo prazo (para a aquisição da terra) e um subsídio parcial (para investimentos em infra-estrutura e em projetos produtivos) a beneficiários de baixa renda que adquiram a terra no mercado.

Segundo Heath e Deininger (1997)21, as razões que sustentam estes programas são: i) informação fluída entre compradores e vendedores; ii) concorrência entre vendedores; iii) concorrência entre compradores potenciais no financiamento de projetos produtivos; iv) negociação voluntária do preço da terra entre grupos de vendedores e compradores; v) provisão de assistência técnica aos mais pobres no desenho dos projetos; vi) provisão de subsídios para obter parte do financiamento do projeto, inclusa a compra de terras; vii) sistema de monitoramento.

Estes programas foram desenhados para complementar e eliminar alguns gargalos do processo de reforma agrária. As vantagens destes programas manifestam-se:

20

Dados da pesquisa mostram que o número de famílias que possuem eletrodomésticos como geladeira, fogão a gás, televisão, antena parabólica e máquina de lavar aumentou consideravelmente depois do assentamento. O número de famílias que possuem meios de transporte (bicicleta, animal, moto, carro ou outro) mais que triplicou.

21 Citado por Jaramillo, C.(1988, p.114).

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i) no maior grau de liberdade dos favorecidos ao permitir-lhes escolher a terra que desejam e negociar seu preço; ii) na supressão da intervenção da agencia estatal no processo de seleção e negociação da terra eliminando a burocracia; iii) na redução dos custos administrativos e possibilidade de transferência de funções das agências governamentais ao setor privado, especialmente nas áreas de preparação de projetos e assistência técnica aos beneficiários. Também apresentam alguns riscos que podem elevar os custos, tais como: i) Desigualdade no poder de negociação; ii) inelasticidade da oferta da terra; iii) dificuldades na recuperação dos créditos22.

No Brasil, o programa teve início no Estado do Ceará, em 1996, através de um projeto piloto do Governo do Estado no âmbito do Programa de Combate à Pobreza Rural financiado pelo Banco Mundial (Projeto São José – Reforma Agrária Solidária). Em 1997, o Governo Federal adotou a idéia e iniciou a implantação de um projeto piloto muito similar em 5 Estados do país: Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão e Minas Gerais. Recursos do Governo Federal23 asseguram às associações beneficiárias o financiamento reembolsável de longo prazo (20 anos) para a compra da terra. Além de uma carência de 3 anos para o primeiro reembolso, o empréstimo tem juros reais negativos (6% ao ano, com redução para 3% em caso de pagamento no vencimento das parcelas)24. Um Acordo de Empréstimo com o Banco Mundial assegura o financiamento não reembolsável de projetos investimentos produtivos ou de infra estrutura básica, para que as comunidades possam estruturar a propriedade e alavancar o seu desenvolvimento25. Podem ser incluídos no rol destes projetos subsidiados recursos para a instalação das famílias (“ajuda de custo inicial”) e a contratação de assistência técnica pela própria comunidade.

O Projeto, cuja execução foi descentralizada e ficou sob a responsabilidade dos Estados, permitiu a instalação de mais de 14.000 famílias, que adquiriram 370.000 ha. No termino do Projeto, em 2002, a meta de 15.000 famílias assentadas será ultrapassada. A estratégia e os primeiros resultados da avaliação de impacto deste programa serão analisados mais adiante.

Buscando aprimorar esta experiência, o Ministério do Desenvolvimento Agrário criou, em 2001, o Projeto de Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural, com a participação da CONTAG – Confederação dos Trabalhadores na Agricultura, cuja meta é, na primeira fase do Projeto, instalar 50.000 famílias em 3 anos26. A área de abrangência deste Projeto foi ampliada, de forma a permitir a incorporação de todos os Estados do Nordeste, do estado do Espírito Santo (região Sudeste) e, de forma experimental, os três estados do Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná).

Em 1998, o Governo Federal criou, também, o Banco da Terra. Apesar de ter sua execução descentralizada e basear sua ação no princípio do financiamento da

22 Do ponto de vista ético o principal problema consiste no fato de que os assentados da reforma, no Brasil, não

pagaram pelas terras obtidas até a presente data, e não há indícios de que irão fazê-lo no curto prazo. Portanto, passa a ser uma contradição que os que obtém a terra a partir da compra tenham que pagá-la enquanto os assentados não o tenham. Do ponto de vista econômico o problema consiste em saber se os novos proprietários tem condições de arcar com a dívida contraída na aquisição de terras, mesmo com juros subsidiados, (Reydon e Plata, 1998).

23Inicialmente, os recursos foram proporcionados pelo INCRA. Atualmente, eles provêem do Fundo de Terras e da

Reforma Agrária – Banco da Terra. 24

As condições de financiamento eram bem mais desfavoráveis no início do Projeto (correção monetária, prazo de 10 anos), o que suscitou ou amplificou as críticas ao Projeto e as previsões de que os agricultores não teriam condições de reembolsar o empréstimo.

25 Uma discussão sobre as vantagens e desvantagens do Programa Cédula da terra encontra-se em: Buainain, M.; Silveira, J. e Teófilo, E. (1999).

26 A meta global do Projeto, incluindo as duas fases seguintes, é de assentar, em 9 anos, 150.000 famílias.

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aquisição dos imóveis, o Banco da Terra tem diferenças significativas com o Projeto Cédula da Terra. Uma das principais diferenças é o fato de que o Banco da Terra não tem o componente do combate à pobreza, pois prevê o financiamento reembolsável de todos os investimentos, inclusive os de infra-estrutura, e permite a participação de pessoas com maior poder aquisitivo e maior patrimônio. Enquanto o Projeto Cédula da Terra e o Crédito Fundiário fixaram tetos de financiamento e subsídios inferiores a R$ 15.000, o Banco da Terra permite financiamentos de até R$ 40.000. Grande parte dos recursos do Banco da Terra foram aplicados nos três estados do Sul do país e os valores médios das transações ultrapassam consideravelmente os verificados no Projeto Cédula da Terra.

Entretanto, estes três programas de financiamento da aquisição de terras permitem a incorporação ao processo de reordenamento fundiário de terras que não podem ser desapropriadas pela via tradicional (propriedades de menos de 15 módulos fiscais ou propriedades produtivas de mais de 15 módulos). Estima-se que, apenas considerando as áreas ociosas das propriedades de menos de 15 módulos fiscais, isto represente no Brasil cerca de 40 milhões de ha.

Os resultados preliminares do Projeto Cédula da Terra

Ainda é cedo para avaliar em profundidade todos os resultados do Projeto Cédula da Terra. Um estudo preliminar de avaliação dos impactos do Projeto foi realizado por uma equipe de pesquisadores entre 1.999 e 2000 (Buainain, A. M. et alli, 2001) permitiu apenas conhecer o perfil dos beneficiários e avaliar alguns aspectos relacionados à estratégia de ação do Projeto.

A segunda etapa da avaliação, coordenada pela UNICAMP, está em fase de conclusão. Os primeiros relatórios preliminares trazem informações interessantes.

Os impactos em matéria de melhoria da qualidade de vida são comparáveis aos verificados nos assentamentos do INCRA. Em Pernambuco, por exemplo, 89% das famílias beneficiárias residem em casas de alvenaria contra 78% antes do Projeto (Vital, T. W. et alli, 2001). O consumo de bens duráveis foi pequeno (R$ 140 em média, por família), mas sensível tendo em vista o período curto desde o início do Projeto e a situação de pobreza inicial das famílias.

Alguns dados apontam que, como para os assentamentos, os projetos criaram empregos além dos empregos diretos da família beneficiada. Em Pernambuco, o relatório indica que 26% das famílias assentadas tiveram despesas com mão de obra no ano agrícola 1999/2000.

O desenvolvimento produtivo foi grandemente prejudicado pela longa e rigorosa seca que se abateu sobre o semi-árido (o que inclui a área de Minas Gerais na qual está sendo implantado o Projeto). Além disto, houve, no início do Projeto (até meados de 2.000), um descompasso entre a aquisição de terras e a liberação dos recursos para os investimentos comunitários, tanto por parte do próprio Projeto, quanto por parte do PRONAF.

Mesmo assim, alguns resultados preliminares merecem ser citados. A renda mensal das famílias entrevistadas em Pernambuco, que era de R$ 113,00 reais mensais antes do Projeto, foi de R$ 206,00 em 1999/2000. Por ano, a renda familiar passa de R$ 1.361 para R$ 2.474. Houve, portanto, um aumento na renda familiar de mais de 80%. Parte significativa desta renda ainda provém de atividades exercidas fora dos lotes, como antes do assentamento, pois 35% dos entrevistados exerceram atividades fora dos

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lotes. Em média, as rendas obtidas em atividades externas representam 28% da renda total das famílias, enquanto a renda oriunda diretamente das atividades agropecuárias representam 15% do total.

Além da renda auferida durante o ano, é importante assinalar que as famílias vêm constituindo um rebanho, o que representa uma capitalização e uma renda não realizada. No caso de Pernambuco, este rebanho tem, em média, 2,8 cabeças de gado bovino, 1,2 de caprino, 1,3 de ovino e 7 de aves. Antes do projeto, segundo o perfil elaborado por Buainain et alli (2000) para o conjunto dos 5 estados, apenas 18% das famílias tinham rebanho bovino; 5% possuiam rebanho caprino; e 2% possuiam ovinos.

O impacto em termos de renda deve ter fortes variações regionais. Em Minas Gerais, por exemplo, os resultados preliminares apontam para uma manutenção da renda das famílias, quando comparadas ao período anterior ao Projeto. Somente a conclusão dos trabalhos poderá permitir identificar, além do projeto propriamente dito, os outros fatores que eventualmente podem ter influenciado estas evoluções27.

O impacto do Projeto no mercado de terras

A tabela 6 indica os custos por hectare do processo de desapropriação da reforma agrária, o custo por hectare do Programa Cédula da Terra e o preço real da terra de lavoura estimado pela Fundação Getúlio Vargas. Destes dados podemos concluir que o PCT não acarretou sobre-valorização das terras, nem praticou preços superiores aos padrões de mercado (índices inferiores aos da FGV) ou aos praticados pelo INCRA. Em média estes são 62 % menores no Maranhão, 66% no Ceará, 14% em Pernambuco, 43% na Bahia e 49% em Minas Gerais28.

Obviamente, somente estudos mais acurados permitiriam comparações definitivas, na medida em que as áreas incorporadas pelos dois programas podem ter características diferentes ou estar em regiões diferentes. Também é plausível considerar que, as expectativas dos agentes, expressas nas informações da CEA/FGV, já refletem um eventual aquecimento do mercado, em razão do PCT, e espelham um preço rígido e elevado. A tabela demonstra, porém, que quando as aquisições são efetuadas pelo PCT, com pagamento à vista e a mediação das Unidades Técnicas Estaduais, o preço se reduz.

Tabela 6: Preços da Terra de lavouras da FGV, custo por hectare Cédula da Terra e custo de desapropriação do INCRA

Ano Preço da FGV, 1998(a)

Custo por hectare Cédula da Terra(b)

Custo de Desapropriação do INCRA(c)

Nordeste 396 181 539 Maranhão 189 118 245 Ceará 171 141 386 Pernambuco 660 367 688 Bahia 572 230 334 M. Gerais 979 204 605

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Sabe-se que quase toda a região de Minas foi fortemente atingida pela seca nordestina, o que não foi verificado em todas as micro-regiões pernambucanas.

28 Uma análise mais acurada dos preços da terra pagos pelo PCT, INCRA e FGV, encontra-se em: Reydon, e Plata,

(1998).

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Fonte: Reydon, B. e Plata, L. Evolução recente do preço da terra rural no Brasil e os impactos do Programa da Cédula da Terra. NEAD. jul. 1998.

(c) Preço real da terra de lavouras Boletim Estatist. do Centro de Estudos Agrícolas IBRE/FGV (jun/1998 = 100)

(b) Custo médio por hectare, conforme base de dados do Projeto Cédula da Terra de fevereiro de 2002, Núcleo de estudos Agrários e Desenvolvimento- NEAD.

(c) Preço médio das terras desapropriadas pelo INCRA por hectare 1996-1998, Departamento de Finanças- INCRA. In Gasques, J. e Conceição, J. Demanda de terra para a reforma agrária no Brasil Box 5, p 38, Brasília nov. 1998.

Estes dados parecem confirmar algumas das hipóteses que justificam os Projetos como o Cédula da Terra. Estes programas, ao instaurar a negociação direta e o pagamento à vista, sem possibilidade de recurso à justiça, estes projetos:

- permitem reduzir o custo da transação e, portanto, o montante de recursos captado pelos proprietários;

- possibilitam captar os movimentos de queda do preço da terra no curto prazo;

- reduzem o tempo entre a identificação do imóvel e o assentamento das famílias;

Por outro lado, estes projetos não dependem da capacidade de ação direta do Estado em todas as fases do processo. Ao atribuir às comunidades parte significativa das responsabilidades, em particular na escolha dos imóveis, na escolha e na execução de investimentos em infra-estrutura e projetos produtivos, estes programas aceleram o desenvolvimento produtivo dos assentamentos, reduzem o custo dos investimentos em infra-estrutura e ampliam o seu alcance, garantindo uma maior porcentagem de beneficiários atingidos e reduzindo consideravelmente o passivo de infra-estrutura a realizar.

c) A Reforma Agrária e a formação do capital social

Dizer que o capital social é uma condição fundamental à viabilidade do desenvolvimento econômico e social das populações excluídas tornou-se um senso comum no discurso institucional com o respaldo de pesquisadores de relevo internacional Robert Putnam (1996) e James Coleman (1994) e de economistas como Joseph Stiglitz (1998). Desta forma não estaríamos acrescentando nada se apenas viéssemos aqui confirmar essa constatação para o caso dos produtores rurais de base familiar e, em particular para os assentados de Reforma Agrária. O que nos propomos a discutir tem um caráter mais dirigido para compreender a efetividade do capital social para os processo de desenvolvimento social, em especial no contexto dos assentamentos da reforma agrária.

Para Putnam (1996:177) “o capital social diz respeito a características da organização social como confiança, normas e sistemas que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas.” Putnam credita à herança ancestral das tradições cívicas das regiões estudadas, a importância do capital social para o processo de desenvolvimento italiano. Tal herança é “cientificamente” comprovada por ele, a partir de correlações estatísticas entre um conjunto selecionado de variáveis, numa postura determinista que deixa a ver navios toda pretensão de transformação social nas comunidades sem tradição associativa. As maiores críticas aos trabalhos de Putnam, sobretudo no meio acadêmico italiano, fazem restrição ao viés positivista de suas análises quantitativas e à falta de inclusão de variáveis que

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considerem categorias centrais os processos sociais como poder, conflitos, etnia, gênero, relações público-privado, ...; privilegiando as variáveis com relações significativas do ponto de vista estatístico.

Coleman (1994: 300), por sua vez, define o capital social como fruto de uma escolha racional de indivíduos para estabelecer estruturas de relações sociais que lhes permitam atingir coletivamente seus próprios objetivos individuais. Estruturas que podem ser criadas a partir da confiança mútua entre os indivíduos e que se traduzem na estabilidade das instituições, normas e obrigações recíprocas garantindo a eficiência do esforço coletivo e a eficácia dos investimentos individuais.

Turner (1999: 94) critica Coleman por tratar a questão do capital social pondo os velhos conceitos da sociologia clássica numa roupagem moderna, mas estreita da economia e critica Putnam pela falta de integração entre os referenciais sociológicos e econômicos. Mas, ele próprio buscando integrar uma visão sociológica mais ampla e compreensiva às questões do cotidiano, termina por definir um modelo de análise desprovido de sensibilidade para a subjetividade das relações sociais, reforçando o enfoque positivista e funcionalista que havia criticado.

A principal dificuldade para trabalhar com essas abordagens funcionalistas em situações onde a exclusão social debilita a confiança nas instituições e os comportamentos sociais são determinados pela busca de alternativas de curto prazo para sobrevivência como estratégias, nos limites da lei, dos costumes e da dignidade humana.

Não é possível aceitar, tampouco, que o capital social seja determinado, de maneira cartesiana, pelas tradições históricas centenárias de uma sociedade ou pela escolha racional que leva um indivíduo a optar pela adesão a um grupo social. Além do mais, em ambas as orientações teóricas, fica evidente o viés economicista que reduz a leitura social aos seus efeitos econômicos, que enfatiza o econômico como objetivo universal da organização social com a intenção de estabelecer o elo perdido entre o indivíduo e a sociedade; entre o mercado e não-mercado; justaponde de maneira acrítica hábitos, normas e instituições; tudo a serviço do estabelecimento de um clima positivo de construção social e crescimento econômico; sem considerar os conflitos e as contradições naturais à organização social.

Fizemos uma opção por definir o conceito de capital social com o qual trabalhamos, a partir das referências de Bourdieu (1998: 65):

O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, a vinculação a um grupo, como um conjunto de agentes que, não somente são dotadas de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis. Essas relações são irredutíveis a relações objetivas de proximidade no espaço físico (geográfico) ou no espaço econômico e social porque são fundadas em trocas inseparavelmente materiais e simbólicas cuja instauração e perpetuação supõem o reconhecimento dessa proximidade.

Nessa definição, Bourdieu reforça dois enfoques fundamentais à nossa reflexão: primeiro destaca a identidade grupal, como base da formação, apropriação e posse durável das relações sociais que formam a essência do capital social; segundo o conceito de apropriação como o processo de “concentrar nas mãos de um agente singular a totalidade do capital social que funda a existência do grupo”, estabelecendo a contradição dialética no interior do processo organizacional. Em seguida trabalharemos a organização social nestas duas direções.

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Contradição entre coordenação e base nas organizações sociais

Apesar de reconhecer que quanto mais organizados são os trabalhadores rurais, maior é o acesso aos recursos institucionais, melhor é a aplicação que eles fazem desses recursos e mais racional e efetiva é sua capacidade de produção e de inclusão social, é indispensável refletir sobre alguns aspectos contraditórios da forma como se organiza o capital social entre os trabalhadores. Para isto consideramos a importância da autonomia das organizações de base com relação às estruturas hierárquicas de coordenação nos níveis estaduais, regionais e nacionais, como fundamento para a construção da democracia e da cidadania dos atores locais.

Temos observado que as contradições dialéticas entre a autonomia das organizações de base e o controle das estruturas de coordenação se evidenciam à medida que as organizações crescem em abrangência, tamanho e poder político. Vale salientar que essas contratações não se caracterizam apenas nas organizações dos produtores rurais, constituem de fato um fenômeno característico das grandes organizações da era moderna representantes de centenas de milhares e até milhões de pessoas. São contradições que se estabelecem entre as estruturas instituídas da coordenação e as forças instituintes da base, contrapondo os esforços de hegemonia e estabilidade às energias que lutam pela dinâmica de renovação e transformação. A busca conservadora da estabilidade das estruturas e da hegemonia de poder das cúpulas da coordenação se contrapondo às lutas pelo acesso das bases às instâncias políticas de decisão e controle. Sartre num conto intitulado A engrenagem, já ressaltava esse caráter contraditório nos movimentos revolucionários mostrando como as estruturas de comando da revolução assumiam posturas conservadoras e contra-revolucionárias logo que precisavam se estruturar para assegurar o poder revolucionário. Max Pagés (1998) evidencia também essa contradição dos movimentos revolucionários mostrando a falta de coerência histórica entre o discurso e a dinâmica estruturante do poder, como mecanismo de reprodução do status quo, cujo desejo de mudança motiva a revolução.

Considere-se que esse tipo de reprodução do modelo antagônico se expressa comumente antes mesmo que as forças instituintes assumam o poder e se transformem em instituídas. Numa leitura dialética dos processos sociais e individuais pode-se observar que já se estruturam forças instituídas no seio das próprias energias instituintes; forças que se revelam na própria organização do poder evolucionário.

Falar em nome do outro e representá-lo com ou sem mandato para isto pode implicar, na prática, na exclusão deste outro ou mesmo na desconsideração da importância de sua fala e, sobretudo de sua organização na base do processo social como fundamento da democracia.

Nos dias atuais vemos surgir um número cada vez maior de grandes organizações sociais que se constituem e se representam institucionalmente nas relações com a sociedade, com as estruturas do Estado e com outras organizações sociais, cuja legitimidade é aceita geralmente como se os próprios representados ali estivessem. Num mundo em que as comunicações são tão abrangentes quanto o âmbito da mídia mobilizada (quanto mais abrangente mais credibilidade passa) a fala pública dessas mega representações sociais dificilmente são contestadas pelos “representados”, sobretudo por aqueles que não tem acesso à mesma mídia.

É importante considerar e explicitar aqui que a nossa preocupação nesta discussão com relação aos produtores rurais dos assentamentos da Reforma Agrária não é de contestar ou duvidar da legitimidade ou da importância política e estratégica dessas

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representações para o avanço da luta ou defesa dos interesses dos representados. Muito menos estamos questionando a honestidade de propósitos e a postura ética dessas organizações ou de suas lideranças. Muito pelo contrário ratificamos por oportuno nosso respeito e admiração pelas organizações dos trabalhadores e produtores rurais que militam no nosso País.

Segundo pensamos, o núcleo dessa contradição entre as estruturas de coordenação e a base das organizações sociais reproduz a contradição fundamental do capitalismo no que se refere à apropriação do capital. A massa da população organizada que representa o capital social, mesmo quando beneficiada pelas ações da organização que as representa raramente têm o controle político da sua representação, comumente exercido por lideranças que têm a hegemonia do poder e não raro nele se perpetuam de maneira personalista ou grupal. As organizações sociais são consideradas e valorizadas pelo poder simbólico decorrente do peso político das populações que representam, ou seja, pelo capital social que acumulam e controlam, como poder de barganha nos embates com as autoridades constituídas e com a sociedade. No caso das organizações de massa essa apropriação tem dois sentidos, um na perspectiva externa pelo que representam no conjunto das relações políticas na sociedade; outro interno, de controle da organização nos embates pela hegemonia das forças que a estruturam.

Nas nossas análises sobre os assentamentos da reforma agrária essa questão aparece mais clara quando se constata a fragilidade da organização social dos assentados onde o capital social poderia ser um diferencial importante no desenvolvimento econômico e social, conforme se justifica acima e como foi constatado em recente pesquisa (Bittencourt 1998) sobre os fatores de sucesso e fracasso dos assentamentos. Observamos ainda que o poder e a capacidade de organização dos trabalhadores rurais nos planos estadual, regional e nacional não tem correspondência no plano dos assentamentos. Mais amplo é o âmbito da estrutura organizacional mais forte ela é. Mais restrito e localizado é o coletivo, menor é sua capacidade de organização e articulação. Organizações fortes representando bases frágeis e pouco organizadas, eis a contradição que dissocia a organização de massa das organizações de base.

É claro que há justificativas plausíveis para o fortalecimento da organização dos trabalhadores no âmbito mais amplo para reforçar a capacidade de enfrentamento no Plano estadual e, sobretudo no plano nacional onde são formuladas as políticas públicas. Num país como o Brasil onde a situação dos trabalhadores rurais é gravíssima é possível compreender-se até mesmo essa dissociação, considerando que a organização nacional precisa ser mais forte e não pode espera que primeiro as organizações de base se fortaleçam para depois priorizar os níveis superiores da organização numa lógica de baixo para cima.

È necessário lembrar, no entanto, que essa estratégia não elimina a contradição acima referida nem os seus efeitos negativos sobre o conjunto do poder da organização dos trabalhadores; não elimina tampouco a necessidade de analisar e buscar alternativas para o fortalecimento do capital social nos assentamentos.

Do ponto de vista prático, há que se investir na organização de base nos assentamentos com ênfase para a autonomia local, inclusive como referência para se fortalecer a organização estadual e nacional. Nossa pesquisa sobre formação e apropriação do capital social nos assentamentos da Reforma Agrária” (MATOS, 2001) procura contribuir nesta direção analisando a eficácia, sustentabilidade e efetividade dos processos organizacionais a partir da análise de uma tipologia de modelos centrados em

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diferentes referências como as lutas pela terra e por recursos para cultivá-la, a busca da racionalidade gerencial, a articulação operativa pelo trabalho das lideranças e a dependência com relação a eles, a existência do grupo como regulador coletivo autônomo, entre outras.

Na discussão da contradição entre a coordenação e representação das organizações de massa e sua base trabalhamos com uma referência central do processo democrático que a autonomia, conceito muitas vezes tomado equivocadamente no contexto das discussões sobre o individualismo em contraposição ao coletivismo. Eis que a nossa idéia de capital social se estrutura a partir do conceito de autonomia num linha de reflexão coerente com a filosofia da práxis e comprometida com a redução da alienação dos atores sociais no plano coletivo e individual na relação com as estruturas de poder, espaço onde a reflexão crítica sobre a realidade social assume sua tarefa precípua como instrumento de transformação social. CASTORIADIS (1975: 103) chama de práxis o “fazer, onde o outro ou os outros são vistos como seres autônomos e considerados como agente essencial do desenvolvimento de sua própria autonomia”. O grupo social assume, assim a posição de sujeito de sua própria história, construindo o conhecimento sobre se mesmo e sobre o seu contexto. Ele (1975:103) reforça que “a práxis visa à autonomia como um fim e a utiliza como um meio”. A práxis e a autonomia estariam assim na base da construção do sujeito social que, segundo pensamos é uma referência fundamental ao conceito de capital social e à democracia.

Neste sentido a questão da autonomia das organizações de base não pode ser atravessada pelo discurso maniqueísta que contrapõe as singularidades locais à igualdade coletivista e associa o direito universal à individualidade com o individualismo e isolamento social das elites. Não há como pensar o desenvolvimento de assentamentos rurais sem trabalhar na construção dessa autonomia com respeito às singularidades de cada situação e às diferenças individuais. Da mesma forma, não há como aumentar o poder de coordenação dos trabalhadores sem o reforço da autonomia da base constituída por uma práxis verdadeiramente democrática. Comprova-se, na prática, que o fortalecimento da autonomia local tanto é fundamental ao desenvolvimento comunitário como reforça a organização social dos trabalhadores em níveis mais amplos.

III - Da reforma agrária ao desenvolvimento rural: uma evolução necessária

No Brasil ainda prevalece em setores acadêmicos, em parte da Igreja católica e em movimentos sociais importantes, a visão da reforma agrária como “destruidora” da velha ordem, como se o capitalismo brasileiro fosse dominado por oligarquias agrárias natimortas. Seu papel seria a de eliminar do mapa o latifúndio e, com isso, fundar uma nova ordem. As evidências recentes mostram no Brasil um notável crescimento das ocupações rurais não agrícolas, dentro do mundo rural, fenômeno esse observado na maioria das economias latinoamericanas. Se entendemos que o Brasil Rural é constituído de cerca de 4.500 municípios, com uma população de 50 milhões de habitantes, com imensas possibilidades de novas dinâmicas econômicas, combinando o agrícola e o não agrícola, explorando o empreendedorismo quase inato do nosso povo, especialmente dos mais pobres, estamos diante de uma oportunidade única de criar milhões de ocupações produtivas. A velha noção de reforma agrária tem de dar lugar a

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uma outra que, sem desconsiderar ainda a importância da redistribuição de terras, vai fomentar o Desenvolvimento Rural com um enfoque territorial amplo. Não apenas combater a pobreza mais construir cidadania.

a) O foco territorial do Desenvolvimento Rural

A complicada problemática do desenvolvimento territorial exige que sejam abordados separadamente seus três temas centrais: a recomposição dos territórios, os sistemas produtivos locais, e o meio ambiente. Na prática, é impossível tratar cada um desses três eixos sem que sejam feitas muitas referências aos outros dois. Mas é esse esforço de separá-los que ajuda a explicitar o que se entende por desenvolvimento territorial.

Grande parte das nações adotou há muito tempo suas atuais estruturas territoriais. Em muitos casos, seu surgimento foi anterior à própria industrialização. São anacrônicas as instituições que até hoje regulam os poderes locais, bem como os escalões que fazem a intermediação com o Estado central. Os critérios político-administrativos que mais influenciaram a formação dos vários tipos de divisão territorial existentes não resultaram das reais necessidades do crescimento econômico moderno e muito menos daquilo que hoje tende a ser considerado um processo de desenvolvimento sustentável. Nada mais previsível, portanto, do que um paulatino movimento de conscientização coletiva sobre tal inadequação, seguido de tentativas de adaptação às novas necessidades do desenvolvimento dessas hierarquias territoriais herdadas de um período em que as atividades primárias ainda dominavam o sistema econômico. Em poucas palavras, são raros os países que não sentem hoje a necessidade de modernizar seus esquemas de enquadramento territorial da ação pública.

Nesse contexto, as relações entre os espaços mais urbanizados e os espaços em que os ecossistemas permanecem menos artificializados - isto é, as relações urbano/rurais – não mais correspondem à antiquada dicotomia entre a cidade e o campo. Durante o século 20, o processo de desenvolvimento tornou simplista essa dicotomia, substituindo-a por uma geometria variável na qual passaram a ser cada vez mais cruciais as aglomerações e as microrregiões. Duas categorias que se misturam no caso das regiões metropolitanas, mas que podem ter relações bem diferentes nos outros casos. As microrregiões que envolvem uma aglomeração não-metropolitana também tendem a ser essencialmente urbanas. Mas as microrregiões que só abrigam centros urbanos e/ou vilas “rurbanas” podem ser relativamente rurais, ou mesmo essencialmente rurais, quando predominam ecossistemas dos menos artificializados.

A expressão “recomposição dos territórios” expressa, portanto, essa necessidade de novas formas institucionais de consertação, coordenação, gestão, ou simplesmente “governança”, das aglomerações e das microrregiões. Nos dois casos essas novas formas institucionais devem superar as antigas estruturas de poder local, promovendo a articulação das unidades político-administrativas preexistentes. Um desafio que em muitos países tem sido chamado de cooperação inter-comunidades, ou simplesmente “inter-comunalidade”. No Brasil isso corresponde à promoção de articulações intermunicipais microrregionais, como, por exemplo, as Associações catarinenses, ou os diversos tipos de consórcios espalhados por todo o País. Quando uma aglomeração ou uma microrregião alcança graus de coesão e organização suficientes para que seja capaz de formular e adotar um plano de desenvolvimento local, é inevitável que ela perceba a importância estratégica de dois fatores decisivos: o sistema produtivo local e o trunfo

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ambiental (Veiga,2002)29.

b) O Brasil Rural: redescobrindo o território

Uma aproximação menos agregada da configuração territorial do Brasil revela uma tendência que não deveria ser ignorada pelos formuladores das políticas governamentais. Mesmo que se acrescente ao Brasil verdadeiramente urbano todos os municípios intermédios, considerando-os como vilas de tipo “rurbano” que poderão se transformar em Centros Urbanos, chega-se a um total de 1.022 municípios, nos quais residiam em 2000 quase 118 milhões de pessoas. Nesse subconjunto ampliado, o aumento populacional entre 1991 e 2000 foi próximo de 20%, com destaque para as Aglomerações Não-Metropolitanas e para os Centros Urbanos. Em ambos houve crescimento demográfico um pouco superior.

Mas não se deve deduzir daí, como se faz com extrema freqüência, que todos os outros municípios - de pequeno porte e características essencialmente rurais - tenham sofrido evasão populacional. Foi, de fato, o que ocorreu na metade desses municípios, como mostra a tabela 7. Mas ela também mostra que em um quarto deles houve um aumento populacional de 31,3%, bem superior, portanto, aos que ocorreram no Brasil urbano. E mais do que o dobro do crescimento populacional do Brasil como um todo, que foi de 15,5% no período intercensitário de 1991-2000.

Tabela 7:- O Brasil urbano “ampliado” de 1991 a 2000

População (milhões) Número de

Municípios 1991 2000

Variação 1991-2000 (milhões)

Variação 1991-2000

(%) Aglomerações 12 Metropolitanas 200 48,5 57,4 8,9 18,4 37 Não-metropol. 178 18,5 22,7 4,2 22,8 SUBTOTAL AGLOM. 378 67,0 80,1 13,1 19,6 “Cidades Médias” Centros urbanos 77 13,2 16,1 2,9 22,0 Vilas “rurbanas” 567 18,9 21,7 2,8 15,0 SUBTOTAL “C.Médias” 644 32,1 37,8 5,7 17,8 URBANO AMPLIADO 1.022 99,1 117,9 18.8 19,0 Fonte: Elaboração Veiga, José Eli, com dados do Censo.

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Veiga, José Eli, CIDADES IMAGINÁRIAS, Estudos NEAD 6,2002 (no prelo).

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Tabela 8: O Brasil rural de 1991 a 2000

População (milhões) Pequenos

Municípios Número de Municípios 1991 2000

Variação 1991-2000 (milhões)

Variação 1991-2000

(%) Esvaentes 2.025 20,8 19,7 - 1,1 - 5,3 Letárgicos 1.351 16,0 17,5 1,5 9,7 Atraentes 1.109 11,0 14,4 3,4 31,3 TOTAL -RURAIS 4.485 47,7 51,6 3,9 8,1

Fonte: Elaboração Veiga, José Eli, com dados do Censo. Praticamente nada se sabe sobre os fatores que levaram esses 1.109 municípios

com características inequivocamente rurais a terem um crescimento populacional tão surpreendente. E o fato disto constituir surpresa só pode ser interpretado como mais um sinal de que o pensamento brasileiro sobre a questão está muito atrasado. Não é possível que se considere mais de 90% do território brasileiro, 80% de seus municípios, e 30% de sua população como mero resíduo deixado pela epopéia urbano-industrial da segunda metade do século 20. Pior, não é possível tratá-lo como se nele existissem entre 4.500 e 5.000 cidades imaginárias.

Todavia, o que mais interessa não é comparar a participação demográfica dos

espaços mais urbanos, mais rurais, ou intermediários. O que importa é entender que o futuro dessas populações dependerá cada vez mais de articulações intermunicipais capazes de diagnosticar as vocações do território que compartilham, formular um plano de desenvolvimento local, e viabilizar seu financiamento com o imprescindível apoio das esferas governamentais superiores. Isso vale tanto para as aglomerações, quanto para as microrregiões. Mas é óbvio que são as microrregiões que não abrigam aglomerações as que menos estarão preparadas para enfrentar esse desafio. Daí a importância de um programa federal especialmente voltado para a promoção de articulações intermunicipais microrregionais de pequeno porte populacional. Isto é, um programa especialmente voltado ao desenvolvimento sustentável do Brasil rural(Veiga, 2002).30

c) Recomendações estratégicas para a política de terras

As proposições e práticas para a condução de reformas nos anos sessenta do Século passado, indicavam a necessidade de construção de instituições públicas que assumissem integralmente a tarefa de conduzi-las. Na atualidade, tal concepção provocaria na verdade um “constrangimento à participação” e terminaria por enfraquecer a sociedade civil.

Assim, se as reformas dirigidas à promoção do desenvolvimento pretendem

transformar sociedades inteiras, elas devem buscar o envolvimento de sociedades inteiras. Isso tem dado origem a um interesse crescente pela legitimidade e pela participação nas estratégias de desenvolvimento, e pela criação de instituições que possam traduzir essa legitimidade e participação. Na verdade, se o objetivo é a obtenção

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Idem,Veiga, José Eli, CIDADES IMAGINÁRIAS, Estudos NEAD 6,2002 (no prelo).

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da legitimidade, ou fazer com que as reformas tenham alcance profundo dentro da sociedade, a participação é necessária,. A legitimidade e a participação também são necessárias, se a estratégia de desenvolvimento tiver que ser adaptada à conjuntura do país e se essa estratégia evocar o tipo de compromisso e de envolvimento de longo prazo, que são necessários para a sustentabilidade. (Stiglitz,1998)31

No caso da política de terras, a participação se revela ainda mais importante, uma

vez que o acesso ao ativo terra por trabalhadores pobres constitui um momento emancipatório único na trajetória social desses grupos no Brasil.

Algumas recomendações estratégicas para melhorar a eficiência e a eficácia da

política de terras em curso no país, são a seguir sugeridas:

i) Atualização do marco jurídico

A despeito de avanços observados ao longo dos últimos anos, especialmente em relação a dispositivos legais que tratam da desapropriação de terras e do sistema público de registro de terras, ainda permanecem na legislação infra-constitucional e nas decisões judiciais lacunas que levam a processos indenizatórios superiores ao valor de mercado das terras desapropriadas para fins de reforma agrária. Isso constitui uma transferência de riqueza abusiva para os donos de terras e intermediários e a impossibilidade objetiva de repagamento das terras pelos beneficiários.

�� Flexibilidade nos meios de obtenção de terras e sua transferência.

Isso significa regular tanto a desapropriação de terras (dentro dos requisitos fixados) como a recuperação de apossamentos ilegais de terras públicas. O uso de financiamentos diretos para a compra direta por parte dos interessados, incluindo incentivos para uma barganha nos preços oferecidos no processo de negociação. O arrendamento com limites mínimos de prazo e incentivos para contratos com prazos maiores ( por exemplo a isenção do imposto sobre a renda e/ou territorial para prazos superiores a 10 anos, com direito de preferência). A titulação administrativa rápida e simplificada para posses com mais de 5 anos e limite superior fixado (área da propriedade familiar).

�� Ordenamento territorial.

Verificam-se nas legislações omissões importantes em matéria de ordenamento

territorial. Apesar das restrições de uso por questões ambientais serem cada vez mais freqüentes, não são acompanhadas de mecanismos que incentivem a valorização do patrimônio natural por parte dos agricultores.

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Stiglitz, Joseph, Distribution, Efficiency and Voice: Designing the Second Generation of Reforms, Seminário Internacional sobre Distribuição de Riqueza, Pobreza e Crescimento Econômico, Banco Mundial/NEAD, Brasília, julho de 1998.

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ii)Modernização de cadastros e tributação

As deficiências nos sistemas de cadastros rurais foram apontadas como responsáveis por dificuldades na cobrança de impostos, imprecisão dos registros públicos, alem de facilitarem a fraude e o apossamento ilegal de terras .Os altos custos para a demarcação de terras através de sistemas topográficos convencionais impediram a elaboração de mapas cadastrais precisos. Por isso somente países ricos puderam desenvolver esses sistemas, consolidando a malha fundiária, gerando informações que permitiram criar a segurança jurídica necessário ao desenvolvimento do mercado de terras. Também a disponibilidade de informações registrada no plano cartográfica, permitiu um planejamento da infra-estrutura de apoio ao desenvolvimento das regiões.

Atualmente, com o avanço tecnológico na área de informações e a cobertura de Satélites, é possível se realizar medições e demarcações de terras a custos extremamente baixos se comparados com o antigo sistema. É possível, por exemplo, realizar um levantamento topográfico de perímetro, utilizando-se o GPS com rapidez e baixo custo. A informação georeferenciada pode ser transmitida para uma pequena central de coleta de dados, iniciando-se assim a constituição de uma base de dados digitais que com levantamentos complementares de campo e escritório vão permitir gerar um Sistema de Informações Espaciais para uso múltiplo.

A recomendação para que os Planos e Programas de Desenvolvimento Rural incluam a modernização dos cadastros rurais, combinados com projetos de regularização fundiária, permitira que se consolidem as estruturas e se criem as condições de informações para um melhor funcionamento do mercado de terras.

Quanto a tributação da terra, conforme se argumentou neste documento, no caso da adoção da modernização cadastral aqui sugerida, deveriam ser orientados, a exemplo da nova lei venezuelana, para um sistema de incidência baseado no uso potencial das terras (aquele país já investe há anos num sistema cadastral georeferenciado). Isto funcionará como um incentivo coadjuvante ao maior e melhor uso da terra. A descentralização da competência para instancias municipais é outra recomendação baseada na experiência histórica e nos argumentos de que a proximidade e o interesse da arrecadação pelos poderes locais resultará em melhor administração do tributo e em conseqüência, melhorando seu resultado extrafiscal esperado.

iii)Instrumentos adequados e combinados às distintas situações32

�� O acesso à terra pode ser uma estratégia efetiva para sair da pobreza porém seu êxito requer condições especiais.

O acesso à terra por si só não assegura a saída da pobreza ( condição necessária mas não suficiente). Necessita de condições tais como: competitividade nos mercados de produtos; remuneração do trabalho maior que o custo de oportunidade; alimentos produzidos para o autoconsumo mais baratos que aqueles comprados no mercado. Os requerimentos de quantidade de terras, infra-estrutura e acesso a financiamentos em condições adequadas, são os fatores que conferem viabilidade real à processos de

32

Estas propostas foram, em parte, sugeridas ao autor pelo Professor Alain de Janvry comentando a primeira versão de um documento preparado para o BIB, apresentado no Seminário Economias Rurais na América Latina, realizado em Fortaleza em março de 2002 durante a Assembléia de Governadores do BID..

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redistribuição de terras que tem como objetivo a ampliação das unidades familiares de produção agropecuárias

�� O acesso à terra como uma estratégia de saída da pobreza deve entender-se como parte de uma estratégia mais ampla de prover a subsistência das unidades familiares rurais.

A visão de que a os trabalhadores de zonas rurais vão prover sua subsistência apenas

através das atividades agropecuárias, levou a formulações de políticas de terras de sentido restrito. A realidade atual é que a pluriatividade constitui a tendência dominante e nesse caso a terra vai absorver o trabalho em tempo parcial do trabalhador e a combinação entre atividades agrícolas e não agrícolas vai depender da disponibilidade de ativos e do contexto (oportunidades de trabalho dentro e fora da propriedade). Desse modo, a redistribuição de terras em unidades sub-familiares deve fazer parte das estratégias de programas e projetos de desenvolvimento rural, podendo se constituir em algumas regiões a forma principal de acesso à terra.

�� Existe uma multiplicidade de caminhos e formas de acesso à terra.

Herança ou legado, compra e venda, apossamento de terras públicas ou privadas,

arrendamento e parceria, reforma agrária, usufruto, etc. Cada um desses instrumentos alternativos pode ser melhorado e fazer-se mais efetivo, com políticas e programas específicos, sendo a reforma agrária uma delas.

�� Existe uma multiplicidade de tipos de reforma agrária. Os diferente tipos de reforma agrária deveriam ser entendidos como complementares entre si, em função de cada situação específica.

Quatro condições de êxito para o manejo de uma estratégia de uma estratégia de

acesso à terra para os pobres do campo: pelo lado da oferta: factibilidade política (ótimo de pareto); viabilidade fiscal (custos e subsídios os mais baixos possíveis para lograr uma ampla cobertura da demanda social); pelo lado da demanda: incorporação dos pobres (com acesso a um nível mínimo de dotação de ativos necessários para participar do programa); competitividade dos beneficiários ( sustentabilidade econômica vis-a-vis sua inserção no mercado.

Expropriações baseadas na função social da propriedade da terra rural

Requer viabilidade política e fortes movimentos sociais. Importante onde a distribuição da terra é muito desigual, existe muita terra subutilizada e muitos pobres sem terra. A atuação do governo é essencial para evitar situações de violência e reduzir os custos da desapropriação. Como principal instrumento de redistribuição de terras ainda utilizado no Brasil, seu uso pode ser melhorado, introduzindo-se mecanismos que controlem o valor das indenizações. A combinação entre pagamento em dinheiro e títulos públicos pode introduzir um elemento de barganha para acordos administrativos deixando a arbitragem judicial para casos excepcionais. Isso, obviamente exige transparência e amplo controle social.

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Redistribuição através do mercado de compra e venda de terras.

Aspectos inovadores: participação comunitária; incentivos para a promoção de barganha no preço da terra; processos de auto-seleção dos beneficiários; grupos menores e maior formação de capital social; ausência de conflito; melhor inserção na sociedade local. Riscos: poder oligopsônio local; aumento do preço da terra. A experiência em curso no Brasil já aponta formas de redução dos riscos apontados e maior transparência e controle social. A limitação do uso desse instrumento apenas às terras não desapropriáveis, pode ser um fator limitante no futuro, caso este, em dadas circunstancias e regiões definidas possa vir a ser a melhor solução.33

�� O mercado de arrendamento de terras tem sido relegado como opção para acesso à terra na América Latina e no Brasil

A exigência de uma adequada regulação, prazos e formas de controle dos contratos

explica a pequena importância desse instrumento na região. Isso se observa principalmente nos países com fortes desigualdades na distribuição da riqueza (terra) e da renda. Mesmo assim a experiência histórica de países hoje desenvolvidos recomenda que esse instrumento pode vir a se transformar num “degrau” de acesso à propriedade da terra, caso as condições assinaladas neste documento sejam adotadas. �� Princípios norteadores nas intervenções de reforma agrária

completar a agenda iniciada

Os custos econômicos e sociais de reformas agrárias inconclusas são elevados. O tempo prejudica os beneficiários que não podem ser competitivos se não tem acesso seguro à terra (títulação). No caso do Brasil, apesar dos avanços, existe um “déficit” em infra-estrutura nos assentamentos que comprometem o desenvolvimento e a consolidação das atividades produtivas. É necessário superar o ainda enorme preconceito de que os trabalhadores, caso venham a ser titulados, vão vender as suas terras. Na verdade, qualquer que sejam as restrições, sempre haverá uma mercado (formal ou informal). A intensidade do mesmo é que deve preocupar os responsáveis públicos, porque podem indicar a inexistência de condições de sustentabilidade ( econômica, ambiental, etc.).

o acesso à terra pode ser a parte fácil de uma reforma exitosa ao passo que lograr a competitividade é a parte difícil.

É necessário incorporar nas intervenções de reforma agrária os enfoques “novos” de desenvolvimento rural: crescimento regional (contexto) e incorporação econômicas dos pobres às oportunidades locais ( ativos). Os beneficiários necessitam controlar os níveis mínimos de ativos produtivos: experiência; maquinaria; rebanho; acesso à instituições de apoio e mercados.

33

Existem regiões no Brasil de ocupação e estrutura fundiária já definidas, com uma agricultura de base familiar constituída e, em parte consolidada, em que a redistribuição do ativo terra, não terá a mesma importância do que em outras regiões de elevada concentração de terras e pobreza, como o Nordeste e o Norte do país. Entretanto, o uso de instrumentos de regulação do mercado de terras e de financiamento para a manutenção da estrutura de base familiar pode se constituir num elemento estratégico e redinamizador das economias locais.

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capitalizar os interesses urbanos em temas ambientais para negociar o acesso à terra

Qualidade da água, combate à contaminação atmosférica, biodiversidade, recreação, são temas relativos a serviços ambientais que podem se constituir em formas de pagamento das terras, num contexto de um Plano de Desenvolvimento Rural de uma dada localidade. Nesse casso, inclusive, se deveria examinar a hipótese de expropriação por mal uso ambiental.

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