Três Abordagens Distintas Sobre a Categoria Da Reprodução

14
TRÊS ABORDAGENS DISTINTAS SOBRE A CATEGORIA DA REPRODUÇÃO: LUKÁCS, ALTHUSSER E BOURDIEU & PASSERON Three different approaches about the category of the reproduction: Lukács, Althusser and Bourdieu & Passeron VAISMAN, Ester 1 FORTES, Ronaldo Vielmi 2 RESUMO Consideramos que a análise do problema da reprodução não pode prescindir da contribuição de Gÿorgy Lukács, de Para uma Ontologia do Ser Social, de Louis Althusser, de Sobre a Reprodução, e de Bourdieu e Passeron, de A Reprodução – Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Em suma, o que se pretende com a presente comunicação é estabelecer um quadro comparativo entre as três concepções de reprodução e seus vínculos com o fenômeno educativo, sublinhando, sempre que possível, o matrizamento filosófico de cada uma das concepções. Nesse sentido, objetivamos demonstrar em largos traços os problemas e limites das concepções de Althusser e de Bourdieu e Passeron frente àquela tematizada por Lukács em sua obra postumamente publicada. Palavras-chave: Reprodução; Filosofia; Ontologia. ABSTRACT We consider that the analysis of the reproduction problem can not do without Gÿorgy Lukács contribution, of The Ontology of the social being, Louis Althusser in About the Reproduction, and Bourdieu e Passeron, with The Reproduction - Elements for a theory of system teaching. Ultimately, what is intended with this communication is to establish a comparative chart between the three reproduction concepts and their links to the educational phenomenon, stressing, whenever possible, the philosophical matrix relationship of each of the concepts. In this sense, we aim to show broadly the problems and limits of conceptions of Althusser and Bourdieu e Passeron against to that discussed by Lukács in his posthumously published work. Keywords: Reproduction; Philosophy; Ontology. 1 Doutora em Educação pela UFMG, Pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Mestrado em Filosofia pela UFPB, Graduação em Ciências Sociais pela USP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG. E-mail: <[email protected]>. 2 Doutor e Mestre em Filosofia pela UFMG, Pós-doutorado pela Universidade de Buenos aires, Graduação em Psicologia pela Fundação Mineira de Educação e Cultura. Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: <[email protected]>.

description

Artigo

Transcript of Três Abordagens Distintas Sobre a Categoria Da Reprodução

  • TRS ABORDAGENS DISTINTAS SOBRE A CATEGORIA DA REPRODUO: LUKCS, ALTHUSSER E BOURDIEU & PASSERON

    Three different approaches about the category of the reproduction: Lukcs, Althusser and Bourdieu & Passeron

    VAISMAN, Ester1 FORTES, Ronaldo Vielmi2

    RESUMO Consideramos que a anlise do problema da reproduo no pode prescindir da contribuio de Gorgy Lukcs, de Para uma Ontologia do Ser Social, de Louis Althusser, de Sobre a Reproduo, e de Bourdieu e Passeron, de A Reproduo Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Em suma, o que se pretende com a presente comunicao estabelecer um quadro comparativo entre as trs concepes de reproduo e seus vnculos com o fenmeno educativo, sublinhando, sempre que possvel, o matrizamento filosfico de cada uma das concepes. Nesse sentido, objetivamos demonstrar em largos traos os problemas e limites das concepes de Althusser e de Bourdieu e Passeron frente quela tematizada por Lukcs em sua obra postumamente publicada.

    Palavras-chave: Reproduo; Filosofia; Ontologia.

    ABSTRACT We consider that the analysis of the reproduction problem can not do without Gorgy Lukcs contribution, of The Ontology of the social being, Louis Althusser in About the Reproduction, and Bourdieu e Passeron, with The Reproduction - Elements for a theory of system teaching. Ultimately, what is intended with this communication is to establish a comparative chart between the three reproduction concepts and their links to the educational phenomenon, stressing, whenever possible, the philosophical matrix relationship of each of the concepts. In this sense, we aim to show broadly the problems and limits of conceptions of Althusser and Bourdieu e Passeron against to that discussed by Lukcs in his posthumously published work.

    Keywords: Reproduction; Philosophy; Ontology.

    1 Doutora em Educao pela UFMG, Ps-doutorado pela cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Mestrado em Filosofia pela UFPB, Graduao em Cincias Sociais pela USP. Professora do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da UFMG. E-mail: . 2 Doutor e Mestre em Filosofia pela UFMG, Ps-doutorado pela Universidade de Buenos aires, Graduao em Psicologia pela Fundao Mineira de Educao e Cultura. Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: .

  • Lukcs analisa o problema da reproduo no segundo captulo da chamada

    parte sistemtica de Per lontologia dellessere sociale (1981) depois de ter

    caracterizado o complexo categorial do trabalho. justamente no campo da

    reproduo, ento tomada do ponto de vista ontolgico, que se verifica a

    autoexplicitao categorial humana, tanto no polo do gnero, quanto no polo

    individual. No caso de Althusser, h elementos importantes acerca do mesmo

    problema no livro Sobre a Reproduo, bem como no Ensaio sobre os

    Aparelhos Ideolgicos de Estado. Nesses escritos, encontramos valiosas

    indicaes acerca do papel do aparelho escolar para a reproduo das

    relaes de produo. No interior desse esquema, a ideologia tem papel

    preponderante. Segundo Bourdieu & Passeron, a anlise da reproduo parte

    da afirmao axiomtica da existncia de uma fora social simblica. O

    fenmeno da educao, em particular entendido como toda relao onde h

    qualquer transmisso de conhecimento ou habilidade, objetivamente uma

    violncia simblica (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p.20).

    A melhor forma de tratar esta questo em Lukcs referir sua anlise acerca

    do complexo trabalho, uma vez que tal complexo corresponde ao salto que

    destaca o homem das formas dos seres naturais, ao mesmo tempo em que

    precisamente por ser o complexo originrio estabelece a peculiaridade dos

    processos sociais frente s dinmicas comuns aos seres da natureza orgnica

    e inorgnica: no caso especfico o que importa o processo da reproduo. O

    trabalho, como o complexo que prescreve a diferena especfica, a atividade

    situada na fronteira do autenticamente humano e das categorias e complexos

    da esfera da natureza. Nas palavras de Lukcs,

    o trabalho acima de tudo, em termos genticos, o ponto de partida para o devir homem do homem, para o treinamento de suas qualidades, onde no deve ser esquecido, para o domnio sobre si mesmo. Ele permanece por longo perodo, o nico mbito para este desenvolvimento e, todas as outras formas de atividade do homem, ligadas a diversos valores, podem apresentar-se como autnomos, depois que o trabalho j alcanou um nvel relativamente elevado (LUKCS, 1976, p.330).

    O trabalho a atividade que congrega no interior de seu complexo de

    categorias a integrao indissocivel entre os elementos peculiares do ser

    social e aqueles pertencentes natureza em geral. Isto justifica sua posio

    central na ontologia do ser social, pois ele o elo de interseo entre

  • complexos heterogneos ser social e natureza. As categorias deste complexo

    constituem, em seu processo de interao indissocivel, a peculiaridade

    humana frente aos seres da natureza, confere a ele um modo inusitado de

    reproduo e produo da prpria existncia, destacando-o de modo definitivo

    das formas de reproduo natural.

    A constatao marxiana do trabalho como gnese do ser social e como modelo

    de toda prxis social provavelmente uma das poucas determinaes

    universais de seu pensamento se no for a nica , pois a nica lei que

    prevalece ativa no ser social independentemente de toda transformao

    histrica.

    O ser social se eleva historicamente do mundo inorgnico e orgnico, mas

    no pode mais por necessidade ontolgica abandonar esta sua base. O elo

    central de mediao que neste modo sempre se pe mais energicamente alm

    da mera naturalidade e, todavia, permanece inelutavelmente radicado nesta,

    o trabalho:

    Portanto o trabalho, como formador de valor-de-uso, como trabalho til, uma condio de existncia do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, uma necessidade natural eterna que tem a funo de mediar o metabolismo entre homem e natureza, isto a vida dos homens [Marx, apud Lukcs]. Nasce assim a nica lei objetiva e totalmente geral do ser social, que to eterna quanto o prprio ser social, isto , tambm ela uma lei histrica, j que nasce simultaneamente ao ser social, mas permanece ativa apenas enquanto este ltimo existir. Todas as outras leis so de carter histrico j no interior do ser social (LUKCS, 1976, p.340).

    A historicidade desta lei corresponde prpria historicidade do ser social. Sob

    este aspecto a prpria universalidade desta determinao essencial do ser

    social , sobretudo, histrica, uma vez que ela permanece em vigor enquanto o

    homem existir. Alm disso, a nica universalidade aqui admitida da lei que

    instaura a dinmica do ser social, e isto de maneira geral enquanto atividade

    caracterizada pelo pr teleolgico dos homens; deste modo, no se

    desconsidera a possibilidade de que tal atividade prtica humana seja

    susceptvel de mudanas em suas formas de manifestao; basta pensar no

    carter histrico do trabalho, que com o advento das prticas superiores da

    sociedade assume caractersticas sociais sempre mais decisivas,

    principalmente no que diz respeito s determinaes dos desdobramentos da

    forma humana de reproduo da prpria vida. A historicidade das outras leis

    atuantes na dinmica do ser social possui carter distinto.

  • As indicaes feitas acima so essenciais para que se compreendam

    adequadamente as razes que levam o pensador hngaro a afirmar a

    peculiaridade ontolgica da reproduo no mbito do ser social. Trata-se,

    acima de tudo, de um tipo de anlise que busca desvelar aquelas categorias

    que modificam a reproduo biolgica da vida humana e, para alm dela, a

    prpria reproduo da sociabilidade. Ou seja, Lukcs no nega a existncia de

    processos reprodutivos no mbito biolgico, contudo, sua ateno incide

    fundamentalmente sobre aqueles processos de talhe eminentemente social,

    que tem a capacidade de modificar as bases biolgicas dos processos

    reprodutivos e que conduzem ao afastamento das barreiras naturais.

    De acordo com Lukcs ainda, o conjunto de determinantes presentes na

    realidade social e nos processos de reproduo no podem ser compreendidos

    como produtos unilaterais das leis econmicas, na medida em que podem ter

    razes em complexos completamente heterogneos aos econmicos,

    complexos estes que tambm se apresentam na realidade como momentos

    importantes da dinmica social. Entrar e permanecer em vigor depende das

    circunstncias histrico-sociais que no so produzidas apenas pelas leis

    econmicas, mas por um conjunto de determinaes provenientes das mais

    diversificadas dimenses da totalidade, inclusive daqueles tipos de prtica

    social que se instauram para alm da esfera do trabalho. Portanto, longe de

    assumir aqui a postura economicista em que toda a dinmica social seus

    complexos e momentos mais decisivos oriunda da economia e se encontra

    em forte dependncia com a dimenso econmica da sociedade, Lukcs

    descreve o conjunto das interaes sociais constitutivas da realidade como a

    sntese de foras e movimentos diferenciados postos por complexos

    heterogneos. A constatao da dependncia do contexto histrico, assim

    como da heterogeneidade das determinaes da realidade, o contraponto

    ideia de leis econmicas universais e absolutas calcadas na concepo do

    desenvolvimento necessrio das formas da reproduo material da vida. Isto

    significa que as leis econmicas possuem uma validade concretamente

    delimitada e somente por meio de sua interao com outras dinmicas

    instauradoras da prtica social se efetivam na realidade. , em ltima instncia,

    uma fora atuante que governa parte das tendncias da prtica social, no

  • entanto, sempre operando na interao com outras foras. O exemplo da

    economia mostra a heterogeneidade de determinaes e caminhos que se

    processa no interior da dinmica do ser social, aspecto que confere prpria

    ao das leis no seu interior o carter de uma validade historicamente

    determinada.

    Lukcs sustenta ainda que a totalidade social seja a sntese dos atos

    individuais. Uma vez constituda, essa totalidade produz uma dinmica

    processual que se apresenta diante dos homens como um conjunto de nexos

    causais que suscitam problemas para os quais os indivduos buscam

    respostas, como forma de criar as condies necessrias reproduo de

    suas vidas, no sentido mais lato do termo. A causalidade aqui presente tem

    carter distinto da causalidade natural: trata-se da legalidade tendencial

    produzida e posta em movimento pelos atos singulares dos indivduos; esta,

    por sua vez, retroage sobre a prpria malha social e aparece como indutora

    dos pores teleolgicos dos homens neste sentido causalidade social. No

    ser social existe a simultnea dependncia e independncia dos seus

    produtos [Gebilde] e processos especficos em relao aos atos individuais

    que, imediatamente, os fazem surgir e prosseguir (LUKCS, 1976, p.326).

    Esta tese explicita com exemplos extrados diretamente da economia a relao

    dialtica entre essncia e fenmeno: ambas provm da mesma base,

    encontram-se imbricadas uma na outra e interagem sob a forma da

    determinao reflexiva. Os atos individuais, cujo campo de ao a

    imediatidade do mundo fenomnico, engendram as tendncias legais dos

    processos econmicos e, simultaneamente, produzem a gama de

    determinaes particulares caractersticas do hic et nunc histrico-social.

    Assim, a estrutura fundamental dos processos sociais posta em movimento

    na imediatidade dos pores teleolgicos. Os homens no decurso causal de seus

    atos alternativos singulares fazem surgir um processo causal

    contraditoriamente unitrio dos complexos sociais e da sua totalidade

    (LUKCS, 1986, p.337), criando ao mesmo tempo, sem conscincia do fato,

    conexes legais gerais. Deste modo, tanto o surgimento das categorias

    fetichizadas, caractersticas dos processos fenomnicos, quanto as conexes

  • legais caractersticas da essncia no ser social, so snteses de processos

    postos em movimento pelos pores teleolgicos.

    Ademais, o procedimento ontolgico, diferentemente do epistemolgico, o

    galgar contnuo do conhecimento que paulatinamente se aproxima sempre

    mais das determinaes concretas dos objetos reais. O resultado do processo

    cognitivo no nunca um sistema fechado; cada conquista neste campo

    implica a presena de novas determinaes como forma de apreender a lgica

    especfica do objeto no contexto especfico no qual ele se apresenta. A

    determinao ontolgica dos processos cognitivos rechaa deste modo

    qualquer forma de racionalismo sem, no entanto, cair no extremo oposto do

    irracionalismo,3 na medida em que no nega a existncia de legalidades no

    processo histrico de desenvolvimento do ser social e, muito menos, a

    possibilidade de conhec-las. Aproximao cognitiva a conformao na

    conscincia da determinidade ontolgica do prprio ser. Desse modo, o

    carter aproximativo do conhecimento no se assemelha em nada tese da

    impossibilidade de conhecer a legalidade inerente aos complexos, e at

    mesmo as suas determinaes mais essenciais. Demonstra, pelo contrrio,

    que a dificuldade da apreenso ideal dos nexos efetivos do ser tem por base a

    complexidade, o dinamismo e a heterogeneidade das determinantes

    constitutivas da totalidade.

    Aqui se revela o elemento decisivo da ontologia de Lukcs: a ineliminvel

    interao entre os atos singulares dos indivduos, com aquelas leis que

    marcam decisivamente as tendncias mais gerais do processo, como o caso

    da reproduo. Estes atos modificam e do curso a outras tendncias, mas no

    excluem ou se autonomizam frente ao conjunto de tendncias igualmente 3 A impossibilidade do conhecimento sobre os desdobramentos futuros de determinados eventos histricos no , neste sentido, a afirmao da inexistncia de lgica prpria dos processos. A essncia do agir humano caracterizada pelo fato de os homens tomarem suas decises em situaes que no permitem conhecer as consequncias plenas das alternativas assumidas em sua prtica. Os homens agem sempre no imediato de suas vidas, seus atos, no entanto, repercutem em dimenses mais amplas da malha social. A impossibilidade de prever as conseqncias destes atos e mesmo a incompreenso da totalidade dos eventos sociais aos quais respondem praticamente, no envolve de maneira alguma a afirmao de um desdobramento de cunho essencialmente subjetivista, carente de qualquer formas de necessidade objetiva no decurso histrico. Esta condio peculiar do agir humano gera uma situao tal fazendo com que os fatos e processos incompreensveis no evento imediato, carentes de sentido, possam aparecer no sucessivo desdobramento do emaranhado da causalidade como uma derivao que se insere perfeitamente no necessrio decurso causal-legal da histria, e nesta medida, pode ser conhecida post festum.

  • determinantes da efetividade. Pelo contrrio, so tambm por ela

    determinados. Em suma, o elemento decisivo aqui destacado retoma a tese de

    que os homens fazem a prpria histria, porm no com plena conscincia e

    domnio das tendncias e dinmicas por eles postas em curso.

    A anlise do momento material tratada em dois captulos: O trabalho e A

    reproduo. No primeiro capitulo o complexo trabalho aparece sob a forma da

    abstrao isoladora, cujo objetivo principal explicitar o complexo que instaura

    a gnese do ser social, ou seja, o complexo que estabelece as categorias da

    diferena especfica em relao s outras formas do ser. As categorias desse

    complexo aparecem como a forma originria, como o pressuposto de todas as

    formas superiores da prtica social, e neste sentido constitui o modelo de toda

    e qualquer prtica social. No captulo A Reproduo, o movimento de

    dissoluo das abstraes inicia seu curso. Elementos importantes dos

    processos sociais, provisoriamente abstrados na anlise do complexo trabalho

    como, por exemplo, as inter-relaes que os homens estabelecem entre si e

    com a totalidade do processo social so analisados de forma a explicitar o

    amplo leque de determinaes operantes na dinmica da reproduo material

    dos homens. Trata-se de demonstrar que o processo da gnese e do

    desenvolvimento do ser social no pode prescindir da relao direta com as

    outras esferas do ser orgnico e inorgnico e, neste sentido, que a

    ontologia do ser social pressupe a ontologia da natureza. O complexo da

    produo e da reproduo da vida, em sua necessria relao com a natureza,

    descrito como o momento preponderante e como a prioridade ontolgica

    sobre os outros complexos da sociabilidade humana. Ambos os captulos

    privilegiam a exposio dos lineamentos mais gerais acerca do momento

    material, sem negligenciar os apontamentos necessrios acerca da interao

    destes momentos com o momento ideal.

    No quadro acima delineado, os processos educativos tm extrema relevncia e

    so concebidos pelo filsofo em tela como processos que no se concluem

    jamais. Longe de conceb-los, assim como atos de subjugao das

    individualidades frente s instituies estabelecidas, eles exercem papel

    destacado na sua formao, preparando-as para responder s demandas

  • postas pela realidade social, a cada vez mais complexa. De acordo com

    Lukcs,

    enquanto na vida orgnica as tendncias conservao de si e da espcie so reprodues no sentido estreito, especfico, isto , so reprodues do processo vital que esgota a existncia de um ser vivente/.../ no ser social a reproduo implica por princpio mudanas internas e externas (LUKCS, 1981, p.135).

    Tratando-se de um processo dialeticamente contraditrio, Lukcs constata a

    existncia de um impulso imanente a este tipo de reproduo que tende a ir

    alm das formas histricas presentes em direo a formas mais complexas e

    diversificadas da vida social e individual. Desse modo o ser social se torna

    cada vez mais social/.../ no seu perene reproduzir-se a graus de sociabilidade

    cada vez mais elevados. (LUKCS, 1981, p.142). Portanto, justamente

    nesse sentido que se deve compreender que as categorias cada vez mais

    sociais modificam tambm a reproduo biolgica da vida humana (LUKCS,

    1981, p.146), tornando possvel, assim, vislumbrar a prioridade ontolgica dos

    vetores eminentemente sociais em todo o processo de reproduo.

    Louis Althusser foi, nas dcadas de sessenta e setenta do sculo passado, um

    dos responsveis - talvez o mais radical - pela incluso no campo marxista de

    uma teortica que parecia resolutiva para os impasses e dilemas que

    dominaram os debates travados quela poca, principalmente em relao

    polmica epistemolgica em torno da obra de Marx, que, apesar de sua

    sofisticao aparente, redundou em srias distores na interpretao de

    questes centrais da obra marxiana.

    Sinteticamente, a polmica epistemolgica, se centrou em torno da disputa

    sobre o estatuto cientfico do discurso marxiano na certeza unssona de que

    a base da reflexo marxiana ou a resoluo de suas dificuldades estava em

    algum canteiro do subsolo lgico-gnosio-epistmico (CHASIN, 1995, p.337).

    A desfigurao desse tipo de abordagem epistemologizante implicou pesado

    nus para o pensamento de Marx,

    designadamente porque a obra marxiana a negao explcita daquele parmetro na

  • identificao da cientificidade, tendo sua prpria arquitetnica reflexiva, por consonncia, natureza completamente distinta daquela suposta pelo epistemologismo. Donde, querer legitimar por meio de fundamento gnosio-epistmico as elaboraes marxianas desrespeitar frontalmente seu carter, e entorpecer o novo patamar de racionalidade que sua posio facultou compreender e tematizar, em proveito da apreenso do multiverso objetivo e subjetivo da munda-neidade humana (CHASIN, 1995, p.337).

    Althusser (1983) procurou ainda demonstrar o carter reprodutor do sistema

    educativo, atravs do reconhecimento da importncia do aparelho ideolgico

    de Estado escolar. Vale dizer, a escola desempenha importante funo na

    reproduo das relaes de produo capitalistas, proporcionando aos

    membros das diferentes classes sociais a ideologia apropriada, capaz de obter

    a interiorizao das relaes de dominao capitalista por parte da maioria dos

    indivduos. A ateno de Althusser recaiu, como veremos com um pouco mais

    de detalhe a seguir, portanto, sobre o carter material das ideologias, isto , o

    fato de que as ideologias, longe de serem simplesmente ideias, se encarnam

    em prticas, rituais, modos de comportamento etc. no interior dos aparelhos

    ideolgicos de Estado. Em sntese, para Althusser, uma das operaes

    fundamentais que se realizam na escola a inculcao da ideologia

    dominante.

    Ademais, foroso reconhecer que a reflexo althusseriana sobre a ideologia

    veio a cumprir funo decisiva nos estudos relativos no apenas no que

    concerne reproduo em geral, mas tambm em relao rea de educao

    em particular, abrindo assim todo um campo de estudos at ento praticamente

    inexistente.

    Vejamos com um pouco de detalhe como se articulou o argumento

    althusseriano a respeito. Pode-se considerar que haveria, aparentemente, no

    ensaio sobre os Aparelhos Ideolgicos de Estado, datado de 1970, um esforo

    por parte do autor em tela em desenvolver uma teoria da superestrutura e da

    reproduo livres da problemtica epistemolgica, ao construir um roteiro de

    pesquisa voltado problemtica do estado e do poltico. Assim que nesse

    texto o fenmeno ideolgico referido imediatamente ao processo de

    reproduo das condies de produo, pois, a condio ltima da produo

    a reproduo das condies de produo. Disto resulta que

    toda formao social para existir, ao mesmo tempo que produz, e para poder produzir deve reproduzir as condies de sua produo. Ela deve, portanto reproduzir: 1) as foras produtivas e 2) as relaes de produo (ALTHUSSER, 1983, p.53-54).

  • Por essa via, a reproduo da fora de trabalho no requer apenas a

    reproduo de sua qualificao, mas, sobretudo,

    uma reproduo de sua submisso s normas da ordem vigente, isto , uma reproduo da submisso dos operrios ideologia dominante por parte dos operrios e uma reproduo da capacidade de perfeito domnio da ideologia dominante por parte dos agentes da explorao e da represso, de modo a que eles assegurem tambm pela palavra o predomnio da classe dominante (ALTHUSSER, 1983, p.58).

    Althusser procura, assim, vincular de modo indissolvel o fenmeno da

    reproduo instncia ideolgico-poltica, deixando num obscuro segundo

    plano quaisquer mecanismos de outras ordens que poderiam concorrer para a

    efetivao do movimento reprodutivo das relaes sociais vigentes.

    Ainda segundo ele, tambm o caso especfico da

    reproduo da fora de trabalho evidencia, como condio sine quae non, no somente a reproduo de sua qualificao, mas tambm a reproduo da sua submisso ideologia dominante, ou da prtica desta ideologia, devendo ficar claro que no basta dizer: no somente mas tambm, pois a reproduo da qualificao da fora de trabalho se assegura em e sob as formas de submisso ideolgica (ALTHUSSER, 1983, p.59).

    A funo primordial da superestrutura em tal abordagem seria, pois, a de

    assegurar, atravs de mecanismos prprios sua natureza, a reproduo das

    relaes sociais vigentes. A eficincia no desempenho de tais funes, ou o

    que o autor chama de ndice de eficcia, embora esteja determinada, em

    ltima instncia, pela base econmica, implica: 1) a existncia de uma

    autonomia relativa da superestrutura em relao base, 2) a existncia de

    uma ao de retorno da superestrutura sobre a base (ALTHUSSER, 1983,

    p.61).

    O filsofo francs diferencia ento os aparelhos repressivos de estado, que

    operam atravs da violncia para garantir a dominao de classe, dos

    aparelhos ideolgicos de estado que garantem essa dominao de outro modo,

    pois funcionam atravs da ideologia (ALTHUSSER, 1983, p.69). Em uma

    palavra, repetindo, a reproduo assegurada pela superestrutura jurdico-

    poltica e ideolgica (ALTHUSSER, 1983, p.73).

    Temos que, modernamente, entre os vrios aparelhos existentes - igreja,

    famlia, sindicatos, partidos - aquele que assumiu posio dominante o

    aparelho ideolgico escolar, pois a escola que

  • se encarrega das crianas de todas as classes sociais desde o maternal, e desde o maternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante aqueles em que a criana mais vulnervel, espremida entre o aparelho de estado familiar e o aparelho de estado escolar, os saberes contidos na ideologia dominante (o francs, o clculo, a histria natural, as cincias, a literatura), ou simplesmente a ideologia domi-nante em estado puro (moral, educao cvica, filosofia) (ALTHUSSER, 1983, p.79).

    Em outras palavras, a escola o aparelho ideolgico por excelncia, na

    medida em que

    pela aprendizagem de alguns saberes contidos na inculcao macia da ideologia da classe dominante que, em grande parte, so reproduzidas as relaes de produo de uma formao social capitalista, ou seja, as relaes entre exploradores e explorados e entre explorados e exploradores (ALTHUSSER, 1983, p.80).

    Os mecanismos que facultam esse processo de

    inculcao so naturalmente encobertos e dissimulados por uma ideologia da Escola universalmente aceita, que uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante: uma ideologia que representa a Escola como neutra, desprovida de ideologia (uma vez que leiga) aonde os professores, respeitosos da conscincia e da liberdade das crianas que lhes so confiadas (com toda confiana) pelos pais (que por sua vez so tambm livres, isto , proprietrios de seus filhos), conduzem-nas liberdade, moralidade, responsabilidade adulta pelo seu exemplo, conhecimentos, literatura e virtudes libertrias (ALTHUSSER, 1983, p.80).

    Althusser se dedicou, portanto, a configurar o modo pelo qual se estrutura e

    funciona o aparelho ideolgico de estado escolar, cuja determinao nos

    moldes acima estimulou principalmente certa tendncia de socilogos

    investigao privilegiada do universo escolar, como aparelho fundamental

    para caracterizar o fenmeno da reproduo na sociedade capitalista.

    As afirmaes de Bourdieu e Passeron (1992), como veremos a seguir, partem,

    em grande medida, da tematizao althusseriana, vale dizer, questionam a

    aparente neutralidade do funcionamento do sistema educativo e indagam

    acerca de seu papel no interior da reproduo social. O objetivo de ambos

    analisar os mecanismos atravs dos quais a instituio educativa reproduz a

    cultura dominante, o que, segundo eles, acaba por contribuir para o reforo e

    manuteno das estruturas sociais vigentes. neste contexto que formulam a

    teoria da violncia simblica.

    De acordo com Bourdieu e Passeron, a elucidao da reproduo social

    apresenta, como requisito previamente estabelecido, a existncia de uma fora

  • social simblica. Tal fora poderia ser caracterizada da seguinte maneira: 1)

    tem como base as relaes de poder presentes na sociedade; 2) coopera na

    reproduo das relaes de fora j existentes; 3) distingue-se das outras

    foras sociais, na medida em que seu campo de atuao o da subjetividade e

    3) vela, por meio de sua prpria efetivao, o fato de ser uma decorrncia das

    relaes de poder. (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p.19).

    Dessa afirmao axiomtica, os autores concluem que a educao, sempre

    entendida como toda relao onde exista qualquer transmisso de saberes,

    objetivamente, uma violncia simblica (BOURDIEU; PASSERON, 1992,

    p.20). Essa noo comparece apresentando significado polmico, tendo em

    vista que, ao ser afirmada como um construto lgico, comporta ainda uma

    unidade terica de todas as aes caracterizadas pelo duplo arbitrrio da

    imposio simblica, vale dizer, o arbitrrio da imposio e o arbitrrio do

    contedo imposto. (BOURDIEU & PASSERON, 1992, p.13).

    A partir do instante em que definem a atividade pedaggica como violncia

    simblica, os autores articulam ainda um procedimento dedutivo, a partir do

    qual emerge a figura da autoridade pedaggica, que desempenharia em tal

    contexto uma dupla funo: 1) reproduz o conjunto de significaes

    (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p.23), de determinado arbitrrio cultural

    (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p.64), que , por sua vez, determinado pelos

    interesses materiais e simblicos de diferentes classes e grupos sociais. Ora,

    a reproduo teria como mdium necessrio a criao no plano subjetivo do

    habitus, formao durvel que se perpetua, mesmo depois de cessar o ato

    pedaggico propriamente dito. (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p.64) Alm

    disso, a autoridade pedaggica desenvolve mecanismos correlatos de auto-

    reproduo de si mesma.

    O quadro rapidamente delineado acima comportaria maiores detalhamentos,

    que se tornam necessrios para a compreenso da persistncia dos atos de

    violncia simblica, entretanto, faremos meno apenas ao desempenho de

    outra funo por parte da autoridade pedaggica alm daquelas j indicadas

    acima: ela tambm cumpre o papel de legitimao/velamento, ou seja, segundo

    os autores, a autoridade pedaggica ao se auto-reproduzir legitima a si prpria

    e os contedos que so por ela inculcados. Assim, se perpetuam tal como

  • um crculo vicioso tanto as relaes de poder, como o arbitrrio cultural e

    autoridade pedaggica.

    No interior dessa concepo cclica do tempo, os autores afirmam a

    reproduo como repetio infindvel dos mesmos pressupostos em

    momentos distintos temporalmente. Trata-se, enfim, da integrao e

    reintegrao de elementos que no se transformam, isto , permanecem

    imutveis.

    Por via de conseqncia, a esfera simblica, ou seja, a esfera da subjetividade

    exerce um papel absolutamente delegado nos mecanismos intrnsecos

    reproduo social, pois meramente reproduz as foras sociais dominantes,

    escapando aos autores qualquer reconhecimento do carter ativo e/ou reativo

    dessa dimenso.

    Assim, no interior dos mecanismos da reproduo, ao elemento simblico no

    conferido nem carter criador, nem carter ativo, tratando-se de um mero

    produto, uma reproduo simblica, delegada e veladora, das relaes

    sociais efetivas.

    Ademais, a irreversibilidade do habitus se revela como o corolrio da afirmao

    da unilateralidade da educao pelas relaes de poder existentes no seio da

    sociabilidade. A educao, nesse sentido, antes de mais nada concebida

    como a-histrica, pois sua estrutura , por natureza, invariante e sincrnica.

    Em sntese, de acordo com os assim chamados estudos crticos sobre o

    sistema educativo, influenciados direta ou indiretamente por Althusser,

    desenvolvidos a partir da dcada de 70 do sculo passado, a funo desse

    sistema, enquanto instrumento de reproduo da ideologia dominante,

    inculcar determinados valores, alm de legitimar, ainda, certos conhecimentos

    e linguagens, formas de comportamento e hbitos de conduta que fazem parte

    da cultura dominante.

    Em tal contexto, reproduo social (entendida como instrumento de

    legitimao e velamento das relaes sociais dominantes) atribudo um

    carter irreversvel e inexorvel que, de fato, ela desconhece. Se levarmos em

    conta o argumento de Lukcs a respeito, possvel perceber que, por exemplo,

    que Bourdieu e Passeron revelam desconhecer tambm que tanto na

  • educao, quanto na reproduo social em geral operam simultaneamente

    relaes contraditrias, tendo em vista que o carter de historicidade atinente

    ao fenmeno foi totalmente descartado pelos autores por princpio.

    Ademais, como vimos, enquanto que Lukcs chama a ateno para a diferena

    fundamental que separa os processos de reproduo biolgica daqueles

    especificamente sociais, Bourdieu e Passeron acabam por equiparar o habitus

    carga gentica e os mecanismos de inculcao gerao biolgica. A

    aproximao indevida entre reproduo social e reproduo biolgica

    resultado claro da influncia do epistemologismo althusseriano sobre a obra

    dos dois autores. O procedimento adotado por ambos, a considerao

    meramente abstrata de um momento particular da reproduo, isto , a sua

    irreversibilidade, passa por um processo de generalizao tal, ao ponto de

    tornar possvel a analogia entre habitus e carga gentica, entre reproduo

    natural e reproduo social, apagando todas as caractersticas especficas que

    separam, do ponto de vista ontolgico, a reproduo natural da reproduo

    social.

    A abordagem ontolgica da reproduo se nos parece no s mais profcua do

    ponto de vista terico, mas, tambm mais prxima das dimenses complexas

    com que esse fenmeno se reveste, pois tem a capacidade de abarcar os

    aspectos contraditrios da existncia social, como tambm, abrir perspectivas

    de resistncia e transformao, dimenses completamente ausentes no interior

    das tematizaes de cunho meramente epistemolgico ou logicizante.

    REFERNCIAS

    ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideolgicos de Estado. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1983.

    BOURDIEU, P.; Passeron, J. C. A Reproduo - Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

    CHASIN, J. Marx Estatuto Ontolgico e Resoluo Metodolgica. So Paulo: Editora Ensaio, 1995.

    LUKCS, G. Per lontologia dellessere sociale. Roma: Editori Riuniti, 1976 (v.1).

    ______. Per lontologia dellessere sociale. Roma: Editori Riuniti, 1981 (v.2).

    Data da submisso: 14/10/2014 Data da aprovao: 24/02/2015