Sagrado - Dennis Lehane

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando

 por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novonível."

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 Para Sheila

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 Não deis aos cães o que é sagrado,nem ati reis as vossas pérol as aos porcos, para que não as pisem e,voltando-se contra vós, vos estraçalhem.

 Ma teus, 7, 6 

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 PRIMEIRA PARTE  LIBERTAÇÃO DA DOR 

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Um conselho: se algum dia você precisar seguir alguém em meu bairro, não use roupa cor-de-

rosa. No dia em que Angie e eu notamos o sujeito gordinho que vinha na nossa cola, ele estava decamisa cor-de-rosa sob um terno cinza e um sobretudo preto. O paletó era transpassado, italiano,uma centena de dólares acima do padrão local. O sobretudo era de caxemira. Imagino que aspessoas de meu bai rro po ssam com prar roupas de caxemira, mas em geral elas gastam tanto d in hei roem fita adesiva para manter o cano de escapamento de seus Chevys 82 no lugar que não sobra din heiro para nada além daquela vi agem a Aruba.

No segund o d ia, o sujeito gordi nh o trocou a cam isa cor-de-rosa po r um branco mai s discreto,deixou de lado a caxemi ra e o terno italian o, mas com aq uele chap éu ele dava mai s na vista do que

 Mi chael Jackson numa creche. As pessoas de meu b ai rro — e, q ue eu saiba, de tod os os b ai rros d a 

região central de Boston — só usam bonés de beisebol ou, raramente, um boné de tweed. E nossoamigo Nó-Cego, como passamos a chamá-lo, estava com um chapéu-coco. Um belo chapéu-coco,ali ás, ma s de qualquer forma um chap éu-coco.

“Talvez ele seja ali en”, disse Angie.Olhei pela vidraça do Avenue Coffee Shop. Nó-Cego virou a cabeça e se curvou para mexer

nos cadarços dos sapatos.“Um estran geiro”, eu di sse. “Mas de o nd e? Da França?”Ela franziu o cenho e me lançou um o lh ar de reprovação en quanto passava requeij ão cremoso

num pão zin ho com tanta cebo la q ue meus ol ho s lacrimej aram só d e ol har. “Não, seu estúpi do . Do

futuro. Você nunca viu aquele episódio antigo de   Jornada nas estrelas   em que Kirk e Spock desembarcam n a Terra no s ano s 30 e ficam totalmen te deslo cados?”

“Eu od eio  Jornada nas estrelas.”“Mas você sabe d o q ue eu estou falan do .”Fiz q ue sim com a cabeça e b ocejei. Nó-Cego ficou exami nand o um po ste de telefone com o

se nunca tivesse visto um antes. Ta lvez Angie tivesse razão.“Com o você pod e não gostar de  Jornada nas estrelas?”, disse Angie.“É sim ples. Eu assisto, o troço me ab orrece, eu desli go a televisão.”“Mesmo Nova geração?”

“O que é isso?”, perguntei.“Quando você nasceu”, disse ela, “aposto que seu pai se virou para sua mãe e disse: ‘Ouça,

querid a, você acabo u de d ar à luz um b elo dum ranheta’.”“O que você quer di zer com i sso?”

No terceiro dia, resolvemos nos divertir um pouco. Quando acordamos de manhã e saímosde m in ha casa, Angie tom ou a direção no rte, e eu, a sul.

E Nó-Cego a seguiu.

 Mas Zumbi veio atrás de mim.Eu nunca tinha visto Zumbi antes, e é possível que nunca o visse se Nó-Cego não me tivesse

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dad o m otivo s pa ra desconfiar de sua presença. Antes de sairmos d e casa, remexi numa cai xa cheia de coisas para o verão e ach ei uns óculos

escuros que uso q uand o o tempo está bom pa ra an dar de b icicl eta. Do l ado esquerdo da a rma ção h á um espelh in ho regulável que me permite ver o q ue se passa às min ha s costas. Não tão legal como osequipamentos que o agente Q fornecia a James Bond, mas dava para quebrar o galho, e eu nãoprecisava fl ertar com a srta. Mon eypen ny pa ra con segui-l o.

Era como ter um olho na nuca, e aposto como fui o primeiro garoto de meu quarteirão a terum.

 Vi Zumbi q uan do parei d e repen te na entrada d a Patty’s Pan try, on de ia tom ar um ca fé. Olheipara a porta como se nela houvesse um menu, regulei o espelho, girei a cabeça e então vi, do outrolad o da aveni da, n a frente da farmácia de Pat Jay, o sujei to que parecia um agente funerário . Ele estava de braços cruzados sobre o peito de pardal, olhando a parte de trás de minha cabeça, sem procurardi sfarçar. Sulcos profundos com o rios marcavam-l he o rosto en covad o, e seu cabel o crescia em bi co,no meio da testa.

Na Patty’s, encostei o espel hi nh o n a armação e pedi meu café.“Você fi cou cego de repente, Patrick?”

Fiq uei ol ha nd o p ara Joh nn y Deegan en quanto ele punh a creme em m eu café. “O quê?”“Esses óculos escuros”, disse ele. “Acontece que estamos em meados de março e ninguém viu a 

cara do sol desde o Dia de Ação de Graças. Você ficou cego, ou está tentando dar uma demoderninho?”

“Estou só tentand o d ar uma d e mo dernin ho , Joh nn y.”Ele emp urrou a xícara no b alcão até mim e pegou meu din hei ro.“Não funcio no u”, disse ele.

De volta à avenida, olhei com meus óculos escuros para Zumbi, que estava tirando uns fiaposda perna d a calça, depo is se ab aixou para am arrar os cadarços dos sapatos — repetin do o gesto queNó-Cego fizera no di a anterio r.

Tirei meus óculos escuros, pensando em Johnny Deegan. Bond era demais, claro, mas nunca precisou entrar na Patty’s Pantry. Diabo, tente pedir um vodca-martíni aqui no bairro. Batido oumexido,* não im po rta: você vai ser atirado po rta afora.

 Atravessei a a ven ida quan do Zumbi se con centrava em seus cad arços.“Oi”, eu di sse.Ele endireitou o corpo e olhou em volta como se alguém o tivesse chamado de um ponto

mai s di stante.“Oi”, repeti, estendend o-l he a m ão.Ele olh ou para ela, depo is novamente para a aveni da.“Uau”, eu disse. “Você é uma negação para seguir uma pessoa, mas pelo menos tem muito boas

maneiras.”Lenta como a Terra em seu eixo, a cabeça dele foi girando até seus olhos cinzentos

encontrarem os meus. Para fazer isso teve de abaixar a cabeça, e a sombra de seu crânio esquelético seprojetou sob re meu rosto, espa lh and o-se por meus om bros. E olh e que não sou tão b aixin ho assim .

“Nós nos con hecemo s, senh or?” Sua vo z d ava a im pressão de estar prestes a vo ltar para o fund odo túmulo.

“Claro que nos conhecemos”, eu disse. “Você é Zumbi.” Olhei para os dois lados da avenida.“Ond e estão o s outros mo rtos-vivos, seus com pan hei ros?”

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“Você não é tão engraçado quanto pen sa.”Levantei meu copinho de café. “Espere até eu ingerir um pouco de cafeína, Zumbi. Daqui a 

quinze m in utos você vai estar di ante de um p erfeito pa lh aço.”Quando ele sorriu, os sulcos de seu rosto se transformaram em verdadeiros canyons. “O senhor

devia ser men os previsível , senh or Kenzie.”“Com o assim , Zumb i?”

Uma grua me jogou um poste de cimento na altura dos rins, um troço de dentes afiados memordeu o lado direito do pescoço, e Zumbi saiu do meu campo de visão enquanto a calçada seerguia rapi dam ente em di reção ao m eu ouvido.

“Gostei d e seus óculo s, senho r Kenzie”, disse Nó-Cego en quanto seu rosto de borracha flutuava na m in ha frente. “São d e primei ra classe.”

“Muito high-tech”, di sse Zumb i.Então uma pessoa riu e outra l igou o carro, e m e senti um estúpi do .O agente Q ficaria horrorizad o.

“Estou com do r de cabeça”, di sse Angie.Ela estava sentada ao meu lado, num sofá de couro preto, e suas mãos também estavam

am arrad as às costas.“E o senh or, senh or Kenzi e?”, perguntou uma voz. “Com o está sua cab eça?”“Batid a”, eu di sse. “Não mexi da .”

 Virei a cab eça n a d ireção d a vo z, e m eus olhos viram ap enas uma incômoda luz amarela, comuma leve franja ma rrom . Pisquei o s olh os e senti o quarto bala nçar um po uco.

“Desculp e pelo s narcóticos”, disse a voz. “Se h ouvesse outra m an eira...”“Não h á o que desculp ar, senh or”, di sse uma voz que reconh eci com o sendo a d e Zumb i. “Não

havia o utra m anei ra.”“Julian, por favor, dê uma aspirina à senhorita Gennaro e ao senhor Kenzie.” A voz arfava por

trás da l uz am arela i ntensa. “E, por favor, desam arre-os.”“E se eles se mexerem? ”, di sse a voz de Nó-Cego.“Trate de fazer com que eles não se mexam , senh or Cli fton .”“Sim, senh or. Com tod o o prazer.”“Meu nome é Trevor Stone”, disse o homem que estava atrás da luz. “Isso significa alguma coisa 

para vo cês?”Passei a m ão n as marcas vermelhas em meus pulsos.

 Angie passou a mão na s suas e sorveu um pouco do oxi gêni o da sala , que im aginei ser oescritório de T revor Ston e.“Eu fiz uma pergunta a vocês.”Olhei pa ra a luz am arela. “É, fez. Sorte sua.” Virei-me para Angie: “Com o é que você está?”.“Com do r nos pulsos e na cab eça.”“E no mai s?”“Estou de mau humor.”Olh ei n ovam ente para a l uz. “Estamos de m au humor.”“Dá pra imaginar.”“Fod a-se”, eu di sse.“Muito espirituoso”, disse Trevor Stone de trás da luz suave, enquanto Nó-Cego e Zumbi

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davam risinho s abafado s.“Muito espi rituoso”, repetiu Nó-Cego.“Senhor Kenzie, senhorita Gennaro”, disse Trevor Stone. “Posso garantir que não pretendo

fazer mal a vocês. Certamen te vou fazer, mas não é o m eu desejo . Preciso d e sua aj uda .”“Ah, bo m.” Equili brei-m e nas pernas bamb as e senti q ue Angie, ao meu lado , se levan tava.“Se um d esses seus idi otas fizer o favo r de no s levar pa ra casa...”, di sse Angie.

 Agarrei sua mão quan do minhas pernas fraquejaram , baten do no sofá, e a sala pendeu umpo uco ma is para a direita. Zumb i en costou o ind icad or no m eu pei to, tão de leve q ue mal o senti, e

 Angie e eu caí mos de volta no sofá.Daq ui a uns cin co m in utos, eu di sse às min ha s perna s, a gente tenta d e novo.“Senhor Kenzie”, disse Trevor Stone. “O senhor pode continuar tentando se levantar desse

sofá, e nó s pod emo s con tinuar emp urrand o-o de vo lta com uma pen a p or mai s uns... trin ta minutos,pel os meus cálculo s. Portan to, rela xe.”

“Seq üestro”, di sse Angie. “Cárcere privad o. O senhor con hece esses termos, senh or Stone?”“Conheço.”“Ótimo. O senh or sab e que se trata de crim es federais, sujei tos a pen as pesadas?”

“Hum-h um”, fez Trevor Stone. “Sen ho rita G enn aro, senh or Kenzi e, o q ue vocês sabem de sua condi ção de mo rtais?”

“Já sofremo s alguns arranhões”, disse Angie.“Eu sei d isso”, disse ele.

 Angie ol hou para mim, erguendo as sobrancelh as. Fiz o m esmo .“Mas não p assaram de arranh ões, com o vo cê disse. Coi sin ha s de n ada , que lo go saram. Amb os

estão vivos, ambos são jovens, ambos esperando continuar aqui na Terra por mais uns trinta ouquarenta an os. O mund o — suas lei s, seus háb itos e costumes, suas pen as severas para crimes federais —tem todo esse peso para vocês. Quanto a mi m, não tenho ma is esse problem a.”

“Ele é um fan tasma ”, sussurrei, e Angie deu uma cotovela da em mi nh as costela s.“Exatamente, senh or Kenzi e”, di sse ele. “Exatam ente.” A luz a marela a fastou-se de meus olh os, deixan do em seu lugar um vaz io negro dian te do qual

pisquei os olhos. O minúsculo ponto branco que enxerguei no meio da treva se pôs a piruetar emcírculos cor de laranja cada vez maiores e que desapareceram feito projéteis luminosos. Entãomi nh a visão clareou, e me vi fitando T revor Stone.

 A m etade superior d e seu rosto parecia ter sid o esculpida em carval ho claro — sobrancelhasque lembravam falésias, projetando sombras sobre olhos verdes penetrantes, nariz aquilino, maçãsdo rosto pron uncia das, pel e perol ada .

 A m etad e inferior, porém , p arecia ter desabad o sobre si mesma. O maxila r estava esfacelad odos dois lados; os ossos pareciam ter se fundido em algum ponto dentro de sua boca. O queixo,reduzido a quase nad a, apontava p ara o chão , envolto numa m assa de carne bo rrachuda, e a boca era completamente disforme, parecia flutuar na mixórdia de sua cara feito uma ameba, os lábiostotalmen te descorados.

Ele p od eria ter entre quarenta e setenta an os de i dad e. Ataduras castanho-am arelad as, em pap ad as como bolh as, cobriam sua gargan ta. Ele se

levantou atrás de sua sólida escrivaninha, apoiando-se numa bengala com castão em forma decabeça de dragão. Sua calça cinza xadrez boiava em volta das pernas magras, mas a camisa dealgodão azul e o casaco de linho preto modelavam como uma segunda pele o tórax e os ombros

fortes. A mã o q ue segurava o castão d a b engala p arecia capaz de reduzir bo las de gol fe a pó com umapertão.

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Ele se pl antou à n ossa frente, apoi ado precariam ente na b engala e lan çando-n os um ol har dedesprezo.

“Dêem uma boa olhada”, disse Trevor. “Depois eu vou contar a vocês algumas coisas sobre a dorda p erda.”

* Num fi lm e de James Bon d, para provocar o i ni mi go russo, o agente britânico ped e uma  versão do cl ássico co quetel d ry martín i, mas preparad o co m vod ca e nã o co m gim, daí o n om e vodca-m artín i. E, contraria ndo a trad ição , exige que seja batido, e nã o m exido. A expressão “ba tid o,não m exid o” se tornou clássica. (N. T.)

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 2

“No ano passado”, disse Trevor Stone, “minha mulher estava voltando de carro de uma festa 

no So merset Club, em Beacon Hil l. Vocês conh ecem, não?”“Nós damo s tod as as nossas festas lá ”, di sse Angie.“Bom, o fato é que o carro dela enguiçou. Eu estava saindo de meu escritório no centro da 

cida de q uand o el a l igou pedind o q ue eu fosse buscá-la. Engraçado .”“O quê?”, perguntei.Ele piscou os olho s. “Eu estava só m e lem brand o d e com o era raro a gente fazer aquilo . And ar

de carro j untos. Aquil o era um d os sacrifícios a que a d edi cação ao trabalh o m e ob rigava. Uma coisa tão sim pl es como ficarmo s sentados lado a l ado num carro p or vinte min utos, e pod íam os nos darpo r satisfeitos se con seguíssemos fazer isso m eia dúzia d e vezes por ano .”

“O q ue acon teceu?”, perguntou Angie.

Ele pigarreou para limpar a garganta. “Na saída da Tobin Bridge, um carro tentou nos jogarpara fora da estrada. Acho que chamam esse tipo de gente de piratas da estrada. Eu acabara decom prar meu carro — um Jaguar XKE — e não estava d isposto a d á-lo de m ão bei jad a a um ban dode crimi no sos que pensam ter di reito a uma coisa só p orque a d esejam . Aí...”

Ele olh ou pela jan ela p or um i nstante, perdido — era o q ue eu im agin ava — na l embrança doranger de m etais, do ronco d e motores, do chei ro d o ar daquela no ite.

“Meu carro tom bo u do lad o d o m otorista. Mi nh a mulher, Inez, não pa rava d e gritar. Naquelemomento eu não sabia, mas ela tinha quebrado a espinha. Os bandidos estavam furiosos porque eudestruíra o carro que eles já consideravam deles. Mataram Inez a tiros, enquanto eu lutava para não

perder os sentidos. Eles metralharam o carro, e três balas me atingiram. O curioso é que nenhuma atingiu pontos vitais, embora uma tenha se alojado em meu queixo. Os três homens ficaramtentando pôr fogo no carro, mas em momento algum pensaram em furar o tanque de gasolina.Depois de algum tempo eles se cansaram daquilo e foram embora. E eu fiquei lá com três balas nocorpo, vário s ossos quebrados e mi nh a m ulh er mo rta ao m eu lad o.”

Tínhamos deixado para trás o escritório e também Zumbi e Nó-Cego, e entramostrop egamente na sala d e recreação, sala de estar, ou seja l á com o T revor Ston e cham ava aq uela p eça do tamanho de um hangar com uma mesa de bilhar e uma de sinuca, um jogo de dardos comsuporte de cerejeira, uma mesa de pôquer e um pequeno campo de golfe em um dos cantos. Um

bal cão d e mo gno ocupava todo o lado leste da sala, e suspensos acim a d ele ha via cop os bastantespa ra aba stecer os Kenn edy durante um mês de festas.Trevor Stone pô s doi s dedos de uísque puro ma lte em seu cop o e fez um gesto com a garrafa 

em m in ha d ireção, dep oi s na d e Angie, mas amb os recusamo s.“Os ho men s — na verdade, rapazes — que cometeram esse crim e foram j ulgado s bem dep ressa,

pegaram prisão perpétua em Norfolk, sem direito a liberdade condicional; acho que isso é omelhor que se podia esperar em matéria de justiça. Minha filha e eu enterramos Inez, e, sedescon sid erarmo s a do r, a coi sa po di a ter pa rado po r aí.”

“Mas...”, disse Angie.“Quando os médicos estavam extraindo a bala de meu queixo, encontraram o primeiro sinal

de câncer. E quando aprofundaram os exames, viram que os gânglios linfáticos já estavamcom prom etidos. Eles acham que logo o câncer estará n os in testinos grosso e del gado. Depo is di sso,

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 já não terão mai s o q ue cortar.”“Quanto temp o vai levar isso?”“Seis meses. É o que eles acham. Meu corpo diz cinco. De qualquer modo, já vi meu último

outono.”Ele girou sua cad eira e no vam ente ol ho u o ma r através da j anel a. Segui seu ol har, notei a curva 

de uma angra rochosa, do outro lado da baía. A angra se bifurcava, formando o que parecia ser aspi nças de uma lagosta. Voltei m in ha atenção p ara a parte central a té ver um farol que eu conh ecia. Acasa de Trevor Stone ficava num penhasco, em algum ponto de Marblehead Neck, uma língua deterra recortada próxima do litoral norte de Boston, onde o preço que se pede por uma casa é sóli geiram ente meno r que o val or de muitas cid ades.

“A dor é carnívora”, disse ele. “Ela vai devorand o você, quer você se ap erceba di sso ou não, quer você lute co ntra ela ou não. É muito parecida com um cân cer. E um belo dia você aco rda e ela já devorou todas as outras emoções — alegria, inveja, ganância e até amor. E você está sozinho com a do r, absolutam ente vuln erável a ela. E ela toma po sse de vo cê.”

Os cubo s de gelo tili ntaram em seu copo, e Ston e ol ho u pa ra eles.“Não n ecessariam ente”, di sse Angie.

Ele se voltou e sorriu para ela com sua boca de ameba. Por trás das carnes destroçadas e de ossostriturados, seus láb io s descorad os tremeram, dep oi s o sorriso d esapareceu.

“Você mesma já experim entou a do r”, disse ele brand am ente. “Eu sei. Você p erdeu seu marid o.Há cinco m eses, não foi?”

“Ex-marido ”, di sse ela, os olh os fitos no chão . “Si m.”Ten tei segurar-lhe a m ão, mas ela bala nçou a cabeça e pousou a mão n o col o.“Eu li tudo que os jornais publicaram sobre o caso”, disse ele. “Cheguei a ler até aquele

lastim ável l ivro ‘verdad e’ explo rand o o ep isódi o. Vocês lutaram contra o m al. E ganha ram.”“Deu emp ate”, eu di sse, limp an do a gargan ta. “Pode a credi tar.”

“Talvez”, disse ele enquanto os duros olhos verdes fitavam os meus. “Talvez para vocês doistenha sido empa te. Ma s pense em q uan tas futuras vítim as vocês salvaram da queles monstros.”“Senh or Stone”, disse Angie. “Com o d evid o respei to, não fal e cono sco sobre isso.”“Por que não?”Ela levantou a cabeça. “Porque o senhor não sabe nada sobre isso, o que o faz parecer um

tonto.”Os dedos de Stone acariciaram o castão da bengala levemente, e então ele se inclinou para a 

frente e tocou o jo elh o d ela com a outra m ão. “Você tem razão. Me d esculp e.” Angie l he sorriu com o nunca mai s sorrira desde a m orte d e Ph il. Como se ela e Trevor S ton e

fossem vel ho s am igos, com o se amb os vivessem em lugares in acessíveis à luz e à ternura.

“Estou sozin ha”, me d issera Angie um m ês antes.“Não, não está.”Ela estava deitada num colchão que eu colocara na minha sala. Sua cama e a maioria de seus

pertences ainda se encontravam em sua casa na Howes Street, porque ela não conseguia entrar nolugar on de G erry Gl ynn atirara nela e on de Evand ro Arujo sangrara até a mo rte no chão da cozin ha .

“Você não está sozi nh a”, eu di sse, sentado atrás dela, tom and o-a em meus braços.“Estou sim . E por enq uanto todas as suas atenções e todo o seu carin ho de n ada adi antam .”

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“Senhor Stone...”, disse Angie.“Trevor.”“Senhor Stone”, disse ela. “Eu compartilho de sua dor. Pode acreditar. Mas o senhor nos

seqüestrou. O senhor...”“Mas não se trata de mi nh a do r”, di sse ele. “Não, eu não estava falan do de m in ha d or.”“De q uem, en tão?”, perguntei.“De minha filha. Desiree.”Desiree.Ele di sse o no me d ela com o se recitasse uma prece.

Seu escritório, uma vez bem iluminado, revelava-se um verdadeiro altar erigido em honra da filha.

Onde antes eu vira apenas sombras, agora via, em fotografias e pinturas, uma mulher em quasetodas as fases da vida — fotos dela ainda bebê, fotos anuais do curso secundário e a do dia em querecebeu o diploma universitário. Velhas fotos polaróide estragadas enchiam molduras novas de

teca. Um instantâneo em que ela estava com uma mulher — evidentemente sua mãe — parecia tersid o tirado num churrasco ao ar livre, poi s as duas estavam perto de uma churrasqueira a gás, pratos depapel nas mãos, nenhuma das duas olhando para a câmera. Era um instantâneo banal, com asbordas amassadas, tirado sem levar em conta o sol que brilhava à direita das mulheres, projetandouma sombra negra sobre a objetiva. O tipo de foto que ninguém espera que se ponha num álbum.

 Ma s n o escritório de Trevor Ston e, emold urada em prata de lei e ap oia da num fino suporte demarfim , parecia deifi cada.

Desiree Stone era uma mulher bonita. Sua mãe, como pude ver nas muitas fotos, era comcerteza de origem l atina, e a filh a herdara a opulenta cabel eira cor de m el, a lin ha graciosa do queixo

e do colo, a estrutura óssea bem conformada, o nariz fino e uma pele que parecia eternamenteiluminada pela luz do sol poente. O pai lhe legara os olhos cor de jade e os lábios carnudos eresolutos. A perfeita simetria dessa confluência genética era especialmente evidente na única fotografia que havia na mesa de trabalho de Trevor. Desiree estava entre a mãe e o pai, usando obarrete acadêmico e a toga roxa da formatura, tendo ao fundo o campus principal da Wesley College, os braços no pescoço dos pais, apertando o rosto deles contra o seu. Os três sorriam,irradia ndo op ulência material e saúde física, e a b eleza deli cada da mãe e a prodigiosa aura de po derdo pa i p areciam encon trar-se e fund ir-se no rosto d a jo vem.

“Dois meses antes da tragédia...”, disse Trevor Stone, pegando a foto e segurando-a por uminstante. Ele a fitou, e a metade inferior do que lhe restara do rosto esboçou o que me pareceu umsorriso. Ele repôs a foto n a m esa, e ficou nos ol ha nd o enq uanto sentávamo s à sua frente. “Algum de

 vocês conhece um d etetive pa rticular chamad o Jay Becker?”“Nós conhecemos Jay”, respo nd i.“Trabal ha para a agência Ham lyn and Kohl ”, disse Angie.“Exato. O que você acha del e?”“Em termo s profissio nai s?”Trevor Ston e deu de om bros.“Ele é muito bom nesse tipo de trabalho”, disse Angie. “A agência Hamlyn and Kohl só

contrata os melhores.”

Ele assentiu. “Ouvi di zer que eles tentaram con tratar vocês há a lguns anos.”“De ond e o senho r tirou isso?”, eu disse.

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“É verdad e, não é?”Fiz q ue sim .“E pelo que fiquei saben do era um bo m di nh eiro. Por que vocês recusaram?”“Senh or Ston e”, di sse Angie. “O senh or po de n ão ter no tado, ma s o estil o terno e gravata e sala 

de reuni ões não tem nad a a ver com a gente.”“Mas tem a ver com Jay?”Fiz que sim. “Ele trabalhou por uns tempos no FBI, antes de decidir que preferia o dinheiro

que podia ganhar como detetive particular. Ele gosta de bons restaurantes, roupas finas, belosapa rtamentos, esse tipo de co isa. E fica b em de terno .”

“E pel o q ue vocês di zem é um b om detetive.”“Um craque”, disse Angie. “Foi ele quem levantou a lebre no caso do Boston Federal Bank e

suas ligações com a M áfia.”“Si m, eu sei. Quem vo cês acham que o con tratou?”“O senhor”, eu disse.“Eu e muitos outros ho men s de negócios que perderam algum di nh eiro q uand o h ouve o crash

do mercado i mo bi li ário, em 1988, e começou a crise das in stituições de p oupança e emp réstimo .”

“Se o senho r já usou os serviços del e, por que no s pede referênci as sob re o seu caráter?”“Porque, senhor Kenzie, há pouco tempo contratei o senhor Becker e a Hamlyn and Kohl

para procurar mi nh a filha .”“Procurar?”, di sse Angie. “Há quan to temp o el a está desaparecid a?”“Quatro sema na s”, disse ele. “Trin ta e do is di as, para ser mai s exato.”“E Jay a en con trou?”, perguntei .“Não sei”, di sse ele. “Porque agora o senh or Becker tamb ém está desapa recid o.”

Naquela manhã, fazia um frio tolerável na cidade, sem muito vento, com temperatura próxim a de zero. O tip o de temp o que incom od a mas não chega a ser in supo rtável.Em compensação, no gramado atrás da casa de Trevor Stone, o vento soprava do Atlântico,

agitando as vagas coroadas de branco, atingindo meu rosto feito uma metralha. Levantei a gola docasaco d e couro p ara m e proteger do vento d o m ar, e Angie enfio u as mãos no s bol sos e encol heu osom bros, mas Trevor Stone enfrentava o s ventos com galha rdi a. Antes de no s levar para lá, ele pusera apen as uma leve cap a d e chuva cujas abas, abertas, esvoaçavam em vo lta d e suas pernas enq uanto elefitava o o ceano, parecend o d esafiar o vento a in sin uar-se em seu corpo.

“A Haml yn an d Kh ol desistiu da i nvestigação e ab and on ou o caso”, disse ele.

“Por qual m otivo ?”“Eles não di zem.”“Isso é antiético”, comentei.“Quais são m in has op ções?”“Processá-los”, eu disse. “O senhor poderia arrancar todo o dinheiro deles.”Ele se vol tou, tirand o o s ol ho s do m ar, e ficou nos fitando até que entendem os.

 Angie di sse: “Qualq uer recurso l egal é i nútil ”.Ele fez que sim. “Porque eu vou estar morto antes que qualquer coisa vá a julgamento.” Ele se

 voltou para o vento novam ente e falo u de costas para nós, as pal avras carregadas pel o vento cortan te.“Eu era um homem poderoso, que não conhecia o desrespeito nem o medo. Agora estou

impotente. Todo mundo sabe que estou morrendo. Todos sabem que não tenho tempo de lutarcontra eles. To do mundo , tenh o certeza, está rin do de m im .”

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 Atravessei o gram ad o e fiquei junto dele. A gram a acabava lo go atrás de seus pés, deixa nd o à mostra um penhasco de pedras escarpadas, sua superfície brilhando como ébano polido contra a fúria d a reben tação lá emb aixo.

“Por que nós?”, perguntei.“Andei perguntando por aí”, disse ele. “Todos com quem conversei falaram que vocês dois

têm as duas qualid ad es de q ue preciso.”“Que q ualid ad es?”, perguntou Angie.“Vocês são hon estos.”“Até o nd e...”“...até on de i sso é possível num m und o co rrupto. Sim , senh or Kenzie. Mas vocês são ho nestos

com as pessoas que fazem por merecer sua confi ança. E eu pretend o fazer isso.”“Seqüestrar-nos certamente n ão foi a m elh or ma neira d e con seguir isso.”Ele deu de ombros. “Sou um homem desesperado, com um relógio em acelerada contagem

regressiva. Vocês fecharam seu escritório e se recusam a aceitar casos e a té a en con trar-se com possíveisclientes.”

“É verdad e”, eu di sse.

“Liguei para o escritório e para a casa de vocês várias vezes na semana passada. Vocês nãoatendem o telefon e nem têm secretária eletrôn ica.”

“Eu tenho uma”, eu di sse. “No m om ento el a está desligad a.”“Mandei cartas.”“Ele só abre a correspo nd ênci a se se tratar de con tas”, expl ico u Angie.Trevor Stone balançou a cabeça, como a reconhecer que isso era muito comum em

determi nad os círculo s. “Então, tive d e tom ar medi das extremas para garantir que vocês me o uviriam .Se vocês recusarem meu caso, estou dispo sto a pa gar vin te mil dó lares só pel o di a q ue p assaram aq ui epelo incôm odo que lh es causei.”

“Vin te mil”, di sse Angie. “Dól ares.”“Sim. Dinheiro já não significa nada para mim, e não tenho nenhum herdeiro, a menos queencontre Desiree. Além disso, se vocês procurarem se informar sobre mim, vão ver que vinte mildólares não representam praticamente nada considerando-se a minha fortuna. Então, se vocêsquiserem, vão ao meu escritório, peguem o di nh eiro da p rim eira gaveta da di reita da escrivan in ha e

 voltem p ara as suas vid as.”“E se ficarmos”, disse Angie, “o que o senh or quer que a gente faça?”“Encontrem minha filha. Já considerei a possibilidade de ela estar morta. Na verdade, é bem

provável que esteja. Mas não quero m orrer nessa dúvid a. Preciso saber o q ue acon teceu com ela .”“O senh or procurou a po lí cia”, eu di sse.“E eles foram muito gentis.” Ele balançou a cabeça. “Mas a única coisa que eles vêem nesse caso

é uma jo vem a ba tida p ela d or que resol veu se afastar de tudo po r um temp o, pa ra se recomp or.”“E o senh or tem certeza de q ue nã o é p or aí.”“Eu conh eço mi nh a fil ha, senho r Kenzie.”Ele girou o corpo apoiando-se na bengala e começou a atravessar o gramado em direção à 

casa. Fom os and and o atrás dele e vim os no ssas im agens refletidas na s vidraças de seu escritório — oho mem em p len a decad ência que emp ertigava o corpo e o ferecia as costas perfeitamente eretas ao

 ven to, enquan to a cap a lhe batia nas pernas e a bengala procurava um ap oio no gram ad ocongelado; à sua esquerda, uma mulher baixa, bonita, de cabelos negros que, soprados pelo vento,

batia m-l he n as faces marcadas pela do r de sua perda recente; e à sua di reita, um h om em n a casa do strinta anos, com um boné de beisebol, casaco de couro, jeans, olhando com uma expressão um

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tanto p erpl exa as duas pessoas orgulh osas mas ferid as que an dava m ao seu lado .Quando chegamos ao pátio, Angie manteve a porta aberta para Trevor e disse: “Senhor

Ston e, o senh or disse que nós tính amo s as duas qualid ades que são mai s imp ortantes para o senh or”.“Sim.”“Uma é a h on estidad e. Qual é a o utra?”“Ouvi falar que vocês são implacáveis”, ele respondeu enquanto entrava no escritório.

“Incrivelmente implacáveis.”

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 3

“Cinqüenta”, disse Angie quando estávamos indo de metrô da Wonderland Station para o

centro da cidade.“Eu sei”, respond i.“Cinqüenta mil dólares”, disse ela. “Vinte eu já achava uma insanidade, e agora estamos

levan do cin qüenta m il dó lares, Patrick.”Circulei o olhar pelo vagão do metrô, atentei para os dois bêbados sujos a uns três metros de

nós, para o bando de trombadinhas absorvidos na contemplação do sinal de alarme a um canto,para o mal uco d e cabel os loi ros cortados à escovinh a, olh ar estranh am ente fixo, que segurava a alça 

 vizi nh a à minh a.“Diga um pouco mais alto, Ange. Tenho a impressão de que os delinqüentes lá do fundo não

ouviram.”

“Ops.” Ela incl in ou o corpo em d ireção ao m eu. “Cin qüenta mi l d ól ares”, sussurrou.“Sim”, cochichei d e volta, no mo men to em que o trem en trava n uma curva com grand e ranger

de metais e as luzes acima de nossas cabeças se apagaram, se acenderam, tornaram a se apagar e seacenderam d e novo.

Zumbi, ou Julian Archerson, como viemos a descobrir depois, estava pronto para nos levarpara casa, mas quando chegamos ao engarrafamento da rodovia 1A, depois de termos passadoquarenta e cinco minutos em outra selva de automóveis na rodovia 129, pedimos que ele nosdeixasse o m ais perto p ossível de uma estação d e metrô, e and am os até a Won derlan d S tatio n.

 Assim , lá estáva mos nós api nh ad os com as outras sardi nhas, enq uan to o vel ho vagão avan çava 

no labirinto de túneis, as luzes acendendo e apagando, carregando conosco os cinqüenta mildó lares de Trevor Ston e. Angie estava com o cheque de trin ta mil d ól ares enfiado no bo lso in ternode seu blusão universitário , e eu trazi a os vin te mil em cash enfia do s entre a barriga e a fivela d o cin to.

“Vocês vão precisar de dinheiro se forem começar imediatamente”, dissera Trevor Stone.“Não se preocupem com os gastos. Esse dinheiro é só para as despesas operacionais. Liguem para mi m se precisarem d e mai s.”

Dinheiro para “despesas operacionais”. Eu não sabia se Desiree estava viva ou não, mas seestivesse, ela p recisaria estar enfiada em um recanto bem remoto d e Bornéu ou de T ân ger para que euconseguisse gastar essa d in hei rama a fi m de encon trá-la .

“Jay Becker”, di sse Angie, dan do em seguid a um p equeno a ssobi o.“Pois é”, eu di sse. “A coisa nã o é b rin cadeira.”“Quand o foi a últim a vez que você o viu?”“Há umas seis seman as”, eu di sse, sacudin do os om bros. “A gente n ão costuma se in formar sob re

o q ue o outro an da fazen do .”“Não o vejo desde a entrega do prêmio Caralh ão.”O ma luco q ue estava à mi nh a di reita ergueu as sob rancelhas e olho u pa ra m im .Dei d e om bros. “Eu sei: mesmo m uito b em-vestid a, essa gente nã o é m uito d e sair.”Ele balançou a cabeça e voltou a contemplar a própria imagem refletida na escura janela do

metrô.O prêmio de que falávamos era dado pela Associação Bostoniana de Investigação aos

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detetives que se destacavam pela qualidade de seu trabalho. Mas todo mundo só o chamava deCaralhão.*

 Jay Becker ganhou o Caralh ão na quele an o, assim como no an o an terior e em 1989, e poralgum tempo correu o b oato entre os detetives particulares de q ue ele i ria sair da Haml yn a nd Koh l eabrir seu próprio escritório. Mas eu conhecia bem Jay e não fiquei surpreso quando os boatos serevelaram falsos.

Não que ele fosse morrer de fome se trabalhasse por conta própria. Ao contrário, ele era semdúvida o mais famoso detetive particular de Boston. Bem-apessoado, espertíssimo, poderia, sequisesse, conseguir clientes cobrando honorários da ordem de cinco dígitos. Muitos dos clientesmai s ricos da Haml yn a nd Koh l teriam satisfação em pa ssar para o outro l ado da rua, caso Jay ab risseum escritório fronteiro ao da agência. Mas mesmo que esses clientes lhe oferecessem todo odinheiro da Nova Inglaterra, ele não poderia pegar seus casos. Todo investigador que assinava contrato com a Haml yn an d Ko hl assin ava também um termo de com promisso o brigando -se, nocaso de abandonar a agência, a esperar três anos antes de aceitar qualquer caso de clientes para osquais tivesse trabalhado enquanto estava na Hamlyn and Kohl. E três anos nesse tipo de negócio écom o se fosse uma década .

 Assim send o, ele estava de mão s atad as. Mas se existia al gum detetive bom e respeitado oba stan te para se afastar de Everett Haml yn e Adam Koh l e se dar bem , esse cara era Jay Becker. Ma s Jay era uma negação p ara l idar com din heiro, a pessoa m ais sem j eito de q ue tenh o notícia. O di nh eironão parava em suas mãos. Tão logo o ganhava, gastava em roupas, carros, mulheres, sofás de couromodulados, o diabo. A Hamlyn and Kohl pagava todas as suas despesas, o aluguel do escritório,cuid ava de suas ações, de seu pl ano de previdên cia privad a, de sua carteira de título s muni cipais. Eleso tratavam como um fi lh o, e Jay Becker precisava d e um p apai.

Em Massachusetts, os que pretendem ser detetives particulares são obrigados a fazer duas mil equinhentas horas de trabalhos de investigação junto com um detetive particular autorizado para 

po derem co nseguir suas li cenças. Por causa d e seu temp o d e FBI, Jay só teve d e fazer mil horas, e as fezna Haml yn and Koh l. Angie cump riu as suas horas com igo. E eu cump ri as min has com Jay Becker. A técni ca d e recrutamento d a Hamlyn an d Kohl consistia em pegar uma p essoa que desejasse

ser detetive particular — e que eles achassem que tinha as aptidões necessárias —, pô-la para trabalharcom um detetive experim entado q ue lh e ensinaria as manh as do o fício, propo rcionan do -lhe sua cota de horas e, naturalmente, abrindo seus olhos para o mundo dourado da Hamlyn and Kohl.Todos aqueles que, pelo que sei, obtiveram sua licença por esse meio, foram trabalhar na Hamlynand Koh l. Bem, tod os meno s eu.

E isso não agradou nem um pouco Everett Hamlyn, Adam Kohl e seus advogados. Durantealgum tempo recebi cartas com recriminações que normalmente me chegavam em papel de carta de fib ras de algodão e com o timbre dos advogados da Haml yn and Kohl , e às vezes com o timbreda p róp ria em presa. Mas eu nunca assin ei na da n em dei a eles nen huma in di cação de que pretend ia entrar em sua fi rma , e quando meu advo gado, Cheswick Hartman, cham ou-lhes a atenção pa ra i sso,em carta lavrada em seu refinado papel de carta (de fibras de linho com um belo tom de malva), asrecrim in ações pararam de chegar a min ha caixa de correspo nd ência . E o fato é q ue abri uma agência cujo sucesso superou min ha s expectativas, traba lh and o pa ra uma cli entela q ue nã o p od ia se da r aoluxo de con tratar a Haml yn an d Ko hl .

 Mas pouco temp o an tes, traumatizad os pela violência psicótica di rigid a contra nós porEvandro Arujo, Gerry Glynn e Alec Hardiman — violência que custou a Angie a vida de seu ex-

marido, Phil —, fecham os a agência. Desde então, não tính amo s feito nada digno de n ota, a men osque se d ê al guma im po rtância a j ogar conversa fo ra, assistir a filmes antigos e en cher a cara.

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Eu não sei q uanto temp o i sso p od ia ter durado — talvez ma is um m ês, talvez até o di a em queno ssos fígados nos ped issem o di vórcio alegand o maus-tratos e requintes de crueld ade. Ma s quand o

 vi Angie o lhan do para T revor S ton e co m uma simpatia que n ão tivera co m ni nguém nos últim ostrês meses, dan do -lh e um sorriso franco, sem afetação, entend i que termi naríam os po r aceitar o caso,ainda que ele nos tivesse seqüestrado e drogado. E a bolada que íamos receber, devo admitir, nosajudou muito a superar a má impressão que os maus modos de Trevor nos causaram no primeiromomento.

Encontrar Desiree S tone.O objetivo não podia ser mais simples. Mas o quanto a execução da tarefa seria simples ainda 

estava por con ferir. Para encon trá-l a, eu tinha certeza d e que era p reciso en con trar Jay Becker ou pelomenos reconstituir seus passos. Jay, meu mentor, o homem que me ditara meu lema profissional:

“Ninguém”, dissera ele n os últim os dia s do meu perío do de ap rend iza gem, “nin guém m esmo ,con segue man ter-se escon di do se um bom detetive estiver à sua p rocura.”

“E o que você di z d os nazi stas que fugiram pa ra a América d o Sul d epo is da guerra? Ni nguémencon trou Joseph Men gele a té o d ia em que ele m orreu li vre e sossegado.”

 Jay me lan çou um ol har a que eu me aco stumara durante os três m eses que p assáram os juntos.

Era o que eu chamava de “olhar federal”, o olhar de um homem que já passara uma temporada nosmais sombrios corredores do governo, um homem que sabia onde os corpos estavam enterrados,que documen tos tinh am sid o q ueim ado s e po r que motivo , que entendi a, mais que qualq uer um d enó s, as maq uin ações do verdad eiro poder.

“Você acha que não se sabia onde Mengele estava? Você está brincando comigo?” Ele seinclinou sobre a nossa mesa no Bay Tower Room — não sem antes ter o cuidado de prender a gravata na cin tura, apesar de nã o haver mais nen hum sina l de p ratos ou de farelo s na m esa. “Patrick,deixe eu lhe dizer uma coisa: Mengele tinha três enormes vantagens sobre muita gente que tenta seesconder.”

“Que vantagens?”“Prim eiro”, disse ele, erguendo o ind icador, “Mengele tinha di nh eiro. Mi lh ões, no princípi o. Ma s mili oná rios podem ser loca lizados. Segund o”, o dedo médio juntou-se ao ind icad or, “eletinha informações sobre outros nazistas, sobre fortunas enterradas em Berlim, sobre todo tipo dedescobertas médicas, que ele adquirira usando judeus como cobaias — informações que ele podia negoci ar com m uitos governos, in clusive o n osso, que presumi velmente estavam a sua procura.”

Ele ergueu as sob rancelh as e recostou-se na cad eira sorrin do .“E a terceira van tagem?”“Ah, sim. Vantagem número três, a mais importante: eu nunca estive no encalço de Joseph

 Mengel e. Porque ninguém consegue se esconder d e Jay Becker. E agora que o treinei, D’Artagnan,meu jovem gascão, tamp ouco ni nguém po de se escon der de Patrick Kenzie.”

“Muito obrigado, Athos.”Ele fez um m eneio com a mão , depois tocou a cabeça.

 Jay Becker. Ninguém n o m und o tinh a mai s classe que ele. Jay, p ensava eu enq uan to o vagão do metrô em ergia d o túnel mergulhan do na l uz esverdeada 

de Dowtown Crossing, torço para que você esteja certo. Lá vou eu, pronto ou não. O jogo deescond e-escon de com eçou.

De volta ao meu apartamento, escondi os vinte mil no espaço atrás do rodapé da parede da cozinh a, o mesmo lugar ond e guardo m in has arma s de reserva. Angie e eu li mp am os a mesa da sala e

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Desiree contou ao pa i.“É muito temp o”, eu di sse, levan tando os olh os das min ha s ano tações.

 Angie levan tou os olh os do s relatório s de Jay Becker. “O que você q uer dizer com isso?”“Pelas minhas notas, Desiree disse ao pai que Sean Price encontrou a mulher e a filha vinte e

quatro h oras dep oi s que elas morreram .”Ela se inclinou sobre a mesa, pegou suas notas, que estavam perto do meu cotovelo, e as

fol heo u. “Isso mesmo . Foi i sso q ue Trevor di sse.”“Parece tempo demais”, eu disse. “Uma jovem mulher — esposa de um homem de negócios e

provavelmente de classe alta, pois moravam em Concord —, ela e a filha não dão sinal de vida durante vi nte e q uatro ho ras e ni nguém no ta?”

“Os vizin ho s hoje em d ia têm cada vez m enos relações de amizad e e cada vez meno s interessepel o q ue se passa com os outros.”

Franzi o cenho . “Tudo b em, talvez no s bai rros do centro o u no s ba irros de classe méd ia b aixa. Ma s isso aconteceu em Con cord. Terra de vitoria no s, terra de carruagens e da Old North Bridge. A América chiquérrima, branq uíssim a, da mai s al ta classe. A fi lh a de Sean Price tem cinco an os. Ela não freqüenta um jardim-de-infância, aulas de dança ou alguma coisa do tipo? Sua mãe não faz

aerób ica, não trabalh a ou não tem um al mo ço com o utra jo vem m ulh er também d e classe alta?”“Isso incomo da vo cê.”“Um p ouco. Parece haver algo errad o aí .”Ela se recostou na cadeira. “Em no sso ram o cham am os isso de ‘in tuição’.”Caneta na mão, debrucei-me sobre minhas anotações. “Como se escreve isso? Com um ‘i’

inicial, certo?”“Não, com um ‘t’ de ton to.” Ela ficou batend o com a caneta em seus pa péi s e sorriu para mim.

“Investigar Sean Price”, disse ela en quanto escrevia essas mesmas palavras na m argem superior de suasano tações. “E morte por envenen amen to po r mon óxid o d e carbo no em Con cord entre 1995 e 96.”

“E o n amo rado mo rto. Com o era o no me del e?”Ela virou a págin a. “Anthon y Lisardo .”“Certo.”

 Angie fez uma careta ol han do as fo tos d e Desiree. “Um monte de gente morrendo em volta dessa moça.”

“É mesmo.”Ela pegou uma d as fotos, e a expressão d e seu rosto se abrandou. “Meu Deus, ela é deslumbran te.

 Ma s faz sentid o el a buscar ap oio em uma pessoa que também sofreu gran des perdas.” Ela levanto u osol ho s pa ra mi m. “Entend e o que quero d izer?”

Sustentei o seu olhar, procurei nele um claro sinal de sofrimento e dor que havia em algumlugar por trás de seus ol hos, o med o d e se preocupa r dema is e se expo r à m ágoa n ovam ente. Mas eu sóconsegui enxergar os sinais da empatia e compaixão que ela sentiu quando olhou a fotografia deDesiree, semelha ntes aos que ela d eixou entrever dep oi s de fitar o o lh ar do p ai d a jovem .

“Sim”, respo nd i. “Eu entend o.”“Mas alguém po deria se aproveitar disso”, di sse ela , voltan do a fitar o rosto d e Desiree.“Com o assim ?”“Se vo cê quisesse se aproxima r de uma pessoa devastada pel a d or, e não necessariamen te com

bo as intenções, o q ue faria? ”“Se eu fosse um sujeito cín ico e ma ni pulado r?”

“Sim.”“Procuraria criar um l aço co m b ase numa perda com um.”

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“Fingin do também ter sofrido perdas irreparáveis, talvez?”Fiz que sim . “Essa seria a m elh or tática d e aproxim ação.”“Acho , defin itivam ente, que p recisamos con seguir m ais informaçõ es sob re S ean Price”, disse

ela, com os olh os brilh ando , cada vez m ais excitados.“O que os relatórios de Jay d izem sob re ele?”“Bom... vamos ver. Nada que já não saibamos.” Ela se pôs a passar as páginas, depois parou de

repen te e olh ou para mim , com um sorriso radian te.“O que foi?”, perguntei, sentindo um sorriso espalhando-se em meu rosto, pois sua excitação

era contagian te.“É o m áxim o”, disse ela.“O quê?”Ela levantou uma folha de papel e apontou para a confusão de papéis em cima da mesa. “Isto.

Tudo isto. Estamo s de vol ta à caçad a, Patrick.”“Sim, é mesmo.” E até aquele momento eu não me dera conta de quanto sentia falta daquilo

— destrinçar enigmas, seguir pistas, dando o primeiro passo para desvendar o que à primeira vista parecia in decifrável e inacessível .

 Mas d eixei meu entusiasmo arrefecer por um instan te, porque fora essa m esma excitação , essa gana de descobrir coisas que às vezes é melhor que fiquem encobertas, que me pusera cara a cara coma in supo rtável p estilência e p odridão moral d a p sique de Gerry Gl ynn.

Essa m esma gana valera uma ba la no corpo d e Angie, marcas em m eu rosto, lesão n o n ervo d euma m ão, e deixara em meus braços Phi l, o ex-marido de Angie, agoni zan te, ofegante e apavorado .

“Você vai ficar bom”, eu lh e di ssera.“Eu sei”, respondera ele. E morreu.E eu sabia muito bem aonde podiam nos levar todas essas investigações, todas essas

descobertas, todas essas revelações: à fria consciência de que não estávamos bem, nem um nem

outro. Nossos corações e no ssas men tes estavam guardad os po rque eram frágeis, mas tamb ém po rquesemp re supuravam algo sin istro e dep ravad o dem ais pa ra o s olh os dos outros.“Ei!”, disse Angie, ain da sorrin do , mas um po uco m enos segura. “Qual é o problem a?”Eu sempre adorei o sorriso d ela .“Nada”, eu di sse. “Você tem razão. Isso é o má xim o.”“Certíssim o”, disse ela, e b atemos no ssas mão s por cim a d a m esa. “Estamos de vol ta à ativa. Os

criminosos que se cuidem.”“Eles já estão no mai or cagaço”, garanti a ela.

* No o riginal, Big Dick: dick p od e ser “detetive” e tamb ém “pêni s”. Big Dick, portanto, pod e serum b om detetive o u um p êni s grande. (N. T.)

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4

HAMLYN AND KOHL INVEST IGAÇÕES INTER NACIONAIS

 JOHN HANCOCK TOWER , 33º ANDAR CLAR ENDON S TR EET, 15002116 BOS TON, MASS ACHUSET TS

Relatório de investigações

PARA: sr. Trevor StoneDE: sr. Jay Becker, detetive

 ASS UNTO: O d esaparecimento da srta. Desiree Sto ne

16 de fevereiro d e 1997

Primeiro dia de investigação do desaparecimento de Desiree Stone, que foi vista pela última  vez sain do de sua casa em Oak Bluff Drive, 1468, Marblehead , às o nz e d a man hã (horário dein verno de No va Yo rk) do di a 12 de fevereiro.

O supracitado detetive interrogou o sr. Pietro Leone, caixa do estacionamento da BoylstonStreet, 500, Boston, e então localizou o Saab Turbo branco da srta. Stone no piso 2 do ditoestacionamento. O tíquete encontrado no porta-luvas indica que ele entrou no

estacionamento exatamente às 11h51 do dia 12 de fevereiro. A inspeção feita no carro e nascercanias não revelou nenhum indício de que tenha havido agressão criminosa. As portasestavam fechad as, o al arme ligado .

Entrei em contato com Julian Archerson (mordomo do sr. Stone), que concordou em virpegar o carro da srta. Stone, usando as chaves de reserva, e levá-lo para a supracitada residência,para ser mais bem vistoriado. O detetive supramencionado pagou ao sr. Leone cinco dias emeio de estacionamento, num total de 124 dólares, depois foi embora do estacionamento.[Ver recib o anexo às notas rela tivas às despesas di árias.]

O supracitado detetive explo rou os parques de Emerald Necklace, com eçand o pel o BostonCommon, passando pelo Public Garden, alameda da Commonwealth Avenue e, por fim,Fens, na altura da Avenue Louis Pasteur. Mostrando a freqüentadores do parque váriasfotografias da srta. Stone, o supracitado detetive encontrou três indivíduos que afirmaram tê-la 

 visto n os últim os seis meses:

1. Daniel Mahew, 23, estudante de música em Berklee . Viu a srta. Stone, pelo menos em quatroocasiões, sentada num banco da alameda da Commonwealth Avenue entre a Massachusetts

 Avenue e Charlesgate East. As datas são ap roximad as, mas essas ocorrênci as situam -se na 

terceira semana de agosto, segunda semana de setembro, segunda semana de outubro eprimeira semana de novembro. O sr. Mahew manifestou um interesse romântico pela srta.

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Stone, mas ela se mostrou absolutamente desinteressada. O sr. Mahew tentou entabular uma conversa com a srta. Stone, mas por duas vezes ela se afastou; numa terceira vez ela o ignorou e,segundo Mahew, encerrou um quarto encontro jogando nele gás lacrimogêneo ou pimenta em spray.

O sr. Mahew afirmou que, em todas essas ocasiões, não havia dúvida de que a srta. Stoneestava sozinha.

 2. Agnes Pascher, 44, moradora de rua. O testemunh o d a sra. Pascher deve ser visto co m reserva, poi so supracitado detetive p ercebeu evidentes sin ais de uso de á lcoo l e de droga (heroín a). Pascherafirma ter visto a srta. Stone em duas ocasiões — amb as em setemb ro (aproxim ada men te) —em Boston Com mon . A srta. Ston e, segund o Pascher, estava sentad a na gram a, junto à en trad a,na esquina das ruas Beacon e Charles, alimentando os esquilos com alguns punhados desementes de girassol. Pascher, que não teve nenhum contato com a srta. Stone, chamou-a de “a mo ça do s esquilo s”.

 3. Herbert Constanza, 34, engenheiro sanitarista do Departamento de Parques e Recreação. Em várias

ocasiões, desde m eado s de agosto até o começo de n ovem bro, o sr. Con stanza o bservou a srta.Stone, que ele apelidou de “a moça bonita e triste”, sentada embaixo de uma árvore numcanto da área noroeste do Public Garden. Seu contato com ela limitou-se a “discretos bons-dias” a que ela raramente respondia. O sr. Constanza imaginou que a srta. Stone era poetisa,emb ora n unca a tivesse vi sto escrevend o alguma coisa.

Observe-se que as últimas vezes em que a viram foi no começo de novembro. A srta. Stoneafirmou ter conhecido o homem que ela identificava como Sean Price também nesseperíodo.

Buscas nos catálogos telefônicos eletrônicos dos nomes Sean ou S. Price apresentaram 124entradas. As buscas de Sean Price no Departamento de Trânsito reduziram esse número para dezen ove, na faixa etária entre 25 e 35 anos. Com o a úni ca descrição física de Sean Price feita pela srta. Stone informava apenas sua idade e sua raça (branca), o número se reduziu a seis,quando se fez a seleção p elo critério étnico.

O supracitado detetive começará amanhã a procurar e interrogar aquelas seis pessoas de nomeSean Price.

 Atenci osam ente,

 Jay BeckerDetetive

Cc: sr. Hamlyn, sr. Kohl, sr. Keegan, sra. Tarnover.

 Angie desvio u o ol har dos relatório s e esfregou os ol hos. Estávam os sentad os lad o a la do ,

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len do as pá ginas juntos.“Porra”, di sse el a. “Que sujei to m eticulo so.”“Esse é o Jay”, eu di sse. “Um exem plo para todo s nós.”Ela m e cutucou. “Fale a verdade... ele é seu herói , não é?”“Herói?”, eu disse. “Ele é meu Deus. Jay Becker poderia encontrar Hoffa * em do is temp os.”Ela deu uns tapinhas no maço de folhas. “Mas parece que ele estava tendo dificuldade para 

enco ntrar Desiree Stone e S ean Price.”“Tenh a fé”, eu di sse, virand o uma p ágina.

 Jay levo u três dia s investigando os seis Sean Price, sem nenhum resultado. Um deles tin ha estado na prisão até o fim de dezembro de 1995 e estava em liberdade condicional. Outro era paraplégico, não saía de casa. Um terceiro era químico da Genzyme Corporation e estava dandoconsultoria para um projeto da UCLA durante todo o outono. Sean Edward Price, de Charlestown,atuava como telhador em regime de meio período e como racista em tempo integral. Quando Jay lhe perguntou se ele estivera recentemente no Public Garden ou no Boston Common, elerespondeu: “Com todas aquelas bichas, aqueles radicais e aquela gentalha pedindo esmolas para comprar crack ? Eles deviam fazer um fosso em volta do centro da cidade e jogar uma bomba em

cima, cara.”Sean Robert Price, de Baintree, era um sujeito gordinho e careca que trabalhava como

 ven dedor p ara uma em presa de p rodutos têxteis. Quan do Jay lhe m ostrou a foto de Desiree S ton e,ele disse: “Se uma mulher deslumbrante como essa olhasse para mim, eu tinha um ataque cardíacona hora”. Visto que em seu trabalho ele cobria o litoral sul e a parte norte do cabo, seria impossívelele ir a Boston sem chamar a atenção. Sua freqüência ao trabalho, garantiu o patrão, era irrepreensível.

Sean Armstrong Price, de Dover, era consultor de investimentos e trabalhava para ShearsonLehma n. Ele se esquivou de Jay p or três dias, e os relatórios di ários do detetive co meçaram a mo strar

uma leve excitação, até que fin alm ente ele o encon trou no Grill 23, quand o este recepcio nava algunsclientes. Jay puxou uma cadeira para junto da mesa e perguntou a Price por que o estava evitando.Price, achan do que Jay era um in spetor da Com issão de Val ores Mo bi li ários, con fessou de cara umesquema fraudulen to no qual recom end ava aos clientes que com prassem ações de em presas prestes a falir, empresas nas quais o próprio Price investira, por intermédio de uma empresa fantasma. Esseesquema — Jay descob riu depo is — já vinh a funcion and o h avia ano s, e durante o m ês de o utubro e ocomeço de novembro Sean Armstrong Price fez várias viagens às ilhas Cayman, às Pequenas

 Antilh as e a Zurique pa ra escon der o d inheiro que não l he cab ia por di reito.Dois dias depois, observou Jay, um dos clientes que tinham sido recepcionados por Price

den unciou-o aos verdad eiros inspetores da Com issão d e Valo res Mo bi li ários, e ele foi preso em seuescritório na Federal Street. Lendo nas entrelinhas das demais informações sobre Price coletadaspor Jay, podia-se deduzir que Price era estúpido demais, bandeiroso demais e preocupado demaiscom fin anças para enganar Desiree ou estabelecer relações com ela.

 Afora essa pequena vitória , contudo , Jay nã o estava conseguindo ir a l ugar nenh um, e a o cab ode cinco dias sua frustração começou a se manifestar nos relatórios. Os amigos íntimos de Desireetin ham perdi do contato com ela d epoi s da mo rte de sua m ãe. Pai e filh a raramente se falavam, e ela não fazia confi dências nem a Zumb i n em a Nó-Cego. Com exceção da o casião em q ue lançou gáslacrimogêneo nos olhos de Daniel Mahew, ela fora extremamente discreta em suas incursões aocentro da cidade. Se não fosse tão bonita, observou Jay a certa altura, certamente teria passado

despercebida.Desde que desapareceu, ela não usou nenhum de seus cartões de crédito e não emitiu nenhum

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cheque; suas aplicações, suas muitas ações, seus certificados de depósitos se mantiveram intactos.Uma checagem do registro das ligações de sua linha telefônica particular revelou que ela nãotelefonara pa ra n in guém en tre julho e a da ta de seu desaparecimen to.

“Não houve nenhum telefonema”, observara Jay, sublinhando as palavras em vermelho, emseu rela tório de 20 de fevereiro.

 Jay nã o era de ficar subli nhan do à toa, e eu poderia jurar que ele ultrap assara os lim ites da frustração e do orgulho profissional ferido, descambando para a obsessão. “É como se essa bela mulh er nunca tivesse existid o”, escreveu em 22 de fevereiro.

Observando o caráter não profissional desse comentário, Trevor Stone entrou em contatocom Everett Hamlyn, e na manhã do dia 23 Jay Becker foi convocado para uma reunião urgentecom Haml yn, Adam Koh l e T revor Stone, na casa deste últim o. Trevor anexou uma transcrição da conversa del es ao d ossiê organiza do po r Jay:

HAMLYN: Precisamos di scutir a natureza d esse relatório .BECKER: Eu estava cansado.

KOHL: Qualificativos como “bela”? Num documento que vai circular por toda a empresa?Ond e o senhor está com a cabeça, senh or Becker?

BECKER: Rep ito q ue estava cansado. Senh or Ston e, peço d esculp as.STONE: Estou preocupado porque o senhor está perdendo sua neutralidade profissional,

senh or Becker.HAMLYN: Com o devido respeito, senhor Stone, em minha opinião ele já perdeu essa 

neutralidade.KOHL: Não há a meno r dúvida.BECKER: Os senho res estão m e afastan do do caso?

HAMLYN: Se o senhor Stone aceitar a nossa recom end ação.BECKER: Sen ho r Ston e?STONE: Me dê alguma razão pela qual eu não deva fazê-lo, senhor Becker. Nós estamos

falando da vida de minha filha.BECKER: Senhor Stone, reconheço que fiquei frustrado com a falta de qualquer prova 

material do desaparecimento de sua filha e da existência desse Sean Price que ela disse terconh ecido . E essa frustração me d eixou um po uco d esorientado . E, claro, o que o senhor me fal ou desua filha, o que ouvi de testemunhas e sem dúvida sua beleza física despertaram em mim uma simpatia que em nada contribui para uma investigação desapaixonada, com o devidodi stanciam ento p rofissio nal . Tudo isso é verdad e. Mas já estou chegand o ao fim . Eu vou encontrá-la .

ST ONE: Quando ?BECKER: Em b reve. Muito em breve.HAMLYN: S enh or Stone, in sisto em que o senhor no s permita usar outro detetive nesse caso,

para chefiar as investigações.STONE: Sen ho r Becker, vou lh e dar três di as.KOHL: Senh or Stone!ST ONE: T rês dias para con seguir algum ind ício concreto do paradeiro de m inh a fil ha.BECKER: Obrigado , senh or. Obrigado . Muito o brigado.

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“Isso é grave”, eu di sse.“O quê?”, perguntou Angie, acend end o um ci garro.“Desconsidere toda a transcrição e preste atenção apenas na última fala de Jay. Ele se mostra 

subservien te, po r pouco n ão cai na b ajulação.”“Ele agrad ece a Stone po r salvar seu emp rego.”Balancei a cabeça. “Jay não é disso. Jay é muito orgulhoso. Se você o tirar de um carro em

cham as, ele vai agradecer com um simp les ‘obrigado’. Ele n ão é de fi car agradecend o. Ele é arrogantedem ais. E o Jay q ue con heço ficaria furio so se son ha ssem em tirá-lo do caso.”

“Mas nesse caso ele estava começando a divagar. Você viu o que ele escreveu antes da talreunião?”

Levantei-me, fiquei andando de um lado para outro, junto à mesa da sala. “Jay consegueenco ntrar qualquer pessoa.”

“Foi isso q ue você d isse.”“Mas em uma seman a traba lh and o n esse caso, ele n ão acho u nad a. Nem Desiree nem Price.”“Tal vez el e estivesse procurando no s lugares errad os.”Inclinei-me por sobre a mesa e, esforçando-me para relaxar minha nuca, olhei para Desiree

Stone. Numa das fotos, ela estava sentada num balanço em Marblehead, sorrindo, os olhos verdesbrilhan tes olhan do diretamente para a l ente da m áquin a. A opulenta cabeleira cor de mel revolta,suéter am arrotad o, jea ns rasgad o, pés descalço s, maravil ho sos den tes bran cos à mostra.

Seus olho s convi davam o o lh ar, não h avia d úvida, mas não era só isso q ue no s fazia m anter osolhos pregados nela. Ela tinha aquilo que certamente um diretor de cinema de Hollywoodchamaria de “presença”. Congelada no tempo, ainda assim ela irradiava saúde, vigor, uma sensuali dad e natural, uma mi stura de fragil id ade e eq uil íb rio , de desejo e ino cência.

“Tem razão”, eu di sse.“Como assim?”, disse Angie.

“Ela é deslumbrante.”“Eu seria capaz de m atar para ficar tão bem assim num suéter velho e numa cal ça jean s rasgada . Meu Deus, o cab elo d ela dá a impressão d e nã o ter sido p enteado p or uma semana, e aind a assim ela está absolutamente perfeita.”

Fiz uma careta para ela. “Em m atéria de b eleza, Angie, você não fica m uito a trás.”“Ora, faça-me o favor.” Ela apagou o cigarro, aproximou a cabeça da minha para observar a 

foto. “Eu sou bon ita. Tudo bem . Alguns ho men s diriam que sou lin da.”“Ou deslumb ran te. Ou subl im e, de arrasar, volup...”“Tudo bem ”, disse ela. “Ótimo . Alguns ho men s. Adm ito isso. Alguns ho men s. Mas não todos.

 Muito s d iriam que nã o sou seu tip o, sou italian a demai s, b ai xa demai s, i sto demai s ou aquil o demenos.”

“Para con tinuarmos a di scussão, digam os que sim”, falei .“Mas esta aqui”, disse ela, batendo o indicador na testa de Desiree, “não há um homem no

mundo que não a ache atraente.”“Ela é d emais”, eu di sse.“Demais?”, di sse Angie. “Patrick, ela é p erfeita.”

Doi s dias dep oi s da reuni ão de em ergência n a casa de T revor Ston e, Jay Becker fez uma coi sa 

que poderia indicar que ele tinha pirado de vez, mas em vez disso demonstrou ser uma tirada degênio.

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Ele se tran sformo u em Desiree Ston e.Ele parou de se barbear, de se pentear e de comer. Vestido num terno caro mas amarrotado,

tentou reconstituir os passos de Desiree no Emerald Necklace. Dessa vez, porém, ele não seapresentou com o d etetive; fez o q ue ela teria feito.

Ele se sentou no mesmo banco da alameda da Commonwealth Avenue, na mesma nesga deterra grama da no Comm on , sob a m esma árvore do Publ ic G arden. Com o o bservou nos relatórios,a princípio teve a esperança de que alguém — talvez Sean Price — entrasse em contato com ele, seman ifestasse de uma forma o u de outra, acredi tando -o d esgraçado , devastado pel a d or. Mas quand oisso não acon teceu, ele tentou se col ocar no mesmo estado de espírito q ue im agino u ser o de Desireenas semanas que antecederam o seu desaparecimento. Ele se imbuiu das coisas que ela tinha contemplado, dos sons que tinha ouvido, esperou, como ela certamente esperara, por um contato,pelo fim d o sofrim ento, po r uma relação humana b aseada na dor comum.

“A dor”, escreveu Jay em seu relatório daquele dia. “Eu sempre me reportava à sua dor. O que a po deria alivi ar? O que a po deria m anip ular? O que a p oderia tocar?”

Perambulando sozinho, na maior parte do tempo, pelos parques gelados, com os flocos deneve an uvian do seu camp o d e visão, Jay por pouco n ão dei xou de ver o q ue estava di ante de seu rosto

e batucand o em seu in consciente desde q ue assumi ra o caso, no ve d ias antes.Dor, ele fico u pensando . Dor.E ele a viu de seu banco na Commonwealth Avenue. Ele a viu de sua nesga de gramado no

Comm on . Ele a vi u de sob a árvore no Publ ic Ga rden .Dor.Não a emoção, mas a pequena p laca do urada.LIBERTAÇÃO DA DOR, INC., era o que estava escrito na placa.Havia uma placa dourada na fachada da sede da empresa bem de frente para seu banco na 

Commonwealth Avenue, outra na porta do Centro Terapêutico Libertação da Dor, na Beacon

Street. E os escritórios da Libertação da Dor, Inc. localizavam-se um quarteirão adiante, numa man são d e tij ol os vermel ho s na Arli ngton Street.Libertação d a Dor, Inc. Quand o caiu a fich a, ele d eve ter mo rrid o de rir.

Doi s di as mai s tarde, depo is de in formar a Trevor Ston e, Haml yn e Koh l q ue reuni ra in dí ciosde que Desiree Stone visitara a Libertação da Dor, Inc. e que a organização lhe parecia suspeita, Jay procurou i nfi ltrar-se.

Ele entrou na sede da Libertação da Dor e pediu para falar com um terapeuta. Disse aoterapeuta que, depois de uma missão humanitária para as Nações Unidas em Ruanda e na Bósnia (uma hi stória que um am igo d e Adam Koh l, da s Nações Uni das, pod eria confi rma r, se necessário),ele se encon trava n um estado d e comp leto esgotamento m oral, psicoló gico e emocio nal.

Naquela noite ele participou de um “seminário intensivo” para pessoas que sofriam de dorextrema. Jay contou a Everett Hamlyn numa conversa gravada nas primeiras horas do dia 27 defevereiro q ue a Libertação d a Dor classifi cava seus clien tes de acordo com seis ní veis de sofrimen to:Nível Um (mal-estar); Nível Dois (desamparo); Nível Três (estado sério, com manifestações dehostilidade ou alienação moral); Nível Quatro (grave); Nível Cinco (agudo); Nível Seis (linha divisória).

 Jay explico u que “li nha di visória” signi ficava que o cliente chegara a um pon to em que

im pl od ia ou atingia o estado de graça e a ceitação. Para averiguar se um Nível Cinco estava em riscode chegar ao Nível Seis, a Libertação da Dor aconselhava participar de um retiro. Por sorte, disse Jay,

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um grupo iria partir de Boston no di a seguin te, 28 de fevereiro, pa ra fazer um retiro em Nan tucket.Depois de ligar para Trevor Stone, a Hamlyn and Kohl autorizou um gasto de dois mil

dó la res, e Jay pa rtiu para o retiro.“Ela esteve aqui”, disse Jay a Everett Hamlyn quando falaram pelo telefone. “Desiree. Ela esteve

na sede da Libertação da Dor na Com mo nwealth Avenue.”“Com o você sabe?”“Há um quadro de avisos na sala de recepção. Com todo tipo de fotos polaróide — sabe

como é, festa de Ação de Graças, festinhas de pessoas absolutamente satisfeitas por terem voltado a ser normais, bobagens do tipo. Ela é uma dessas pessoas, eu a vi na última fileira de um desses grupos.Eu a en con trei, Everett. Sin to isso.”

“Tom e cuid ado , Jay”, disse Everett Haml yn.E Jay tomou. No primeiro dia de março, ele voltou de Nantucket são e salvo. Ligou para 

Trevor Stone e disse a ele que acabara de voltar para Boston e que iria passar em sua casa em Ma rblehead dentro d e uma hora para com unicar o que descobrira.

“Você a enco ntrou?”, perguntou Trevor.“Ela está viva.”

“Tem certeza?”“Eu lhe disse, senhor Stone”, falou Jay com um pouco de sua velha arrogância. “Ninguém

consegue se esconder de Jay Becker. Ninguém.”“Ond e você está? Vou manda r um carro b uscá-l o.”

 Jay caiu na gargalh ad a. “Não se preocupe com i sso. Estou a ap enas trinta quil ômetros daí . Logoestou chegando.”

E em algum po nto desses trin ta quilô metros Jay tamb ém desapareceu.

* Jimm y Hoffa: d irigente sin di cal am erican o d esaparecido mi sterio samen te em 1975. (N. T.)

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“ Fi n de siècle ”, di sse Gin ny R egan.

“ Fi n de siècle ”, eu disse. “Sim.”“Isso o incomoda?”, perguntou ela.“Claro”, respo nd i. “A você não ?”Ginny Regan era a recepcionista do escritório da Libertação da Dor, e parecia um pouco

desconcertada. Não a censuro por isso. Acho que ela não sabia a diferença entre  fi n de si ècle   e umpi colé, e se eu não tivesse consultado um d icion ário an tes de i r pa ra lá , tam bém não saberia. Naquela circunstância eu estava tentando me virar da melhor forma, e começava a me confundir. Chico

 Ma rx, eu ficava pensand o o temp o todo. Chi co M arx. Com o Chico Marx conduzi ria uma co nversa como aq uela?

“Bom ”, di sse Gi nn y. “Não sei b em.”“Com o a ssim ?”, eu di sse, batendo a m ão no tampo d e sua m esa. “Como não sabe? Quand o sefala de  fi n de siècle , trata-se de uma coisa muitíssimo séria. O fim do milênio, o caos total, o

 Armagedon nuclear, baratas do tam an ho d e Ra nge Rovers.”Ginny me lançou um olhar nervoso, enquanto um homem de terno azul-claro vestia um

sobretudo na sala atrás dela, aproximando-se do portãozinho que, junto com a escrivaninha deGi nn y, separava o saguão d o escritório p rin cip al.

“Si m”, di sse Gi nn y. “Cla ro que é muito sério . Mas eu estava...”“As inscrições na parede, Ginny. Nossa sociedade está desmoronando. Há sinais disso em

toda parte: Oklahoma City, o atentado contra o World Trade Center, David Hasselhoff. Está na no ssa cara.”

“Boa n oi te, Ginny”, disse o h om em d e sob retudo, enquanto ab ria o p ortãozi nh o ao lad o d a escrivani nh a de Gin ny.

“Oh, boa n oi te, Fred”, di sse Ginn y.Fred olh ou para mim .Eu sorri. “Boa noite, Fred.”“Ahn , sim ”, fez Fred. “Tudo bem .” E foi emb ora.Olhei para o relógio na parede, acima dos ombros de Ginny: 17h22. Àquela hora todo o

pessoal do escritório já tinh a id o em bo ra. Todo s exceto G inn y, coitada.

Cocei a nuca várias vezes, o sinal combinado com Angie de que o caminho estava livre, elancei a Gin ny m eu ol har benigno, beatífico, benevolente e lunático.

“Está ficando cada vez m ais difí cil l evantar da cam a”, eu di sse. “Muito d ifícil .”“Você está com depressão!”, disse Ginny, visivelmente aliviada, como se finalmente tivesse

entendi do o que até então lh e escapara.“Arrasado, G in ny. Arrasado .”Quando eu disse seu nome, ela estremeceu, depois sorriu. “Arrasado por causa dessa história de

fin-de-cerque?”“ Fi n de siècle ”, corrigi. “Sim. Bastante. Quer dizer, eu não concordo com os métodos dele, sabe,

mas Ted Kaczyn ski tin ha razão.”“Ted”, di sse ela.

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“Kaczynski”, eu disse.“Kaczyn ski”, ela repetiu.“O Una bo mb er”, eu di sse.So rri para ela.“Oh!”, fez ela de repente. “O Unabomber!” Seus olhos se desanuviaram, e ela de repente

pareceu excitada e ali viad a d e um grand e peso. “Entend o.”“Entende?”, eu di sse, incli nan do -me p ara a frente.Seu ol ha r no vam ente se encheu de perplexidad e. “Não, não entendo .”“Oh”, fiz eu, recostand o-m e no vam ente na cad eira.

 Atrás d ela, no fundo da sala , n a al tura d o ombro di reito de Gi nn y, vi uma jan ela se abrir. Ofrio , pensei d e repente. Ela vai sentir frio n as costas.

Debrucei-me sobre sua mesa. “Essa resposta crítica ao melhor da cultura popular me enche deperpl exidade, Ginn y.”

Ela estremeceu, depois sorriu. Parecia ser um tique seu. “Ah”, fez ela.“Isso mesmo”, continuei. “E essa perplexidade leva à raiva, essa raiva leva à depressão, e essa 

dep ressão...”, meu tom de vo z aumentava, eu quase berrava, enq uanto Angie pulava a jan ela e os ol ho s

de Ginny se arregalavam, ficavam do tamanho de frisbees, e a mão dela deslizava para dentro da gaveta da escrivaninha, “...leva à dor! A verdadeira dor, a dor provocada pelo declínio da arte e doespí rito crítico, pel o fim do m il êni o e po r toda essa atmosfera de  fi n de siècle .”

 A mão enluvad a de Angie fechou a jan ela atrás de si.“Senh or...”, disse G in ny.“Doo han ”, eu disse. “Deforest Doo han.”“Senhor Doohan”, disse ela. “Bem, senhor Doohan, não sei se dor é a palavra certa para seus

problemas.”“E Björk”, eu disse. “Você consegue explicar Björk?”

“Bem, eu nã o”, disse ela. “Ma s com certeza Ma nn y con segue.”“Man ny?”, eu di sse, enquanto a p orta atrás de m im se ab ria.“Sim, Manny”, disse Ginny, esboçando um sorriso confiante. “Manny é um dos nossos

terapeutas.”“Você tem um terapeuta cham ado Man ny?”, perguntei.“Olá, senh or Doo ha n”, di sse Man ny, postando -se à min ha frente com a m ão estend id a.

 Man ny era i menso — foi o que co nstatei quan do tive d e flexion ar o pescoço para encará-l o. Ma nn y era descomunal . Man ny, vou lhe di zer uma coisa, nã o era um ser human o. Era um co mplexoindustrial sobre patas.

“Olá, Manny”, eu disse, enquanto minha mão desaparecia em uma das luvas de apanhador debeisebol q ue lh e serviam de m ão.“Olá, senh or Doo ha n. Qual é o seu prob lem a?”“Dor”, eu disse.“É uma verdad eira epi dem ia”, di sse Mann y. E sorriu.

 Man ny e eu fom os and an do co m cuida do p elas calçad as cob ertas de gelo em volta do Publ icGarden, em direção ao Centro Terapêutico Libertação da Dor, na Beacon Street. Manny meexplicou delicadamente que eu cometera o engano bastante comum e compreensível de me dirigir

aos escritórios da Libertação da Dor, quando obviamente eu estava procurando uma ajuda terapêutica.

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“Obviamente”, concordei.“Então, o que o incomoda, senhor Doohan?”, disse Manny, que tinha uma voz

extraordin ariamen te suave p ara um ho mem do seu taman ho . Era calma, séria, a voz de uma espéciede tio.

“Bem, não sei, Manny”, respondi enquanto esperávamos para atravessar a rua no trânsitopesado d a ho ra do rush, na esquina d a Beacon com a Arli ngton. “Ultim amen te tenh o estado muito

desolad o com essa situação toda. O m und o, sabe? A América.” Man ny me segurou pelo cotovelo e me conduziu por uma brecha ab erta no ocean o dotrânsito. Sua mão era firme, forte, e seu and ar era o de um h om em que nunca co nh eceu o med o o u a hesitação. Quando chegamos ao outro lado da Beacon, ele soltou meu cotovelo e tomamos a di reção leste, enfrentand o o ven to gelad o.

“Em q ue o senho r trabalh a, senh or Doo ha n?”“Publicidade”, respondi.“Ah”, fez ele. “Ah, sim . Um m emb ro dos mass media.”“Se você quer cha mar assim , Man ny.”Quando nos aproximávamos do Centro Terapêutico, vi um grupo de adolescentes, todos de

camisas brancas iguais e calças verde-oliva de vinco impecável. Eram todos homens, de cabeloscurtos, e todos usavam casacos de couro.

“Vocês receberam a Mensagem?”, perguntou um deles a um casal de velhos que ia na nossa frente. Ele estendeu uma folha de papel à mulher, mas ela desviou o corpo e passou por ele numpasso acelerado que o deixou segurand o o pa pel no ar.

“Men sageiros”, eu di sse a Ma nn y.“Si m”, di sse Man ny com um suspiro. “Esta é uma d e suas esquin as preferid as, não sei p or quê.”Os “Men sageiros” — era como os bo stoniano s cha mavam aqueles jovens sério s que surgiam de

repente da multidão e enfiavam algum folheto no nariz dos passantes. Em geral homens, às vezes

mulheres, usavam uniforme branco e verde-oliva, cabelo curto, e seu olhar em geral era manso eino cente, com um leve in dício de exaltação nas íris.

 Mem bros da Igreja da Verdade e d a R evel ação, eles sem pre se m ostravam aten ciosos. A úni ca coisa que queriam era que você lhes desse alguns minutos de atenção e ouvisse a sua “mensagem” —que im agino ter algo a ver com o Apocal ip se ou com a revelação imi nen te, com o que vai aco ntecerquando os quatro cavaleiros descerem do céu e entrarem a galope na Tremont Street, e o chão seabrir para tragar os pecad ores ou aqueles que não deram o uvid os à M ensagem, o que im agino ser a mesma coisa.

 Aqueles jo ven s davam duro n aq uela esquin a, d an çan do em volta d as pessoa s e insinuan do-se

po r entre a multidão de p edestres que se dirigiam para casa dep oi s do di a de trabalh o.“Não quer receber a Mensagem, enquanto ainda há tempo?”, perguntava um deles, em tomdesesperado, a um h om em que pegou o fol heto, continuou and and o e ama ssou o p apel, reduzind o-o a um b olinho.

 Mas Man ny e eu, p elo que parecia, éramos invisívei s. Nenhum deles se ap roximou de nósquando nos dirigimos à porta do Centro Terapêutico. Na verdade, eles se afastaram de nós, numsúbi to mo vim ento d e recuo.

Olh ei para Mann y. “Você con hece esses garotos?”Ele bala nçou a cabeçorra. “Não, senh or Doo ha n.”“Eles pa recem conh ecê-lo, Mann y.”“Com certeza me recon hecem porque estou sempre po r aq ui.”“Deve ser isso mesmo ”, respon di .

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“Olá!”

“Olá!”“Olá!”“Que bom ver você!”Quatro pessoas estavam saindo no momento em que Manny e eu entrávamos. E, meu Deus,

que gente ma is feliz! T rês mulh eres e um ho mem , os rostos radi antes, os olh os brilh antes e claros, oscorpo s quase estourando d e tanta saúde e vigor.

“Funcionários?”, perguntei.“Ahn ?”, fez Mann y.“Esses quatro são funci on ários daq ui?”, eu di sse.“E clien tes”, disse Mann y.

“Quer diz er que uns são funci on ários e outros são cli entes?”“Sim”, disse Man ny. Um p uta dum imb ecil, o no sso Mann y.“Eles não parecem assim tão ab atido s...”“Nosso objetivo é a cura, senhor Doohan. Sendo assim, eu diria que seu comentário é uma 

avaliação p ositiva de n osso d esempenh o, não acha?” Atravessam os o vestíb ulo e subimos pelo la do direito de uma escada com do is lan ces

simétricos que parecia ocupar todo o térreo. Os degraus eram acarpetados, e um lustre do tamanhode um Cadill ac pend ia en tre os do is lances da escada.

Devia ha ver muita d or espa lh ada po r aí p ara pagar por aquele lugar. Não era de estranh ar que

todo mundo estivesse tão contente. Pelo visto, a d or era uma i nd ústria em expan são.No alto da escada, Manny abriu duas grandes portas de carvalho e avançou num piso demadeira que parecia ter um quilômetro e meio. Com certeza aquela sala um dia fora um salão debaile. O pé-direito, que tinha a altura de uns dois andares, era pintado de azul-claro, ornado compinturas douradas representando anjos e figuras mitológicas flutuando lado a lado. Muitos outroslustres-Cadil lac d ivi di am o espa ço com os anjos. As pa redes eram d ecoradas com p esado s brocado scor de vinho e tapeçarias antigas. Canapés e sofás, uma ou duas escrivaninhas ocupavam a área doassoal ho on de, com certeza, os pil ares da socied ade vi torian a outrora dan çaram e tagarelaram.

“Belo edifício ”, eu di sse.

“Sem dúvida”, disse Manny, enquanto várias pessoas abatidas olhavam para nós dos sofásonde se encontravam.Uns deviam ser clientes, outros, terapeutas, mas não dava para distinguir, e eu tinha a impressão

de q ue o vel ho Man ny n ão p od ia fazer grand e coisa pa ra m e ajudar a reconh ecer uns e outros.“Pessoal”, di sse Man ny en quanto d esfilá vam os po r entre o l ab irin to de sofás. “Este é Deforest.”“Olá, Deforest!”, respon deram vinte vozes em coro.“Oi”, respo nd i, depoi s ol hei em volta procurand o os casulo s.*“Deforest está sofrendo um po uco d o mal -estar do século XX”, di sse M ann y, levan do -me para 

o fund o d a sala. “Uma co isa que tod os conh ecemos bem .” Várias vozes se elevaram: “Si m. Oh, sim ”, como se estivéssemos num culto pentecostal e os

cantores de gospel estivessem prestes a en trar. Man ny m e levo u até uma escriva ninh a n um can to d o fundo da sala e fez sinal para q ue eu me

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sentasse numa poltrona à sua frente. A poltrona era tão fofa que temi me afogar em suas profundezas,mas de qualquer forma me sentei, e Manny cresceu uns trinta centímetros quando afundei na po ltron a e ele se instalo u numa cadei ra de espal dar reto atrás da escrivan in ha.

“Então, Deforest”, disse Manny, tirando da gaveta um bloco de anotações ainda em branco ecolocand o-o sob re a escrivani nh a. “Em que pod emos ajudá-lo ?”

“Não estou bem certo d e que consigam m e ajudar.”Ele se recostou na cadei ra, abriu bem os braços e sorriu. “Que tal tentar?”Dei d e om bros. “Talvez tenh a sid o uma má id éia. Eu só estava p assand o p erto do edi fício , vi a 

pl aca...” Dei d e om bros novam ente.“E você sentiu um puxão.”“Um o quê?”“Um p uxão.” Ele se in cli no u outra vez p ara a frente. “Você se sentiu mei o esquisito, não foi ?”“Um pouco”, eu di sse, fitan do meus sap atos.“Talvez um pouco, talvez muito. Isso veremos. Mas esquisito. Ainda há pouco você estava 

andando lá fora carregando no peito um peso que o oprime há tanto tempo que quase virou uma segunda natureza. Aí você vê a placa. Libertação da Dor. E tem a impressão de que sofreu um puxão.

Porque era por isso que você ansiava. Libertação. Da perplexidade. Da solidão. Da sensação de estardeslo cado.” Ele ergueu uma sob ran celh a. “Não foi isso que aconteceu?”

Pigarreei e relanceei os olhos em seu olhar firme, como se estivesse confuso demais para encará-lo. “Talvez.”

“‘Tal vez’ não ”, disse ele. “Si m. Você está sofrendo, Deforest. E nó s podem os ajudá-l o.”“Será que podem?”, eu disse, procurando imprimir a minha voz um levíssimo tremor. “Será 

que pod em?”, repeti.“Nós pod emo s. Se”, acrescentou ele, levan tando um ded o, “você confi ar em nó s.”“Isso n ão é fácil ”, respo nd i.

“Concordo. Mas a confiança deve ser a base de nossas relações, do contrário de nada adiantará. Você tem que confiar em mim.” Ele bateu no próprio peito. “E eu tenho que confiar em você. Assim, nós pod emos desenvol ver um vín culo.”

“Que tip o d e vín culo ?”“Um vínculo entre seres humanos.” Sua voz suave ficou ainda mais branda. “O único vínculo

que importa. É daí que advém a dor, Deforest — da falta de um vínculo com outros seres humanos.No passado você depositou sua confiança em pessoas que não a mereciam, que o espezinharam.

 Você foi traí do. Mentiram para você. Então você resolveu nunca mai s confiar. E essa decisão oprotege até certo ponto. Tenho certeza. Mas ela o isola do resto da humanidade. Você está desligado de tudo. Você se sente desgarrado. E a única maneira de você encontrar de novo o seucamin ho é um vínculo, é confiar no vamente.”

“E você quer que eu con fie em você.”Ele fez que sim. “Às vezes é preciso arriscar.”“E po r que eu deveria con fiar em você, Man ny?”“Bem, eu vou conquistar a sua confiança. Pode acreditar. Mas é uma via de mão dupla,

Deforest.” Apertei o s ol hos.“Eu preciso confi ar em você”, disse ele.“E com o p osso p rovar que sou digno de sua con fian ça, Mann y?”

Ele cruzou as mãos sobre o abdome. “Você pode começar me contando por que anda armado.”

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Ele era bom. Meu revólver estava no coldre, preso à cintura, nas costas, na altura dos rins. Eu vestia um terno bem largo, de corte europ eu, sob um sobretudo preto — o que eu i magina va ser a roupa típi ca de um p ubl icitário —, e nenhuma d as peças tocava n a arma. Man ny era muito bom .

“Medo ”, eu di sse, tentand o pa recer emb araçado.“Ah!, entendo.” Ele se inclinou para a frente e escreveu “medo” numa folha de papel pautado

que estava sob re a m esa. Na m argem superio r ele escreveu “Deforest Doo ha n”.“Entende?”

 A expressão de seu rosto parecia semp re neutra, reservad a. “Medo de al guma coisa emespecial?”

“Não”, eu disse. “É só a sensação difusa de que o mundo é um lugar muito perigoso, onde às vezes me sinto perdido.”

Ele balançou a cabeça. “Claro. Esse é um sentimento comum hoje em dia. As pessoas muitas vezes sentem que m esmo as coisas mais in signi fican tes neste mund o vasto e m od erno estão fora deseu con trol e. Elas se sentem isola das, pequenas, com med o de se p erder nas entranh as da tecno cracia,um mundo industrializado que se desenvolveu muito além de sua capacidade de controlar seuspi ores imp ulsos.”

“É po r aí”, falei .“Com o você d isse, é uma sensação d e  fi n de siècle , com um n o fin al d e cada século .”“Sim.”Eu não usara a expressão  fi n de siècle  na presença de Man ny.Isso queria di zer que os escritórios estavam chei os de ap arelh os de escuta.Tentei evitar que essa descoberta transparecesse em meu olhar, mas devo ter falhado, porque

seu sembla nte de repente se an uviou e ergueu-se entre nó s o calor de uma brusca revelação.O plano era conseguir fazer que Angie entrasse antes de ligarem o alarme. Ela certamente

dispararia o alarme na saída, é claro, mas então teria tempo dar o fora antes que algum guarda 

chegasse ao local. Isso na teoria, porque nenhum de nós considerou a possibilidade de um sistema de escuta in terno .

 Man ny olhou para mim , as sobrancelh as negras arquead as, os láb ios crispados por sobre a pi râmi de que formara com as mãos. Agora ele não parecia m ais um h om em al to e deli cado, nemum terapeuta da d or. Parecia um bo m fi lh o d a puta de quem se devi a ma nter di stância.

“Quem é vo cê, Doo han ? De verdade.”“Sou um publi citário que se sente profund amen te atemo riza do pel a cultura m od erna.”Ele tirou as mãos do rosto, olhou para ela s. “O engraçad o é q ue suas mão s nã o são m acias”, disse.

“E algumas articulações de seus dedos parecem ter sofrido fraturas mais de uma vez. E o seu rosto...”

“Meu rosto?” Percebi que a sala ia ficand o cad a vez m ais sil encio sa atrás de mi m. Man ny o lh ou para al guma coi sa ou para al guém atrás de mim . “Si m, seu rosto. Com uma boa iluminação, vejo cicatrizes em seu rosto, sob os pêlos da barba. Parecem cicatrizes de faca, senhorDoo han . Ou seriam de na valh a?”

“Quem é vo cê, Ma nn y?”, perguntei. “Você n ão m e pa rece um terapeuta da d or.”“Ah, mas quem está em questão aqui não sou eu.” Ele olhou novamente por sobre o meu

ombro, e então o telefone de sua mesa tocou. Ele sorriu e pegou o fone. “Sim?” Sua sobrancelha esquerda se ergueu enquanto ouvia, e seus olhos procuraram os meus. “Isso faz sentido”, disse ele aotelefone. “Com certeza ele não está trabalhando sozinho. Dê duro em quem estiver no escritório”,di sse, rin do pa ra m im . “Bata pra val er. Cuid e para que nã o os dei xem sair.”

 Man ny p ôs o fone no gancho e enfiou a m ão na gaveta, e eu meti o pé n a escrivan inha comtanta força que mi nh a po ltrona desli zou de sob mi m e a escrivani nh a caiu no peito d e Mann y.

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O sujeito que estava atrás de mim comunicando-se com Manny com o olhar se aproximoupela minha direita, e eu senti sua presença antes de vê-lo. Girei para a direita e dei-lhe uma cotovelad a no meio da cara, com tanta força que mi nh a m ão fi cou dormente.

 Man ny livrou-se da mesa e se levanto u enquan to eu dava uma volta e colocava meu revól verem seu ouvido .

De sua parte, Manny se mostrou um sujeito muito equilibrado, considerando-se que tinha umrevól ver encostado na cabeça. Ele n ão pa receu assustado. Parecia já ter vivid o aquilo antes. Parecia chateado.

“Você está pensand o em me usar como refém, não é?” Ele d eu um risinh o. “Sou grand e dem aispara ser rebo cado po r aí, meu velh o. Já pen sou nisso?”

“Pensei sim .”E dei-lhe uma coronh ada n a têmp ora.Para m uitos caras, aquilo bastava. É igual ao que a gente vê n o cinem a: el es caem feito um saco

de lixo e ficam no chão ofegantes. Mas com Manny era outra história, e eu não esperava que fossediferente.

Quando sua cabeça se inclinou, sob o impacto do primeiro golpe, dei outra pancada na 

 junçã o do pescoço com a claví cula e mai s uma na têmpora. Esse últim o golpe foi provi denci al ,porque ele já estava levantando os braços gigantescos, sem dúvida para me atirar do outro lado da sala como uma almofada. Em vez disso, ele revirou os olhos, dasabou sobre a cadeira que já estava tombada e se esborrachou no chão fazendo só um pouquinho mais de barulho do que faria umpiano j ogado do telhado .

Girei o corpo e apontei meu revólver para o sujeito que se chocara contra meu cotovelo. Eletinha o corpo musculoso de um atleta, e os cabelos pretos e curtos das têmporas contrastavam com a pele nua no alto da cabeça. Ele se levantou do chão, cobrindo o rosto ensangüentado com as mãosem concha.

“Ei, você”, eu di sse. “Seu bab aca.”Ele olho u para mim.“Ponh a as mão s na cabeça e vá andan do na m inh a frente.”Ele pi scou os olh os.Estendi o braço e encostei o revólver nele. “Agora.”Ele entrecruzou os dedos no alto da cabeça e começou a andar, enquanto eu mantinha o

revólver entre as suas omoplatas. A multidão de imbecis felizes ia se abrindo à medida queavançávamos, e agora eles não estavam parecendo tão felizes ou radiantes como antes. Pareciam

 virulentos feito víboras cujo ninh o tivesse sido d estruído. A meio cam inh o do an tigo salã o de bai le, vi um sujeito de pé atrás de uma escrivan inh a,

falan do ao telefon e. Engatil hei o revólver e apo ntei pa ra ele. Ele largou o fon e.“Desligue”, ordenei .Ele d esligou, as mã os trêmula s.“Afaste-se da escrivaninha.”Ele se afastou.O sujei to d e cara q uebrada que ia n a m in ha frente gritou para as pessoas que estavam n o salã o:

“Ninguém d eve cham ar a pol ícia”. Depo is se vol tou pa ra m im : “Você está numa enrascada”.“Com o é seu no me?”, eu di sse, ap ertando o revólver nas suas costas.“Vá se fod er”, disse ele.

“Bon ito no me. É sueco?”, perguntei .“Você é um h om em m orto.”

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“Humm ”, fiz eu. Com m in ha m ão l ivre, dei um tapin ha em seu nariz q uebrado.Uma mulher que estava paralisada à nossa esquerda exclamou: “Meu Deus”, e o sr. Vá-se-Foder

camb aleo u, ofegante, depo is recuperou o equil íb rio .Chegam os à porta dupla , e eu colo quei minh a mã o l ivre no omb ro d o sr. Vá-se-Fod er e enfiei

o revólver sob seu queixo, fazendo -o p arar. Tirei sua carteira do bo lso d e trás, abri-a e li o n om e emsua carta d e m otorista: John Byrne. Colo quei a carteira n o bo lso d e m eu sob retudo .

“John Byrne”, sussurrei ao seu ouvido. “Se tiver alguém do outro lado dessa porta, você vaiganhar mais um buraco na cara, entendeu?”

Sangue e suor escorriam-lhe do rosto e empapavam o colarinho de sua camisa branca.“Entend i”, ele respo nd eu.

“Ótimo. Agora vamos sair, John.” Voltei a cab eça e dei uma olh ad a naq uela gente feliz. Ninguém se mexia. M an ny devi a ser o

úni co a ter uma arma na gaveta da escrivan in ha .“Quem passar po r essa po rta d epoi s que eu sair”, eu di sse com a vo z um p ouco rouca, “vai mo rrer,

certo?” À guisa de resposta, muitos bal an çaram a cab eça n ervosam ente, e Joh n Byrne ab riu a porta.

Empurrei-o pa ra a frente, segurand o-o com firmeza, e pa ram os no alto da escada.Estava vazi a.Gi rei o corpo d e John Byrne d e frente para a porta do salão de bail e. “Feche a p orta.”Ele fechou, girei seu corpo no vam ente em d ireção à escada, e com eçamo s a descer. Há po ucos

lugares com menos espaço para manobras do que uma escada daquele tipo. Eu engolia em seco,enquanto meus olhos se deslocavam rapidamente para a esquerda, para a direita, para cima, para bai xo, e recomeçavam tudo de n ovo . A mei a altura da escada, notei que o corpo d e Joh n ficou tenso.Puxei-o co m força em mi nh a d ireção, pressio nei o can o d o revólver em suas costas.

“Está pensando em m e jogar escada ab aixo, John ?”

“Não”, disse ele en tre os dentes cerrados. “Não.”“Ótimo”, eu di sse. “Porque seria uma estupid ez.”Senti que seus músculo s rela xaram. Emp urrei-o n ova mente para a frente, e descemos o resto da 

escada. A mistura de suor e sangue sujou a manga de meu sobretudo, deixando uma mancha úmida,cor de ferrugem.

“Você estragou o meu sobretudo , John .”Ele ol ho u pa ra m eu braço. “Essa m anch a sai.”“É sangue . Sob re a mai s fina l ã, Joh n.”“Mas uma bo a lavad ora a seco sabe...”

“Espero que sim”, eu disse. “Porque se não sair... eu estou com sua carteira. O que significa que seion de vo cê mora. Pense nisso, John .”Param os na p orta q ue da va p ara o saguão.“Está p ensando no que lh e falei, John?”“Sim.”“Vai ter alguém esperando po r nós lá fora?”“Não sei. Talvez a p ol ícia.”“Eu não tenho problemas com a polícia”, eu disse. “Eu gostaria muito de ser preso agora 

mesmo, Joh n. Está entend end o?”“Imagino.”

“O que me preocupa , Joh n, é um b and o d e gigantes desesperados com o M ann y esperand o n a Beacon S treet com m ais revólveres do que eu tenho.”

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“O que você quer que eu diga?”, disse ele. “Eu não sei o que nos espera lá fora. E de qualquerforma, eu é que vou receber a primei ra bal a.”

Bati em seu queixo com o revólver. “E a segund a tamb ém, John. Lemb re-se di sso.”“Quem d iab o é vo cê, cara?”“Um cara no maior cagaço, com quinze balas no carregador. E que diabo funciona aqui? É

uma seita?”“Sem chan ce”, disse ele. “Pod e atirar em m im , que eu não vou abrir o bico.”“Desiree Stone”, eu di sse. “Você a co nh ece, Joh n?”“Puxe o gatil ho, cara. Eu não vou fala r.”Inclinei-me para ele e examinei o seu perfil, o olho esquerdo mexendo-se nervosamente na 

órbita.“Onde el a está?”“Não sei do q ue você está faland o.”Eu não tinha tempo para interrogá-lo ou para arrancar as informações na base da porrada.

Tudo q ue eu tinha era sua carteira, mas aquilo b astava p ara me propi ciar um segund o round  com Johnnum futuro próximo .

“Vamos torcer para que este não seja o último minuto de nossas vidas, John”, eu disse,emp urrand o-o pa ra o saguão.

* Casulo : alusão a o fi lm e Invasores de corpos, em q ue al ien ígenas di gerem seres huma no s emuma espécie d e casulo e assumem sua ap arência física. (N. T.)

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 A porta de entrad a da Lib ertação da Dor, Inc. era de bétula negra e não comportava nem

mesmo um ol ho mágico em seu centro. À di reita da p orta, havia a parede d e tijolo ; à esquerda, do ispeq uenos retângulo s de vidro verde, grossos e embaçad os pela comb in ação d o ven to gelad o d e fora com o ar quente de d entro.

Obriguei John Byrne a se ajoelh ar junto do vidro e li mp ei o vidro com a ma nga do sob retudo.Não a di antou muito; era como ol har de d entro d e uma sauna a través de dez cortin as de pl ástico. ABeacon Street estendia-se diante de mim como uma pintura impressionista, eu enxergava formasin di stintas do q ue supunha ser pessoas que desli zavam na névo a lí quida; as luzes brancas e amarelasda rua de certa forma pioravam ainda mais as coisas, dando a impressão de que estávamos olhandopara uma fotografia que sofrera superexposição. Do outro lado da rua, as árvores do Public Garden,que não se podiam distinguir umas das outras, formavam aglomerados sombrios. Eu não sabia ao

certo se estava vendo as coisas, mas me parecia que várias luzinhas menores piscavam por entre asárvores. Não dava para saber o que havia lá fora. Mas eu não podia continuar ali. Eu ouvia as vozescada vez m ais exaltadas no salã o d e bail e, e a qualquer in stante alguém se arriscaria a ab rir a p orta q uedava p ara a escada.

Na Beacon Street, no comecinho da noite, pouco antes da hora do rush, devia haver uma pequena multidão. Ainda que houvesse clones de Manny lá fora, armados até os dentes, era poucoprovável que atirassem em mi m d ian te de testemunh as. Mas tam bém quanto a isso eu não p od ia tercerteza. Talvez eles fossem muçulmanos xiitas, e me matar a tiros fosse o caminho mais curto para 

 Alá.

“Dan e-se”, eu di sse, ob rigand o John a se levan tar. “Vam os.”“Merda”, disse ele.Respirei fundo pel a b oca al guma s vezes. “Abra a p orta, Joh n.”Sua mão se imob ili zou sob re a maçaneta. Então ele a abai xou e a li mp ou na perna d a calça.“Tire a outra m ão da cabeça, John . Mas não tente fazer nenh uma besteira.”Ele ob edeceu e ol ho u para a maçaneta no vamente.Lá em cim a, uma coisa pesada cai u no chão .“Estou esperando q ue você ab ra, John.”“Sim.”

“Esta noite, po r exemp lo ”, eu di sse.“Sim .” Ele li mp ou a mão n a perna da calça no vamente.Soltei um suspiro, avancei, abri a porta eu mesmo e pressionei o cano da arma nas costas dele

no mo men to em que chegávam os à escada externa.E dei de cara com um pol icial.Ele ia passando pelo edifício em marcha acelerada, quando viu um movimento pelo canto

do ol ho . Parou, girou o corpo e ol ho u pa ra n ós.Ele levou a mão direita à cintura, parando na altura de sua arma, e olhou para o rosto

ensangüentado de Joh n Byrne. Mai s ad ia nte, na esquin a da Arlington, vários carros da pol ícia estavam parad os na frente da 

sede da Libertação da Dor, as luzes brancas e azuis projetando-se por entre as árvores do Garden e

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incid in do sob re os edifícios de tijo lo s vermelh os, ao l ado do bar Cheers.O policial olhou rapidamente para a esquina, depois de novo para nós. Era um rapaz

musculoso, de cabelo avermelhado, nariz chato e arrebitado, com aquele olhar estudado deintimidação bem típico de um policial ou de um vagabundo daquelas redondezas. O tipo dogaroto que algumas pessoas pensariam ser meio devagar, só porque tem um andar descansado, semim aginar o q uanto estão enganad as até o m om ento em que ele mostra do que é capaz. Usand o ummétodo bastante do loroso.

“Humm ... os senh ores estão com algum problem a?” Aprovei tando o fato de Joh n estar na minh a frente, impedin do q ue o p ol icial me vi sse, enfi ei

meu revólver no cinto e o cobri com a aba do casaco. “Não, nenhum problema. Só estou tentandolevar meu ami go ao ho spi tal.”

“Ora, ora”, disse o rapaz, dando mais um passo em direção à escada. “O que aconteceu com oseu rosto?”

“Caí na escada”, disse John.Curiosa iniciativa, John. Tudo que você precisava fazer para se livrar de mim era dizer a 

 verdade. Mas você não d isse.

“E o senho r ba teu com a cara no chão ?” Joh n deu um risin ho, enquan to eu abotoava o sobretudo sobre o pal etó. “Infelizm ente”, disse

ele.“O senh or po de sair de trás de seu am igo?”“Eu?”, p erguntei.O rapaz fez q ue sim .

 Avan cei um p ouco e fiquei à d ireita de John.“E os senh ores po deriam vir até a calçada?”“Sim, claro”, dissemo s em coro.

Quando no s aproximam os o b astante do po licial , pude l er seu nom e in scrito n o uniforme:agente Largeant. Um dia ele chegaria a sargento. Sargento Largeant. Eu tinha a impressão de queni nguém i ria criar prob lem as para ele p or causa d isso. Aposto co mo ni nguém se ani ma ria a torrar a paciência dele po r nada.

Ele tirou uma lan terna da cintura, ilumino u a p orta d a Lib ertação da Dor e leu a placa d ourada .“Os senh ores trabalh am aqui?”“Eu trabalho”, disse John.“E o senhor?” Voltou-se para mim, e a luz da lanterna brilhou em meus olhos por tempo

bastante para eles doerem.“Sou ami go de Joh n”, eu di sse.“O seu no me é John ?” A luz da la nterna a tingiu os olh os de John .“Sim , senho r po licial .”“John...?”“Byrne.”Largeant bala nçou a cabeça.“Senhor policial, não estou me sentindo muito bem. Estávamos a caminho do Hospital

Geral para ver a situação do meu rosto.” Largeant balançou a cabeça mais uma vez e olhou para ospróprio s sapatos. Aproveitei a ocasião pa ra tirar a carteira de Joh n Byrne d o b ol so d e meu sob retudo .

“Posso ver os documen tos dos senh ores?”, disse Largean t.

“Documen tos?”, perguntou John .“Senho r poli cial”, eu disse, colo cando a mã o n as costas de Joh n com o p ara am pará-lo. “Meu

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ami go pod e ter sofrido uma concussão.”“Gostaria de ver algum documento”, disse Largeant, sorrindo para atenuar a secura do tom de

 voz. “E peço q ue se afaste um p ouco d e seu am igo. Agora, senhor.”Enfiei a carteira na ci ntura d a calça de Joh n, tirei a mão e com ecei a vasculh ar meus bol sos. Ao

meu lad o, Joh n d eu um risin ho .Ele entregou a carteira a Largeant e deu um risinho de troça, que eu sabia dirigido contra mim.

“Aqui está, senh or po li cial .”Largeant abriu a carteira, e uma pequena multidão começou a se formar junto de nós. Aquelas

pessoas estavam a li po r perto o temp o todo , mas agora as coisas estavam fi cand o m ais in teressantes eelas no s cercaram pel os do is lad os. Alguns eram os Men sageiros que tín ha mo s visto an tes, tod os deol ho s arregala do s e bestificad os com a quele sin al d o ocaso do século XX acon tecend o b em d ian tede seus olhos. Dois homens sendo investigados em plena Beacon Street, mais um sinal inequívocodo Apocalip se.

Outros eram empregados de escritórios, gente que tinha levado o cachorro para passear ou queestava tomando café no Starbucks, a uns cinqüenta metros dali. Alguns tinham se disposto a abandonar seu lugar na eterna fila na entrada do Cheers, quem sabe contando poder fazer uma 

segunda hipoteca para tomar uma cerveja quando sentissem vontade, mas esses eram casos especiais.E havia também alguns que não gostei nem um pouco de ver. Homens bem-vestidos, paletó

abo toado na al tura da cin tura, olh os que pareciam p on tas de agulh as espetada s em m im . Saí do s do smesmos casulos que Manny. Eles se mantinham na periferia da multidão, espalhados de forma a poder me interceptar quer eu tomasse a direção da Arlington, quer me dirigisse para Charles, queratravessasse a rua rumo ao Ga rden. Hom ens perversos, de aspecto som brio .

Largeant devolveu a carteira a John, e este me deu outro risinho enquanto a recolocava nobo lso da frente da calça.

“Agora o senho r.”

Passei-lhe minha carteira, ele a abriu e a iluminou com a lanterna. O mais discretamentepo ssível , Joh n tentou esticar o p escoço p ara dar uma ol ha da, m as Largeant lo go a fecho u. Meu olh ar buscou o d e John, e foi a minha vez d e sorrir. Sem ch an ce, seu paspal ho.“Aqui está, senhor Kenzie”, disse Largeant, e senti um frio na barriga. Ele me devolveu a carteira,

enquanto John Byrne abria um sorriso do tamanho de Rhode Island, depois articulou em silêncio“Kenzie”, ba lan çand o a cabeça satisfeito.

Ti ve vontade de chorar.Em seguida, quando voltei a olhar para a Beacon Street, avistei a única coisa que não me

deprimi ra no s último s cinco mi nutos — Angie p assando devagar ao l ado do Garden, ao volan te denossa Crown Victoria marrom. Dentro do carro estava tudo escuro, mas dava para ver a brasa docigarro tod a vez que ela o levava a os lábio s.

“Senhor Kenzie?”, disse uma voz delicadamente.Era Largeant, que me olhava como um cachorrinho, e de repente fiquei apavorado, porque

im aginava o que estava por vir.“Eu só q ueria apertar a sua m ão, senh or.”“Não, não ”, eu di sse, com um sorriso sem graça.“Vamos”, di sse John radi ante. “Aperte a mão deste ho mem !”“Por favor, senhor. Seria uma honra apertar a mão do homem que eliminou os rebotalhos

humano s Arujo e Gl ynn .”

 Joh n Byrne olh ou para mim erguendo uma sob rancelh a. Apertei a mão de Largeant, ai nda que min ha vontade fosse estran gular aq uele imbecil. “O

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prazer é meu”, murmurei.Largeant, alvoroçado, sorria e balançava a cabeça o tempo todo. “Sabem quem é ele?”, disse à 

multidão.“Não, quem é?”

 Virei a cabeça e vi Man ny num d egrau da escada, abrindo um sorriso ai nd a mai s largo que o d eohn.

“Ele é Patrick Kenzie, o detetive particular que ajudou a encurralar o serial kil ler  Gerry Glynn eseu comparsa. O herói que em novembro passado salvou uma mulher e seu bebê em Dorchester.

 Vocês se lembram?” Algumas pessoa s bateram p al mas. Mas ninguém com m ai s entusiasmo q ue Manny e John Byrne.Ti ve de fazer um esforço para não enfia r a cabeça nas mão s e chorar.“Aqui está o meu cartão”, disse Largeant, enfia nd o-o em mi nh a m ão. “Qualq uer hora, quand o

o senhor quiser relaxar um pouco ou, quem sabe, precisar de ajuda em algum caso, basta pegar otelefone, senh or Kenzie.”

Quand o eu precisar de aj uda em a lgum caso. Muito bem. Obrigado.

 A m ultid ão se d ispersava, agora que tin ham certeza de que nin guém ia levar um tiro. Tod osmenos os homens com ternos abotoados e rostos duros — eles se afastavam para deixar os outroscurio sos irem em bo ra, mantend o os olh os fixos em m im .

 Man ny desceu a escada e veio p ara a cal çad a, aproximou-se de mim e sussurrou ao meu ouvido.“Olá”.Largeant falou: “Bem, o senhor tem que levar seu amigo ao hospital, e eu tenho que ir ali

adi ante”. Ele fez um gesto em d ireção à esquina d a Arli ngton S treet e me d eu um tapi nh a no om bro.“Foi um grand e prazer conh ecê-lo, senh or Kenzie.”

“Ora”, eu di sse, enq uanto M ann y se aproxim ava ai nd a ma is de mi m.

“Boa noite.” Largeant deu meia-volta e começou a atravessar a Beacon Street. Manny agarroumeu omb ro. “Foi um grand e prazer con hecê-lo , senh or Kenzie.”“Agente Largean t”, gritei , e Ma nn y tirou a mão d e meu ombro.Largeant se voltou e ol ho u para mi m.“Espere um pouco.” Fui avançando pela calçada, e dois galalaus me bloquearam a passagem

por um instante. Depois, um deles olhou por sobre meu ombro, fez uma careta, e então os dois seafastaram, a contragosto. Passei entre eles, avançando pela Beacon.

“Sim, senho r Kenzie?”, di sse Largeant, parecendo desconcertado.“Pensei em ir com você para ver se algum de meus colegas está lá.” Fiz um gesto em direção à 

 Arlington.“E o seu ami go, senh or Kenzie?”Olhei para Mann y e p ara John , que estavam de orelh a em pé, esperando mi nh a respo sta.“Man ny”, eu di sse. “Você pod e levá-lo ao h ospital , não é?”

 Man ny di sse: “Eu...”“No seu carro é mai s rápid o d o q ue a p é. Você tem razão.”“Oh”, fez Largeant. “Ele está de carro.”“Um b elo carro, ali ás. Não é verdad e, Mann y?”“Uma bel eza”, disse Man ny co m um sorriso crispa do .“Bem”, eu di sse. “Ma nn y, é mel hor se ap ressar. Boa sorte, John”, acrescentei com um aceno.

Largeant d isse: “Sab e, senh or Kenzie, eu estava pen sand o em lh e perguntar sob re Gerry G lyn n.Como o senh or...”

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 A Crown Victoria ap roximou-se de nós.“É minha carona!”, exclamei.Largean t se vol tou e ol hou para o carro.“Ei, agente Largeant”, eu disse. “Ligue pra mim qualquer dias desses. Foi ótimo conhecê-lo. Boa 

sorte.” Abri a p orta do passageiro. “Con tinue assim . Boa sorte para vo cê. Até logo.”Entrei n o carro e fechei a po rta.“Vamos emb ora”, eu di sse.“Calm a, calm a”, disse Angie.Deixamos para trás Largeant, Manny, John e os Casulos, dobramos à esquerda na Arlington e

passamos por três carros de polícia estacionados na frente da sede da Libertação da Dor, cujas vidraças, ilumina da s pela luz feérica das via turas, pareciam estar em cham as.

Quando nos certificamos de que ninguém estava nos seguindo, Angie estacionou o carro atrásde um bar no So uthie.

“E então, querid o”, disse, girando no ba nco d o carro. “Com o foi o seu di a?”

“Bem...”“Pergunte como foi o meu”, di sse ela. “Vamos, pergunte.”“Certo”, eu disse. “Com o foi o seu di a, queridinha?”“Cara... eles chegaram em ci nco mi nutos.”“Quem? A polícia?”“A po lí cia...”, disse ela com um m uxoxo. “Não. Aqueles grand alh ões com d isfunção ho rmo nal .

 Aqueles que estavam em volta d e você, do p ol icial e do sujeito com a cara quebrad a.”“Ah”, fiz eu. “Eles.”“Sem sacanagem, Patrick, eu já me vi morta. Eu estava pegando uns disquetes na sala de trás, e aí,

bang: todas as portas se abriram, os alarmes dispararam em meus ouvidos e... bem, te garanto que nãofoi n ada l egal, parceiro.”“Disquetes?”, p erguntei.Ela m e m ostrou um punha do de d isquetes, presos po r um elástico vermel ho .“E aí”, disse ela, “além de arrebentar a cara de um sujeito e quase ir em cana, conseguiu fazer

alguma coisa?”

 Angie con seguira entrar na sala de trás pouco an tes de Man ny me levar para o Centro

Terapêutico. Ela esperou lá d entro en quanto Gi nn y ap agava as luzes, desligava a cafeteira, punh a ascadeiras nos lugares, o tempo tod o can tando “Foxy Lady”.“De Hendrix?”, perguntei.“A pl eno s pulm ões”, di sse Angie. “Até a mel od ia da guitarra.”Estremeci só d e im aginar a cena.“Você devia receber um ad icio nal de in salubridad e.”“Pois é.”Depo is que Gin ny fo i em bo ra, Angie q uis sair de seu escond erij o, ma s notou os fin os raio s de

luz no escritório principal. Eles se entrecruzavam como fios elétricos, saindo de vários pontos da pa rede, alguns a vin te centímetros do ch ão, outros a dois metros.

“Um puta dum sistema de segurança”, eu disse.“Dos mai s mod erno s. De repen te me vi encurrala da no gabin ete do fundo.”

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Ela começou por abrir com chave falsa as fechaduras dos arquivos, mas encontrou apenasformulários fiscais, fichas de descrição de funções e formulários de notificação de acidentes detrabalho. Ligou o computador da mesa de trabalho, mas não conseguiu ir além da senha. Angieestava vasculh and o a escrivan in ha quando ouviu um tumulto n a p orta d e entrada . Pressentin do quea brin cadeira tinh a termi nad o, usou o pé-d e-cabra com q ue abrira a jan ela p ara quebrar a fechad ura da gaveta que ficava na parte inferior da escrivaninha, do lado direito. Ela tirou uma lasca da mad eira, arranco u a gaveta d a escrivan in ha e acho u os disquetes esperando po r ela.

“Tudo na m aio r del icad eza”, eu di sse.“Ei”, disse ela. “Eles vinham entrando pelo hall feito carros de assalto. Peguei o que pude e saí

pela janela.”Havia um sujeito esperando por ela lá fora, mas depois de receber umas pancadas com o pé-

de-cabra ele resol veu dar uma co chilad a.Ela saiu para a Beacon por um pequeno pátio fronteiro a um edifício qualquer de arenito

pardo, depois se viu no meio de um grupo de alunos da Emerson College a caminho de um cursonoturno. Então foi andando com eles até a Berkeley Street, e em seguida pegou o carro da nossa emp resa, que estava estacion ad o i rregula rmente na M arlborough S treet.

“Pois é”, disse ela. “Levamo s uma multa.”“Ora se não”, eu disse. “Ora se não.”

Richie Colgan ficou tão feliz em nos ver que por pouco não quebrou meu pé batendo a porta nele.

“Fora daqui”, disse ele.“Belo roupão”, eu di sse. “Pod emos entrar?”“Não.”

“Por favor...”, disse Angie. Atrás del e, vi vel as em sua sala d e estar e uma taça d e cha mpan he pela metad e.“Isso que estou ouvindo é Barry White?”, perguntei.“Patrick.” Seus dentes estavam cerrados, e sua garganta emitia um som parecido com um

rosnado.“É sim ”, eu di sse. “É ‘Can ’t Get Eno ugh of Yo ur Love’ que vem aí de d entro, Rich.”“Saiam de mi nh a po rta”, disse Richi e.“Não precisa disfarçar, Rich”, di sse Angie. “Se q uiser que a gente volte m ais tarde...”“Abra a po rta, Richard”, di sse sua m ulh er, Sh eril ynn .“Oi, Sheri”, Angie aceno u pa ra ela p ela abertura d a p orta.“Rich ard”, in sistiu Sh eril ynn .Ri chi e recuou um po uco, e nós entramo s na casa d ele.“Ri cha rd”, eu di sse.“Aqui p ra vo cê”, ele rosno u.“Que mo do s são esses, Rich?”Ele ab aixou a vista e percebeu que o roupã o estava aberto. Ele o fechou e quando pa ssei m e deu

um soco na altura dos rins.“Seu escroto”, sussurrei, esquivando-me.

 Angie e Sh eril yn n estavam n a mai or in tim ida de junto a o b al cão da cozi nh a.

“Desculpe”, disse Angie.“Tudo bem ”, di sse Sh eril ynn . “Ei, Patrick com o vai você?”

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“Não d ê trela pa ra eles, Sheri”, di sse Ri chi e.“Eu estou bem. Vo cê parece estar ótim a.”Trajan do apenas um q uim on o vermelh o, ela fez uma p equena reverência , e eu, com o sempre,

fiq uei um p ouco in timi dad o, encabulado feito um garoto de escol a. Richi e Col gan, sem somb ra dedúvida o melhor colunista da cidade, era troncudo, o rosto eternamente ensombreado por uma barba nascente, a pele negra manchada pelas muitas noites maldormidas, pelo excesso de cafeína epelo ar viciado das redações. Mas Sherilynn — com sua pele cor de caramelo, os olhos cinza-claros,os traços elegantes dos delicados membros, a entonação melodiosa de sua voz, vestígios doscrepúsculo s nas areno sas praias jam aican as a que ela assistira todo s os dias até a id ade de d ez an os —era uma das mulheres ma is bo ni tas que conh eci.

Ela b eij ou meu rosto, e senti um chei ro d e li lases em sua p ele.“Então”, disse ela , “é mel ho r você ser breve.”“Caramb a”, eu di sse. “Estou com uma fome... Vocês têm alguma coi sa na geladei ra?”Quand o m e aproxim ei d a geladei ra, Rich ie m e agarrou e me arrastou pelo corredor até a sala.“O que é?”, perguntei.“Pelo menos me diga que é importante.” Sua mão estava a alguns centímetros de minha cara.

“Vamo s, Patrick, sou todo ouvid os.”“Bem...”Eu lhe contei sobre minha noite, sobre a Libertação da Dor, sobre Manny e seus Casulos, sobre

o en con tro com o agente Largeant, sob re a in vasão da sede da emp resa feita po r Angie.“E você di z q ue viu Men sageiros na frente do edifício ?”, ele p erguntou.“Sim, pelo men os seis.”“Humm.”“Rich?”, falei.“Me pa sse o s di squetes.”

“O quê?”“Vocês vieram aq ui p or isso, não foi?”“Eu...”“Você é analfab eto em m atéria d e comp utador. E Angie tamb ém.”“Me desculp e. Isso é m uito grave?”Ele estendeu a mão. “Os di squetes.”“Se você puder...”“Tá, tá, tá.” Ele tomo u os di scos da m in ha mã o, ba teu com eles na p erna po r um in stante. “Quer

di zer que estou lh e fazend o m ais um favor?”“Bem, ma is ou meno s”, eu disse. Eu mudei os pés de p osição e ol hei para o teto.“Oh, p or favor, Patrick, guarde seus discursos confusos p ara q uem gosta d e conversa mo le.” Ele

ba teu em m eu peito co m o s di squetes. “Eu ajudo você, mas quero o q ue tem neles.”“Com o assim ?”Ele balan çou a cabeça e sorriu. “Escute aqui. Você pen sa que estou brin cando , não é?”“Não, Ri chi e. Eu...”“Só porque fomos colegas de faculdade e toda essa porcaria, você acha que eu vou dizer:

‘Patrick está com um prob lem a. Vou fazer tudo que puder’.”“Rich, eu...”Ele chegou bem perto de mim e disse entre dentes: “Sabe qual foi a última vez que tive uma 

daquelas antigas noitadas românticas do tipo ‘Vou transar com minha mulher sem me preocuparcom o temp o’?”.

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“Não”, respo nd i, recuand o um po uco.“Bem, nem eu”, disse ele em voz alta. Fechou os olhos, apertou o cinto do roupão. “Nem eu”,

repetiu entre den tes.“Bom , então vo u andan do ”, eu di sse.Ele b lo queou mi nh a p assagem. “Não antes de resol vermo s isso.”“Tudo bem.”“Se eu encontrar alguma co isa i nteressante n estes di squetes, po sso usar, certo?”“Certo”, eu di sse. “Como semp re. Desde q ue...”“Não”, disse ele. “Nada de ‘desde que’. Já estou cheio dessa merda de ‘desde que’.  Desde que seja

interessante para mim, Patrick. Essa é a no va regra. Se eu enco ntrar alguma coi sa aq ui, vo u usar lo go q uepuder, certo?”

“Certo”, eu disse.“Desculp e”, di sse ele, levan do a m ão à o relh a. “Não o uvi o que você di sse.”“Certo, Richie.”Ele ba lan çou a cabeça. “Ótim o. Para quando você precisa disso?”“Para am anh ã de ma nh ã, no ma is tardar.”Ele b ala nçou a cab eça. “Perfeito.”Trocamos um aperto d e mão . “Você é o m áximo, Ri chie.”“Tudo bem, tudo bem. Vá embora de minha casa para que eu possa transar com minha 

mulher.”“Sem problem a.”“Agora”, di sse el e.

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“Então el es sabem q uem vo cê é”, di sse Angie quando entramo s em meu apartamen to.

“Pois é.”“O que signifi ca que em questão d e horas eles sab erão quem eu sou.”“É capaz.”“Mas eles não querem q ue você seja p reso.”“Isso d á o q ue pen sar, não?”Ela deixou cair sua bolsa na sala, junto do colchão que estava no chão. “E o que Richie acha 

disso?”“No com eço ele estava cheio d e frescura, mas quand o fal ei d os Mensageiros ele se ani mo u.”Ela jogou o casaco no sofá d a sala, que naq uele p erío do também l he servia de guarda-roupa. O

casaco cai u numa pi lh a d e cam isetas e suéteres recém-la vado s e dob rado s.

“Você acha que a Libertação da Dor tem alguma coisa a ver com a Igreja da Verdade e da Revelação?”

“Não seria de estranhar.”Ela balançou a cabeça. “Não seria o primeiro caso de uma seita — ou seja lá como se chame

isso — se escond end o p or trás de uma organi zação d e fachad a.”“E essa seita é d as ma is pod erosas”, eu di sse.“E nós com certeza i rritamo s essa gente.”“Parece que somos bons nisso — irritar pessoas que não deviam ser irritadas por gente indefesa 

como nós.”

Com um cigarro na boca, ela abriu um sorriso enquanto o acendia. “Todo mundo precisa seespecia li zar em alguma coisa.”Passei p or cima de sua cam a e ap ertei o b otão da secretária eletrôn ica:“Ei”, disse Bubb a n a gravação. “Não se esqueça d e vir hoj e à n oi te no Declan ’s. Nove d a n oi te.”

Ele desligou. Angie revi rou os olh os. “A festa de desped ida do Bubba. Eu quase esqueci.”“Eu tamb ém. Imagin e em q ue enrascada a gente iria se meter.”Ela deu de om bros e abraçou o p róp rio corpo.Bubba Rogowski era nosso amigo, o que às vezes era de lamentar. Outras vezes era muito bom,

porque ele nos salvou a vida em mais de uma ocasião. Bubba era tão alto e corpulento que fazia sombra em Manny, e era cem vezes mais aterrorizante. Todos crescemos juntos — Angie, Bubba,Phil e eu —, mas Bubb a n unca fo i o que a gente costuma cham ar de... digamo s, normal . E se al gum di a ele teve alguma chance de se tornar normal, ela acabou no fim de sua adolescência, quando elein gressou nos Marines, pa ra evitar ir em can a, e o man daram trabalh ar na emb aixad a am erican a emBeirute, no di a em q ue um h om em-bo mb a in vadiu o edifí cio e l iqüidou metade de sua comp anh ia.

Foi no Líbano que Bubb a travou con tatos que lhe permitiram organiza r um n egócio il egal d earmas nos Estados Unidos. Nos últimos dez anos ele começara a entrar em negócios ainda maislucrativos, com o p or exemp lo carteiras de id entid ade e p assaportes falsos, falsificação de d in hei ro ede produtos de marca, clonagem de cartões de crédito, falsificação de cartas de motorista e de

diplomas. Bubba podia lhe arranjar um diploma de Harvard que a própria universidade levaria quatro anos para lhe conceder; o próprio Bubba exibia orgulhosamente na parede do depósito

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onde montara sua casa seu diploma de doutor pela Universidade de Cornell. Em Física, nada men os que isso. Nad a m au pa ra um sujei to que aban do no u os estudo s no terceiro ano prim ário d a escola p aroquial de Sã o Bartolo meu.

Fazia anos que ele vinha reduzindo o tráfico de armas, mas era a essa atividade (e também aosumiço que dera em alguns mafiosos ao longo dos anos) que devia sua reputação. No final do anoanterior ele fora preso numa batida po licial , e os pol iciai s acharam uma To karev no ve mi lí metrosnão registrada presa com fita adesiva dentro do pára-lama de seu carro. Há poucas coisas certas nestemundo, mas em Massachusetts, se você for apanhado com uma arma de fogo não registrada, podeter certeza de q ue vai pa ssar doz e meses no xadrez.

O advo gado de Bubb a o man teve fora da cadeia o mai s que pô de, mas àquela al tura não dava para p rotelar mai s a execução da sentença. No d ia seguin te à no ite, às no ve h oras, Bubb a teria de seapresentar na penitenciária d e Plymo uth para cump rir sua p ena.

Isso não o incomodava muito: a maioria dos seus amigos estava lá. Os poucos que ainda estavam d o l ado de fora iam reuni r-se com ele n o Declan ’s.

O Declan’s, em Upham’s Corner, fica bem em frente a um cemitério na Soughton Street, aolado de lojas com portas fechadas com tábuas e de casas condenadas. Fica a cinco minutos de

minha casa, quando se vai a pé, mas a caminhada se faz através do que o meio urbano pode oferecerde m ais refina do em m atéria d e mi séria e d e lenta m as inexorável decad ência e d egrada ção. As ruasem vo lta do Declan’s sob em em forte acli ve em d ireção a Meetin g House Hill , ao passo q ue as casasparecem prestes a deslizar na direção contrária, cair aos pedaços e desabar até o cemitério lá emb aixo, como se a morte fosse a úni ca perspectiva aind a váli da p or aquelas ban das.

Encontramos Bubba no salão dos fundos, jogando bilhar com Nelson Ferrare e com osirmãos Twoomey, Danny e Iggy. Não era o que se podia chamar de uma reunião de intelectuais, eeles pareciam estar di spo stos a acabar com o q ue lh es restava de células cin zentas com talagadas deálcool.

Nelson era parceiro eventual de Bubba em ações que envolviam pancadaria. Ele era baixinho,moreno e rijo, com um rosto eternamente congelado num raivoso ponto de interrogação.Raramente falava, e quando o fazia era muito baixinho, como se tivesse receio de que suas palavrasfossem parar em ouvidos errados, e havia algo de enternecedor na sua timidez em relação àsmulh eres. Mas nem sempre é fácil enternecer-se com um sujei to que certa vez arran cou o na riz de umcara com uma den tada, numa briga de b ar. E o levou para casa com o suvenir.

Os irmãos Twoomey eram paus-mandados do bando de Winter Hill, em Somerville,considerados bons de tiro e bons motoristas de carros em fuga, mas se um pensamento entrassealgum dia na cabeça de qualquer um dos dois, morreria de inanição. Bubba levantou os olhos da mesa de bi lh ar quand o n os aproxim amo s e veio correndo em n ossa di reção.

“Maravilh a!”, di sse ele. “Eu sabia q ue vocês não i am me d ar o cano.” Angie o beijou e lhe pô s na mão uma garrafi nha de vodca . “Nem pensar, seu bobão.”Bubba, muito mais efusivo que de costume, me deu um abraço tão forte que tive a sensação de

que uma de m in ha s costelas afund ara.“Vamos”, disse ele. “Jogue uma p artid a comigo. Porra, jogue duas.”Bom , por aí se po de ver com o ia ser a no ite.

 Minha lem brança daq uela no ite é um tanto nebulosa. O ál cool etíl ico, a vodca e a cerveja 

costumam ter esse efeito. Mas eu me lembro de ter apostado em Angie contra todos os carasestúpidos o bastante para arriscar seus trocados numa partida. E me lembro também de ter ficado

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por alguns instantes sentado ao lado de Nelson, pedindo mil desculpas por ter quebrado suascostelas quatro m eses an tes, no auge da h isteria do caso Gerry Gl ynn.

“Tudo bem”, disse ele. “Pode crer. Conheci uma enfermeira no hospital. Acho que estougostando d ela.”

“E ela gosta de vo cê?”“Não tenho bem certeza. Há algo errado com o telefone dela, e acho que ela se mudou e se

esqueceu de m e avisar.”

 Mai s tarde, quan do Nel son e os irmão s Twoomey estavam comendo uma pizza de aspectomais que duvidoso, Angie e eu ficamos sentados com Bubba, os três pares de sapatos apoiados na mesa de bilh ar, costas apo iad as na p arede.

“Vou perder todo s os meus programas”, disse Bubba , tristonho.“Tem televisão n a cadeia”, lembrei a ele.“É, mas ela é mo nop oli zada p elos manos ou pelo s skins. Aí eles ficam vendo as  sitcoms da Fox 

ou filmes de Chuck Norris. De qualq uer jeito, enche o saco.”

“A gente p od e gravar os program as pra vo cê”, eu di sse.“É mesmo? ”“Cla ro”, respo nd eu Angie.“Não é muito trabalh o? Não quero in com od ar vocês.”“Não tem p rob lema.”“Ótim o”, disse ele, enfian do a m ão n o b ol so. “Aqui está a lista.”

 Angie deu uma olh ad a.“Tiny Toons ?”, eu di sse. “ Dr. Quinn, Medicine Woman ?”Ele se inclinou em minha direção, a cara enorme a poucos centímetros da minha. “Qual é o

problema?”“Nenhum”, eu di sse. “Nenhum p rob lem a.”“ Entertainment Tonig ht   ”, disse Angie. “Você quer mesmo um ano inteiro de  Entertainment 

Tonight  ?”“Eu gosto de acompanhar o que está acontecendo com os artistas”, disse Bubba, soltando um

sonoro arroto.“A gente nunca sabe quando vai dar de cara com Michelle Pfeiffer”, eu disse. “Se a gente

costuma ver Entertainment Tonig ht , sabe muito bem o que dizer numa hora dessa.”Bubba cutucou Angie, apon tou para m im . “Está ven do ? Patrick sab e. Patrick sabe d as coisas.”

“Ah, os homens...”, disse ela, balançando a cabeça. “Não, espere, essa palavra não se aplica a  vocês dois.”

Bubb a arrotou mais uma vez e olh ou para mi m. “O que ela quer di zer com isso?”

Quand o a conta chegou, tom ei-a d a m ão de Bubb a. “É po r nossa con ta”, eu di sse.“Não”, di sse ele. “Já tem quatro m eses que vocês não trabalh am .”“Até hoje”, disse Angie. “Hoj e a gente p egou um trabalh o grand e. Uma no ta preta. Então d eixe

a gente p agar, garotão .”

Dei à garçonete meu cartão de crédito (depois de me certificar de que naquele lugar se sabia oque era isso), e ela vol tou mi nutos depoi s para d izer que ele não fora aceito.

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di sparou. Seu gemi do elevou-se no ar da n oi te, e Nelson fez: “Uh oh ”, e os três caíram n a gargalha da.“Entende o q ue quero d izer?”, disse Bubba.

Só descobri o que aconteceu com meu cartão de crédito na manhã seguinte. A operadora automática só me informou que meu cartão estava bloqueado. Quando pedi mais explicações, ela me i gnorou e falou em seu tom cib ernético q ue eu pod eria di gitar “um” para outras op ções.

“Não consigo ver muitas opções para um cartão bl oq ueado ”, eu di sse a el a. Então me lem breide q ue “ela” era um comp utador. Então me l emb rei d e que estava bêb ado .

Quando voltei à sala, Angie já estava dormindo. Em decúbito dorsal. Um exemplar de  A história da criada escorregara po r seu tórax, anin ha nd o-se no arco do braço. Incl in ei-m e sobre ela, tireio livro. Ela resmungou e se virou de lado, agarrou um travesseiro e nele enfiou o queixo. Essa era a posição em que eu a encontrava quando entrava na sala toda manhã. Ela não adormecia. Caía pesadamente no sono, o corpo encolhido em posição fetal, enovelado numa bola tão compacta que ocupava apenas um quarto da cama. Inclinei-me novamente e afastei uma mecha de cabelo desob seu na riz, e ela sorriu por um i nstante, depo is se afund ou ain da m ais no travesseiro.

Quand o tín ha mo s dezesseis anos, fizem os amor. Uma vez. Foi a prim eira vez para amb os. Na épo ca, nenhum d e nó s imagin ava q ue no s dezesseis anos seguin tes não iríam os fazer amo r um co mo o utro n ovam ente, mas foi o q ue aconteceu. Ela seguiu seu camin ho , como se di z, e eu segui o meu.

Seu caminho foram os doze anos de um casamento com Phil Dimassi, marcado pela  viol ência e condena do ao fracasso. O meu foi um casam ento de cinco minutos co m a irmã dela,Ren ee, e uma sucessão de p arceiras po r uma no ite e casos rápid os revelad ores de uma p atolo gia tãoprevisível, tão tipicam ente masculi na que me faria rir, se eu não estivesse tão o cupa do em d ar vazão a ela.

Quatro meses atrás, começáramos a ensaiar uma reaproximação em seu quarto em Howes

Street, e fora sublime, dolorosamente sublime, como se o único objetivo de minha vida fosse viveraquele momento naquela cama, com aquela mulher. E então Evandro Arujo e Gerry Glynnassassinaram um policial de 24 anos na entrada da casa de Angie e meteram uma bala no abdomedela. Mas ela con seguiu atin gir Evandro, meteu-lh e três ba laços que o d eixaram de j oel ho s no chã oda coz in ha , tentand o ap alp ar uma p arte de sua cabeça q ue não estava mai s lá.

Phil , eu e um p ol icial chama do Oscar acaba mo s com G erry Glynn , enq uanto Angie estava na UTI. Oscar e eu no s safam os. Mas Phi l não . Gerry G lyn n também não , mas não estou certo d e que

 Angie visse isso com o um prêmi o d e con solação. A psique human a, eu refletia enquan to contem plava sua fronte enrugar-se e seus lá bios se

entreabrirem contra o travesseiro, é muito mais difícil de curar que a carne humana. E milhares deano s de estudo s e experiências tornaram m ais fácil cuid ar do corpo , mas nin guém a vanço u muito noque se refere à mente human a.

Quando Phil morreu, sua morte calou fundo na mente de Angie, repetindo-se sem cessar, semlh e da r trégua. A perda, a do r e tudo que afligia Desiree Ston e tamb ém afli giam Angie.

E da mesma forma que Trevor Stone em relação à filha, eu contemplava Angie sabendo quepo uco po di a fazer para ajudá-la até se consumar o ciclo d a do r, di ssol vend o-se com o a neve.

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Richie Colgan afirma que seus antepassados eram da Nigéria, mas não acredito muito nele.

Dado o seu in stinto de vi ngança, sou levado a acreditar que ele é mei o sicil ian o.Ele me acordo u às sete da m anh ã jo gando bo las de neve na mi nh a jan ela até o barulh o chegaraos meus sonhos, e fui arrancado de um passeio no interior da França com Emmanuelle Beart e

 jo gado numa trinch eira enla mead a, sob uma sarai vada de laranjas atiradas p elo ini migo — vá lá sab er por quê.

Sentei-me na cama e olhei um punhado de neve úmida espatifar-se contra a janela. Aprincí pi o, fiquei contente porque não era uma l aranja; d epo is min ha m ente se desanuvio u, eu fui atéa janela e vi Richie lá embaixo.

O filh o d a puta acenou para mim .

“A Libertação da Dor, Inc.”, disse Richie sentando-se à mesa de minha cozinha, “é uma organização interessante.”

“Interessante em que medida?”“Tão in teressante que quand o a cordei m eu editor, há d uas horas, ele conco rdo u em m e li berar

de m in ha coluna po r duas seman as para publi car, em cin co d ias seguid os, uma série d e repo rtagensno canto i nferior direito da p rim eira págin a, se eu descobrir o que pretend o.”

“E o que você acha que vai descobrir?”, disse Angie. Ela olhava para ele por cima da xícara decafé, o rosto inchado e os cabelos cobrindo-lhe os olhos, nem um pouco feliz de começar o dia 

daquela forma.“Bem...” Ele abriu o bloco de anotações na mesa. “Limitei-me a examinar o que está nos

di squetes que você m e deu, mas, puxa vida, essa gente é suja . A ‘terapia ’ e os ‘níveis’ deles, pelo que pudeperceber, implicam uma destruição sistemática da psique, seguida de uma reconstrução rápida. Émuito semelhante à teoria militar americana de como lidar com os recrutas: ‘acabem-com-eles-para-tornar-a-mo ld á-lo s’. Mas os m il itares, justiça seja feita, não fazem mi stério de sua técnica.” Eleba teu com a mão n o b lo co d e ano tações à sua frente. “Já com esses mutantes é outra história.”

“Por exemplo”, disse Angie.“Bem, vocês sabem d aquela coi sa de n ívei s — Nível Um, Doi s e assim po r dian te?”

Fiz q ue sim .“Bem, em cada nível há uma série de etapas. Os nomes dessas etapas variam de acordo com oní vel em que se está, mas no fund o são as mesmas. To das essas etapas levam a o estágio ch ama do de‘linh a d ivisória’.”

“Linh a di visória é o Ní vel Sei s.”“Exato”, disse ele. “A linha divisória é o pretenso objetivo de todo o processo. Assim, para 

atingir plenamente a linha divisória, a pessoa tem que passar por uma série de pequenas etapas.Digamo s que você esteja no Nível Doi s, por exempl o — d esamp arado —, você p assa p or uma sériede processos terapêuticos ou ‘etapas’ até chegar à ‘linh a d ivi sória’, deixan do de ser um desamp arado.Essas etapa s são: hon estid ade, nudez...”

“Nudez?”, perguntou Angie.“Emocional, não física, embora esta também seja aceita. Honestidade, nudez, exibição e

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novamente as etapas do Nível Dois, levando em conta que todas as outras etapas dos outros níveissão a mesma coisa, com nomes diferentes. A Etapa Um”, disse ele, “é Honestidade. Em resumo, a proposta é a seguinte: você fala francamente com seu terapeuta sobre quem você é, por que oprocurou, e sob re o que, de fato, o está perturbando. Aí você passa para a Nudez, na qual revela o seu euinterior.”

“Dia nte de quem?”, disse Angie.

“A essa altura, só para seu terap euta. Basicam ente, você revela a quelas coi sinh as emb araçosas queescondeu na Etapa Um — você matou um gato quando era criança, enganou sua mulher, desvioufund os, e outros troço s do mesmo cal ib re. Tudo isso d eve aflorar na Etap a Doi s.”

“E espera-se que você abra o bico sem mais nem menos”, eu disse. “Assim?”, acrescentei,estaland o os dedos.

Ele balançou a cabeça, levantou-se e encheu novamente a xícara de café. “Os terapeutas usamum estratagema que leva o cliente a ir se despindo aos poucos. Você começa por revelar uma coisa simples — seu salário líquido, por exemplo. Depois, a última vez que você mentiu. Depois alguma coisa que você fez na semana passada e da qual você não se orgulha nem um pouco. E assim pordi an te. Duran te doze horas.”

 Angie foi ao seu encontro, perto da ca feteira. “ Doze horas ?”Ele pegou um pouco de chantili da geladeira. “Até mais, se for preciso. Nesses disquetes

enco ntrei registros de ‘sessões in tensivas’ que duraram dezeno ve h oras.”“Isso é i legal ?”, perguntei.“Quando é um policial que o faz, sim. Pense um pouco”, disse ele, sentando-se outra vez à 

minha frente. “Se um policial deste estado interrogar um suspeito por um segundo mais que dozeho ras, estará vi ol and o seus direitos civi s, e nad a d o que o suspei to di sser — antes ou depoi s do li mi tedas do ze horas — po derá ser usado no trib unal . E há uma bo a razão p ara isso.”

“Ah!”, exclamou Angie.

“Bom, isso por um motivo que não agrada nem um pouco ao pessoal da lei e da ordem, comoé o caso de vocês dois, mas temos de admitir o seguinte: se você é interrogado por uma pessoa emposição de autoridade por mais de doze horas — pessoalmente acho que o limite teria de ser dezho ras —, você com eça a se confundir. Você será cap az d e adm itir qualquer coisa, só p ara acabar comas perguntas. Caram ba, só p ara po der do rmir um p ouco.”

“Quer dizer então”, disse Angie, “que a Libertação da Dor está fazendo lavagem cerebral emseus clientes?”

“Em alguns casos, sim. Em outros, eles estão acumulando um bom volume de informaçõesconfi den ciai s sob re seus clientes. Digamo s que você é um cara q ue tem m ulh er e doi s filh os, uma bel a 

casa, mas acaba de confessar que freqüenta bares gays duas vezes por mês, por exemplo, e serve-se doque se oferece nesse tipo de lugar. E então o terapeuta diz: ‘Ótimo. Excelente demonstração dedesnudamento. Agora vamos tentar uma coisa mais fácil. Tenho que confiar em você, portanto

 você tem de con fiar em mim. Qual é a senh a de seu cartão d e ba nco ?’”“Espere um pouco, Rich”, eu disse. “Você está me dizendo que tudo que eles querem é

in formação fin anceira, de forma a poder espo li ar os cli entes?”“Não”, disse ele. “A coisa não é tão simples. Eles estão organizando dossiês sobre seus clientes

que contêm informações completas de caráter físico, emocional, psicológico e financeiro. Elesprocuram se i nforma r de tudo  sobre uma p essoa.”

“E então...”Ele sorriu. “E então essa pessoa está na s mão s deles. Para semp re.”

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“E que p rovei to eles tiram d isso?”“Dá para imaginar, não? Vamos voltar ao nosso cliente hipotético com mulher e filhos, que

esconde a própria homossexualidade. Ele passa da nudez à exibição, o que significa, basicamente,confessar verdades horríveis diante de um grupo de outros clientes e funcionários. Depois disso, elesno rmal men te vão fazer um retiro n uma prop ried ade da emp resa em Nantucket. Ele ficou reduzidoà com pl eta nudez, é uma casquinh a vazi a, e fica cin co d ias fora, com muitas outras casquinh as, e elesfalam, falam, falam — sempre ‘com toda a h onestidad e’, expo ndo -se cada vez m ais num amb ientecontrol ado e protegid o p elo s funcio nários da Lib ertação d a Dor. Em geral são pessoas m uito frágeis,perdidas, e de repente se vêem integradas numa comunidade de outras pessoas frágeis, perdidas, quetêm tantos esqueletos no a rmá rio quanto elas próprias. Nosso cl ien te hip otético se sente ali viad o d eum grande peso. Sente-se purificado. Ele não é uma pessoa má; é uma boa pessoa. Ele encontrouuma famí li a. Ele alcan çou a Revela ção. Ele p rocurou aquele l ugar po rque se sentia aba tido. Agora j á não se sente ab atido . Caso encerrado . Ele p od e vol tar à sua vi da, certo?”

“Errado ”, eu disse.Ele fez que sim. “Isso mesmo. Agora ele precisa de sua nova família. Dizem a ele que ele fez

progressos, mas que a qualquer hora pode ter uma recaída. Há outros cursos a fazer, outras etapas a 

cumprir, outros níveis a atingir. E, ah, como quem não quer nada, alguém lhe pergunta se ele já leuOuvindo a mensagem.”

“A bí bl ia d a Igreja d a Verdad e e da R evelação”, di sse Angie.“Ponto pra você. Quando o nosso cara hipotético se dá conta de que agora faz parte de uma 

seita e d e que, com dí zim os, cotizaçõ es, semi nários e taxas para retiros, corre o risco d e se endi vid araté o pescoço, é tarde demais. Ele tenta abandonar a Libertação da Dor ou a Igreja, mas vê que éimpossível. Eles têm seus extratos bancários, suas senhas, todos os seus segredos.”

“Agora você está no terreno d a especulação ”, eu di sse. “Você não tem provas cabais.”“Bem, no que se refere à Libertação da Dor, tenho sim. Tenho um manual de formação de

terapeutas que recomenda, especificamente, a obtenção de informações financeiras sobre osclientes. Posso acabar com eles, só com esse manual. No caso da Igreja? Não. A menos que consiga estab elecer uma relação entre os membros das duas.”

“De que man eira?”Ele pegou uma sacola de ginástica que estava aos seus pés, tirou de lá um maço de papel de

im pressora. “Aqui estão o s nom es de todo s os que fizeram tratamento na Libertação d a Dor. Se eucon seguir uma li sta dos mem bros da Igreja pa ra comp arar, serei um fo rte cand id ato ao Puli tzer.”

“Quem dera, hein?”, disse Angie. Ela pegou a lista, ficou folheando até achar a página quequeria. E sorriu.

“Está aí, não está?”, eu disse.Ela fez q ue sim . “Preto no branco, m eni no .” Ela d ob rou o papel d e forma q ue eu pudesse ver onom e a meia al tura da p ágin a:

Desiree Ston e.

Richie tirou um calhamaço de papel impresso de sua sacola e colocou na mesa para a genteexaminar. Tudo que ele encontrara nos disquetes até o momento estava ali. Ele devolveu osdi squetes tamb ém, poi s cop iara os arquivos durante a no ite.

 Angie e eu ol ham os para a pilh a de pap el que estava entre nó s, tentand o ver por on de

com eçar, e meu telefo ne toco u.“Alô”, eu disse.

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“Queremos n ossos d isquetes”, di sse uma voz.“Achei que iam querer mesmo ”, eu disse. Col oq uei o fon e na altura d o queixo por um in stante

e di sse a Angie: “Eles querem os di squetes de vol ta”.“Ei, quem ach a é o d on o”, disse ela.“Quem ach a é o d on o”, eu di sse ao fo ne.“O senh or tem tid o al gum p rob lem a p ara pagar as coi sas ultim am ente, senh or Kenzie?”“Como?”“Dê uma li gada p ara seu ban co”, disse a vo z. “Vou lhe dar dez mi nutos. Trate de d eixar a li nh a 

desocupa da quando eu li gar.”Desli guei e im edi atamente corri pa ra o quarto para pegar min ha carteira.“Qual o problema?”, perguntou Angie.Balancei a cabeça e liguei para o Visa, passei por vários atendimentos automáticos até

conseguir falar com uma pessoa. Dei-lhe o número d o m eu cartão, o cód igo e a d ata de val id ade.“Senh or Kenzie?”, di sse ela.“Sim.”“Descob riu-se que seu cartão é clon ad o.”

“Como?”“É clonad o, senh or.”“Não, não é. Vocês o emi tiram p ara mi m.”Ela deu um suspiro de enfado. “Não, não emitimos. Uma busca internacional no sistema 

revelou que seu cartão e seu número fazia m p arte de um grande l ote de cartões clo na do s e registradosil egalmen te em n ossa b ase de da do s três anos atrás.”

“Não é possível”, eu di sse. “Vocês o emitiram para mim.”“Tenh o certeza d e que não”, disse ela, num tom cantante, con descend ente.“Que diabo significa isso?”, perguntei.

“Nossos advogados entrarão em contato com o senhor. E também o Departamento deRepressão a Fraudes de Computação. Bom dia.”Ela desligou o telefone na mi nh a cara.“Patrick”, di sse Angie.Balan cei a cabeça no vamente, disquei o número d o m eu ban co.Eu cresci na miséria. Sempre receoso, na verdade aterrorizado, temendo burocratas sem rosto e

coletores de i mp ostos que me tratavam com d esprezo e aval iava m m eu valo r pessoal po r meu sald oban cário , que julgavam m eu di reito de ganh ar di nh eiro em função d a som a com q ue eu com eçara a 

 vida . Dei duro nos últim os dez an os para ganhar a vida, econo mizar e multip licar meus gan hos.

Nunca vo u ser po bre, di sse pa ra m im mesmo. Não ma is.“Suas con tas ba ncárias foram b lo queadas”, disse-me n o b anco o senho r Pearl.“Bloqueadas”, eu disse. “Me explique essa história de bloqueio.”“Os fund os foram con fiscados, senh or Kenzi e. Pela Receita Fed eral.”“Por ordens de um tribunal ?”, perguntei.“O processo está em curso.”Dava p ara perceber o p rofundo desprezo em seu tom de voz. É isso o que os pob res ouvem o

tempo todo — de banqueiros, de credores, de comerciantes. Desprezo, porque os pobres são desegunda classe, estúpidos, preguiçosos e moral e espiritualmente frouxos demais para conservar seudinheiro por meios legais e dar sua contribuição à sociedade. Eu não ouvia esse tom de desprezo

havia pelo menos sete anos, talvez dez, e não estava preparado para isso. Senti-me prontamentediminuído.

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“Em curso”, repeti.“É o que eu lhe disse.” Ele falava com secura, com a tranqüilidade e a segurança que sua posição

social lh e conferia. Era com o se estivesse falan do com um de seus fil ho s.Não vai m e emp restar o carro, pai ?Foi o que eu di sse.“Sen ho r Pearl”, eu di sse.“Sim, senh or Kenzi e.”“O senh or con hece o escritório d e advocacia Hartman an d Hale?”“Claro q ue con heço, senhor Kenzi e.”“Ótimo. Eles vão entrar em contato com o senhor. Em breve. E é melhor que esse mandado

 judi cial seja...”“Tenh a um b om di a”, di sse ele. E desligou.

 Angie aproximou-se da mesa, pôs uma mão na s mi nh as costas, a o utra na minh a mão di reita.“Patrick”, di sse ela. “Você está b ranco fei to um fan tasma .”

“Puta q ue p ariu”, eu disse. “Puta q ue p ariu.”“Tudo vai se aj eitar”, disse ela . “Eles não têm o di reito d e fazer isso.”

“Mas já estão fazen do , Ange.”

Quand o o telefone tocou, três mi nutos depo is, atendi lo go no prim eiro toque.“O din heiro anda mei o di fícil ho je em dia, não é, senho r Kenzie?”“Onde e quando , Man ny?”Ele d eu uma risadinh a. “Ooh, com o estamos... com o di rei... murchi nh os, senh or Kenzie.”“Onde e q uand o?”, repeti.“Na Prado . Con hece?”

“Conheço. Quando?”“Meio -di a”, di sse Man ny. “Em p on to. He-he.”Ele d esli gou.Todo mundo estava batendo o telefone na minha cara naquele dia. E ainda não eram nem

no ve horas.

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10 

Dez anos atrás, depois de um caso bastante lucrativo em que investigamos fraudes contra uma 

com pan hi a d e seguros e crim es de colarin ho branco, fui p assar duas seman as na Europ a. E o que mai sme impressionou naquela ocasião foi como as pequenas aldeias que visitei — na Irlanda, na Itália ena Espa nh a — se pareciam com o North End de Boston.

Foi no North End que as sucessivas vagas de imigrantes aportaram e se instalaram. Assim, os judeus, o s irlan deses e final mente os italia no s fizeram dessa terra a sua terra e lhe deram o caráterma rcad am ente europ eu que con serva até hoje. As ruas, pavi men tadas com pedras, estreitas e sinuosas,im bricam -se umas na s outras no seio daq uele b airro, tão l im itado geograficam ente que em sua área,se se tratasse de outras cidades, mal caberia um quarteirão. Mas nele se apinham inúmeras casasgeminadas de tijolos vermelhos e amarelos, edifícios antigos restaurados e divididos emapartamentos, um ou outro depósito com estrutura de ferro fundido ou de granito, todos numa 

eterna di sputa p or espa ço e apresentand o um aspecto ba stante estranh o no s pavi men tos superiores,depois que “para cima” se tornou a única opção de aumento de espaço. Resultado: ripas e tijoloserguendo-se de águas-furtadas, roupas penduradas entre as escadas de incêndio e os gradis de ferrobatido. Num lugar como esse, a idéia de “jardim” é ainda mais estranha que a de “lugar para estacionar”.

Sabe-se lá por quê, naquele bairro, que é o mais populoso da cidade, encontra-se uma magnífica répl ica de uma p raça de ald eia i tali ana, bem atrás da Old North Church. Ela tem o nom ede Prado , mas também é cham ada d e Alamed a Paul R evere, não apenas por estar próxim a tanto da igreja como da casa de Revere, mas também porque a entrada da Hanover Street é dominada pela 

estátua eqüestre de Revere, de autoria de Dallin. No meio da Prado há um chafariz; ao longo dosparedões que o rodeiam se vêem placas de bronze lembrando os feitos heróicos de Revere, Dawes, vários revo lucion ário s e outros luminares menos conh ecidos do folclore de North En d.

 Ao meio-dia, q uan do entram os na praça vindos da Unity S treet, a temp eratura tinh a subidopa ra três ou quatro graus, a n eve suja derretia-se e se in sinuava p or entre as rachaduras do calçam ento eformava p oças nos banco s de calcário. Em l ugar da neve q ue se esperava que caísse durante o di a, caía uma chuvinh a fin a p or causa d a variação de temp eratura, por isso n a p raça n ão ha via turistas nem o smo rado res do b airro em sua ho ra de alm oço.

 Apenas Ma nn y, Joh n Byrne e d oi s outros ho mens esperavam por nós ao lad o do chafariz. Os

dois homens eram os mesmos que eu vira na noite anterior; ficaram à minha esquerda enquantoohn e eu conversávamos com o agente Largeant. Embora não fossem grandalhões como Manny,não se podi a di zer que fossem baixos.

“Essa deve ser a encan tadora senh orita Genn aro”, di sse Man ny. Ele batia pa lm as enquanto n osaproxim ávam os. “Um ami go meu está com uns belos galo s na cabeça p or sua causa, mad am e.”

“Puxa vid a! Sin to muito.” Man ny arqueou as sobrancelhas e olhou para Joh n. “Sa rcástica essa putin ha, não?” Joh n, que estava virado para o chafariz, voltou-se, o n ariz coberto de esparadrap os em cruz, os

ol ho s arroxeado s e incha do s. “Me d esculp e”, di sse ele, sain do de trás de Man ny e m e acertando umsoco na cara.

Ele pôs tanta força no golpe que seus pés se ergueram do chão, mas eu me inclinara para trás, equando o soco me acertou na têmpora já tinha perdido quase metade do impulso. No final das

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Ele d eu um tapin ha na perna d e Angie. “Quem está com os di squetes?”“Eu”, respon di .Ele estendeu a mão .Coloquei os disquetes na mão dele, e ele os jogou para John. John os colocou numa pasta e

fechou-a.“E quanto à mi nh a con ta ban cária, m eus cartões de crédi to e tudo o m ais?”, falei .“Bem”, disse Mann y. “Eu estava p ensando em ma tar você.”“Você e esses três caras?”, disse Angie, co meçand o a rir.Ele ol ho u pa ra ela. “Você acha isso en graçado ?”“Olh e pra sua braguil ha, Man ny”, eu di sse.Ele baixou a vista e viu o cano do revólver de Angie a poucos centímetros de suas jóias de

família.“Isso é en graçad o”, disse Angie.Ele riu, e ela tamb ém, ol ho s no s ol ho s dele, o revól ver firme, sem o mai s leve tremo r.“Meu Deus”, disse ele. “Gosto de você, senhorita G enn aro.”“Meu Deus”, disse ela . “Esse sentim ento n ão é nem um p ouco recíproco, Mann y.”

Ele vol tou a cab eça, olh ou para as pla cas de bronz e e para o grand e muro d e ped ras à sua frente.“Bom , tudo bem , nin guém va i m orrer ho je. Mas senh or Kenzie, desconfio que o senh or ganh ou seteano s de azar. Não tem ma is crédi to. Seu di nh eiro sumi u. E não vai vol tar. Eu e alguns sócios acham ospo r bem lh e dar uma li ção sobre po der.”

“Eu aprend i a li ção, Man ny, senão não teria trazido os disquetes.”“É, mas como a lição acabou, quero ter certeza de que você assimilou bem. Assim sendo,

negativo: você voltou para a estaca zero. Garanto a você que não vamos fazer mais nada, mas oestrago q ue fizemo s vai ficar do jei to que está.”

Na Unity Street, os li xeiros estavam j ogand o l atas de l ixo nas calçada s de uma altura d e ma is de

um metro, uma van estava buzinando loucamente atrás do caminhão e uma velha estava berrandoda j anela em italian o. Aquilo não estava melh orando em n ada a m inh a ressaca.“Então é isso?” Pensei no s dez an os que passara econo mi zan do , nos quatro cartões de crédito

que nunca m ais conseguiria usar, nas centenas e centenas de casos mi serávei s — grandes e pequeno s —em q ue trabalh ara. Tudo i sso p ara nada . Estava po bre nova men te.

“É isso”, disse Ma nn y levantand o-se. “Veja b em a s pessoas que você vai sacanear, Kenzi e. Vocênão sabe nada sobre nós, e nós sabemos tudo sobre você. Isso nos torna perigosos e torna seusmo vim entos previsíveis.”

“Obrigado pel a l ição”, eu di sse.Ele se postou na frente de Angie até ela l evantar os olhos para encará-lo. Ela con tinuava com o

revólver na mão, mas apon tado para o chão .“Talvez enq uanto Kenz ie nã o p uder levar você pra jan tar quem sabe a gente pod e sair junto de

 vez em quan do . O que você acha?”“Eu lhe digo que seria melhor você comprar uma  Penthouse   no caminho de casa, Manny, e

bo tar a mã o d ireita pra funcion ar.”“Sou canh oto”, disse ele, sorrin do .“Não m e im po rta”, disse ela, e John riu.

 Man ny sacudiu os om bros e po r um instan te pa receu que estava p ensand o numa respo sta, masem vez disso deu meia-volta e, sem dizer mais uma palavra, foi andando em direção à Unity Street.

ohn e os outros dois homens o seguiram. Na entrada da rua, Manny voltou a cabeça em nossa direção, a silhueta imp onente recortada contra o fundo azul e cinza d o cam inh ão de l ixo.

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“A gente se vê p or aí”, disse ele com um aceno.Nós acenam os tamb ém.E Bubba, Nelson e os irmãos Twoomey saíram de detrás do caminhão, cada um

empunhand o uma arma. Joh n ficou d e boca ab erta, e Nel son o atingiu em cheio na cara com um bastão de hóquei

cerrado . O sangue espirrou do nariz quebrado de Joh n, ele tomb ou para a frente, e Nelson o agarrouno ar e o jo gou no om bro. Foi a vez d e os irmãos Twoom ey entrarem em cena : eles ergueram bemalto enormes latões de lixo e jogaram nas cabeças dos dois grandalhões, estendendo-os nas pedrasdo pa vim ento. Ouvi o barulh o d a rótula d e um d eles estourand o n uma ped ra, e os do is encolheramo corpo e ficaram feito cacho rros dormind o a o sol.

 Man ny ficou pa rali sado . Braço s ab ertos, ele ol hava estupefato enquan to os três homens à sua  volta eram n ocauteado s em p oucos segund os.

Bubb a estava a trás dele, a tamp a d e um latão de l ixo erguid a à sua frente com o o escudo de umgladi ador. Ele b ateu no om bro de M anny, que o fitou aparvalhado .

Quando ele girou o corpo, Bubba agarrou sua nuca com a mão livre, segurou-a com firmeza, e a tampa do latão desceu quatro vezes, e cada pancada soava como uma melancia esborrachando-se

no ch ão, jogada do telh ado de uma casa.“Man ny”, disse Bubb a enq uanto o o utro d esaba va n o ch ão. Bubb a o agarrou pelo s cabelos, e o

corpo d e Man ny, frouxo e elástico, ficou bal ançan do no ar. “Man ny”, repetiu Bubb a. “Como vão a scoisas aí, man o?”

Eles enfiaram Manny e John na parte de trás da van, depois jogaram os outros dois caras nocaminhão de lixo, onde eles ficaram junto com tomates podres, bananas passadas e bandejas decomid a congelad a vazias.

Por um i nstante terrível , Nelson pô s a mão na ala vanca d o guin daste hid ráuli co d a traseira docami nh ão e d isse: “Posso, Bubb a? Posso?”.“Melh or não ”, di sse Bubb a. “Pod e fazer muito ba rulh o.”Nelson ba lan çou a cabeça, mas pa receu ficar muito triste.Eles tinham roubado o caminhão de lixo naquela manhã do pátio da empresa coletora em

Brighton. Aban don aram-no ali mesmo e voltaram para a van. Bubb a ficou olha ndo para as janel asque davam para a rua. Não havia ninguém olhando. Mas mesmo que houvesse, aquilo era o NorthEnd, reduto d a Máfi a, e uma co isa que todos aprendi am d esde a infân cia era que, não im po rta o que

 vissem , eles nad a tin ham visto, seu guarda .“Bon ita roupa”, eu di sse a Bubb a q uand o ele en trou na va n.“É”, di sse Angie. “Você fica bo ni to vestido com o l ixeiro.”Bubb a respo nd eu: “Pode m e cham ar de técnico do serviço sani tário ”.

Bubba passeava pelo segundo andar do depósito onde morava. Ele mamava numa garrafa de vodca, sorria e de vez em quan do dava uma olhad a em Joh n e Man ny, que estavam firmem enteama rrado s a cadeiras de metal, ain da desmai ado s.

O térreo d o d epó sito d e Bubb a estava em ruín as; o segund o a nd ar estava vazio, agora que eletinha acabado com seu estoque de mercadorias. Ele morava no primeiro, que, em condições

normais, devia ser mais confortável, mas ele cobrira tudo com colchas, já que ia ficar fora por umano , e, além di sso, o l ugar era todo mi nad o d e explo sivo s. Isso m esmo . Min ado . Não me p erguntem

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“John ”, di sse Angie. “Quem m elo u a con ta ban cária e os cartões de crédi to de Patrick?”Ele ol ho u pa ra o chão . “Eu.”“Com o?”, perguntei .“Eu trabalh o pa ra a Receita Fed eral”, di sse ele.“Quer diz er que você vai acertar tudo ?”, disse Angie.“Bem, é ma is fáci l destruir do que recuperar.”“Joh n”, eu di sse. “Olh e p ara mim.”Ele olh ou.“Regularize mi nh as contas.”“Eu...”“Para am anh ã.”“Ama nh ã? Não po sso fazer isso. Vai ser preciso pel o men os...”Eu o medi com os olhos. “John, você pode acabar com o meu crédito, e isso é uma coisa 

terrível . Mas eu po sso acabar com você , e isso é um p ouco m ais terrível , você não acha?”Ele en goliu em seco, e seu po mo -de-ad ão se agitou por al guns in stantes na garganta.“Ama nh ã, Joh n. De man hã.”

“Sim”, disse ele. “Tudo bem .”“Você acab a com o crédito de o utras pessoa s?”, perguntei.“Eu...”“Respo nd a a ele”, di sse Bubb a, olh and o para os sapatos de John .“Sim.”“Gen te que tenta sair da Igreja d a Verdad e e da R evelação ?”, perguntou Angie.“Ei, espere um p ouco”, di sse Man ny.“Quem tem um fósforo?”, perguntou Bubba .“Vou ficar calad o”, disse Mann y. “Vou ficar cala do .”

“Sabemos tudo sobre as relações entre a Libertação da Dor e a Igreja”, disse Angie. “Uma dasformas de l id ar com os mem bros rebeldes é arruin ar suas finanças, certo?”“Às vezes”, disse John, o lábio inferior projetando-se para a frente como o de um menino

surpreendi do ol han do po r baixo das saias das menin as na escola.“Vocês têm gente trabalhando em todas as grandes instituições, não é, John? Na Receita 

Federal, no d epartam ento de pol ícia, nos ba ncos, na i mp rensa, on de m ais?”, eu di sse.Seu sacudi r de om bros foi b lo queado p elas cordas. “Em tod a p arte.”“Legal”, comen tei.Ele bufou. “Não vejo ninguém reclamando porque católicos trabalham nessas mesmas

organizações. Ou judeus.”“Ou ad ventistas do S étim o Dia ”, di sse Bubba .Olhei para ele.“Oh.” Ele levan tou a m ão. “Desculp e.”Inclin ei-m e sobre Joh n, pus os cotovelo s em seus joelho s e olh ei p ara o seu rosto.“Tudo bem , Joh n. Agora vem a p ergunta ma is im po rtante. E nem p ense em men tir pa ra m im .”“Ia ser muito ruim”, disse Bubba.

 Joh n o lhou nervosam ente para Bubba, dep ois no vam ente para mim.“John ”, eu di sse. “O que aconteceu com Desiree Stone?”

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“Desiree Stone”, repetiu Angie. “Vamos, John. A gente sabe que ela recebeu um tratamento na 

Lib ertação d a Dor.” Joh n p assou a l íngua nos lá bios, pi scou os ol hos. Já fazia um minuto que ele nã o fa lava , e Bubba estava ficand o im paciente.

“John ”, eu di sse.“Sei que tenho um isqueiro em algum lugar.” Bubba pareceu perplexo por um instante. Ele

bateu no s bo lsos da calça, e de repente estalou os dedos. “Deixei el e lá em ba ixo. Foi isso. Volto l ogo.” Joh n e M an ny fi caram ven do Bubba precip itar-se em direção à escada do outro la do da sala ,

ouviram o m artelar de suas botas de com ba te ecoan do nas vigas acim a d e no ssas cabeças.Quan do Bubba desapareceu na escad a, eu di sse: “Vocês con seguiram ”.

 Joh n e Man ny se entreolharam .

“Ele é assim”, disse Angie. “A gente nunca sabe o que vai fazer. Sabe como é, ele tende a semo strar cria tivo.”

Os ol ho s de Joh n giraram nas órbitas com o p ires. “Não d eixem q ue eles me mach uquem.”“Não p od emo s fazer nad a se não no s falar sob re Desiree Stone.”“Não sei d e n ada sob re Desiree Ston e.”“Claro que sabe”, eu disse.“Muito m enos do q ue Man ny sabe. Man ny foi o terapeuta dela.”

 Angie e eu viramo s a cab eça devagar e olh am os para Man ny. “Ma nn y, Man ny, Ma nn y. Ossegredos que você guarda...”, disse ela puxando-lhe o queixo até os olhos dele fitarem os seus. “Vai

logo desembuchando, mister músculos.”“Eu tenho que agüentar as sacanagens desse psicótico, mas não vou tolerar nada duma porra duma garota.” Ele cuspi u nela , e ela recuou.

“Meu Deus”, disse ela. “A gente tem a impressão de que Manny passa tempo demais na academia de ginástica, não? É isso mesmo não é, Manny? Levantando seus pequenos halteres eempurrando da StairMaster os caras menores do que você e contando pra seus cupinchas que fez eacon teceu com sua m in a n a n oi te passada . Esse é vo cê, Mann y. É isso que você é.”

“Ora, vá se foder.”“Não, Man ny. Vá vo cê se fod er”, disse ela . “Vai se foder e mo rrer.”

E Bubb a vo ltou para a sala ao s pulo s, com um m açarico, gritand o: “Vitória! Vitória!”. Man ny gritou e se contorceu nas cordas que o prend iam .“A coi sa está m elh orando ”, di sse um do s irmão s Twoo mey.“Não!”, guinchou Manny. “Não! Não! Não! Desiree Stone procurou o Centro Terapêutico

no di a 19 de n ovem bro. Ela... ela... ela estava d eprim id a p orque, porque, porque...”“Vamos com cal ma , Man ny”, disse Angie. “Vamo s com calm a.”

 Man ny fechou os olhos, respi rou fundo, as faces inundad as de suor.Bubb a sentou-se no chão e com eçou a acaricia r o ma çarico.“Tudo bem, Manny”, disse Angie. “Vamos começar do começo.” Ela pôs um gravador no

chão , na frente del e, e ligou.

“Desiree estava deprimida porque o pai tinha câncer, a mãe acabara de morrer e um cara queela conh eceu na uni versid ade se afogara.”

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“Essa pa rte a gente sab e”, eu di sse.“Então el a n os procurou e...”“Com o el a chegou até vocês?”, perguntou Angie. “Ela sim plesmen te veio p ela rua e entrou?”“Sim ”, disse Man ny, piscand o o s olho s.

 Angie ol hou para Bubba. “Ele está mentin do .”Bubb a ba lan çou a cabeça deva gar e ligou o m açarico.“Ok”, disse Mann y. “Ok. Ela foi recrutada.”Bubba di sse: “Se eu ligar isto aq ui no vam ente, vou usar, Ange. Quer você q ueira, quer nã o”.Ela bal ançou a cabeça.“Jeff Price”, di sse Man ny. “Foi ele quem a recrutou.”“Jeff?”, eu di sse. “Pensei que o no me d ele era Sean .”

 Man ny bal an çou a cab eça. “Esse é o segund o n ome. Ele às vezes o usava como apelido .”“Fale-no s sob re ele.”“Ele era o supervisor de tratamen to da Libertação d a Dor e m emb ro do Conselho da Igreja.”“E o q ue é esse con selh o?”“O Con selh o da Igreja é com o uma junta diretora. É comp osto de p essoas que estão n a Igreja 

desde seus primó rdi os em Chicago.”“E esse Jeff Price?”, di sse Angie. “Por on de an da agora?”“Foi em bo ra”, di sse Joh n.Olh am os para ele. Até Bubb a p arecia estar com eçand o a ficar interessado . Tal vez ele estivesse

tomando notas mentalmente para quando fundasse a sua própria igreja. O Templo dosRetardados.

“Jeff Price roubou doi s mil hões de dó la res da Igreja e desapa receu.”“Há quanto tempo?”, perguntei.“Há pouco m ais de seis seman as”, disse Man ny.

“Na mesma época em que Desiree Stone d esap areceu.” Man ny aq uiesceu. “Eles se tornaram aman tes.”“Você ach a en tão q ue Desiree está com ele?”, perguntou Angie.

 Man ny ol hou para Joh n. John abai xou a vista.“O quê?”, disse Angie.“Acho q ue ela está m orta”, di sse Man ny. “O Jeff, sab e, ele é...”“Um fi lh o d a puta de marca maior”, di sse John . “Um can alh a da p io r espécie.”

 Man ny con firmou co m a cab eça. “Seria cap az de jogar a mãe aos jacarés em troca de uma po rra d um pa r de sapatos, se é q ue m e entend em.”

“Mas Desiree pode estar com ele”, di sse Angie.“Ima gino que sim . Mas Jeff viaj a n a m aio r discrição po ssível . Ele sabe que estamos atrás dele. E

sabe também que uma moça bonita como Desiree não passa despercebida na multidão. Não digoque ela não tenha saído de Massachusetts com ele, mas a certa altura ele pode ter se livrado dela.Provavelmente quando ela descobriu que ele tinha roubado o dinheiro. E quando falo em livrar-sedela não quero dizer que ele a largou em algum restaurante ou coisa assim. Não, ele deve tê-la enterrado bem fund o.”

Ele ab aixou a vi sta, e seu corpo se ab and on ou à pressão das cordas.“Você gostava d ela ”, di sse Angie.Ele levantou os olhos, e dava para ler neles a confirmação. “Sim”, disse ele baixinho. “Ouçam,

eu roubo as pessoas? Sim. Certo. Roubo mesmo. Mas quase todos esses bundões chegam aquichoramingando e falando de angústia, de fadiga crônica ou do trauma irrecuperável pelo fato de

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terem feito xixi na cama quando eram crianças. Vou dizer uma coisa. Meto bronca neles. Comcerteza eles têm tempo e dinheiro demais, e se uma parte desse dinheiro puder ser útil à Igreja, tantomelhor.” Ele levantou os olhos para Angie num frio olhar de desafio, que logo arrefeceu ou setransformou em outra coisa. “Desiree Stone não era assim. Ela veio procurar ajuda. Todo o seumundo desabou num espaço de umas duas semanas, e ela estava com medo de enlouquecer. Vocêpo de n ão acreditar, mas a Igreja p od ia ajudá-la. Eu acredi to realm ente nisso.”

 Angie bal an çou a cabeça d evagar e lh e deu as costas. “Não desperdi ce nosso temp o, Manny. Eaquela h istória de que a fam íl ia de Jeff Price mo rreu envenenada po r monó xido de carbo no?”

“Conversa fiada.”Eu disse: “Uma pessoa se infiltrou na Libertação da Dor há pouco tempo. Uma pessoa como

nó s. Você sabe de q uem estou falan do ?”.Ele estava sinceramente desconcertado. “Não.”“John?”

 Joh n b al an çou a cabeça.“Há alguma pi sta do pa radei ro de Price?”, disse Angie.“Com o assim ?”

“Ora, vamo s”, eu di sse. “Man ny. Vocês têm po der para acabar com meu crédi to e m in ha conta bancária, durante a noite, em menos de doze horas. Sou capaz de apostar que não deve ser fácil seescon der de vocês.”

“Mas essa era a especialidade de Price. Ele nos apareceu com toda uma teoria de contra-operações.”

“Con tra-operações”, eu di sse.“Sim. Neutralizar o adversário antes que ele tenha tempo de neutralizar você. Oposição em

surdina. Agir como a CIA. A coleta de informações, as sessões, o teste da senha — tudo isso foi idéia de Price. Ele com eçou em Chicago. Se há al guém cap az d e se escon der de nó s, esse alguém é Price.”

“Teve aquele período em T amp a”, disse John. Man ny fuzi lou-o co m o ol har.“Eu nã o q uero ser queim ad o”, disse John. “Não quero.”“Que períod o em Tam pa ?”, perguntei.“Ele usou um cartão de crédito. Dele mesmo. Ele devia estar bêbado”, disse John. “Era o seu

po nto fraco. Ele b ebe. Temos um cara que, dia ap ós dia, fica o temp o todo dian te do com putador,conectado a todos os bancos e operadoras de cartões de crédito com que Price trabalha. Há trêssemanas esse cara estava olhando para a tela do computador e ouviu um barulhinho. Price estava usand o o cartão de crédito num m otel em Tam pa , o Courtyard M arrio tt.”

“E aí ...”“E aí”, disse Manny, “em quatro horas havia quatro dos nossos lá. Mas ele tinha ido embora.

Nem a o men os sabemo s se era ele m esmo . O cara d a recepção di sse que foi uma mulher que usou ocartão.”

“Talvez Desiree”, eu disse.“Não. A tal mulher era loi ra e tin ha uma cicatriz grand e no pescoço. O cara d a recepção di sse

ter certeza de que era uma puta. Disse que o cartão era do pai dela. Com certeza Price vendeu seuscartões de crédito ou os jogou pela janela, para serem achados pelos vagabundos. Só para nosconfundir.”

“Algum outro ca rtão foi usado dep oi s disso?”, perguntou Angie.

“Não”, disse John .“Essa hipótese me parece furada, Manny.”

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bastava um rápido olhar à agressiva espiral de arame farpado estendida no alto dos muros, ou à silhueta dos guardas armados nas torres, para ter absoluta certeza do que era aquilo — uma jaula para seres humanos. Independentemente do que se pensasse sobre crime e punição, a realidade era aquela. E não era nada b on ita de ver.

“Ela pod e estar viva”, disse Bubb a.“É”, eu disse.“Não, sério. É como eu disse. As pessoas nos surpreendem. Vocês tinham me dito antes de

aqueles dois panacas acordarem em minha casa que ela certa vez jogou gás lacrimogêneo numsujeito.”

“E da í?”, di sse Angie.“Daí que isso significa que ela é forte. Entende? Se tem um cara sentado ao seu lado e você saca 

uma lata de Mace e taca nos olhos dele... Está entendendo? Sabe o que esse tipo de atitude exige?Essa m oça tem coragem. Tal vez ela tenh a da do um j eito d e escapar daq uele cara, o sacana d o Price.”

“Mas aí ela teria en trado em con tato com o p ai. Ela teria p rocurado algum tip o d e contato.”Ele sacudiu os ombros. “Talvez. Não sei. Os detetives são vocês, eu sou o bobão que está indo

pro xadrez por porte il egal d e arma .”

Recostamo-nos no carro, contemplamos novamente as muralhas de granito e as espirais dearame farpado , o céu que pouco a p ouco enegrecia.

“Ten ho q ue ir”, di sse Bubba . Angie lh e fez um carin ho e beijou-lhe o rosto.Eu apertei a mã o d ele. “Quer que a gente acomp anh e você até o p ortão?”“Não. Seria como se vocês fossem m eus pa is na m in ha p rim eira ida à escola.”“O primei ro di a d e escola”, eu di sse. “Lembro que você deu o m aio r pau em Edd ie Ro urke.”“Ele tirou sarro de mim porque meus pais me levaram até a porta.” Ele deu uma piscadela. “A

gente se vê daq ui a um an o.”

“Antes di sso”, disse Angie. “Acha que a gente não vem visitar você?”Ele deu de ombros. “Não se esqueçam do que eu disse a vocês. Às vezes as pessoas nossurpreendem.”

Nós o vimos avançar pelo caminho de cascalho, ombros encurvados, mãos nos bolsos, oscabelos eriçad os pelo vento cortante que sop rava d a vegetação congelad a d os campos circund antes.

Ele passou pelo po rtão sem ol ha r para trás.

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“Quer di zer então q ue mi nh a fil ha está em T am pa ”, di sse Trevor Ston e.

“Senh or Ston e”, disse Angie. “O senh or ouviu o q ue n ós di ssemo s?”Ele lançou a ela um olhar lacrimoso e ajustou o paletó do  smo king . “Sim. Dois homens achamque ela está mo rta.”

“Si m”, eu di sse.“Você acha que ela está?”“Não necessariamente”, eu disse. “Mas pelo que ouvi sobre esse tal de Jeff Price, ele não parece

ser do tipo que se faz acompanhar de uma mulher vistosa como sua filha, quando deseja passardespercebid o. Send o assim , a pi sta de Tam pa ...”

Ele abriu a boca para falar, mas a fechou. Olhos cerrados, ele parecia lutar para afastar alguma coisa ácida. Seu rosto estava úmido de suor e mais pálido do que ossos alvejados. Na manhã do dia anterior, ele estava preparado para nos receber: vestira-se com elegância e usara sua bengala para nosdar a im agem d e um guerreiro frágil m as orgulh oso e corajoso.

Naq uela no ite, porém, sem ter tido tempo de se preparar para nos receber, estava sentado na cadeira de rodas em que, segundo Julian, agora passava a maior parte do tempo, a mente e o corpoexaurid os pel o cân cer e pela quimi oterapia. S eus cabelo s se eriçavam em uns po ucos tufos isolad os, ea voz não pa ssava d e um fraco murmúrio apen as audí vel.

“Mas de qualquer forma há uma pista”, disse ele, os olhos ainda fechados, o punho trêmulopressio nad o co ntra a b oca. “Talvez tenha sid o l á q ue Becker desapareceu também. Hein? ”

“Tal vez”, eu di sse.

“Quand o vo cês vão?”“Ahn?”, fez Angie.Ele abriu os olh os. “Para T amp a. Vocês podem partir amanh ã n a p rim eira h ora?”“A gente tem que provi den ciar as passagens aéreas”, eu di sse.Ele fechou a cara. “Não é preciso providenciar passagens aéreas. Julian pode pegar vocês

aman hã b em cedo e levá-los no meu avião.”“Seu avião”, disse Angie.“Achem minha filha, Becker ou Price.”“Senh or Ston e”, di sse Angie. “As chan ces são mí ni ma s.”

“Bom .” Ele tossiu cob rin do a bo ca com o punho , fechou os olh os novam ente por um i nstante.“Se ela estiver viva, quero encontrá-la. Se está morta, preciso saber. E se esse tal de Price for orespon sável por sua morte, você me faz um favo r?”

“Que favor?”, perguntei.“Você po dia fazer o o bséquio de matá-lo?”De repen te a atmosfera d a sala ficou fria com o gelo .“Não”, eu disse.“Vocês já mataram an tes”, di sse ele.“Nunca m ais”, eu di sse enq uanto el e virava a cabeça para a ja nel a. “Sen ho r Ston e.”Ele voltou a cabeça novam ente e olho u para mim .“Nunca mais”, repeti. “Estamos entendidos?”

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Ele fechou os olh os, encostou a cabeça na almo fadi nh a da cad eira de rod as e fez um sina l p ara que saíssemos da sala .

“Vocês acabaram de ver um homem que está mais próximo do pó do que da carne”, disseuli an n o vestíb ulo , trazend o o casaco a Angie.

 Angie estendeu a mão p ara pegar o casaco , e ele fez um sin al para que ela lhe desse as costas. Ela fez uma careta m as se virou, e Juli an a aj udo u a vesti- lo .

“Eu vejo um h om em”, disse ele enq uanto i a pegar o meu casaco n o closet , “que dom in ava o utroshomens, que tinha poder sobre a indústria, sobre as finanças e sobre qualquer área em que quisesse semeter. Um h om em cujos passos faziam tremer. E inspiravam respei to. Um grande respeito.”

Ele m e pa ssou o casaco, e enquanto eu o vestia, senti o perfume fresco e l im po de sua col ôn ia.Eu não conhecia aquela marca, mas não sei por que eu sabia que seu preço estava acima do meupadrão.

“Há quanto temp o vo cê trabalh a pa ra ele, Juli an?”“Trinta e cinco an os, senh or Kenzie.”

“E Nó-Cego?”, perguntou Angie. Julian esbo çou um l eve sorriso. “A senh orita se refere ao senh or Clifton ?”“Sim.”“Ele está cono sco h á vi nte an os. Ele era cam areiro e secretário pessoal da senh ora Stone. Agora 

me aj uda n a adm in istração e m anutenção d a prop ried ade, e a cuid ar do s in teresses do senh or Stonequando ele está cansado dem ais para isso.”

 Voltei-me pa ra encará-lo. “O que você acha que aconteceu com Desiree?”“Não saberia dizer, senhor. Só espero que não seja nada irremediável. Ela é uma criança 

divina.”

“E quanto ao senh or Becker?”, perguntou Angie.“O que quer di zer, senh orita?”“Na noite em que desapareceu ele estava a caminho desta casa. Checamos com a polícia,

senhor Archerson. Não há registro de nenhum acontecimento estranho na rodovia 1A naquela noite. Não houve acidente de carro, nem carros abandonados. Nenhuma empresa de táxi temregistro d e alguma corrid a p ara esta casa n aquela ocasião . Não se alugou nenh um carro n o n om e deay Becker, e o carro d ele está parado n o estacio nam ento d o ed ifício del e.”

“E daí vocês con cluem...”, di sse Juli an .“Não concluímos nada”, eu disse. “Trata-se apenas de uma impressão, Julian.”

“Ah.” Ele abriu a porta para nós, e o ar que entrou no vestíbulo era gélido. “E que impressão éessa?”“A de que alguém está men tind o”, disse Angie. “Tal vez um b ocad o de a lguéns.”“Dá mesmo o que pensar”, disse Julian batendo de leve na cabeça. “Boa noite, senhor Kenzie,

senh orita Genna ro. Dirija m com cuid ado .”

“Em cima é embaixo”, disse Angie enquanto avançávamos pela Tobin Bridge e as luzes da cida de se estendiam à n ossa frente.

“O quê?”, falei.

“Em cim a é emb aixo. Preto é branco. Norte é sul.”“Ok”, eu di sse devagar. “Você não quer que eu di rija?”

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Ela m e fuzil ou com o ol ha r. “Esse caso”, disse ela. “Estou com eçando a ach ar que todo mundoestá mentind o e todo m und o está escond end o al guma coisa.”

“Bem, e o que você pretend e fazer em relação a i sso?”“Quero deixar de engolir tudo que nos falam. Quero questionar tudo e desconfiar de todo

mundo.”“Tudo bem.”“E eu quero in vad ir a casa de Jay Becker.”“Agora?”, perguntei.“Agora m esmo.”

 Jay Becker morava no Whittier Place, uma torre resid encial com vista para o Charles River oupara o Fleet Center, dependendo da localização dos apartamentos.

O Whittier Place faz parte do Residencial Charles River, um moderno, luxuoso e horrendoconjunto habitacional construído na década de 70, à mesma época que o City Hall, o Hurley andLindermann Center e o JFK Building, para substituir o antigo West End, que alguns urbanistas de

gênio resolveram que deviam riscar do mapa, para que a Boston de 1970 ficasse parecida com a Lond res de Laranja mecânica.

O West End então se parecia muito com o North End, embora fosse um pouco mais sujo eemp oeirado em algumas áreas, devi do à p roxim id ade da s zon as de prostituição d e Scol lay S quare eNorth Station . As zona s de prostituição desapareceram, e o mesmo acon teceu com o West End ecom a maioria dos pedestres depois das cinco da tarde. Em seu lugar, os urbanistas edificaram umcomplexo tentacular de edifícios administrativos de concreto que privilegiam a forma emdetrim ento da funcio nal id ade — uma fo rma , aliás, tremen da — e edi fício s resid encia is de concretoque dão a im pressão d e um inferno árido e i nforme.

“Se Você Morasse Aqui”, dizia o cartaz esperto quando pegamos a Storrow Drive para entrarno Whi ttier Place, “Já Estaria em Casa.”“E se eu morasse neste carro”, di sse Angie, “tamb ém nã o estaria em casa?”“Ou deb aixo d aquela po nte.”“Ou no Charles.”“Ou naq uele la tão de l ixo.”Continuamos naquele jogo até achar um lugar para estacionar, mais um que poderia ser nossa 

casa, se lá m orássemo s.“Você odeia tudo que é moderno, não é?”, disse ela enquanto andávamos em direção ao

 Whittier Place e eu o co ntem plava franzindo o cen ho.Dei de o mb ros. “Go sto de música mo derna. Alguns programa s de televisão estão mel ho res doque nunca. Mas acho q ue é só isso.”

“Você não gosta de n enh uma ob ra d e arquitetura m od erna?”“Não tenho ganas de jogar uma bo mb a atôm ica n as Hanco ck To wers ou no Heritage quando

ol ho pa ra eles. Mas Frank Lloyd Wron g * e I. M. Pei n unca p roj etaram uma casa o u um edifício quechegasse aos pés do vi torian o m ais sim pl es.”

“Defin itivam ente, Patrick, você é um bo stoni ano . Até a raiz do s cabelo s.”Confirmei com um gesto de cabeça enquanto andávamos em direção à entrada do Whittier

Place. “Eu só quero que eles deixem Boston em paz, Angie. Que vão para Hartford, se quiserem

construir uma merda como essa. Ou para Los Angeles. Ou seja lá para onde for. Contanto que vãoembora.”

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Ela ap ertou a mi nh a mã o. Olhei p ara ela e vi um sorriso em seus láb io s. Atravessam os uma série de portas de vidro e demos com outra, que estava fechad a. À no ssa 

direita havia um painel com placas onde se liam nomes de pessoas. Havia um número de trêsalgarismos ao lado de cada placa e, à esquerda do painel, um telefone. Como eu temia. Se alguémusasse o telefone, seria visto p ela pessoa que atend esse, através de uma câmera de segurança.

 Aqueles crim in osos desgraçad os com plicaram muito nosso o fício d e detetive particular.“Foi muito divertido ver você tão exaltado ainda há pouco”, disse Angie. Ela abriu sua bolsa,

levan tou-a à altura da cab eça e jogou o con teúdo no chão .“Ah, é?” Ajo elh ei-m e ao seu lad o e com eçamo s a recolo car as coi sas na b ol sa.“Sim. Já fazia temp o q ue você nã o se entusiasmava com alguma co isa.”“Você também”, eu di sse.Olhamos um para o outro, e seu olhar interrogativo com certeza refletia as mesmas questões

que se espel havam n o m eu:Quem somos nós atualmente? O que é que nos restou depois de tudo que Gerry Glynn nos

tirou? Como voltaremos a ser felizes?“Quan tos baton s uma mulh er precisa carregar?”, perguntei, voltand o a catar as coisas do ch ão.

“Dez é uma bo a pedi da ”, di sse ela. “Cin co se você não q uer carregar muita coi sa.” Vimos um casal ap roximan do-se do outro la do da porta de vidro. O homem dava a 

impressão de ser advogado, cabelos grisalhos e gravata Gucci vermelha e amarela. A mulher dava a im pressão d e ser espo sa de ad vogado , aflita e desconfi ada .

“Sua vez”, eu di sse a An gie.O homem abriu a porta, e Angie desviou o joelho para lhe dar passagem. Nesse movimento,

uma mecha de cabelo que estava presa atrás da orelha se soltou e desceu até a maçã do rosto,emoldurando-lhe um olho.

“Desculp e-me”, disse ela com um risinh o, fitand o o ho mem . “So u tão desajeitada...”

Ele olhou para ela, e seu olhar impassível de homem de negócios se deixou contagiar pela alegria com uni cativa d e Angie. “Eu mesmo não consigo a travessar uma sala vazia sem tropeçar.”“Ah”, fez Angie. “Uma alma gêmea.”O h om em sorriu como um men in o tími do . “Os outros que se cuid em”, disse ele.

 Angie soltou um riso breve, com o se aq uele humor origin al a tivesse surpreendido . Ela pegou ascha ves. “Aqui estão ela s.”

Levantamo -no s quando a mulher dele pa ssou po r mi m e abriu a po rta.“Da próxim a vez tenha m ais cuid ado ”, di sse ele com uma severid ade fingid a.“Vou fazer o po ssível”, di sse Angie ad oçan do um p ouco a vo z.“Faz temp o q ue você mo ra aqui?”“Vamos, Walter”, disse a mulh er.“Sei s meses.”“Vamos, Walter”, repetiu a m ulh er.

 Wal ter lan çou um último olhar a Angie e foi em bora.Quan do a p orta se fecho u atrás del es, eu falei: “Deitad o, Walter. De p é, Walter”.“Pob re Walter”, di sse Angie quand o no s aproxima mo s dos elevad ores.“Pobre Walter. Ora, vamos. A propósito, você conseguiria ser mais sussurrante?”“Sussurrante?”“ Seisss meses”, eu di sse, na m in ha m elh or interpretação d e Marilyn Mo nroe.

“Eu nã o di sse ‘seisss’. Eu di sse ‘seis’. E nã o falei com essa vo z m elo sa.”“Tem razão, Norma Jean.”

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Ela me meteu o cotovelo, as portas do elevador se abriram, e subimos até o décimo segundoandar.

Na p orta d o apartamen to de Jay, Angie d isse: “Trouxe o p resente de Bubb a?”.O presente de Bubba era um decodificador de alarme. Ele me dera no Natal passado, e eu

ainda não tivera oportunidade de testá-lo. Segundo Bubba, o aparelho lia a freqüência acústica deum alarme e a decodificava em questão de segundos. Quando uma luzinha vermelha acendia na telinha do decodificador, bastava apontá-lo para a fonte sonora, apertar um botão que havia nomeio , e o alarme sil enciava.

Em princípi o.Eu já usara antes equip amen tos fornecid os po r Bubb a, e em geral eles funcio nava m, d esde que

ele não os qualificasse como “tecnologia de ponta”. Tecnologia de ponta, no dialeto de Bubba,significava que ainda havia alguns probleminhas no aparelho ou que ele ainda não havia sidotestado. Ele não usara a expressão quando me dera o decodificador, mas eu só saberia ao certo sefuncio nava o u não quando estivéssemo s no apartamen to de Jay.

Eu já visitara Jay an tes e sabia que ele tinh a um al arme sil encio so l igado à em presa d e segurança Porter and Larousse Consultants, do centro da cid ade. Quand o o ala rme di spa rava, você tin ha trin ta 

segund os para li gar pa ra a em presa d e seguros e dar a senha a eles, do con trário a po lí cia b aixava.Quand o estávam os a cami nh o, men cionei isso a Angie, e ela com entou: “Deixe que eu cuid o

di sso. Pod e con fiar.”Fiquei vigiando o corredor enquanto Angie mexia nas fechaduras com seus instrumentos,

então ela abriu a porta, e nós entramos. Fechei a porta atrás de mim, e o primeiro alarme de Jay disparou.

Era só um pouquinho mais alto que uma sirene anunciando um ataque aéreo. Apontei odecodifi cador de Bubb a p ara a caixa q ue ficava no pó rtico d a cozin ha e apertei o bo tão p reto q uehavia no meio do aparelho. E esperei. E um, e dois, e três... vamos, vamos... Bubba estava quase

perdend o um m otorista para pegá-lo na saída d a prisão, quando a luz vermel ha a pareceu na telinh a,eu apertei o bo tão preto no vamen te e o ala rme silen ciou.Olhei para a caixinha em m in ha m ão. “Uau!”, falei.

 Angie pegou o telefone da sala , ap ertou um único número no con sole de di gitação rápi da,esperou um i nstante e falo u: “Sh reveport”.

Fui p ara a sala .“Boa n oi te pa ra você tamb ém”, disse ela ao fon e, dep oi s desligou.“Shrevepo rt?”, falei .“Foi lá que Jay n asceu.”“Eu sei. Como você sabi a?”Ela sacudiu os ombros, lançou os olhos em volta da sala. “Devo tê-lo ouvido dizer em alguma 

rod a de b ebid a, sei lá.”“E com o vo cê sabi a q ue essa era a senh a?”

 Mai s um sacudi r de om bros.“Numa roda de bebida ?”, perguntei.“Humm”, fez ela, passando por mim e dirigindo-se ao quarto. Um sofá modular em L, de

couro preto, ocupava um terço d a sala; na frente del e, na m esin ha de cen tro de vi dro fumê, estavamemp il ha do s três números da gq e quatro ap arelh os de control e remo to. Um p ara a TV de cin qüenta po legad as, outro p ara o vi deo cassete, um terceiro pa ra o CD-pla yer e o quarto para o estéreo.

“Aposto como Jay usa um controle remoto para aumentar o volume da própria voz”,comentei.

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Havia vários manuais técnicos numa estante, alguns romances de Le Carré, e vários dos autoressurrealistas de que Jay gostava — Borges, García Márquez, Vargas Llosa e Cortázar.

Depois de dar uma olhada nos livros e nas almofadas do sofá, sem encontrar nada, fui aoquarto.

Todo mundo sabe que os bons detetives particulares tendem ao minimalismo. Como elessabem, mais do que ninguém, a que podem levar anotações feitas ao acaso ou um diário íntimodissimulado, dificilmente costumam guardar coisas. Muita gente já comentou que meuapartamento se parece mais com uma suíte de hotel do que com uma casa. O apartamento de Jay,embo ra m ob il iado com muito m ais luxo do que o m eu, era ab solutamente im pessoal .

Da porta do quarto, fiquei observando Angie levantar o colchão da velha cama estiloimpério, levantar o pequeno tapete ao lado da cômoda de nogueira. Diferentemente da sala, quetinha um estilo moderno absolutamente despojado, com quadros pós-modernos compredominância do preto, do cinza e do azul-cobalto, o quarto seguia uma linha mais naturalista,com seu soalho encerado de madeira clara brilhando à luz difusa de um pequeno lustre em estiloantigo. A colcha era feita à mão e em cores vivas, o tom da escrivaninha que havia num cantoharmoni zava-se com o d a cômod a.

Quando Angie andou em direção à escrivaninha, eu perguntei: “E quando foi que você e Jay beb eram juntos?”.

“Eu do rmi com ele, Patrick. Certo? É isso aí .”“Quando?”

 Já p róximo à escrivan inha, e seguida de p erto por mi m, ela deu de ombros. “Na p rim avera ouno verão pa ssado . Por aí.”

 Abri uma gaveta enquan to ela ab ria outra. “Foi na sua ‘fase do desbund e’?”, perguntei.Ela sorriu. “Foi .”“Fase do desbunde” era como Angie chamava a época em que arranjava um encontro após

outro, depoi s que se separou de Ph il . Eram relaçõ es curtíssim as, sem o m eno r vínculo, em q ue a b usca do sexo se dava da forma mais descontraída que era possível depois da descoberta da Aids. Foi sóuma fase, da qual ela se cansou muito mais rápido do que eu. A fase dela durou uns seis meses; a mi nh a, uns nove ano s.

“E que tal el e?”Os olh os fixos no fundo da gaveta, ela franziu o cenh o. “Ele era bo m, m as gemi a. E não supo rto

caras que gemem alto dem ais.”“Eu tamb ém”, eu di sse.Ela d eu uma risada. “Você achou alguma coisa?”Fechei a última gaveta. “Papel , canetas, seguro d o carro, nada.”“Eu também não achei n ada.”Revi stamos o quarto de hó sped es, também nã o enco ntram os nada, e voltamo s para a sala .“O que estamo s procuran do ?”, perguntei.“Uma pista.”“Que tipo de p ista?”“Uma pi sta im po rtante.”“Ah.”

 Verifi quei atrás do s quad ros. Ti rei a tam pa da parte de trás d o televisor. Examinei a gaveta dedi scos do CD-pl ayer, e a d e fitas do vid eocassete. Não h avia pi sta em n enh um desses lugares.

“Ei”, disse Angie vo ltando da cozin ha.“Achou uma bela p ista?”, perguntei.

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“Não sei se dá pra d izer que é.”“Hoje só estam os aceitand o pi stas im po rtantes.”Ela m e passou um recorte de jorna l. “Isto estava n a porta da gelad eira.”Era uma m ateriazin ha de última p ágina, de 29 de agosto d o an o an terio r:

FILHO DE BANDIDO MORRE AFOGADO

 Anthony Lisardo , 23, filho do notório agiota Michael Lisardo, con hecido como “Davey  Mal uco”, morreu afo gado terça-feira à noi te ou quarta de man hã, ap arentem ente de causa acidental, no reservatório de Stoneham. O jovem Lisardo, que, segundo a polícia, devia estardrogado, entrou ilegalmente na área por uma abertura na cerca. O reservatório, que há muitotempo vem sendo usado pela juventude local como piscina, é vigiado por dois guardas doDepartamento de Parques do Estado, mas nem o guarda Edward Brickman nem o guarda Francis Merriam viram Lisardo entrar na área do reservatório ou nad ar nele em suas ron das detrinta minutos. Dada a existência de fortes indícios de que Lisardo estava com umcompanheiro no momento da tragédia, a polícia condicionou o fechamento do caso à 

id entificação e in vestigação desse desconh ecido, mas o capitão Emm ett Gron ing, da p olí cia de Stoneham, declarou: “Está descartada a hipótese de um crime. Não há dúvida quanto a isso”.

O pai da vítim a recusou-se a fal ar sob re o caso.

“Acho que é uma pi sta”, eu di sse.“Grand e ou peq uena?”“Depen de d e se você quer med ir o com prim ento o u a l argura.”

Observação bastante espirituosa, que me valeu um belo tapa na orelha quando eu ia saindopela p orta da cozinha.

* Na verdad e, o no me d o a rquiteto é Frank Lloyd Wright. O autor faz aq ui um j ogo d epalavras com right  (certo) e wrong  (errad o). (N. T.)

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“Vocês di sseram que estão trabalh and o p ara quem m esmo ?”, perguntou o capi tão Gron in g.

“Ahn , nós não di ssemo s”, disse Angie.Ele afastou o co rpo do com putado r. “Ah. Quer dizer então que devo ajudá-lo s só po rque sãoami gos de Devin Amron kli n e de Oscar Lee, da Delegacia Crim in al de Boston ?”

“A gente contava um po uco com isso”, respo nd i.“Bom, mas quando Devin me telefonou, eu estava pensando em ir para casa e encontrar a 

pa troa , xará.” Já fazia uns vinte ano s que ni nguém m e cham ava de xará. E aquil o n ão me dei xava m uito fel iz.O capitão Emmett Groning tinha pouco menos de um metro e setenta e pesava mais de

cento e cin qüenta q uil os. Ti nh a as bo checha s mais caíd as e mai s gordas que qualquer buldo gue, e a papada descia-lhe em cascatas feito bolas de sorvete. Eu não tinha idéia dos pré-requisitos para a 

adm issão n o Departam ento de Polí cia de S toneh am, mas dava para concl uir que Groning já estava havia p elo m enos uma d écada sentado a uma escrivan in ha . Numa cad eira reforçada .

Ele ma scava uma tira d e carne-seca, mas sem a com er, apena s jogand o-a d e um lad o p ara outrona b oca, tirand o-a d e vez em q uand o p ara apreciar as ma rcas do s den tes e li mp ar os restos de saliva.Pelo m enos me pa recia ser um p edaço de carne-seca. Eu não tinh a b em certeza, po rque já fazi a umtempinho que eu não via aquilo — mais ou menos o mesmo tempo que eu não ouvia a palavra “xará”.

“Nós não queremo s afastá-lo de sua... patroa”, eu di sse. “Ma s é que estamo s meio sem tem po .”Ele rolou o pedaço de carne sobre o lábio inferior e, sabe-se lá como, conseguia chupá-lo

enquanto falava. “Devin disse que foram vocês que acertaram as contas com Gerry Glynn.”“Sim”, respo nd i. “As con tas de Gerry G lyn n foram acertada s por nó s.” Angie me d eu um ch ute no torno zel o.“Bem.” O capitão G ron in g olh ou para nós por cima da m esa. “Por aqui nã o temos esse tipo de

coisa.”“Que tipo de coi sa?”“Seus assassinos psicopatas, pervertidos drogados, travestis e estupradores de crianças. Não,

senh or. Deixamo s isso para vocês da Cidad e Grand e.” A Cidad e Gran de ficava a uns quinze quil ômetros d e Ston eham . O cara parecia pensar que

havia um oceano entre as duas.“Bem”, disse Angie. “É por isso que sempre pensamos em vir morar aqui quando nosaposentarmos.”

Foi a m inh a vez de lh e chutar o tornoz elo.Groning ergueu uma sobrancelha e inclinou-se para a frente como para conferir o que

estávamos fazend o d o o utro l ado de sua escrivan in ha . “Si m, bem , é com o eu semp re di go, senh orita,existem m uitas cida des pi ores do que esta, ma s po uquíssim as melho res.”

É o caso de ligar para a Junta Comercial de Stoneham, pensei comigo. A cidade ganhou umlogan.

“Sem dúvida”, disse Angie.Ele se recostou na cadeira, e achei que ela fosse virar e projetá-lo através da parede para a sala 

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 vizi nh a. Ele tirou o pedaço de carne da boca, exam in ou-o, depois se p ôs a chupá-l o novam ente.Então o lh ou para a tela d o com putador.

“Anthony Lisardo, de Lynn”, disse ele. “Lynn, Lynn, Cidade de Gente Ruim. Já ouviucham arem essa cid ade assim ?”

“É a prim eira vez”, di sse Angie com um l argo sorriso.“Pois é”, disse Groning. “É um lugar desgraçado. Eu não me animaria a criar nem um cachorro

lá.” Apo sto co mo seria capaz d e devorar um, pen sei comigo m esmo . Mordi m in ha língua, lem brand o-me de q ue resolvera me tornar mai s mad uro naquele ano.“Eu não criaria um cachorro lá”, repetiu ele. “Bem. Anthony Lisardo, sim, ele teve um ataque

cardíaco.”“Pensei q ue ele tivesse m orrid o afogado .”“Morreu sim, xará. Morreu sim. Mas primeiro ele sofreu um ataque cardíaco. Segundo nossa 

médica, se tivesse acontecido aqui na cidade, sendo ele tão jovem e tudo o mais, não teria morrido. Ma s ele estava nad an do em águas com um m etro e m eio d e profund ida de quan do aco nteceu, foi sóisso que ela escreveu. Só isso”, repetiu ele no mesmo tom cantado que usava para dizer que “não

cria ria um cach orro”.“Alguém sabe o que provocou o ataque cardíaco? ”“Bem, claro, xará. Claro que alguém sabe. E esse alguém é o capitão Emmett T. Groning, de

Stoneham.” Ele se recostou na cadeira, a sobrancelha esquerda erguida, e balançou a cabeça enquanto no s olh ava, fazendo rolar o pedaço d e carne no láb io inferior.

Se eu morasse naquele lugar, nunca cometeria um crime, para não me ver confinado pertodaq uele sujei to. Se tivesse de ficar cin co mi nutos com o cap itão Emm ett Groni ng, de S toneh am, euassumiria a responsabilidade por qualquer crime, do assassinato do bebê Lindbergh aodesaparecimento de Jimmy Hoffa, só para ser mandado para uma penitenciária federal, o mais

lo nge po ssível daq uela fi gura.“Capitão Groning”, disse Angie, usando o mesmo tom derramado que usara com o Pobre Wal ter. “Se o senh or pudesse n os di zer o que p rovo cou o ataq ue ca rdíaco em Anthon y Li sardo, eulhe ficaria muito grata.”

 Muito grata. Angela “Viol eta” Gen naro.“Cocaína”, di sse ele em espa nh ol . “Pois é, com o d izem alguns.”Eu estava enfiado em Stoneham com um sujeito gordo em sua imitação de Al Pacino no

pap el de To ny Mo ntana. A coisa estava ficando cada vez melh or.“Ele chei rou cocaí na, teve um ataque do coração e se afogou?”

“Ele não chei rou. Ele fumo u, xará.”“Então quer di zer que foi crack ?”, pergunto u Angie.Ele balançou a cabecinha minúscula, e as bochechas farfalharam. “A cocaína normal

mi sturada com fumo . É o que cha mam de cigarro eq uatorian o.”“Fumo com um p ouco d e cocaín a, mais um p ouco d e fumo , cocaína, fumo , cocaína”, eu di sse.Ele p areceu im pressio nad o. “Você pa rece conh ecer isso muito bem.”Um monte de gente que cursou a universidade em meados da década de 80 conhecia, mas eu

não disse isso a ele. Ele me dava a impressão de ser o tipo de sujeito que decide seu voto para presid ente da Rep úbl ica leva nd o em con ta se o cand id ato “tragou” ou não .

“Ouvi falar d isso”, falei .“Bem, foi isso que o jovem Lisardo fumou. Ele fez uma tremenda viagem, cara, mas depois o

bo de foi feio .”

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“Afe”, eu disse.“O quê?”“Maravilha”, eu disse.“O quê?”“Nada não ”, falei.

 Angie m eteu o sal to do sapato no dedão do meu pé, e eu sorri a ngel ica lm ente para o cap itãoGroni ng. “E a testemunh a? O jo rnal di zia q ue Lisardo estava com um comp anh eiro.”

Groning desviou dos meus olhos seu olhar perplexo, fixando-o na tela do computador. “Orapaz se chamava Donald Yeager, 22 anos. Entrou em pânico e fugiu, mas se apresentou à delegacia uma h ora depo is. Foi id entificad o por um casaco que largou no l ocal . Nós o deixam os cozi nh ar umpo uco na cela, mas não conseguim os tirar nad a del e. Ele só foi com o com pa nh eiro ao reservatório,tomo u umas cervejas, fumo u um po uco d e m acon ha e foi dar um mergulh o.”

“Nada de cocaína?”“Não. Ele disse não saber que Lisardo usava cocaína. Ele disse: ‘Tony detestava cocaína’.”

Groni ng estalou a l ín gua. “Aí eu falei : ‘E a cocaí na detestava To ny, xará’.”“Bela resposta”, com entei.

Ele balançou a cabeça. “Às vezes, quando a gente começa, eu e os rapazes, não tem quem nosfaça p arar.”

Capitão Groning e seus Rapazes. Aposto como faziam churrascos, iam juntos à igreja,cantavam canções de Han k Wil li am s Jr. juntos e man ejava m um cassetete como ni nguém.

“E com o o pa i d e Anthon y reagiu à mo rte do fil ho ?”, perguntou Angie.“Davey Mal uco?”, di sse o capi tão Groni ng. “Você viu que o j ornal o cham ou de ‘ba nd id o’?”“Sim.”“Garanto a vocês: tod o carcama no q ue mora ao no rte de Quin cy é ba nd id o.”“Esse carcamano tamb ém?”, perguntou Angie, punhos cerrados.

“Pé-de-chinelo. Os jornais o chamaram de ‘agiota’, o que em parte é verdade. Mas seuprinci pa l n egócio é vend er peças proven ien tes de desman ches da Lynn way.”De todas as metrópoles do país, Boston é uma das que têm mais segurança. Nossas taxas de

homicídio e estupro são insignificantes se comparadas às de Los Angeles, Miami ou Nova York,mas quando se trata de roubo d e carros, som os im ba tíveis. Não se sabe b em p or quê, os crim in ososde Boston adoram roubar carros. Não tenho idéia do porquê disso, uma vez que não há nenhumproblem a com no sso sistema d e transpo rte públ ico, m as assim é.

E a m aio ria desses carros vai pa rar na Lynn way, um trecho da rod ovi a 1A que passa p or cim a d o Mystic River, on de existe uma série de loj as de carros e oficinas mecân icas. A mai oria dessesestabelecimentos é legal, mas muitos deles não são. É por isso que a maioria dos bostonianos quetêm seus carros roubad os nem devia se preocupar em consultar o sistema d e rastream ento po r satéli te— ele o s guiará até as profund ezas do Mystic, bem pertin ho da Lynnway. O emissor de sina is pa ra osatélite, não o carro. O carro já terá i do pa ra o desman che, e suas peças estarão a cam in ho de q uin zelugares diferentes, cerca d e m eia ho ra d epo is que você o estacion ou.

“Davey Maluco não se preocupo u com a m orte do fil ho ?”, perguntei.“Tenho certeza que sim”, disse o capitão Groning. “Mas ele não pode fazer nada. E, claro, ele

 vei o com o lero-l ero de semp re: ‘Meu fi lh o nã o usava cocaí na ’, m as o que mai s el e podi a di zer?Felizmen te, com essa con fusão tod a por aqui h oj e em d ia, e visto q ue Davey Ma luco é p eixe mi údo ,não preciso m e preocupa r com o q ue ele p ensa.”

“Quer di zer então q ue Davey M aluco é peixe pequeno ?”, perguntei .“É um l amb ari”, di sse o capitão G ron in g.

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“Um l am bari”, eu di sse a Angie.E lá veio outro p ontapé.

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O escritório da Hamlyn and Kohl Investigações Internacionais ocupava todo o trigésimo

segund o a nd ar da John Hancock Tower, o glacial arranh a-céu de vi dro azul m etálico de I. M. Pei. Oedifício consiste em placas de vidro espelhado, cada uma com seis metros de altura por dezoito delargura. Pei as projetou de forma a refletirem perfeitamente os edifícios circundantes, e quando a gente se aproxima, vê o granito claro e o arenito vermelho da Trinity Church e o imponentecalcário do ho tel Copl ey Plaza ap risionad os no azul fumê do vidro im pl acável. O efeito não chega a ser desagradável, e pelo meno s as pl acas de vi dro já n ão d esabam lá d e cima, como faziam até há po uco temp o.

O escritório de Everett Hamlyn dava para a Trinity Church; numa noite fria e clara comoaquela, pod ia-se ver Cambrid ge. Na verdade, era possível ver Med ford, mas não conh eço ni nguémque queira olh ar para tão l on ge.

Bebericamos o excelente brandy  de Everett Hamlyn, vendo-o de pé ao lado de sua placa de vidro, contemp lan do a ci dad e que se estendia a seus pés num tapete de luzes.

Esse Everett era uma figura. Ereto feito um cabo de vassoura, pele tão colada ao corpo que medava a im pressão d e que, ao mí ni mo corte, ela se rasgaria toda. O cabelo cinza m etálico era cortadoà escovinh a, e nunca vi despon tar em seu rosto o men or sin al d e ba rba.

Sua dedi cação ao trabalh o era legend ária. Era ele quem acendi a as luzes de m anh ã e as apagava à no ite. Muitas vezes ouviram -no di zer que não se podi a confi ar num ho mem que precisasse de ma isde q uatro h oras de sono , porque a traição resid ia na preguiça e n o d esejo de l uxo, e dormi r mais dequatro horas por dia era um luxo. Ele trabalhara no Office of Strategic Service na Segunda Guerra 

 Mund ia l, quase um garoto à época, mas agora, m ai s d e cinq üenta an os depoi s, estava melhor quemuitos ho men s com m etade de sua id ade.

Costuma va-se dizer que ele ia se ap osentar na noi te de sua morte.“Vocês sabem q ue nã o p osso d iscutir isso”, disse ele, contemp lan do no ssa ima gem refletida no

espelho.Procurei seu ol ha r da m esma m an eira. “A conversa ficará en tre nós, Everett. Por favor.”Ele esbo çou um sorriso, levantou o cop o e tom ou um peq ueno gole d e brandy . “Você sabia que

eu estaria sozi nh o, Patrick. Não sabia?”“Achei que estaria. Da rua d á p ara ver a l uz d e seu escritório acesa, quan do se sab e q ue retângulo

olhar.”“Sem um sócio p ara me ap oi ar, caso vo cês resol vam d ob rar um vel ho .” Angie deu um risinh o. “Ora, Everett, vamos fal ar sério.”Ele se voltou, os ol ho s bril ha ntes. “Você está m ais encan tadora do que nunca, Angela.”“Você não vai poder se esquivar de nossas perguntas com essas lisonjas”, disse ela. Mas eu

percebi que um l eve tom róseo tin gia sua pele sob o queixo.“Vamos, seu velh o galan teador”, eu di sse. “Sob re minh a bel a aparência , você não di z nad a?”“Você está um l ixo, meu rapa z. Pelo visto, contin ua cortand o o próprio cabel o.”Caí na risada. Eu sempre gostei de Everett Hamlyn. Todo mundo gostava. O mesmo não se

podia dizer de seu sócio, Adam Kohl. Mas Everett tinha uma facilidade de comunicar-se com aspessoas que contradi zia seu passado mi li tar e sua rígid a e infl exível con cepção d o b em e do m al.

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“Mas pelo men os os meus são cab elo s de verdade.”Ele p assou a m ão na dura escova que tin ha na cabeça. “Você acha que eu ia pa gar pa ra ter isso na 

cabeça?”“Everett”, principiou Angie. “Se você fizer o favor de nos dizer por que a Hamlyn and Kohl

abandonou o caso de Trevor Stone, não vamos arrancar o restinho de cabelo que lhe sobrou. Euprometo.”

Ele fez um l eve movim ento com a cabeça, que eu sabia p or experiência signi ficar não.“Precisamos de uma ajuda nesse caso”, eu disse. “Agora estamos tentando encontrar duas

pessoas: Desiree S tone e Jay.”Ele se aproximou de sua cadeira e pareceu examiná-la antes de sentar-se. Ele a girou de forma a 

no s ol ha r di retamente e apoi ou os braços na escrivan in ha .“Patrick”, di sse ele n um tom quase paternal . “Você sabe p or que a Haml yn and Koh l ofereceu a 

 você um em prego sete ano s depois que você recusou nossa prim eira oferta?”“Você estava com ciúme d e no ssa cli entela?”“Nem tanto”, disse ele com um sorriso. “Na verdade, a princípio Adam estava totalmente

contra essa idéia.”

“Para mim nã o é nenh uma surpresa. Digo i sso sem o m eno r rancor.”“Não tenho dúvida.” Ele se recostou na cadeira, esquentando o brandy  com o calor da mão.

“Con venci Ada m d e que vocês do is eram detetives experimen tados com uma ad mi rável — eu diria até impressionante — taxa de resolução de casos. Mas não era só por isso. E aqui, Angela, quero que

 você por favo r não leve a m al o q ue vou di zer, pois nã o tenho a m enor inten ção de ofend ê-l a.”“Tenh o certeza de que não vou me ofend er, Everett.”Ele se inclinou para a frente e olhou bem nos meus olhos. “Na verdade eu queria era você,

Patrick. Você, meu rapaz, porque você me lembrava Jay, e Jay me lembrava a mim mesmo quandoera jovem. Ambos eram muito espertos, ambos tinham muita energia, mas era mais do que isso. O

que vocês dois têm, e que hoje se tornou uma coisa rara, é paixão. Vocês eram como garotinhos. Vocês p egavam um caso qual quer, por mai s insignifican te q ue fosse, e atuavam nele como se fo sseum caso m uito i mp ortante. Vocês amavam o ofício. Vocês o am avam em todos os seus aspectos, e era uma alegria vir trabalhar naqueles três meses em que vocês trabalharam juntos aqui na empresa. Oentusiasmo de vocês contagiava estas salas — piadas sem graça, brincadeiras infantis, gosto pela pâ nd ega e sua ab soluta determin ação de resol ver cada caso.” Ele se recostou na cadei ra e aspirou o ar à sua volta. “Era um verda dei ro tôni co.”

“Everett”, prin cip iei , mas parei p or aí, sem saber mai s o que dizer.Ele leva ntou a mão . “Por favor. Sabe, eu também j á fui a ssim . E quand o d igo q ue Jay era q uase

como um fil ho para mim , você acredita?”“Sim ”, respo nd i.“E se o mundo tivesse mais gente como ele, como eu próprio e até como você, Patrick, acho

que seria um lugar muito melhor. Você vai me dizer que tenho um ego enorme, mas estou velho,estou no meu di reito.”

“Você nã o p arece velho, Everett”, di sse Angie.“Você é uma crian ça ad orável.” Ele sorriu para ela, ba lan çou a cabeça e b aixou o o lh ar para seu

brandy . Ele o levou consigo quando se levantou da cadeira novamente, voltou até a janela e ficoucontemplando a cidade. “Eu acredito em honra”, disse ele. “Nenhuma outra qualidade humana merece tanto ser exaltada. E procurei viver como um homem honrado. Mas é difícil. Porque a mai oria do s homen s não é h onrada. Para a mai oria, a hon ra é, na m elho r das hi pó teses, uma coisa 

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ultrapassada, e na pior uma ingenuidade nefasta.” Ele voltou a cabeça e nos deu um sorriso, mas umsorriso cansado. “Acho que a honra está em seu ocaso. Tenho certeza de que morrerá junto com oséculo.”

“Everett”, eu disse. “Se ao menos você pudesse...”Ele balançou a cabeça. “Não posso discutir nenhum pormenor sobre o caso de Trevor Stone

ou sobre o desaparecimento de Jay com você, Patrick. Simplesmente não posso. Só possorecom end ar que se lem bre do que lhe fal ei sobre ho nra e sob re as pessoas que não a têm. E que vocêprocure se virar com essa l ição .” Ele vol tou a sua cad eira, sentou-se nel a, girand o-a em di reção à jan ela.“Boa n oi te”, di sse.

Olhei para Angie, ela olhou para mim, e ambos olhamos para a nuca de Everett. Novamente vi seus olhos refletidos no vidro, mas desta vez eles não estavam voltados para minha imagem ,apenas para a dele próprio. Ele perscrutava a própria imagem fantasmagórica, ondulante,aprision ada no vid ro, entre o s reflexos das luzes de outros edi fício s, de o utras vida s.

Nós o deixamos em sua cadeira, olhando ao mesmo tempo para a cidade e para si mesmo,ban had o n o azul profundo do céu noturno.

 À porta, sua voz n os fez parar, e nel a d istingui um tom que n unca o uvira an tes. Ti nh a a mesma 

inflexão matizada pela sabedoria e pela experiência, pelo conhecimento e pelo brandy   dequalid ade, mas agora se podi a perceber um leve tom de m edo.

“Tenh am cuid ado na Flórida ”, di sse Everett Haml yn.“Nós não di ssemo s que ía mo s para a Fló rid a”, disse Angie.“Tenh am cuid ado ”, repetiu ele recostand o-se na cadeira p ara bebericar seubrandy . “Por favor.”

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 SEGUNDA PARTE  AO SUL DA F RONTEIRA 

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Eu nunca tinha viajado num jato particular, por isso não tinha elementos de comparação. Eu

não podia nem comparar aquela viagem a um passeio num iate ou a uma ilha particular, porquetambém não tivera n enh uma dessas experiências. A bem di zer, a única coisa “particular” que eu tin ha era meu carro, um Porsche 63 restaurado. Por isso... estar num jato particular era como estar em meucarro. Só que o jato era mai or. E mai s rápi do . E tinh a um b ar. E voava.

Zumbi e Nó-Cego nos pegaram em meu apartamento numa limusine azul-escura, quetambém era b em ma io r que m eu carro. Para fal ar a verdad e, era m aio r que m eu apartamen to.

Saindo de minha casa, pegamos a Columbia Road e passamos por muitos curiosos quecertamente se perguntavam quem estava casando ou que colégio estava promovendo um baile àsnove da manhã. Em seguida pegamos o trânsito pesado da manhã e fomos pelo túnel Ted

 Willia ms até o aerop orto.

Em vez de acompanhar o fluxo que levava aos grandes terminais, fizemos uma curva emdi reção à p on ta sul d o a erop orto, pa ssam os por vário s termi nai s de carga, armazéns de em ba lagemde al im entos, um h otel de q uem n unca ouvira falar e paramos na sede d a Gen eral Avia tion .

Quando Zumbi entrou na sede, eu e Angie vasculhamos o minibar, enchemos nossos bolsosde suco de laranja e de amendoim e consideramos a possibilidade de surripiar duas taças dechampanhe.

Zumb i vo ltou, seguid o d e um sujeito baixin ho que correu até uma mi ni van ama rela e ma rromcom as pal avras PRECISION AVIATION escritas do l ad o.

“Quero uma li musine”, eu disse a Angie.

“Não i a ser fácil estacion á-la na frente de seu prédio .”“Eu não ia precisar mais de meu apartamento.” Inclinei-me para a frente e perguntei a Nó-Cego: “Esse troço tem closets ?”.

“Tem p orta-ma las”, di sse ele sacudi nd o o s om bros. Voltei-me pa ra Angie e disse: “Ele tem um porta-m al as”.Seguim os a va n até uma guarita. Zumb i e o mo torista d a va n saíram, m ostraram suas licenças

para o guarda. Este anotou os números num bloco de anotações e entregou um passe a Zumbi, que ocolocou em cima do painel da limusine quando voltou. A cancela laranja à nossa frente se ergueu,passamo s pela guarita e en tramo s na p ista.

 A va n, seguida de p erto p or nós, co nto rnou um pequeno edifício e depoi s avan çou p or uma passagem entre duas pistas; muitas outras se estendiam à nossa volta, a fraca luz de suas lâmpadasbrilhando sob o orvalho matinal. Vi aviões de carga, jatos brilhantes e pequenos hidroaviõesbrancos, caminhões de combustível, duas ambulâncias paradas, um carro de bombeiro, outras trêslimusines. Era como se acabássemos de entrar num mundo até então escondido, que exalava prestígio e poder, e vidas importantes demais para se deixarem aborrecer por meios de transportenormais ou por algo banal como horários programados por terceiros. Estávamos num mundo emque uma poltrona de primeira classe num avião das linhas comerciais era considerada de segunda classe, e os verdadeiros corredores do poder estendiam-se à nossa frente, delimitados por luzes deaterrissagem.

 Adi vinh ei qual era o jato de Trevor S ton e an tes de pararmo s na frente dele. Ele se d estacava 

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mesmo entre Cessnas e Lears. Era um Gulfstream branco com o nariz fino e inclinado doConcorde, com linhas tão aerodinâmicas como as de uma bala, asas que mal se destacavam da fuselagem, cauda em forma de barbatana dorsal. Uma máquina de aspecto traiçoeiro, um falcãobranco em com pa sso d e espera.

Tiramos nossa bagagem da limusine, e outro funcionário da Precision tomou-a de nossasmão s e colo cou-a no b agageiro do avi ão, perto da cauda.

Eu di sse a Zumb i: “Quan to custa m ais ou men os um j ato como esse? Uns sete mi lh ões?”Ele deu um risinh o.“Ele está ach an do graça”, eu di sse a Angie.“Está mo rrend o d e rir”, disse ela .“Acho que o senho r Stone p agou vin te e seis mi lh ões po r este Gulfstream.”Ele falou “este” com o se houvesse m ais alguns na garagem d e Ma rbl ehead .“Vinte e seis”, repeti, cutucand o Angie. “Apo sto com o o vend edor estava ped in do vin te e oito,

ma s eles con seguiram um d escon to.”Uma vez a bordo, conhecemos o capitão Jimmy McCann e seu co-piloto, Herb. Formavam

uma bela dupla, sorrisos enormes e sobrancelhas cerradas por trás de óculos espelhados. Eles nos

garantiram que estávamos em b oas mã os, que nã o precisávam os no s preocupar, que já estavam h avia alguns meses sem n enh um a cid ente, ha, ha, ha. Humo r de p il oto. O melho r no gênero. A gente nãose can sa de ouvir.

Deixamos os dois brincando com seus relógios e suas alavancas e imaginando diversasman eiras de n os fazer gritar e perder o con trol e do s esfín cteres, e vol tamos para o co mp artim entoprincipal.

Ele tamb ém m e pa receu mai or que o meu apartamen to, mas talvez eu estivesse im pressio nad odemais.

Havia um bar, um piano, três camas de solteiro na parte de trás. Havia um chuveiro no

ban hei ro. O soalh o era forrado de um grosso carpete cor de lava nd a. Havia seis pol tron as de couroenfil eiradas do l ado di reito e d o l ado esquerdo , e duas delas tin ham mesas de cerejei ra fixad as à sua frente. Tod as as po ltronas reclinavam como uma cadeira d o pap ai.

Cinco poltronas estavam vazias. A sexta estava ocupada por Graham Clifton, tambémconh ecido com o Nó -Cego. Eu nem o vi sair da l im usin e. Ele estava sentado di ante de n ós, com umbl oco d e apo ntamentos encadernado em couro n o col o, e sob re este uma caneta com a tampa.

“Senh or Cli fton”, eu di sse. “Eu não sabi a q ue o senhor vin ha cono sco.”“O senhor Stone achou que talvez vocês precisassem de reforço quando chegassem lá.

Conh eço bem aquela região da Flórida.”“Normalm ente a gente não precisa d e reforço”, disse Angie sentand o-se à frente del e.Ele sacudi u os om bros. “O senh or Stone i nsistiu.”Peguei o fon e do consol e de m in ha po ltron a. “Bem, vamo s ver se conseguim os fazer o senho r

Stone m udar de id éia.”Ele tom ou o telefone de m inh a mão e recolocou-o no console da m inh a po ltrona. Para um

ho mem tão ba ixo, ele era muito forte.“O senh or Stone nã o m uda d e idéi a”, di sse ele.Fitei seus ol hi nh os pretos, e a úni ca coisa que vi foi a mi nh a im agem refletida n eles.

Era uma h ora quand o aterrissam os no aeropo rto Tam pa Internatio nal , e senti o cal or abafad oantes que as rodas tocassem a pista, aliás, sem o menor solavanco. O capitão Jimmy e o co-piloto

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Herb podiam parecer uns tontos, e talvez fossem isso mesmo em todos os outros aspectos de suas vida s, mas pela forma como pilotaram o avião na decol agem , na aterrissagem e durante uma turbulência sobre a Virgínia, concluí que eles eram capazes de aterrissar um DC-10 na ponta de umláp is em mei o a um tufão.

 A prim eira coisa que m e ch am ou a aten ção na Flórida, depois d o cal or, foi a o ni presença d o verde. O Tam pa Internatio na l parecia ter em ergid o no meio de um man gueza l, e para ond e querque eu olhasse, via matizes de verde — o verde-escuro das folhas do próprio manguezal, o verde-acinzentado e úmido de seus caules, as pequenas elevações gramadas que margeiam as rampas deacesso e de saída do aeroporto, os brilhantes bondes verde-azulados que cruzavam os terminaiscomo alguma coisa saída de Blade runner , se o filme fosse di rigid o po r Walt Disney.

Então m eus olh os se vol taram pa ra o céu, e vi um tom d e azul que nunca tin ha visto a ntes, tão vivo e tão brilhan te, con trastando com os arcos branco s da auto-estrad a, q ue eu seria cap az de jurartratar-se de uma pintura. São tons, pensei, enquanto piscávamos por causa da luz que penetrava emondas pelas janelas do bonde, que eu nunca vi tão agressivos desde a decoração dos nightclubs  demead os da décad a de 80.

E a umidade. Puxa vida, eu tinha aspirado boa quantidade dela quando saímos do jato, e era como se uma esponja quente tivesse aberto um buraco em meu peito, indo encravar-se em meuspulmões. A temperatura em Boston estava em torno de zero grau quando partimos, e nos parecia quase quente depois de um inverno tão longo e rigoroso. Ali fazia vinte graus, talvez mais, e a grossa camad a de umida de p arecia fazer a temperatura aumen tar ma is uns vin te graus.

“Tenh o q ue pa rar de fumar”, di sse Angie q uand o ch egam os ao termi nal .“Ou de respi rar”, eu disse. “Ou uma co isa, ou outra.”

Naturalm ente, Trevor tinh a p rovi den ciad o pa ra q ue um carro no s esperasse n o aerop orto. Era 

um Lexus bege de quatro portas com placa da Geórgia, tendo ao volante o sósia sulista de Zumbi.Ele era al to e m agro e teria entre cin qüenta e n oven ta ano s de id ade. Era chama do de sr. Cushi ng eme d ava a imp ressão d e nunca em sua vid a ter sid o chama do pel o p rim eiro no me. Até seus pai s comcerteza o chamavam de sr. Cushing. Estava de terno preto e boné de motorista, naquele calor terrível,mas quando abriu a po rta para Angie e para mim, vi que sua p ele estava m ais seca do que talco . “Boa tarde, senh orita Genn aro e senh or Kenzie. Bem-vi nd os a Tam pa .”

“Boa tarde”, respondemos.Ele fechou a porta, e lá ficamos nós desfrutando o ar condicionado, enquanto ele dava a volta 

e abria a porta do passageiro para Nó-Cego. O sr. Cushing sentou-se ao volante e passou três

envelo pes para Nó -Cego, que n os passou um del es.“As chaves de seu hotel”, informou o sr. Cushing enquanto dava partida no carro. “A senhorita Gen naro vai ficar na suíte 611, e o senh or Kenzie, na 612. Senh or Kenzie, aí há tamb ém a s cha ves deum carro que o senho r Stone al ugou pa ra o senh or. Ele está n o estacio nam ento d o h otel. O númeroda vaga no estacio nam ento está no verso d o envel op e.”

Nó-Cego l igou um l aptop d o taman ho de um l ivro de b ol so e ap ertou alguns botões. “Vamosficar no Harbor Islan d Ho tel”, disse ele. “Por que não va mo s tod os tomar uma ducha pa ra d epo is irao Courtyard M arrio tt, ond e se supõ e que o tal Jeff Price fico u?”

Consultei Angie com um ol ha r. “Boa id éia.”Nó-Cego balançou a cabeça, e seu laptop emitiu um bip. Inclinei-me para a frente que vi que

ele acessara um mapa de Tampa, que estava na tela. Sob meus olhos o mapa se subdividiu em uma 

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série de zonas quadriculadas que foram se estreitando e se reduzindo cada vez mais, até ummo men to em que um po ntin ho tremeluzente — e q ue ded uzi ser o Courtyard Marrio tt — apareceuno mei o d a tela e as lin ha s à sua volta se encheram d e no mes de ruas.

Eu estava esperando ouvir, a qualquer momento, uma voz gravada dizendo qual seria nossa missão.

“Esta fi ta se autodestruirá em três segundos”, eu disse.“O quê?”, disse Angie.“Nada, não.”

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Harbor Island parecia ser obra humana, e relativamente nova. Situava-se à saída do centro

 vel ho, e chegam os até lá depois d e cruzar uma pon te branca nã o mai s co mprid a que um ôni buspequeno. Havia restaurantes, várias lojas e a marina que brilhava como ouro ao sol. Tudo parecia mo delad o segund o um m otivo coralino do Carib e: por toda parte o b ranco ob tido com jatos deareia, estuques marfim , alam eda s recob ertas com fragmentos de conch as.

Quando estávamos chegando ao hotel, um pelicano mergulhou em alta velocidade emdireção ao pára-brisa, Angie e eu nos abaixamos, mas o estranho pássaro, aproveitando um ventofavorável, se dei xou levar pa ra o alto da estacaria junto ao emb arcado uro.

“Esse aí era do s grandes”, di sse Angie.“E era m arrom de d oer.”“Parecia um ani mal pré-histórico.”

“Tam bém não gosto d esses.”“Ótimo”, disse ela. “Eu nã o q ueria m e sentir uma tonta.”O sr. Cushing nos deixou na porta do hotel, os carregadores pegaram nossas bagagens, e um

deles disse: “Por aqui, senhor Kenzie, senhorita Gennaro”, ainda que não nos tivéssemosapresentado.

“Venh o enco ntrar vocês em seus quartos às três”, di sse Nó -Cego.“Certo”, fal ei.Nós o dei xamos con versand o com o sr. Cushi ng, seguim os no sso bronz eadí ssim o carregado r

até o elevad or e subim os pa ra os no ssos quartos.

 As suítes eram enorm es, com vista para a baí a de T am pa e p ara as três pontes q ue se elevavamsob re sua água d e um verde leitoso, cin tilan do sob o sol , tudo tão bon ito, tão perfeito e tão tranq üil oque me perguntei q uanto tempo eu levaria p ara vom itar.

 Angie p assou pel a p orta d e comuni cação entre as duas suítes, e fo mos p ara a sacad a, fech an doatrás de nó s as portas corredi ças de vidro.

Ela trocou seu mo delito p reto básico d e citadina po r um j eans azul-claro e uma bl usa tom ara-que-caia b ranca, de jérsei, e tentei afastar meus ol ho s e mi nh a m ente dos seio s de Angie, mod elad ospel a roupa , para pod er me concentrar no caso.

“Daq ui a quanto tem po vo cê quer se ver livre de Nó-Cego?”, perguntei.

“Mais rápido do que imediatamente”, disse ela debruçando-se sobre o parapeito, fumandocalmamente o seu cigarro.“Estou desconfi ad o deste quarto”, eu di sse.Ela b ala nçou a cabeça. “E do carro a lugado .”

 A luz do sol il umin ava os reflexos acaj u de seus cabelos, escon dido s, desde o fim do últim o verão, pel os di as sombrios. O calor afo gueava-l he as faces.

Ta lvez o lugar não seja tão ruim .“Por que Trevor de repente resolveu no s pression ar?”“Está se referin do a Nó -Cego?”“E Cushin g.” Indi quei co m um gesto o quarto às no ssas costas. “E tod a essa merda.”

Ela sacudiu os om bros. “Ele está pi rando p or causa de Desiree.”“Talvez.”

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Ela se vol tou e se recostou no pa rapei to, tend o a b aía com o p ano de fund o, o rosto levan tadopa ra o sol . “Além di sso, você sabe co mo é essa gente rica.”

“Não”, eu di sse. “Não sei.”“Bem, é como se você fosse sair com uma ...”“Espere um p ouco, deixe-me p egar uma caneta para an otar.”Ela jogou a cinza do cigarro em mim. “Eles ficam o tempo todo querendo impressionar,

mostrando que basta um estalar de dedos para ter o mundo a seus pés, que conseguem prever eatender a tod os os no ssos supo stos desejos. Então você sai, e os criad os ab rem-l he a p orta d o carro, osporteiros abrem outras portas, os garçons puxam sua cadeira, e o cara rico pede o prato para você.Com isso imaginam que você se sente muito bem, mas na verdade você se sente mesmo éescravizado, como se você não tivesse vontade própria. Ou então”, continuou ela, “pode ser outra coi sa, no no sso caso: T revor quer nos mo strar que colo cou tod os os seus recursos à nossa disposição.”

“Mas mesmo assim você não con fia n o q uarto n em n o carro al ugado.”Ela bala nçou a cabeça. “Ele está acostumad o com o p od er. Com certeza não confi a em q ue os

outros po ssam fazer o q ue ele p róprio faria se não estivesse do ente. E com o Jay d esapareceu...”“Ele quer estar in teirado de todo s os nossos mo vim entos.”

“Exatamente.”Eu disse: “Eu gosto do cara e tudo o mais...”.“Mas tanto p io r para ele”, ela conco rdo u.

O sr. Cushing estava ao lado do Lexus quando paramos para olhar pela janela do primeiroand ar. Logo ao chegar, dei uma o lh ada n o estacio nam ento e constatei que a saíd a era do outro ladodo ho tel, e dava p ara uma ruela ch eia d e lojas. De on de Cushi ng estava, não po di a ver a saída n em a po ntezinha d e acesso à il ha.

Nosso carro era um Dodge Stealth azul-claro e fora alugado de uma empresa chamada PrestigeImp orts, situada no Dale Mab ry Boulevard. Pegam os o carro, saímo s do estacio nam ento e dep oi s deHarbo r Islan d.

Com um mapa no colo, Angie ia me indicando o caminho. Entramos no Kennedy Boulevard, p assamo s pelo Dale Mab ry e seguim os pa ra o no rte.

“Tem um mo nte de casas de penh ores”, di sse Angie o lh ando pela jan ela.“E de pequenos centros comerciais”, eu disse. Metade deles de portas fechadas. Os outros são

recentes.”“Por que diab o não reabrem o s fechad os em vez d e con struir outros?”“É um mistério”, respondi.

 A Flórida que víramos até aq uele momento correspo ndia à Flórida do s cartões-postai s —coral, man guezais, pal mei ras, águas cintilantes e peli cano s. Mas enq uanto percorríam os Dale Mab ry po r pelo meno s vinte e cinco q uil ôm etros, os mais plan os que percorri em toda a m inh a vid a, comsuas oito pistas que se prolongavam infinitamente, através de fortes ondas de calor, rumo à camp ânula azul d o céu — eu me p erguntava se aquela não era a verdad eira Flórid a.

 Angie estava certa quan to às casas de penhores, e eu estava certo q uan to ao s pequenos centroscomerciais. Havia pelo menos um em cada quarteirão. E havia também bares com nomes sutiscom o T etas, Melões e Bumb um — en tremead os por lan chonetes de  fast-f ood  tipo drive-through e atélojas de bebidas do mesmo tipo, para beberrões em trânsito. Uma paisagem onde abundavam

também camp in gs, concessio nárias de trail ers e mais lojas de carros usado s do q ue eu jam ais vira na auto-estrada de Lynn.

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 Angie puxou a cin tura de sua cal ça. “Puxa vida, com o essa calça esquenta.”“É só tirar.”Ela ligou o ar-condicionado, apertou o botão que havia entre nossos bancos, e as janelas

automáticas se fecharam.“Que tal?”, disse ela.“Continuo achan do mi nh a idéia melh or.”

* * *

“Vocês não gostaram do Stealth?”, perguntou Eddie, da locadora de automóveis, parecendodescon certado. “To do m und o gosta do Stealth.”

“Acredito”, di sse Angie. “Mas estamo s querend o uma co isa que dê m eno s na vista.”“Uau!”, exclamou ele no momento em que outro funcionário passava pelas portas de vidro

atrás dele. “Don , eles não gostam d o Stealth.”Don franziu o rosto queimado de sol e olhou para nós como se tivéssemos caído de Júpiter.

“Não gostam do Stealth? T odo mundo gosta do S tealth.”

“Foi o que ouvim os di zer”, falei . “Mas ele não atende à s nossas necessid ades.”“Bom , o q ue é q ue vocês estão q uerendo ? Um Edsel?”, perguntou Don .Eddie adorava aquele carro. Ele bateu com a mão no balcão, e ele e Don fizeram uns ruídos

estranhos que só p osso q ualifi car como zurros.“O que estamos querendo”, disse Angie, “é um carro algo parecido com aquele Celica verde

que está ali n o estacionam ento.”“O conversível?”, perguntou Edd ie.“Seria perfeito”, disse Angie.

Levamos o carro tal com o estava, ain da que estivesse precisand o d e com bustível e d e uma bo a lavagem. Dissemos a Don e a Eddie que estávamos com pressa, e eles pareceram ainda maisperplexos com i sso d o q ue com n osso d esejo de trocar o Stealth.

“Pressa?”, disse Don enq uan to com parava os da do s de n ossas carteiras de m otorista com os queconstavam do formulário pa ra con trato preenchi do pel o sr. Cushi ng.

“Si m”, eu di sse. “É quando a gente tem urgência de i r a algum lugar.”Para minha grande surpresa, ele não me perguntou o que significa “urgência”. Simplesmente

deu de om bros e me passou as cha ves.

Paramos num restaurante chamado Crab Shack para dar uma olhada no mapa e elaborar umplano.“Este cam arão está in acreditável”, disse Angie.“Este caranguejo tamb ém”, eu di sse. “Experim ente.”“Experimente o cama rão tamb ém.”Experim entamo s, e o camarão d ela estava realm ente muito suculen to.“E barato”, di sse Angie.O restaurante era uma modesta cabana de tábuas, com mesas esburacadas e arranhadas, comida 

servid a em p ratos de papel, e a cerveja, trazida em vasilh ames de pl ástico, servid a em cop os de pap el. Ma s a com id a era melhor que a mai oria do s frutos do mar que me serviram nos restauran tes de

Boston, p or um q uarto d o p reço q ue eu costuma va p agar.Estávamos instalados à sombra do alpendre atrás do restaurante, de frente para um mangue

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 verdej an te q ue se estend ia por uns cem metros até os fundos de um... po is é, centro comercial. Umpássaro branco, de pernas compridas como as de Angie e pescoço combinando, pousou noparapeito do alp endre e ficou olh ando para a nossa comi da.

“Meu Deus”, di sse Angie. “Que d ia bo é i sso?”“É uma garça-real ”, eu di sse. “É inofen siva.”“Com o você sabe?”“ National Geog raphic .”“Ah. Tem certeza de que é inofensiva?”“Ange”, eu disse.Ela d eu de omb ros. “Tá b om , sou um b ich o d a cid ade. Me p rocesse.”

 A garça-real pulou d o parap eito e pousou p erto de meu co tovelo; sua cab eça fina estava na altura d os meus omb ros.

“Meu Deus”, di sse Angie.Peguei uma perna de caranguejo e joguei por cima do parapeito; a asa da garça bateu em

mi nh a orelha quando ela al çou vôo pa ra em seguid a mergulh ar na água.“Parab éns”, disse Angie. “Agora vo cê a a costumo u mal .”

Peguei m eu prato e m eu cop o. “Vamos.”Entram os e começam os a estudar o m apa enq uanto a garça-real, que tin ha vol tado, no s ol ha va 

através da vidraça. Quando conseguimos fixar um itinerário, dobramos o mapa e terminamos decomer.

“Você acha q ue ela está viva?”“Não sei.”“Eu também n ão. Não sabem os grand e coisa, não é?”

 Vi a garça-real estica r o p escoço para me ver melhor através da vi draça .“Não”, eu di sse. “Mas n ós aprend emo s rápi do .”

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Nenhuma das pessoas com as quais conversamos no Courtyard Marriott reconheceu Jeff Price

ou Desiree a partir das fotos que lhes mostramos. Eles foram absolutamente categóricos, tanto maisque Nó-Cego e o sr. Cushi ng lh es tinh am mo strado as mesmas fotos meia ho ra an tes de ch egarmo sao motel. Nó-Cego, como bom sacana puxa-saco que era, tinha até deixado um bilhete com opo rteiro d o M arrio tt, sol icitando a no ssa presença n o b ar do Harbor Hotel às oito h oras.

Fomos a mais alguns hotéis das redondezas, mas logo nos cansamos de ver tantos olhares vazios e vol tamos para Harbor Islan d.

“Não estamos em nossa cidade”, disse Angie quando estávamos descendo de elevador para obar.

“Não mesmo.”“E isso me deixa louca. Não adianta nada a gente estar aqui. Não sabemos a quem procurar,

não temos nenhum contato, não temos nenhum amigo. A única coisa que podemos fazer é rodarpo r aí com o uns id io tas mo strand o a tod o mundo essas fotografias estúpi das. Ai, m eu saco.”

“Saco?”, falei.“Saco”, repetiu ela.“Oh”, fiz eu. “Entendi. Por um instante pensei que você estava dizendo meu saco.”“Cala a b oca, Patrick.” Ela saiu do elevador, e eu a segui a té o b ar.Ela estava certa. Não tínhamos o que fazer ali. Aquela pista não levava a nada. Era estúpido

 voar ma is de doi s mil q uilô metros simplesmen te po rque o cartão d e crédito d e Jeff Price fora usadonum h otel d uas seman as antes.

 Mas Nó-Cego n ão conco rdou. Nós o enco ntram os no b ar, sentado p erto d e uma jan ela com vista p ara a baí a, com um copo de dai quiri à sua frente, on de se via uma m istura azulad a. O m exedorde p lástico cor-de-rosa mergulh ado no copo tinha a p onta em forma de flam in go. A mesa ficava entre duas palmeiras de plástico. As garçonetes usavam camiseta amarrada sob os seios e short delycra preto tão ap ertado q ue não dei xava dúvida q uand o à existência (ou falta) da cal cinh a.

 Ah, o paraíso... Só estava fal tando o Julio Iglesias. E eu tin ha a impressão de que ele nã odem oraria a chegar.

“Não é p erda de temp o”, disse Nó-Cego.“Você está falando sobre seu drin k ou sobre essa vi agem?”, perguntou Angie.

“Os dois.” Ele empurrou o flamingo com o nariz, tomou um gole da bebida e, usando oguardanap o, enxugou o bi gode, que ficara a zul. “Amanh ã va mo s nos separar para vasculh ar tod os osho téis e motéis de Tamp a.”

“E quando a gente der conta d e todos?”Ele estendeu a mão até o pratinho de nozes-macadâmia à sua frente. “Aí a gente vai procurar

no s de S t. Petersburg.”

E assim foi .Durante três dias, vasculhamos Tampa, depois St. Petersburg. E descobrimos que algumas

partes das duas cid ades não eram tão estereotip ada s com o a experiên cia d e Harbo r Islan d n os levara a imaginar, nem tão feias como o que vimos quando percorremos Dale Mabry. O Hyde Park de

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Tampa e o Old Northeast em St. Petersburg eram bem agradáveis, com suas ruas pavimentadas comped ras e casas no estilo suli sta, rod eadas de varandas somb readas por velh as figueiras-de-b engala. E aspraias de S t. Pete eram deslumb rantes, desde que se pudessem ignorar os extravagan tes cabelo s azuis eos cicli stas suarentos e queim ad os do sol .

Fin alm ente encon tram os uma coisa que nos agrado u. Mas não encontram os Jeff Price, nem Desiree, nem Jay Becker.E o peso de nossa paranóia, se é que se tratava mesmo de paranóia, estava começando a nos

cansar. To da n oi te a gente estacion ava o Celica n um lugar di ferente, e tod a man hã o examináva mo spara ver se tinha algum emissor de sinais para rastreamento e não achávamos nada. Não nospreocupá vamo s com po ssívei s aparelho s de escuta po rque o carro era con versível . O vento, o rádi oou os dois se encarregaria m de m ela r, pa ra efei to de escuta, as no ssas conversas.

 Além disso, era uma sensação muito estran ha nos sentirmos vigiados o temp o tod o, quasecom o se estivéssemo s aprision ado s num filme q ue tod os viam , menos nó s.

No terceiro dia, Angie desceu até a piscina do hotel para reler de ponta a ponta o dossiê docaso, e eu levei o telefon e até a sacada, exami nei -o p ara ver se estava gram pead o e l iguei p ara Rich ieColgan n a seção de notícias locais do Bost on Tribune .

Ele atendeu o telefone, ouviu min ha voz e me d eixou na espera. Si mp áticos, esses ami gos.Sei s and ares abaixo, Angie, ao lado de sua chaise-longue , tirava o sho rt cinza e a cami seta branca,

expo ndo à luz do d ia seu bi quín i p reto.Ten tei desviar o olh ar. E desviei . Mas sou fraco. E hom em.“O que você está fazendo?”, perguntou Richie.“Você nã o acredi taria se eu lh e con tasse.”“Experimente.”“Estou ol ha nd o mi nh a sócia pa ssar protetor sol ar nas pernas.”“Conversa.”

“É sério”, eu di sse.“Ela sabe q ue você está olh and o?”“Está brin cand o?”Naq uele instante Angie voltou a cabeça e o lh ou para a sacada .“Acab ei de ser descoberto”, eu disse.“Você está frito.”

 Mesmo da quela d istân cia, deu para ver o sorriso d e Angie. Seu rosto ficou voltado para o meupo r um i nstante, depo is ela b ala nçou a cabeça d evagar, voltou a se concen trar no q ue estava fazend oe passou protetor sol ar nas pa nturrilh as.

“Meu Deus”, eu disse. “Isso aqui é m uito q uente.”“Onde você está?”Eu di sse a el e.“Bem, tenh o n ovi dad es pra você”, di sse ele.“Por favor, vá faland o.”“A empresa Libertação da Dor abriu um p rocesso con tra o Tribune .”Recostei-m e na cadeira. “Você já p ubl icou algum artigo sobre o caso?”“Não”, di sse ele. “Aí é que está. As in vestigações que fiz fo ram as ma is di scretas possíveis. Não h á 

como eles saberem que eu os estava investigando.”“Mas eles sab em.”“Sim. E eles não estão para brincadeira. Querem nos levar perante um tribunal federal por

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in vasão d e p rivaci dad e, roubo in terestadual...”“Interestadual?”, perguntei.“Isso mesmo. Muitos de seus clientes não vivem em Massachusetts. Naqueles arquivos há 

in formações sob re cli entes do Mei o-Oeste e d o Nordeste do paí s. A rigor, Angie roubou informaçõesque ultrapassam as fron teiras do estado .”

“Uma puta fo rçação de ba rra”, comen tei.

“Claro que é. E eles vão ter de provar que os disquetes e mais um monte de porcaria estãocom igo. Mas eles devem ter com prado um j uiz, po rque às dez da m anh ã de h oj e meu edi tor recebeuuma o rdem proib in do a publi cação de qualq uer artigo sobre a Libertação da Dor com in formaçõesque sejam exclusivas do s disquetes.”

“Bom , então el es estão em suas mão s.”“Com o assim ?”“Se eles não têm mais os disquetes, não podem provar o que há neles. E mesmo que eles

tenham tudo gravado no disco rígido, não podem provar que o que está aí é o mesmo que está nosdisquetes, certo?”

“Exato. Mas aí é que está a manha da proibição. De nossa parte, também não podemos provar

que o q ue publi camo s não estava contido nos disquetes. A menos que fôssemos estúpidos o bastantepa ra apresentá-lo s, claro, e nesse caso eles se tornariam i núteis.”

“Uma puta sinuca de b ico.”“É isso aí .”“Mas isso está m e parecendo uma cortin a de fumaça, Rich. Se eles não p od em p rovar que você

está com os disquetes e nem ao m enos que os con hece, mais cedo o u ma is tarde algum j uiz vai d izerque eles não têm mo tivos legais em que se ap oi ar.”

“Mas temos de d esencavar esse juiz”, di sse Ri ch. “O que signi fica recorrer, quem sabe a pelar para um trib unal federal. O q ue leva tempo . Enq uanto isso, tenho de m e virar para arranj ar provas do q ue

está nos disquetes, valendo-me de outras fontes. Eles estão tentando nos neutralizar, Patrick. É issoque estão fazendo. E estão conseguindo.”

“Por quê?”“Não sei. E não sei como eles chegaram tão rápido até mim. A quem você contou sobre os

disquetes?”“A nin guém.”“Conversa.”“Rich ie”, eu di sse. “Não falei nem para m eu cliente.”“Por falar nisso, quem é o seu cli ente?”

“Ora, Rich ”, eu di sse.Houve um silêncio mo rtal na l inh a.Quando ele voltou a falar, sua voz era um sussurro. “Você sabe quanto custa comprar um juiz

federal?”“Um m onte de di nh eiro.”“Um monte de dinheiro”, disse ele. “E muito poder, Patrick. Andei me informando sobre o

supo sto chefe d a Igreja da Verdad e e d a R evelação , um sujeito cha mad o P. F. Nicho lson Kett...”“Sério? Esse é seu no me comp leto?”“É sim . Por quê?”“Nada”, eu di sse. “Que no me im becil .”“É, bem, P. F. Nicholson Kett é como um deus, um guru e um sumo sacerdote ao mesmo

tempo . E faz ma is de vin te anos que ni nguém o vê. Ele transmi te mensagens, po r mei o d e lacai os, de

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um i ate ancorado na co sta da Flórida , pelo que se diz. E ele...”“Fló rida”, eu di sse.“Isso mesmo. Escute, acho que esse cara é uma ficção. Acho que ele morreu há muito tempo e

ao que parece era p eixin ho mi údo . Era só um testa-de-ferro entron iza do po r alguém da Igreja.”“Nesse caso, quem é que dá as cartas?”“Não sei”, ele falou. “Mas com certeza não é P. F. Nicholson Kett. O cara era um bobão. Ex-

redator publicitário de Madison, Wisconsin, que escrevia roteiros de filmes pornográficos sobpseudônimo para completar a renda. O cara mal conseguia soletrar o próprio nome. Mas eu vialguns do cumen tário s e constatei q ue o sujeito tinh a carisma . E o olh ar de tod os os fanáticos, entrecomatoso e inflamado pela fé. Então alguém pegou esse sujeito com boa aparência e carisma e otransformou num deus de mentira. E tenho certeza de que esse alguém é o mesmo que quer me jogarum processo nas costas.”

Ouvi vários telefon es tocarem do outro lado da l in ha .“Ligue pra m im ma is tarde. Ten ho que ir.”“Até”, eu di sse, mas ele j á tin ha desligado .

Eu acabara de sair do hotel para entrar na aléia que serpenteava através de um jardim depal mei ras e de i nsóli tas araucárias. Avistei Angie sentada em sua cad eira, protegend o os ol ho s com a mão, olhando para um sujeito num short Speedo laranja tão sumário que compará-lo a uma tanga seria um desrespeito às tangas.

Do o utro l ado da pi scina , um o utro sujei to de S peed o a zul o s observava, e dava pa ra saber, pel osorriso em seu rosto, que o cara de Speed o l aranja era am igo d ele.

Sp eedo Laranj a segurava n a al tura d a cin tura reluzente uma garrafa d e Coron a j á p ela metade,uma rodela de limão flutuando na espuma, e quando me aproximei ouvi-o dizer: “Pelo menos

po dí am os con versar, não ?”.“Pod íam os sim ”, disse Angie. “Só que agora nã o estou a fim.”“Bem, você p od ia mudar o astral. Você está n a terra d a al egria e do sol , querid a.”Querid a. Que m ancad a.

 Angie se m exeu na cad eira e colo cou a p asta n o chão, ao la do da cad eira. “A terra d a al egria edo sol?”

“Si m!” O cara tomou um gole d e Corona. “Ei, você d evia estar usan do óculos escuros.”“Por quê?”“Para p roteger esses belo s olhos.”“Você gosta dos meus olhos”, disse ela num tom que eu conhecia muito bem. Corra, eu quis

gritar para o cara. Corra, corra, corra.Ele apo iou a cerveja n o q uadril. “Si m, são o lh os de felino .”“Felinos?”“Com o o s do s gatos”, disse ele incl in and o-se sob re ela.“Você gosta de gatas?”“Eu as ado ro”, disse ele com um sorriso.“Então você devia ir a uma loja de animais e comprar uma”, disse ela. “Porque tenho a 

impressão de que é a única gata que você vai conseguir esta noite.” Ela pegou o dossiê que estava nochão e abriu-o no colo . “Entende o que eu quis di zer?”

Cheguei à beira da piscina no momento em que Speedo Laranja recuou um passo, a cabeça in clinad a, a mão tão crispa da n o gargalo d a Coron a que as articulações estavam avermelh ada s.

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“É duro se recuperar de uma paulad a d essas, não é? ”, eu di sse ab rind o um sorriso radia nte.“Ei, sócio!”, disse Angie. “Você enfrentou o sol para vir me ver. Estou comovida. E você chegou

a vestir um short.”“E aí, resol veu o en igma?”, eu di sse agacha nd o-m e ao l ado da cad eira.“Neca. Ma s estou perto. S in to q ue estou perto.”“Balela.”“Certo. Você tem razã o.” Ela m e mo strou a l ín gua.“Sabe...”Levantei os ol ho s. Era S peedo Laranja, tremendo de raiva, apon tando o dedo para Angie.“Você aind a está aí?”“Sabe...”, repetiu ele.“Sim?”, di sse Angie.Os peitorais dele p ulsavam , crispavam-se, e ele ergueu a garrafa d e cerveja à al tura do o mb ro. “Se

 você nã o fo sse uma mulher, eu...”“A essa altura estaria no pronto-socorro”, eu disse. “E mesmo ela sendo mulher, você a está 

provocando.”

 Angie levan tou-se da cad eira e o enca rou.Ele respirava ruidosamente pelas narinas, e de repente deu meia-volta e voltou para junto do

ami go. Eles cochi charam en tre si e dep oi s no s lan çaram o lh ares raivo sos.“Você já sacou que meu temperamen to não tem n ad a a ver com este lugar?”, di sse Angie.

Fom os almo çar no Crab S ha ck. De novo .Em três dias, ele se tornara a nossa casa longe de casa. Rita, uma garçonete na casa dos quarenta 

ano s que usava um chap éu de caubói preto j á m eio gasto, meias de rede sob a calça jean s cortada na 

altura d os jo elh os, e fuma va charutos birman eses, se torno u nossa p rim eira am iga n o ped aço. Gen e,seu patrão e chef   do Crab Sh ack, estava a cam in ho de se tornar o segund o. E a garça-real do prim eirodia — o nome dela era Sandra, e ela se comportava muito bem, contanto que não lhe déssemoscerveja.

Nós nos sentamos no ancoradouro e ficamos contemplando o céu crepuscular tingir-sepouco a pouco de laranja, aspirando o cheiro do sal, e infelizmente também o de gasolina,enquanto uma brisa cálida acariciava nossos cabelos, agitava as campânulas no alto da estacaria eameaçava jo gar as páginas do no sso d ossiê n a água leitosa.

Na outra ponta do ancoradouro, quatro canadenses de pele vermelha feito pimentão e

horrendas camisas floridas devoravam pratos de peixe frito e comentavam em voz alta o azar quetiveram ao escolher um estado tão perigoso p ara acamp ar.“Prim eiro, todas essas drogas na p raia, nã o é?”, di sse um d eles. “E agora essa pobre mo ça.”

 As “drogas na praia ” e a “p obre mo ça” eram do que m ai s tratavam os jornai s locai s nos últim osdoi s dias.

“Oh, sim, claro”, cacarejou uma das mulheres do grupo. “Não seria pior se estivéssemos em Mi am i, essa é que é a verdad e, ahn.”

Na manhã seguinte à da nossa chegada, alguns membros de um grupo metodista de apoio às viúvas, que tin ham vindo de Michigan, em férias, estavam passeand o na p raia em Dunedi n quan do viram vário s saq uinhos de p lástico espalhad os na a ltura da linh a d e rebentação . Os saq uinhos eram

peq uenos, de diâm etro grand e e, com o se veio a descobrir, estavam chei os de heroín a. Ao m eio -di a,muitos outros foram d ar nas p raias de Clearwater e St. Petersburg, e corria m boa tos de q ue eles teriam

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chegado até Homosassa, bem mais ao norte, e a Marco Island, bem mais ao sul. A suposição da guarda costeira era que uma tempestade que se abatia sobre o México, Cuba e as Bahamas afundara um barco carregado de h eroí na, m as até aq uela a ltura n ão tinh am descoberto o lugar do n aufrágio.

 A hi stória d a “p ob re mo ça” fora di vulgad a n o di a anterior. Uma m ulher não i dentifi cad a fo ra morta a tiros num quarto de motel de Clearwater. Supunha-se que a arma do crime fora uma espingarda; o disparo fora feito à queima-roupa no rosto da mulher, dificultando a identificação.Um porta-voz da polícia informou também que o corpo fora “mutilado”, negando-se, porém, a dizer que tipo de mutilação. Segundo as primeiras estimativas, a mulher teria entre dezoito e trinta ano s, e a pol ícia de Clearwater estava tentand o i den tificá-la a partir da arcada d entária.

O primeiro pensamento que me veio à cabeça quando li a notícia foi:  Merda, Desiree . Masdepois de verificar em que região de Clearwater o corpo fora encontrado, e tendo traduzido a li nguagem cifrada d o no ticiário das seis ho ras, me pareceu evid ente que a vítim a certamen te era uma prostituta.

“Sem dúvida isto a qui é com o o Velho Oeste”, di sse um d os canad enses. “Sem tirar nem p ôr.”“Você tem razão , Bob ”, di sse sua m ulh er, mergulh and o um p edaço de garoupa numa tigela d e

molho tártaro.

 Aquele estado era estran ho, sem dúvida, mas de certo modo eu estava começan do a gostardele. Bem, na verdad e, eu estava começan do a m e afeiçoa r ao Crab Sh ack. Eu gostava de S and ra, deRita e de Gene, e também dos cartazes que ficavam atrás do balcão: “Se Vocês Gostam Muito dasCoisas de Nova York, Peguem a Rodovia I-95 em Direção ao Norte” e “Quando Eu Ficar Velho,

 Vou Muda r para o Can ad á e Vou Pod er Dirigir Bem Devagar”.Eu estava de camiseta regata e de short, e minha pele naturalmente branca feito leite já 

adquirira um agradável tom bege. Angie estava com seu biquíni preto e um sarongue multicor. Osreflexos de seus cabelos negros tin ha m fi cado ain da m ais claros.

Eu curtia m uito o sol, ma s aq ueles três últimos di as foram para ela uma d ád iva de Deus. Quan do

ela esquecia sua frustração com o caso, ou quando encerrávamos mais um dia de buscas infrutíferas,ela parecia relaxar e entregar-se ao calor, à beleza do s mangues e do m ar azul-escuro e à b risa ma rin ha .Ela deixou de usar sapatos, exceto quando estávamos em busca de Desiree ou Jeff Price; ela ia para a praia à noite, sentava no capô do carro e ficava ouvindo o murmúrio das ondas. Na hora de dormir,trocava a cam a d a suíte po r uma rede b ranca estend id a n a sacada.

 Meu olhar cruzou com o seu, e ela m e deu um sorriso que traí a ao m esmo temp o certa tristeza euma curio sid ade in tensa.

Por algum tempo deixamo-nos ficar assim, os sorrisos se apagando, olhos nos olhos,procurando um n o o utro respostas para perguntas nunca verbal izad as.

“Foi p or causa de Phi l”, di sse ela estendend o a m ão p or cim a da m esa pa ra pegar a mi nh a. “Meparecia um sacrilégio nós dois...”Fiz q ue sim com a cabeça.Seu pé sujo de a reia ani nh ou-se con tra o meu. “Sin to tê-lo feito sofrer.”“Não h ouve sofrim ento”, eu di sse.Ela ergueu uma sob rancelha.“Na verdad e foi uma do r”, eu di sse. “Umas pontadi nh as aqui e ali . Fiquei incomo dad o.”Ela levou minh a mão ao rosto e fecho u os olh os.“Pensei que vocês eram sócio s, não am an tes”, ouvim os uma voz gritar.“Com certeza é a Rita”, di sse Angie aind a de o lh os fecha do s.

E era m esmo . Rita, com seu im enso chap éu de caubói , as mei as de rede — vermelh as, naq ueledia —, trazendo nossos pratos de pitu, camarão e caranguejo. Rita achava o máximo nós sermos

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detetives. Ela queria porque queria saber de quantos tiroteios e de quantas perseguições tínhamosparticip ado , quantos ban did os nós tín ham os matado.

Ela colocou nossos pratos na mesa, depois tirou a garrafa de cerveja de cima do nosso dossiêpara ter on de col ocar os talheres de p lástico, e o vento m orno j ogou a pasta e os talh eres no chão .

“Meu Deus”, di sse el a.Levantei-me para ajudá-la, mas ela foi mais rápida. Pegou a pasta, fechou-a, segurou entre o

polegar e o indicador uma foto que caíra da pasta e que por pouco o vento não jogara dentro da água. Rita vol tou-se para nós, sorriu, a p erna esquerda ain da levan tada p or causa d o mo vim ento q uefizera para pegar a foto.

“Você está desperdiçando sua vocação”, disse Angie. “Você devia ser interbase na equipe dosYankees.”

“Namo rei um cara dos Yankees”, di sse ela ol ha nd o p ara a foto em sua m ão. “Era uma n egaçãona cama. Ficava faland o o temp o todo de...”

“Con tinue, Rita”, eu di sse. “Não p recisa ter vergonh a.”“Ei”, di sse ela, os olho s fixos na foto. “Ei”, repetiu.“O que é?”

Ela m e passou a pasta e a fotografia e correu pa ra d entro do ba r.Fiq uei ol ha nd o a fotografia q ue ela m e entregara.“O que aco nteceu?”, disse Angie.Passei-lhe a fo tografia.Ri ta voltou corrend o lá de d entro e m e passou um j ornal.Era um exemp lar do St. Petersburg Times daq uele di a, e ela o abrira na página 7.“Olhe”, disse ela ofegante. Ela m ostrou uma ma téria na metade i nferior da p ágina.

 A man chete di zi a: PRESO SUSPEITO DE HOMICÍDIO EM BRADENT ON.O nome do homem era David Fisher, e ele estava detido para ser interrogado sobre o

assassina to de um h om em n ão iden tificado n um quarto de m otel de Bradenton. Não havia muitosdetalhes sobre o caso, mas a questão não era essa. Bastou olhar para a foto de David Fisher para saberpo r que Rita a quis me m ostrar.

“Meu Deus”, disse Angie, olhando para a foto. “Esse é Jay Becker.”

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18 

Para ir a Bradenton, pegamos a 275 em direção ao sul, passando por St. Petersburg, depois

passamo s por uma po nte gigantesca cha ma da Sunshi ne S kyway, que atravessava um trecho do golfodo México, ligand o a região Tam pa/S t. Petersburg à de S arasota/Braden ton. A pon te tin ha do is vãos cujas formas pareciam ter sid o in spirada s em barbatan as do rsai s. À

distância, no momento em que o sol mergulhava no mar e o céu se tingia de violeta, as barbatanasdorsais pareciam ter sido pintadas de um dourado escuro, mas quando passamos pela ponte vimosque elas eram feitas de vários cabos amarelos convergentes, que formavam triângulos cada vezmenores. Na base desses cabos havia luzes que, combinadas com a luz do pôr-do-sol, davam àsnad adei ras um m atiz dourado .

 Meu Deus, como gostam de cores por estas banda s.“‘...o ho mem não id entificad o’”, li a Angie no jo rnal , “‘que teria uns trin ta anos, foi enco ntrado

em decúbito ventral no soalho do quarto do Isle of Palms Motel, com a faca que o matou ainda cravada no abdome. O suspeito, David Fisher, quarenta e um anos, foi preso no motel, no quarto

 vizi nh o ao da víti ma. A p ol ícia recusa-se a aventar hipóteses sobre o móvel do crim e e a expli car oque a levou a p rend er o senho r Fisher.’”

Segundo o jornal, Jay estava detido na cadeia de Bradenton, esperando a audiência — a serrealizad a naq uele di a mesmo — p ara determi nar o valor da fian ça.

“Que diabo está acontecendo?”, disse Angie quando saíamos da ponte, e o violeta do céu ia ficand o mai s escuro.

“Vamos perguntar a Jay”, falei .

Ele estava com um a specto h orrível .Seus cabelos castanho-escuros agora tinham mechas grisalhas, e as olheiras estavam inchadas

com o se ele tivesse pa ssado uma seman a sem do rmi r.“Bem, quem está sentado à minha frente é Patrick Kenzie ou Jimmy Buffett?” Ele me deu um

sorriso páli do ao en trar na sala reservada pa ra visitas e pegou o telefone d o o utro l ado da p arede d eplexiglas.

“Você quase não me recon hece, hein ?”

“Você está quase bronzeado. Eu não sabia que isso era possível com gente branquela como você.”“Na verdad e”, eu di sse, “isso é uma ma quiagem .”“A fiança, a ser paga imediatamente em dinheiro, é de cem mil dólares”, disse ele sentando-se

no compartimento fronteiro ao meu, encaixando o fone entre o queixo e o ombro, enquantoacendi a um cigarro. “De um total fixad o em um mi lh ão. Quem p resta a fian ça é um sujei to cham adoSi dney Merriam .”

“Quand o você com eçou a fumar?”“Há pouco temp o.”“A mai oria d as pessoas de sua id ade está parando de fuma r. Não com eçand o.”Ele piscou os olho s. “Não sou escravo da mo da.”“Cem m il dó la res”, eu di sse.

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Ele ba lan çou a cabeça e b ocejo u. “Cin co-quinze-sete.”“O quê?”, perguntei.“Armário 12.”“Ond e?”, perguntei.“Bob Dylan , em S t. Pete”, disse ele.“O quê?”“Pon ha a cab eça pra funcion ar, Patrick. Você vai achar.”“Bob Dylan em St. Pete”, falei .Ele lançou um olhar por sobre os ombros a um guarda magro e musculoso, com olhos de

diam ante negro.“Músicas”, disse ele. “Não á lb uns.”“Saq uei”, eu di sse, emb ora ain da n ão tivesse entendi do . Mas confi ei n ele.“Quer dizer que eles man daram vo cê”, di sse ele com um sorriso triste.“Quem m ais po deriam man dar?”, eu di sse.“É. Faz sentido.” Ele se recostou na cadeira, e a forte luz fluorescente do teto evidenciou ainda 

mai s com o el e tinh a em agrecido desde a última vez q ue eu o vira, doi s meses antes. Seu rosto parecia 

uma caveira.Ele se in clino u para a frente. “Tire-me daq ui, comp anh eiro.”“Vou tirar.”“Hoje à no ite. Aman hã , vamos às corrid as de cachorros.”“É mesmo? ”“Sim. Apostei cin qüenta dólares num magní fico greyho und , sabia?”

 Minha expressão certamente traí a perpl exida de, mas aind a assim fal ei: “Claro”.Ele sorriu, os lábios rachados por causa do sol. “Estou contando com isso. Sabe aquelas

reproduções de M atisse que vimos certa vez em Washi ngton? Elas não vão durar para semp re.”

Fiq uei trin ta segund os fitand o o seu rosto, e só então entendi .“Até mai s”, eu disse.“Hoje à noi te, Patrick.”

Quando atravessamos a ponte de volta, Angie estava ao volante enquanto eu consultava umma pa da s ruas de St. Petersburg que compram os num po sto d e gasol in a.

“Jay ach a então que vai ser id entificad o p elas im pressões digitais?”, di sse Angie.“Sim. Certa vez ele me disse que quando estava no FBI criou uma identidade para uso seu.

 Acho que é o tal David Fisher. Jay tem um am igo no arquivo da ctil oscópico de Quantico. Esseam igo cadastrou suas im pressões d igitai s duas vezes.”

“Duas?”“Sim. Não é uma solução, é só um band-aid. A polícia local manda suas impressões digitais

para Quantico, e esse amigo programou o computador para identificá-las como sendo de Fisher. Ma s só por uns po ucos d ias. Então o seu am igo, para sal var o em prego, vai ligar no vamente e d izer:‘O computador detectou uma coisa estranha. As impressões digitais correspondem também às deay Becker, que já trabalhou para nós’. Está vendo, Jay sempre soube que se algum dia entrasse em

alguma enrascada desse tipo , a úni ca esperança era ob ter a l ib ertação sob fi ança e sumi r do m apa.”“Quer diz er que estam os sendo cúmp li ces de sua fuga?”

“Mas seria preciso prová-l o no trib unal ”, eu disse.“Você acha que ele m erece?”

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Olhei para ela. “Si m.”Quando estávamos entrando em St. Petersburg, eu falei: “Diga o nome de algumas músicas de

Bob Dylan .”Ela ol ho u pa ra o m apa em m eu colo. “‘Highway Si xty One Revi sited.’”“Negativo.”“‘Leopa rd-S kin Pill -Box Hat.’”Fiz uma careta para ela.“O quê?” Ela fecho u a cara. “Tudo bem. ‘Positivel y Fourth S treet.’”Olh ei p ara o ma pa . “Você é genial ”, eu di sse.Ela ergueu o m icrofon e de um gravad or im aginário. “Você po de repetir isso ao mi crofone, por

favor?”

 A Fourth Street de St. Petersburg atravessava a cidad e de ponta a ponta. Isso da va uns trin ta quilôm etros. Com m uitíssim os guarda-vo lumes em toda a sua extensão.

 Mas só h avi a uma estação cham ad a Greyhound .

Param os no estacion amen to. Angie fi cou no carro, e eu entrei n a estação, achei o armário 12 edigitei o código da fechadura. Ele abriu logo de primeira, e eu tirei de dentro dele uma bolsa decouro esportiva. Não era muito pesada. Poderia estar cheia de roupas, e resolvi verificar quandochegasse ao carro. Fechei o armário , saí do termi nal , entrei n o carro.

 Angie entrou no vam ente na Fourth Street, e atravessam os um bai rro miserável, com ummo nte de gente tom and o a fresca na varand a, espa ntand o as moscas. Havia ban do s de crian ças po rtoda p arte, metade das lâm pa das dos po stes quebrada .

Pus a bol sa no colo e abri o zíp er. Passei um mi nuto inteiro o lh ando dentro d a b olsa.“Aumente um pouco a velocidade”, eu disse a Angie.

“Por quê?” Mostrei o co nteúdo da bolsa. “Porque aqui d entro tem pelo m enos duzen tos mi l d ólares.”Ela m eteu o p é no a celerado r.

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19 

“Meu Deus, Angie”, disse Jay. “Na última vez que a vi você estava parecendo Chrissie Hynde

di sfarçada d e Morticia Add am s, mas agora está no m aio r bron ze.”O funcion ário d a prisão col ocou um fo rmulário n a frente de Jay. Angie respo ndeu: “Você semp re soube lisonjear as mulh eres”. Jay assinou o formulário e devo lveu. “Estou fal an do sério . Eu nã o sabia que a pele de uma 

mulher branca pod ia ficar tão m orena.”“Seus objetos pessoais”, falou o funcionário enquanto esvaziava um envelope de papel

manilha no balcão.“Devagar”, di sse Jay quand o o reló gio q uico u no balcão. “É um Piaget.”O funcionário bufou. “Um relógio de pulso.  Pi-a-gê . Um prendedor de notas de ouro.

Sei scentos e setenta e cinco dó lares em cédulas. Um chavei ro. T rin ta e oi to centavos em m oed as...”Enquanto o funcionário verificava cada um dos objetos e os passava para Jay, este bocejava,

encostado à parede. Seus olhos iam do rosto às pernas de Angie, subiam até a bermuda jeans, obl usão d e mo letom rasgado , cortado na a ltura do s cotovelo s.

“Você não quer que eu dê uma vol tinh a pra você exami nar as min ha s costas?”Ele deu de ombros. “Eu estava p reso, mi nh a senho ra, queira me desculp ar.”Ela balançou a cabeça e abaixou a vista, escondendo o sorriso por trás dos cabelos que lhe

caíam sob re o rosto.Sabendo do que acontecera entre eles, eu tinha uma sensação estranha vendo-os juntos. Jay 

sempre lançava um olhar cobiçoso às mulheres bonitas, mas a maioria delas não se incomodava,

antes achava-o i nofensivo o u mesmo com um certo encanto, ainda mai s que ele o fazia d e forma tão ostensiva e pueril . Mas havi a m ais coi sas a serem vistas naq uela no ite. Enq uanto ele o bservava a minha sócia, notei que o rosto de Jay traía uma profunda exaustão e resignação, aparentava uma mel ancoli a que eu nunca vira antes.

Ela tamb ém d eve ter no tado, po is franziu os láb io s de um j eito esquisito.“Você está b em?”, perguntou ela.

 Jay desenco stou-se da parede. “Eu? Estou ótim o.”“Senh or Merriam ”, di sse o funcion ário ao h om em q ue pagava a fian ça. “O senh or deve assin ar

aqui e aq ui.”

O sr. Merriam, homem de meia-idade, trajava um terno branco para fazer-se passar por umentleman suli sta, emb ora fal asse com um l eve sotaque de Nova Jersey.“Com todo o prazer”, disse ele, e Jay revirou os olhos. Eles assinaram os documentos, e Jay 

pegou seus anéis e sua gravata de seda amarrotada, colocou os anéis no bolso e passou a gravata pelocolarinho da cami sa branca.

 Já fora do ed ifício, esperam os no estacion am ento que um p ol icial trouxesse o carro de Jay.“Você tem permissão pa ra dirigir aqui?”, perguntou Angie.

 Jay inspirou um pouco do úmido ar noturno . “Oh , são muito gentis por aqui. Depoi s d e meinterrogarem no motel, um velho policial me perguntou com toda a delicadeza se eu não meim po rtaria de acomp anh á-lo até a delegacia p ara respo nd er a algumas perguntas. Ele chegou a di zer:‘Se o senh or dispuser de temp o, nó s ficaremos muito gratos’, ma s na verdad e ele n ão estava ped in do ,

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se é q ue vocês me entendem .” Merriam deu um cartão a Jay. “Caso o senh or p recise novam ente de m eus serviços, teria muito

prazer...”“Certo”, disse Jay arrancando o cartão da mão do outro, depois contemplou os círculos azul-

claros tremeluzentes em vo lta da s lâm pad as amarelas que circund avam o estacionam ento. Merriam ap ertou a minh a mão , depois a de Angie, em seguida ava nçou a passos trôpegos

com o os de um b êbad o inveterado ou de uma p essoa com p risão de ven tre para seu Karman n G hi a conversível com a p orta am assada . O carro m orreu quando estava sain do do estacion am ento, e o sr.

 Merriam ficou de cabeça bai xa, desan im ad o, em seguida ligou o carro n ovam ente e foi embora. Jay di sse: “Se vocês n ão tivessem ap arecido por aq ui, eu i a ter de man da r esse  sujeito à estação

Greyhound. Vocês acreditam?”“Se você desaparecer, esse coitado não corre o risco de se arruinar financeiramente?”,

perguntou Angie.Ele acen deu um ci garro e olhou para ela. “Não se preocupe, Angie, eu previ tudo .”“Cla ro, Jay, é por isso q ue estam os tendo d e tirar você dessa en rascada.”Ele olhou para ela, depois para mim, e deu uma risada. Foi um ruído breve, áspero, que mais

parecia um rosnad o. “Puxa vid a, Patrick, ela te ench e o saco assim o tempo todo?”“Você parece esgotado , Jay. Nunca vi você assim.”Ele esticou os braços, movimentando os músculos entre as omoplatas. “Sim, bem, mas basta 

um b anho e uma b oa no ite de sono para me p ôr novinho em folha.”“Mas antes precisamos conversar”, eu di sse.Ele aquiesceu. “Vocês não viaj aram do is mi l q uil ôm etros até aqui só para pegar um b ron zeado ,

por mais maravilhoso que esteja.” Ele se voltou para apreciar o corpo de Angie ostensivamente, assob rancelha s arqueadas. “Puxa vid a, Angie, tenho que lhe d izer no vam ente: sua p ele está d a cor deum café que servem no Dunkin ’ Don uts. Ela me dá vontad e de...”

“Jay”, disse ela , “quer pa rar com isso? Não tem o men or cabi men to.”Ele p iscou os ol ho s e mudo u de a titude. “Tudo bem ”, di sse num súbi to tom de frieza. “Quand o você está certa, não há o q ue di scutir, Angela. Você está certa.”

Ele olh ou para mi m, e eu dei d e omb ros.“O certo é o certo”, di sse ele. “É o certo e pon to fin al .”Um Mitsubishi 3000 GT preto, com dois jovens policiais dentro, parou do nosso lado. Eles

 vinh am rindo , e os pneus cheiravam como se tivessem sofrid o fread as vio lentas havi a pouco.“Belo carro”, disse o que estava ao vol ante q uand o se ap roxim ou de Jay.“Você gostou dele?”, perguntou Jay. “Ele respon de b em?”

O po li cial d eu um risinh o, olh ando para o col ega. “Respo nde muitíssim o b em, parceiro.”“Ótim o. O vol ante nã o estava m eio duro q uand o você deu seus cavalos-de-pau?”“Vamos”, disse Angie a Jay. “Entre no carro.”“O volante está l eve como uma pena”, disse o p oli cial.O colega dele estava de pé ao meu lado, perto da porta do passageiro, que ele deixara aberta.

“Mas a suspensão está mei o m ol e, Bo.”“É verdade”, disse Bo, ainda no mesmo lugar, impedindo Jay de entrar no carro. “É bom

procurar um mecân ico pra d ar uma ol had a n os amo rtecedores.”“Obrigado pel o con selh o”, di sse Jay.O policial sorriu e afastou-se, dando passagem a Jay. “É bom dirigir com cuidado, senhor

Fisher.”“Lemb re-se de q ue carro n ão é brin quedo”, com pl etou o co lega.

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Os do is acharam tanta graça naq uil o que aind a estavam rin do q uand o entraram n o p rédi o.Eu não estava gostando nem um pouco do olhar de Jay, nem de seu comportamento desde

que fora libertado. Paradoxalmente, ele parecia ao mesmo tempo perdido e decidido, à deriva econcentrado, mas tratava-se de uma concentração raivosa, rancorosa.

Sen tei no b anco d o p assageiro. “Vou com vo cê.”Ele encostou no carro. “Seria mel ho r não.”“Por quê?”, perguntei. “Estamo s ind o p ara o m esmo l ugar, não é Jay? Para con versarmos.”Ele franziu os lábi os, expirou ruid osamente pelas narina s e me la nçou um ol ha r exausto. “Si m”,

di sse ele fin alm ente. “Claro, po r que não?”Ele entrou no carro, li gou o m otor, enq uanto Angie se dirigia a o Celi ca.“Pon ha o cin to d e segurança”, di sse ele.Eu pus, ele engatou a primeira e meteu o pé no acelerador, passando para a segunda numa 

fração de segundo, com o punho já flexionado para passar para a terceira. Passamos a toda a  vel oci dad e na ramp a de acesso ao estacio na mento, e Jay engatou a quarta q uan do os pneus ai nda estavam n o a r.

Ele nos levou a um bar-restaurante que fica aberto a noite inteira, no centro de Bradenton. Asruas próximas estavam desertas, parecendo não guardar nem lembrança de vida humana, como seuma bomba de nêutrons tivesse caído ali uma hora antes. As janelas escuras dos arranha-céus e dospoucos edifícios administrativos das vizinhanças pareciam nos espionar.

Não ha via quase ni nguém no restaurante, pelo visto, só gente que trabalh ava à no ite: um triode m otoristas de cam in hã o n o b alcão , flertando com a garçonete; um guarda de segurança com umdistintivo de uma certa Palmetto Optics no ombro, lendo um jornal e acompanhado apenas deuma xícara d e café; duas enfermeiras com uni formes amarrotado s, faland o n uma voz ba ixa q ue traía 

seu cansaço, não m uito l on ge de ond e estávamo s.Pedim os do is cafés e Jay, uma cerveja. Por um in stante os três nos concen tramo s no cardáp io .Quando a garçonete voltou com nossas bebidas, cada um de nós pediu um sanduíche, mas sem omen or entusiasmo .

 Jay co locou um cigarro ap agad o na boca e lan çou um ol har à jan ela q uan do um rai o fendeu océu e começou a chover. Não era uma chuvinha leve, nem daquelas que vão aumentando devagar.Num pi scar de ol ho s a rua seca, ba nh ada na luz laranj a d os po stes, sumi ra sob uma muralh a d e água.Em poucos segundos formaram-se poças borbulhantes nas calçadas, e as gotas de chuva martelavamo telha do de zinco d o restaurante com tod a a força. Ti nh a-se a im pressão d e que desabavam do céu

 vários carregam entos de moeda s.“Quem Trevor mandou acompanhar vocês até aqui?”, perguntou Jay.“Graha m Clifton”, eu di sse. “Tem tamb ém um outro cara. Cushin g.”“Eles sabem que vocês vieram m e tirar da cadei a?”Fiz que não com a cabeça. “Desde que chegamos aqui passamos todo o tempo despistando-

os.”“Por quê?”“Porque não gostam os deles.”Ele ba lan çou a cabeça. “Os jo rnai s revelaram a i den tidad e do sujei to que eu teria m atado?”“Não q ue a gente saiba.”

 Angie in clino u-se sob re a mesa e acendeu o ci garro d ele. “Quem era ele?” Jay aspi rou a fumaça do ci garro, mas não o ti rou da b oca. “Jeff Price.” Ele contem plou no vidro

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da j anela o reflexo d a p róp ria im agem: a chuva que corria em torrentes pelo vidro ab randava-l he o straços, dissol via-l he as maçãs do rosto.

“Jeff Price”, eu disse. “O ex-responsável pelos programas de terapia da Libertação da Dor. Foiesse Jeff Price?”

Ele tirou o cigarro d a b oca, bateu a cin za n o ci nzei ro p reto de p lástico. “Você fez o seu dever decasa, D’Artagna n.”

“Você o matou?”, perguntou Angie.Ele bebericou sua cerveja e nos fitou por sobre a mesa, a cabeça um pouco inclinada para a 

di reita, os ol ho s num mo vim ento inq uieto d e vai-e-vem . Deu ma is uma tragada, desvio u os olh os denós, acompanhando com o olhar a fumaça espiralada que subia do cinzeiro, pairando sobre osom bros de Angie.

“Sim, eu o m atei.”“Por quê?”, perguntei.“Ele era um h om em m au”, disse ele. “Muito, muito m au.”“Existem muitos hom ens maus por aí”, disse Angie. “E mulh eres tamb ém.”“É verda de”, disse ele. “Sem dúvid a. Mas esse Jeff Price merecia uma m orte muito m ais len ta que

a que lh e dei. Podem acredi tar.” Ele tomou uma b oa gol ada d e cerveja. “Ele tin ha d e pagar pel o q uefez. Ti nh a de pagar.”

“O que ele fez?”, perguntou Angie.Quando ele levou a garrafa de cerveja à boca, vimos que seus lábios estavam trêmulos. Ao

recolo car a garrafa n a m esa, suas mãos tremi am tanto q uanto os láb io s.“O que ele fez, Jay?”, repetiu Angie.

 Jay olhou para a j an ela n ovam ente. A chuva co ntin uava a m artelar o telh ad o e a agitar as poçasdas calçadas. Suas olh eiras escuras se tingiram d e vermelh o.

“Jeff Price m atou Desiree Ston e”, di sse ele, e uma única lágrim a l he caiu da p álp ebra, rol and o

pel o rosto.Por um i nstante, senti uma do r forte que me trespassou o peito e foi parar no estôm ago.“Quan do ?”, perguntei .“Há dois di as.” Ele en xugou o rosto com as costas da m ão.“Espere um pouco”, disse Angie. “Ela estava com Price esse tempo todo, e ele só resolveu matá-

la do is dias atrás?”Ele fez que não com a cabeça. “Ela n ão estava com Price tod o esse tempo . Ela o l argou há três

seman as. Nas duas última s seman as”, di sse ele d evagar, “ela estava com igo.”“Com você?”

 Jay an uiu e respirou fundo, para con ter as lágrim as. A garçon ete trouxe no ssa comida, mas mal a olham os.“Com vo cê  ?”, repetiu Angie. “Os dois...?”

 Jay fitou-a com um sorriso am argo no s lá bios. “Sim . Comigo . Acho que Desiree e eu nosapaixonamos.” Ele riu, mas só com metade da boca; a outra metade parecia sepultada na garganta.“Côm ico, não? Vim para cá contratado para matá-la e termi nei m e apai xonand o p or ela.”

“Espere aí”, eu disse. “Você foi contratado para matá-la?”Ele fez que sim .“Por quem?”Ele ol ho u pa ra m im com o se eu fosse um retardad o. “Quem vo cê acha que foi?”“Não sei, Jay. É por isso que estou perguntan do .”“Quem con tratou você?”, perguntou ele.

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“Trevor S tone.”Ele ficou me fitand o até que eu entendi .“Meu Deus”, di sse Angie, d ando um murro tão forte na mesa q ue o s três mo toristas se vo ltaram

para nos olh ar.“Que bo m q ue con segui en sinar-lhes alguma coi sa”, di sse Jay.

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 20 

Nenhum de nós disse nada nos minutos seguintes. Deixamo-nos ficar em nossos lugares

com end o n ossos sand uích es, enquanto a chuva escorria pel as janel as e o vento sacudi a as pal mei ras-reais ao lo ngo do bulevar.Tudo, absolutamente tudo mudara nos últimos quinze minutos, pensava eu enquanto

mastigava meu sanduíche sem sentir o gosto. Angie estava certa quando dissera outra noite: brancoera preto, e em cim a era emb aixo.

Desiree estava morta. Jeff Price estava morto. Trevor Stone contratara Jay não para achar sua filh a, mas para m atá-la.

Trevor Stone. Meu Deus.Nós aceitamos o caso por dois motivos — ganância e empatia. O primeiro motivo não era 

nada nob re. Mas cinq üenta mil dól ares é um bo cado d e di nh eiro, princip alm ente se você está sem

trab alha r há vários meses e sua profissão não é das mai s lucrativa s. Mas de qual quer forma tratava-se de ganân cia. E se você acei ta um caso por ganân cia, nã o

pode acusar o seu patrão quando ele se revela um mentiroso. Era como o roto falar mal doesfarrapado...

 Mas a ganân cia nã o era no ssa única moti vaçã o. Nós pegam os esse caso porque Angie derepente se identificou com a dor de Trevor Stone. Ela se compadeceu de seu sofrimento, e eutambém . E se ain da h avia alguma dúvida, ela se desfez quando Trevor Stone no s mostrou o altar queerguera p ara a fil ha desaparecid a.

 Mas na verdad e não se tratava de um altar, nã o é m esmo ?

Ele não se cercara de fotografias de Desiree por querer acreditar que ela estava viva. Ele enchera a sala com as fotos da fil ha p ara ali mentar o p róp rio ódi o.Também nesse caso, a visão que eu tinha dos acontecimentos transformava-se,

metamorfoseava-se, reinventava-se, fazendo que eu me sentisse cada vez mais estúpido por terconfiado em m eu in stinto.

Puxa vida , que caso!“Antho ny Lisardo ”, eu di sse fin alm ente a Jay.Ele m astigou o sand uích e. “O que tem el e?”“Que foi feito del e?”

“Trevor o l iq uid ou.”“Como?”“Col ocou cocaín a num ma ço d e cigarros, deu-o a um am igo d e Lisardo — com o era mesmo o

no me d ele? Don ald Yeager —, e Yeager deixou o m aço n o carro d e Lisardo n a no ite em que forampa ra o reservatório.”

“O quê?”, disse Angie. “A cocaín a con tinh a estricni na ou coisa assim ?” Jay bal an çou a cab eça. “Lisardo tin ha uma reação al érgica à cocaí na . Ele já tin ha desmaiad o

uma vez numa festa na universidade, na época em que saía com Desiree. Foi seu primeiro ataquecardí aco. E aquela fo i a úni ca vez que ele foi estúpi do o b astante pa ra experimen tar cocaín a. Trevorsab ia d isso, pô s cocaí na n os cigarros, e o resto vocês sab em.”

“Por quê?”“Por que Trevor queria m atar Lisardo ?”

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“Sim.”Ele deu de om bros. “Ele n ão q ueria d ivi di r a filha com n in guém, se é que me entend em.”“E então ele contratou você para matá-la?”, perguntou Angie.“Sim.”“Mais uma vez: p or quê?”“Não sei”, disse ele ab aixando os olh os e fitando a m esa.“Você não sabe  ?”, perguntou Angie.Os olhos del e se arregalaram . “Eu nã o sei. O que isso...”“Ela não lhe disse, Jay? Quer dizer... você estava ‘com’ ela nas últimas semanas. Ela não tinha 

idéi a de po r que o p ai q ueria vê-la mo rta?”Ele respondeu em voz alta, num tom áspero. “Se ela sabia, não queria tocar nesse assunto, e

agora ela n ão está mai s em cond ições de refletir sob re isso.”“E sinto muito por isso”, disse Angie. “Mas eu preciso saber um pouco mais sobre os motivos de

Trevor para acreditar que ele q ueria ma tar a p róp ria filha .”“Que diabo você quer que eu diga?”, falou Jay rilhando os dentes. “Porque ele é louco. Ele está 

maluco. O câncer lhe comeu o cérebro. Eu não sei. Mas ele queria vê-la morta.” Ele esmagou um

cigarro a pagado na m ão. “E agora ela mo rreu. A man do del e ou não. E ele vai p agar po r isso.”“Jay”, eu di sse brand amen te. “Voltemos ao com eço. Você foi a um retiro da Libertação d a Dor

em Nan tucket, e aí você d esapareceu. O que aconteceu nesse meio temp o?”Ele m anteve os olho s fixos em Angie p or alguns segund os, dep oi s me fitou.Ergui as sob ran celh as algumas vezes.Ele sorriu, o velho sorriso de sempre, voltando por um instante a ser o que era antes. Ele

relanceou os olhos pelo salão, brindou as enfermeiras com um sorriso tímido, depois olhounovam ente para nó s.

“Cheguem mais, crianças.” Ele limpou as migalhas de suas mãos e recostou-se na cadeira. “Há 

muito tempo a trás, numa galáxia m uito, muito l on ge daqui...”

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 21

O retiro da Libertação da Dor para os clientes de Nível Cinco tinha lugar numa vasta 

propriedade Tudor numa falésia sobranceira a Nantucket Sound. No primeiro dia, todos osparticipa ntes foram con vid ado s a uma sessão d e “purificação”, na qual deveriam li bertar-se de toda sas suas auras negativas (ou “envenenamento do sangue”, como a Libertação da Dor chamava) falandosob re si m esmo s e sob re o que os levara até ali .

Nessa sessão, Jay, sob a fal sa i den tidad e d e David Fisher, lo go percebeu que a prim eira pessoa a se “purificar” era uma impostora. Lila Cahn era bonita, tinha pouco mais de trinta anos, corpomusculoso de uma aficionada dos exercícios aeróbicos. Ela dizia ter namorado um pequenotraficante de drogas de uma cidade mexicana chamada Catize, ao sul de Guadalajara. O namoradotrapaceara a quadrilha de traficantes local, que se vingara seqüestrando Lila e o namorado à luz dodia, em plena rua. Eles foram levados por um grupo de cinco homens para o porão de uma bodega,

onde o namorado foi morto com um tiro na nuca. Os cinco homens violentaram Lila por seishoras, experiência que ela descreveu ao grupo em seus detalhes mais crus. Pouparam-lhe a vida para que servisse de advertência a outras  gringas , para que pensassem duas vezes antes de ir para Catize eenvolver-se com maus elem entos.

Quando Lila terminou de contar sua história, os terapeutas abraçaram-na e a elogiaram pela coragem de contar uma experiên cia tão terrível .

“O úni co p rob lem a”, nos disse Jay à m esa d o b ar, “é que a h istória era um mo nte de m entiras.”No fi nal da d écada d e 80, Jay participo u de uma força-tarefa do FBI-DEA, envia da ao México

quando do assassinato de Kiki Camarena, agente do DEA. A pretexto de colher informações, a 

 verdadeira missão de Jay e de seus compan heiros era in tim ida r, an otar no mes, garantir que oschefões do tráfico prefeririam matar os próp rio s fil ho s a son ha r em matar um a gente federal.

“Passei três meses em Catize”, disse ele. “Não existe um só po rão em toda a ci da de. A terra é fofa dem ais porque a cid ade foi con struíd a em terreno p antano so. O nam orado m orto com um tiro na nuca? De jeito nenhum. Essa é uma prática da máfia americana, não da mexicana. Se alguémtrapaceia um chefe do tráfico no México, só existe uma forma de execução: a gravata colombiana.Eles cortam a garganta da pessoa, puxam a lí ngua pel o b uraco e jo gam o corpo na p raça da cidad e deum carro em movimento. E nenhuma quadrilha mexicana violenta uma americana por seis horas ea deixa viva para servir de exemplo a outras  gringas . Exemplo pra quê? Se quisessem fazer alguma 

advertência , eles a cortavam em p edaços e a man dava m d e volta aos Estados Uni do s pel o correio.” A p artir d aí Jay começou a aten tar para as m entiras e incoerênci as d e outras p essoas d o NívelCinco. Suas hi stórias nã o fazia m sentid o. Tratava-se, como ele d escob riu no curso do retiro, de umprocedimento padrão desenvolvido pela Libertação da Dor, que colocava impostores nos gruposde pessoas que realmente tinham problemas, porque descobrira que o cliente em geral tendia a con fia r os seus segredo s mai s a um “par” do que a um terapeuta.

 Mas o que mai s enfurecia Jay era ouvir histórias inven tadas misturadas com histórias verdadeiras: uma m ãe q ue perdeu seus filhos gêmeo s em um i ncêndio d o q ual saiu ilesa; uma m ulherde vinte e cinco anos com um tumor cerebral inoperável; uma mulher cujo marido a trocou por

uma secretária de dezenove anos, encerrando vinte anos de casamento seis dias depois de a mulhersofrer uma ma stectomia .

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“Eram pessoas abaladas”, disse-nos Jay, “em busca de esperança, de uma tábua de salvação. Eaqueles canalhas da Libertação da Dor balançavam a cabeça, fingiam compaixão e procuravamextrair delas os segredos inconfessáveis e o máximo de informações sobre sua vida financeira, para po der chan tageá-las m ais tarde, escraviz and o-as à Igreja.”

Quan do Jay se enfurecia, procurava vingar-se. Mas no final da prim eira no ite ele notou que Lila estava olhan do para ele, lan çan do -lhe

olhares tímidos. Na noite seguinte, ele foi ao quarto dela; longe de corresponder ao perfilpsicológico de uma mulher violentada por uma gangue um ano antes, Lila mostrou-se totalmentedesinib ida e inventiva na cama.

“Você conhece a analogia da bola-de-golfe-passando-pela-mangueira-de-água?”, Jay meperguntou.

“Jay”, disse Angie.“Oh”, fez ele. “Desculpe.”Durante cinco horas eles se entregaram aos embates do amor ardente. Nos intervalos, ela 

procurava i nvestigar-lh e o passado, os mei os de que dispunh a, suas esperanças e pla no s pa ra o futuro.“Lila”, sussurrou ele ao seu ouvido no final de seu encontro amoroso daquela noite. “Não

existem porões em Catize.”No curso do interrogatório a que a submeteu por duas horas, ele a convenceu de que fora 

pistoleiro de aluguel da família Gambino de Nova York, e que atualmente, disposto a atuar commais discrição, procurava compreender o funcionamento da Libertação da Dor, para depois seim po r com o sócio d a pa tranh a, qualq uer que ela fosse.

Lila, que Jay adi vin ho u se sentir atraíd a p or ho men s perigosos, já n ão estava satisfeita com sua posição na Libertação da Dor e na Igreja. Ela contou a Jay a história de seu ex-amante, Jeff Price, queroubara mai s de do is mi lh ões de d ól ares do s cofres da Libertação da Dor. Depo is de p rom eter fugircom ela, Price l ivrou-se del a e zarpo u com aquela “puta d a Desiree”, como Lila a cha ma va.

“Mas Lila”, perguntou-lhe Jay, “você sabe para ond e Price foi, nã o sabe?”Ela sabia, mas não i a contar. Mas aí Jay a convenceu de q ue, se el a n ão ab risse o bico, ele ia i nformar os Men sageiros de que

ela era cúmp li ce de Price.“Você não faria isso.”“Quer apostar?”“E o que eu ganh o com i sso?”, perguntou ela irritad a.“Quin ze p or cento de tudo que eu con seguir arran car de Price.”“E quem m e garan te que você vai cump rir a prom essa?”“Se eu não fi zer isso, você vai me d edar.”Ela ficou matutando sobre isso e finalmente falou: “Clearwater”.Era a cidade natal de Jeff Price, onde ele sonhava transformar os dois milhões em dez,

entrando no tráfico de d rogas junto com vel ho s ami gos que comp ravam h eroín a da T ail ândi a. Jay foi em bora da ilha naq uela mesma m an hã, não sem antes fazer uma ad vertênci a a Lila:“Se você fechar o bico até eu vol tar, vai ganha r uma bo a parte do bo lo . Mas se você tentar avisar

Price q ue vou atrás dele, vou fazer com você m uito p io r do q ue os cinco mexican os fariam ”.

“Vol tei então de Na ntucket e li guei p ara Trevor.”

Trevor, ao con trário d o q ue di ssera à Ham lyn and Koh l e a nó s, mand ou um carro b uscar Jay,que foi l evado à casa de M arbl ehead p elo p róp rio Nó-Cego.

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Trevor feli citou Jay p or sua d edi cação, brind ou-o com um co po de seu excelen te puro m alte elh e perguntou com o se sentira ao saber que a Haml yn an d Kohl pretend ia tirá-lo d o caso.

“Deve ter sid o um tremen do golp e pa ra um ho mem com o seu talento.”E realmente fora, confessou Jay. Logo que ele encontrasse Desiree e a trouxesse sã e salva, iria 

trabalh ar po r conta própria.“E com o vo cê vai fazer isso?”, di sse Trevor. “Você está fal id o.”

 Jay bal an çou a cab eça. “Você está engana do .”“Será?”, disse Trevor. E contou a Jay exatamente o que Adam Kohl fizera com seus fundos

municipais 401(k) e com os títulos que Jay lhe confiara cegamente. “O senhor Kohl investiupesadamente em ações que eu lhe havia recomendado. Infelizmente, elas não tiveram odesempenho esperado. Além disso há que considerar também a paixão infeliz e bem conhecida do senh or Kohl p elo jo go.”

Perpl exo, Jay ouviu de Trevor Stone o lon go e m inucioso relato de com o Adam Kohl vinh a arriscando as ações e os di vidend os dos funcio nários da Hamlyn and Kohl .

“Na verdad e”, di sse Trevor, “você não precisa nem se preocupa r em sair da Ham lyn and Koh l,po rque a agência va i entrar em con cordata den tro de seis seman as.”

“O senhor os arruin ou”, di sse Jay.“Eu?” Trevor moveu sua cadeira de rodas em direção a Jay. “Tenho certeza de que a 

responsabilidade não é minha. Seu querido senhor Kohl foi longe demais, como vinha fazendotodos esses anos. Mas desta vez ele pôs ovos demais numa única cesta — uma cesta que eu lherecomendara, é verdade, mas sem má-fé.” Ele pôs a mão nas costas de Jay. “Muitos dessesinvestimentos são em seu nome, senhor Becker. Para ser exato, são setenta e cinco mil, seiscentos equarenta e quatro d ól ares e doze centavo s.”

Trevor pousou a mã o n a nuca de Jay. “Que tal a gente pôr as cartas na m esa?”“Ele m e pusera con tra a parede”, nos disse Jay. “E não era só a questão d a d ívi da. Fiquei sem ação

quando descob ri q ue Adam, e talvez tamb ém Everett, tin ha me traíd o.”“Você conversou com eles?”, perguntou Angie.Ele fez que sim. “Liguei para Everett, e ele confirmou. Ele disse que não sabia. Quer dizer, ele

sabia que Kohl gostava de arriscar, mas não podia imaginar que ele seria capaz de pôr a pique, emcerca de sete seman as, uma emp resa d e cin qüenta an os. A conselho de T revor, Koh l l ançara mão atédo fund o de p ensão. Everett estava arruin ado . Você sabe a i mp ortância q ue ele dá à h on ra, Patrick.”

Balancei a cabeça, lembrando-me do comentário que Everett fizera sobre o ocaso da honra,sobre como era difícil manter-se honrado num mundo cheio de gente sem honra. E de quecontemp lara a vista da j anel a d e seu escritório como se fosse a últim a vez q ue o fazi a.

“Então”, continuou Jay, “eu disse a Trevor Stone que faria o que ele quisesse. E ele me deuduzentos e trinta m il dó la res para ma tar Jeff Price e Desiree.”

“Sou muito mais poderoso do que você pode imaginar”, disse Trevor Stone a Jay naquela noite. “Sou dono de empresas comerciais, de frotas de navios, de mais imóveis do que você poderia contar em um dia. Sou dono de juízes, de policiais, de políticos, de governos inteiros de algunspaíses, e agora sou dono de você.” Sua mão apertou o pescoço de Jay. “E se você me trair eu cruzoqualq uer oceano para arrancar sua jugula r do pescoço e enfi á-l a no buraco d e seu pêni s.”

E então Jay foi para a Fló rida.

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Ele não tinha idéia do que faria quando encontrasse Desiree e Jeff Price. Só sabia que não ia matar nin guém a sangue-frio . Ele j á fizera isso p ara os federais no México, mas a lem brança d o o lh ardo traficante um segundo antes de Jay lhe mandar um balaço no coração através da camisa de seda branca o a tormen tara de tal m od o q ue ele ped ira demi ssão n o m ês seguin te.

Lila l he falara d e um ho tel no centro de Clearwater, o Am bassado r, de q ue Price gostava muitopo r causa d e suas cam as vibratórias e pel a grand e variedad e de fi lm es pornô n os canais via satéli te.

 Jay ach ou que a probab il idad e era muito pequena, m as Price se revelou muito mai s estúpidodo que ele im aginara: duas ho ras depois que Jay começou a vigiar o ho tel, viu Price saind o p ela p orta principal. Jay seguiu Price o dia inteiro, acompanhando seus movimentos à distância. Price seencontrou com os comparsas da conexão tailandesa, tomou um porre num bar em Largo e levouuma p rostituta para seu quarto.

No dia seguinte, durante a ausência de Price, Jay entrou em seu quarto, mas não achou o menorsin al d e dinh eiro ou de Desiree.

Certa manhã Jay viu Price saindo do hotel e pensou em fazer uma outra busca em seu quarto,quando teve a sensação de estar send o o bservado .

Ele voltou para dentro do carro, ajustou o binóculo, vasculhou a rua em toda a sua extensão até

topar com um b in óculo ob servand o-o , do is quarteirões ma is adian te.“Foi a ssim que con heci Desiree”, ele nos di sse. “Nós dois nos ob servand o p elo bi nó culo .”

 Àquela al tura ele já estava se perguntando se afina l de contas ela existia m esmo . So nhava comela freqüentemente, olhava suas fotografias durante horas, chegava a achar que conhecia seu cheiro, osom de seu riso, a maciez de suas pernas contra as dele. E quanto mais ela tomava corpo em sua im aginação , mais se aproxim ava d e uma figura m ítica — a bel dad e torturada , rom ântica e trágica quese sentava nos parques de Boston engolfados pela névoa e pelas chuvas de outono, esperando a 

libertação.E então um dia el a apa receu di ante dele.Ela n ão foi emb ora quando ele d esceu do carro e se dirigiu ao del a. Ela não tentou fin gir tratar-

se de um simples mal-entendido. Calma, com olhar firme, ela o viu aproximar-se, e quando elechegou ao seu carro ela ab riu a porta e saiu.

“Você é da p ol ícia?”, perguntou ela.Ele negou com a cab eça, in capaz d e pronunciar uma p ala vra.Ela estava de camiseta e jeans desbotados, tão amarrotados que davam a impressão de que

dormira vestida com eles. Estava descalça, pois as sandálias estavam no tapete do carro, e Jay derepen te ficou preocupad o, receoso d e q ue ela ferisse os pés nas ped ras ou nos vid ros espal ha do s pela rua.

“Por acaso é um d etetive particular?”Ele fez que sim .“Um detetive particular mudo?”, disse ela esboçando um sorriso.E ele caiu na risada.

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 22

“Meu pai”, contou Desiree a Jay do is di as depo is, quand o eles passaram a confi ar um no outro,

“compra pessoas. Ele vive para isso. Ele possui negócios, imóveis, carros e tudo que você possa im aginar, ma s o q ue na verdad e o m ove é a vo ntade d e ter po der sob re as pessoas.”“Estou com eçando a perceber”, disse Jay.“Ele era o don o d e mi nh a m ãe. Literalm ente. Ela era da Guatemala. Ele foi p ara lá na d écada 

de 50 pa ra supervision ar a construção d e uma ba rragem fin anciada po r sua com pa nh ia, e a comp roudo s pa is dela por meno s de cem dó lares am erican os. Ela tinh a catorze ano s.”

“Que bela história”, di sse Jay. “Que puta história.”

Desiree tin ha se refugiado numa velha caban a d e pescador em Longboat Key, que alugara p orum preço exorbitante, onde pretendia ficar enquanto avaliava sua situação. Jay ficou dormindo nosofá, e uma n oi te acordo u com os gritos de Desiree, que estava tendo um pesadelo ; agitado s demai spara con seguir do rmi r, os doi s saíram de casa às três da m anh ã p ara espai recer um po uco n a p raia .

Ela estava só com o suéter que Jay lhe dera, um troço surrado, azul, de sua época de estudante,onde se lia LSU em letras brancas que se tinham descascado ao longo dos anos. Ele descobriu queela estava sem um tostão, sem querer usar cartões de crédito por medo de que o pai a localizasse eman dasse outra p essoa para m atá-la. Jay estava sentado ao seu lad o na areia branca e fria. A espuma das on das destacava-se na escurid ão, e Jay se pegou ol ha nd o as mãos dela crispa das sob as coxas, na altura em que os dedos de seus pés desapareciam na areia branca, os reflexos luminosos em seus

cabelos, quando a luz da lua ban hava sua cabel eira revolta.E pela prim eira vez na vi da Jay Becker se apaixon ou.Desiree voltou a cabeça, e seus olhares se encontraram. “Você não vai me matar?”, perguntou

ela.“Não. Não há a m enor chance.”“E você não quer o m eu di nh eiro?”“Você não tem di nh eiro n enh um”, disse Jay, e os do is se puseram a rir.“To da s as pessoa s de q uem gosto mo rrem”, disse ela.“Eu sei”, disse Jay. “Você tem tido um puta dum azar.”

Ela riu, mas foi um riso a ma rgo e temeroso. “Ou me traem , como Jeff Price.”Ele pousou a mã o em sua coxa l ogo ab aixo da bai nh a d o suéter. Ele esperou que ela afastasse a mão dele. Ela não o fez, e ele esperou que ela colocasse a sua sobre a d ele. Ele esperou que as vagas lh edi ssessem alguma coisa, para que ele d e repente soubesse o que devia di zer naquela h ora.

“Eu nã o vou morrer”, di sse ele tem peran do a gargan ta. “E não vou trair você. Porque se eu a trair”,e di sse aq uil o com a m aio r certeza de q ue fora capa z em toda a sua vi da, “eu com certeza vou morrer.”

Ela lhe ab riu um sorriso, os dentes de m arfim cintil and o n a escurid ão.Então ela tirou o suéter e se ofereceu a el e, o corpo bel o, m oreno, trêmulo d e m edo.

“Quand o eu tin ha catorze an os”, disse ela a Jay naq uela n oi te, deitada ao lad o d ele, “eu era iguala mi nh a mãe q uando tinha a m esma i dade. E meu pai notou.”

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“E foi sensível a i sso?”, perguntou Jay.“O que você ach a?”

“Trevor recitou pra você seu discurso sobre a dor?”, perguntou-nos Jay quando a garçonete nostrouxe mai s do is cafés e outra cerveja. “Aquele q ue di z que a dor é carnívo ra?”

“Sim”, di sse Angie. Jay bal an çou a cab eça. “Ele fez o mesmo sermão para mim quan do me con tratou.” Ele

estendeu as mãos em cima da mesa, virando-as para um lado e para outro. “A dor não é carnívora”,di sse Jay. “A dor são as mi nh as mãos.”

“Suas mãos”, disse Angie.“Elas conservam as impressões táteis da carne dela”, disse ele. “Ainda. E os odores?” Ele deu um

tapinha no nariz. “Meu bom Deus. O cheiro de areia em sua pele e o ar salgado que penetrava pela  ja nela da vel ha cab an a de pescadores... A dor, eu j uro por Deus, não mora no coração. Mo ra nossentidos. E às vezes meu único desejo é cortar meus dedos, arrancar meu nariz para extirpar a lemb rança do cheiro dela.”

Ele ol ho u pa ra nó s com o se de repen te tivesse se dad o con ta de que estávamos ali .“Seu filh o d a puta”, di sse Angie com a voz embargad a, as lá grim as a escorrer pel as faces.“Merda”, di sse Jay. “Eu me esqueci de Ph il . Angie, me perdoe.”Ela afastou a mão del e e enxugou o rosto com um guardanap o d e pa pel .“Angie, pode acredi tar...”Ela balançou a cabeça. “É que às vezes eu ouço a voz dele tão nitidamente que sou capaz de

 jurar que está ao meu la do . E pel o resto d o d ia é só o que con sigo ouvir. Nad a mai s.”Eu tive bastante juízo para n ão pegar sua m ão, m as foi el a q ue m e surpreendeu quand o pegou

na mi nh a de repente.

Fechei m eu po legar sob re o del a, e ela se anin ho u em m eu corpo.Era isso o que você sentia p or Desiree, tive vontad e de dizer a Jay.

Foi Jay quem teve a idéia de se apropriar do dinheiro que Jeff Price roubara da Libertação da Dor.

Trevor Stone fizera ameaças, e Jay não duvidava delas, mas ele sabia também que Trevor nãoia durar muito. Com duzentos mil dólares Jay e Desiree talvez não conseguissem esconder-se longe oba stan te para escapar às garras de T revor por seis meses.

 Mas com mai s de d ois milhões eles poderiam escapar del e po r seis ano s.Desiree não queria nem ouvir falar nisso. Ela con tou a Jay q ue Price tentara m atá-la quando ela 

ficou sabend o d o roubo d o d in hei ro. Ela só con seguiu sob reviver porque o atacou com um extin torde i ncênd io e fugiu do quarto do Amba ssado r de forma tão desabal ada que deixou tod as as roupaspara trás.

 Jay lhe di sse: “Mas querida , você estava vi giando o h otel quan do n os conh ecem os”.“Porque eu estava d esesperad a. E sozin ha . Agora não estou mais desesperada, Jay. E não estou só.

E você tem d uzentos mi l dó lares. Com isso, pod emo s fugir.”“Mas até onde conseguiremos chegar?”, disse Jay. “Ele vai nos encontrar. A questão não é nem

fugir. Pod emo s fugir para a Guian a. Podem os fugir para o Leste Europ eu, mas não vam os ter di nh eiro

ba stan te para fazer que as pessoas col ab orem cono sco, dand o as respostas certas, quando ap areceremos envi ad os de Trevor pa ra nos procurar.”

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“Jay, ele está para morrer”, disse ela. “Você acha que ele vai mandar ainda mais gente para meprocurar? Você precisou de mais de três seman as para me a cha r, e eu dei xei p istas, porque nã o sabia se

 vinh a gente atrás de m im.”“ Eu deixei uma pista”, disse ele. “E vai ser muito mais fácil encontrar nós dois do que foi para 

mi m en con trar você. Eu dei xei relatório s, e seu pa i sabe que estou na Fl órid a.”“A coisa toda é por causa de dinheiro”, disse ela com voz branda, os olhos evitando encontrar

os dele. “Essa m erda d e di nh eiro, com o se fosse a úni ca coisa do mundo . Com o se fosse ma is do q uemero p apel.”“É mais que papel”, disse Jay. “É poder. E o poder move coisas, esconde coisas e cria 

oportunidades. E se a gente não se livrar desse estrupício do Price, alguém fará isso, porque ele éestúpido.”

“E perigoso”, disse Desiree. “Ele é perigoso. Você não entende? Ele já matou gente. Tenhocerteza di sso.”

“Eu tamb ém”, disse Jay. “Eu tamb ém.”

 Mas ele n ão conseguiu convencê-l a.“Ela tinh a ap enas vin te e três anos”, di sse-nos ele. “Sa be com o é? Uma criança. Eu me esquecia 

disso n a mai or parte do temp o, mas ela vi a o m und o d e uma ó tica infantil, mesmo depo is de toda a canalhice de que fora vítima. Ela continuava achando que de algum modo as coisas iam se resolverpo r si m esmas. Ela tinh a certeza de que o mundo lh e reservava um fina l feli z. Não queria n em o uvirfalar daq uele d in hei ro q ue dera origem a tod a aq uela d esgraça.”

Então Jay recomeçou a seguir Price. Mas Price nunca se aproximou do dinheiro, tanto quanto

ay pôde saber. Ele se reunia com seus comparsas traficantes, e graças aos aparelhos de escuta que Jay colocara em seu quarto, este pôde ter certeza de que o que os preocupava era um barco que tinha naufragado na costa d as Baha mas.

“Aquele barco que afundou um dia desses?”, disse Angie. “O que desovou um monte deheroín a nas praia s?”

 Jay confirmou com um gesto d e cabeça.Portanto, Price agora estava preocupado, mas, até onde Jay sabia, ele não fora atrás do

dinheiro.Enquanto Jay seguia Price, Desiree ficava lendo. E Jay observou que os trópicos desenvolveram

nel a um gosto p elo s surreal istas e sensual istas que ele semp re apreciara. Assim , quan do ele chegava emcasa sempre a encon trava m ergulh ada na lei tura d e T on i Mo rrison ou Borges, García Márquez o uIsabel Allend e, na po esia d e Neruda. Mai s tarde, em sua caba na d e pescador, eles cozin ha vam p eixeà man eira cajun, preparavam mariscos, enchiam o espaço exíguo com o cheiro de sal e pimenta-de-caiena e faziam amor. Depois, saíam, sentavam-se à beira-mar, e ela lhe contava histórias que lera durante o di a. Ele tinh a a sensação d e que estava relen do os li vros, de que ela era a autora e desfiava ofio d os relatos fantásticos na noite cada vez m ais negra. E então eles faziam am or novam ente.

 Até que certa man hã Jay se levantou, descobriu que o despertado r não tocara e que Desiree nãoestava na cam a ao seu lad o.

Ela deixara um bil hete:

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  Jay, Acho que sei onde está o dinheiro. Como ele é importante para v ocê, acho que é impo rtante também paramim. Vou buscá-lo. Estou apavorada, mas eu amo você, e acho que tem razão. Não conseguiríamos nosesconder por muito tempo sem ele, não é? Se eu não estiver de volta às dez da manhã, por favor, me procure.

 Amo v ocê. De todo o meu coração. Desiree 

Quan do Jay chegou ao Amb assad or, Price já acertara as con tas no ho tel e se fora. Jay ficou no estacio nam ento ol han do para a sacad a em forma de U d o prim eiro a nda r, e foi

então q ue a cama reira jam aican a com eçou a b errar. Jay subiu as escada s correndo e viu a mulher d obrada sobre si mesma e gritando na porta do

quarto d e Price. Ele pa ssou por ela e o lh ou pela p orta ab erta.O corpo d e Desiree estava no chão , entre o a pa relh o d e televisão e o frigob ar. A primei ra coi sa 

que Jay n otou foi que tod os os ded os de suas mãos tin ham sid o cortado s nas articulaçõ es.O sangue escorria do que restava do queixo, empa pan do o suéter de Jay on de se l ia LSU.

O rosto de Desiree era só um buraco, despedaçado que fora por um tiro de espingarda,di sparado a m enos de três metros de di stância. Seus cabel os cor de mel, que o próp rio Jay lavara na no ite anterio r, estavam emp apado s de sangue e salp icad os de mio lo s.

 Jay tin ha a im pressão de ouvir ao lon ge, m uito lon ge, o som de um grito . E o zumb id o de vários con dicion ad ores de ar, milhares, que pa reciam ter com eçad o a funciona r de repen te, naq uelemo tel b arato, tentand o p ôr um po uco d e ar fresco n o cal or in fernal daq ueles cubí culo s de concreto,foi se avol uma nd o até pa recer um en xame d e abelh as em seus ouvid os.

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 23

“Então eu local izei Price n um mo tel que fica na p on ta desta rua.” Jay esfregou os olh os com os

punhos. “Peguei o quarto vizinho ao dele. As paredes eram finas. Fiquei sentado com o ouvidocolado na parede um dia inteiro, ouvindo os ruídos que vinham de seu quarto. Talvez, não sei, euesperasse ouvir suspiros de dor, de desgosto, de remorso, qualquer coisa. Mas ele ficou apenas vendotelevisão e bebendo o dia inteiro. A certa altura ele mandou buscar uma prostituta. Menos dequarenta e oito h oras dep oi s de atirar no rosto d e Desiree e cortar-lh e os ded os, o can alh a p ede uma puta em dom icíl io.”

 Jay acend eu outro ci garro e ficou con templan do a cham a por um i nstante.“Depois que a puta foi embora, fui ao seu quarto. Discutimos um pouco, e eu o agredi. Eu

esperava que ele pegasse uma arma, e sabe de uma coisa? Ele pegou. Um canivete automático de seispolegadas. Arma de cafetão. Mas foi bom que ele o pegasse. Isso deu ao que fiz em seguida a 

apa rência de autod efesa. Ou algo d o tip o.” Jay vi rou o rosto para a j an ela. A chuva amai nara um p ouco. Quando ele recom eçou a falar, foi

com uma voz vazi a, sem alm a:“Cortei um sorriso em sua b arriga d e um la do ao outro, segurei firme o seu queixo e o ob riguei a 

me o lh ar nos olho s enq uanto seu in testino grosso se espa rram ava n o ch ão”.Ele sacudi u os om bros. “Acho q ue a mem ória d e Desiree merecia essa vingan ça.”Lá fora a temp eratura devi a estar na casa do s vinte e três ou vinte e q uatro graus, ma s o ar do salão

parecia m ais frio que uma mesa de n ecrotério .“E o que você vai fazer agora, Jay?”, di sse Angie.

Ele sorriu o sorriso de um fantasma. “Vou voltar para Boston e vou abrir a barriga de TrevorStone também .”“E dep oi s? Vai p assar o resto da vi da n a cadei a?”Ele me fitou. “Estou pouco ligando. Se o destino assim o quiser, tudo bem. Patrick, o amor só

acontece uma vez, e isso se você tiver muita sorte. Bem, eu tive muita sorte. Aos quarenta e um anosamei uma mulher com metade d e mi nh a idad e durante duas seman as. E ela m orreu. E tudo bem , omundo é barra-pesada mesmo. Se você consegue algo muito bom, mais cedo ou mais tarde lheacontecerá uma coisa muito ruim para contrabalançar.” Ele ficou tamborilando nervosamente notampo da mesa. “Tudo bem. Aceito isso. Não gosto, mas aceito. O destino já acertou as contas

com igo. Agora vo u acertar as con tas com Trevor.”“Jay”, di sse Angie. “Vai ser uma m issão suici da.”Ele sacudiu os ombros. “Dane-se. Que ele morra. Além do mais, você acha que ele já não está 

tramando a minha morte? Eu sei demais. Quando interrompi os contatos diários que mantinha com ele daqui, assinei minha sentença de morte. Por que você acha que ele mandou Clifton eCushing com vocês?” Ele fechou os olhos e soltou um suspiro. “Não dá outra. É isso. O filho da puta 

 vai receber um ba laço .”“Dentro de cin co m eses ele estará m orto.”

 Mai s um sacudi r de om bros. “Pra mim é tarde demai s.”“Por que nã o recorrer à justiça? Você po de p rovar que ele o con tratou para ma tar sua fi lh a.”

“Boa idéia, Ange. O processo chegaria ao tribunal talvez só seis ou sete meses depois da mortedele.” Ele pô s várias cédulas em cim a d a con ta do bar. “Vou acabar com essa b osta velha. Esta seman a.

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Devagar e com do r.” Ele sorriu. “Mais alguma pergunta?”

 A m ai or parte d as co isas de Jay ai nd a estava num pequeno ap artamento que ele al ugara l ogoao chegar ao residen cial Ukumb ak, no centro de St. Petersburg. Ele ia passar lá, pegar as coisas e cair na estrada, pois aviões eram muito inseguros, e os aeroportos, facilmente controlados. Sem dormir esem outros preparativos, ele ia dirigir durante vinte e quatro horas rumo à costa leste, para chegar em

 Ma rblehead por vol ta d as duas e m eia d a m an hã. S eu pl an o era invad ir a casa de Ston e e to rturar o vel ho até a mo rte.

“Que diabo de plano”, comentei enquanto descíamos a escadinha de acesso ao bar, sob a chuva torrenci al , em di reção a os nossos carros.

“Gostou del e? Ele me surgiu assim de repente...”Sem outra alternativa, Angie e eu resolvemos seguir Jay de volta para Massachusetts. Talvez

pudéssemo s continuar discutind o o assunto nas p aradas para descanso e n os po stos de gasol in a, fossepara dissuadi-lo do plano, fosse para lhe sugerir uma alternativa menos maluca. O Celica quealugáram os da El ite Motors — o m esmo l ugar em q ue Jay alugara o seu 3000 GT — nó s ma nd aríam os

de vol ta de trem, e a con ta seria en viad a a Trevor. Mo rto ou vivo , ele po di a muito bem p agá-la. Mai s cedo ou m ai s tarde Nó-Cego d escob riria que tínham os p artid o e vo ltaria de avi ão para 

casa com seu laptop e seus olhinhos minúsculos, dando tratos à bola para explicar como tinhamperdido a nossa pista. Cushing, por sua vez, voltaria para seu caixão, onde ficaria esperando um outrochamado.

“Ele enlouqueceu”, disse Angie enquanto seguíamos os faróis traseiros do carro de Jay emdireção à auto-estrada.

“Jay?”Ela fez que sim . “Ele acha que se ap aixon ou por Desiree em d uas seman as, mas isso é bob agem.”

“Por quê?”“Quan tas pessoas — pessoas adultas — você ach a que se apaixon am em d uas sema nas?”“Isso n ão q uer di zer que não possa acontecer”, respond i.“Talvez. Mas acho que ele se apaixonou por Desiree mesmo antes de conhecê-la. A bela 

 jo vem que vaga pelos parques esperan do um sal vad or. É tudo o q ue os caras desejam.”“Uma bel a garota q ue vaga sozi nh a p elo s parques?”Ela fez q ue sim . “Esperando q ue alguém a salve.”Lá adiante Jay entrou num acesso à rodovia 275 Norte, os pequenos faróis traseiros quase

in di stintos na chuva, meros borrões vermel ho s.“É possível”, eu disse. “É possível. Mas seja lá como for, se você se envolvesse com alguém por

po uco temp o, em ci rcunstâncias tão dramáticas, e essa pessoa mo rresse com um tiro no rosto — vocêtamb ém ficaria ob cecada.”

“Sem dúvida.” Ela reduziu a marcha quando o Celica entrou numa poça d’água do tamanhodo Peru e os pneus traseiros resvalaram para a direita por um instante. Angie manobrou o carro demodo a recuperar o controle, e conseguimos passar pela poça. Ela engrenou novamente a quarta,passou em seguid a p ara a quinta m archa e pi sou fund o n o a celerado r para alcançar Jay.

“Sem dúvida”, repetiu ela. “Mas ele vai assassinar um sujeito praticamente inválido, Patrick.”“Um in váli do nefasto”, eu di sse.“Com o vo cê sab e?”, perguntou ela .

“Porque Jay n os disse, e Desiree confi rmou.”“Não”, disse ela quando as barbatanas d orsais da Skyway Brid ge apontaram n o céu, uns quinze

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quilômetros adiante. “Desiree não confirmou isso. Jay disse  que ela confirmou. Mas nós só temos a  versão dele. Não pod emos esperar q ue Desiree a con firme. Ela está morta. Não pod em os esperaruma confi rma ção d e Trevor, po rque em q ualq uer caso ele n egaria.”

“Everett Haml yn”, eu di sse.Ela fez que sim. “Ligamos para ele logo que chegarmos à casa de Jay. De uma cabine de rua, para 

que ele não desconfie de nada. Quero ouvir da boca de Everett que tudo que Jay nos contou é

 verdade.” As gotas de chuva martelavam a cap ota de lon a do Celica como se fossem cubos de gelo.“Eu con fio em Jay”, eu di sse.“Eu não ”, di sse ela fitand o-m e po r um in stante. “Não é n ada pessoal . Mas ele está acabad o. E a 

essa altura já n ão confio em ma is nin guém.”“Ninguém”, eu disse.“Exceto você”, di sse ela. “E nem precisa dizer. Quan to aos dem ais, são tod os suspeitos.”Recostei-me no ban co do carro e fechei os olh os.To do m und o é suspei to.

 Até Jay.

Que diabo de mundo estranho em que pais mandam matar suas filhas, organizaçõesterapêuticas são uma fraude, e um h om em a quem eu confi aria mi nh a vida sem h esitar não m erecia nossa confiança.

Talvez Everett Hamlyn tivesse razão. Talvez a honra estivesse em seu ocaso. Talvez ela já estivesse em d eclín io ha via muito tempo . Ou, pio r: talvez ela nunca tivesse passado de uma il usão.

To do mundo é suspei to. Todo mundo é suspeito . Aquil o estava viran do meu man tra.

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 24

Depois de atravessar uma terra de ninguém de asfalto e grama, a estrada descrevia uma curva já 

próximo à baía de Tampa, tão escura sob a muralha de chuva que não se podia dizer ondetermi nava a terra e o nd e com eçava o mar. Pequenas caba nas brancas, algumas com cartazes no altodo s telh ado s que eu não con seguia ler po r causa d a escurid ão, iam surgind o do s doi s lado s da estrada e pareciam flutuar livremente sobre uma espécie de nada pluvioso. As barbatanas dorsais amarelasme pareciam estar à mesmíssima distância, nem mais próximas, nem mais distantes; pairandoacima de uma planície envolta pela treva e batida pelo vento, elas avultavam contra o céu roxo-equimose.

 Acabávam os de entrar na rampa de uns cinco quilôm etros que levava ao centro da pon te,quando um carro i rrom peu da m uralh a d e água d o o utro l ado da auto-estrada ; seus farói s mol had ospareciam vacilar na escuridão, quando cruzaram conosco indo em direção ao sul. Olhei pelo

retrovisor, vi apenas um par de faróis, mais de um quilômetro atrás de nós. Duas da manhã, a chuva formando uma verdadeira muralha, e a escuridão nos envolvendo por todos os lados enquantoavançávamos em direção às colossais barbatanas amarelas. Em suma, uma noite tão tenebrosa quemesmo o pecad or mais ím pi o n ão m erecia ficar expo sto a sua fúria.

Bocejei e meu corpo gemeu internam ente só de p ensar em fi car preso p or mai s vinte e quatrohoras no pequeno Celica. Fiquei fuçando no rádio, mas só achei coisas do tipo “é isso aí, bro”, dasclássicas emissoras de rock, algumas de dance music   e várias do grotesco “soft rock”.  Soft rock  — nãomuito pesado, não m uito leve, perfeito para pessoas sem a m enor capaci dad e de discerni men to.

Quando desliguei o rádio, o aclive ficara mais acentuado, e no entanto a barbatana mais

próxim a p arecia ter se di stanciad o p or algum temp o. Os faróis traseiros do carro d e Jay, com o o lh os vermelhos, olhava m para mim através d a chuva, e à nossa d ireita a baí a ia fican do cad a vez mai or.Em tod o o percurso, um guardrail  de concreto n os acom pan hava.

“Essa p on te é eno rme”, eu di sse.“E traz m á sorte”, di sse Angie. “Essa n ão é a po nte origina l. A Skyway o rigin al — ou pel o men os

o que restou dela — está à nossa esquerda.”Ela acendeu um cigarro com o isqueiro do painel enquanto eu olhava para a esquerda, sem

con seguir enxergar nad a através da cortin a d e água.“No começo da década de 80”, disse ela, “uma chata colidiu com a ponte original. O vão

princi pa l cai u no ma r, e com ele vários carros.”“Com o vo cê sabe disso?”“Em Roma, faça como os romanos.” Ela abriu um pouquinho a janela só para permitir que a 

fumaça saísse. “Li um guia dessa região ontem. Tem um no seu quarto também. No dia em que elesabriram essa p on te nova , um sujei to que vin ha de carro pa ra a in auguração teve um ataque cardíacoquand o en trou na ramp a de acesso do l ad o d e St. Pete. O carro mergulh ou na água, e ele mo rreu.”

Olhei pela janel a e vi a b aía afastando -se, da mesma forma que a gente vê o chão se afastand ode den tro de um elevad or envi draçado.

“Men tira sua”, eu di sse um tan to n ervoso.Ela l evantou a mão di reita. “Palavra de escoteiro.”“Segure o vola nte com as duas mãos”, eu di sse.

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Quando nos aproximamos do vão central, os imensos leques de cabos amarelos incendiarama lateral d ireita do Celica, ban ha nd o em sua luz artificial os vidros tomad os pela á gua.

Súbito, o ruído de pneus avançando pela água à nossa esquerda nos chegou pelo vidroentreaberto d o l ado do mo torista. Olhei p ara a esquerda, e Angie di sse: “Que di abo é isso?”.

Ela deu um puxão no volante, quando um Lexus dourado nos ultrapassou a mais de cemquilômetros por hora. Os pneus do Celica do lado do passageiro bateram na guia entre a pista e opa rapei to, e tod a a carroceria vib rou, sacudi u, e o b raço de Angie se enrij eceu para segurar o tranco d o

 volan te.No momento em que Angie conseguiu controlar o carro, o Lexus estava na nossa frente, e vi

que os faróis traseiros estavam apagados. Ele se interpusera entre Jay e nós, colocando-se nas duaspi stas. De repen te, um raio de l uz vin do das barbatana s il umi no u a cabeça al on gada do mo torista.

“É Cushing”, eu di sse.“Merda.” Angie tocou a m in úscula buzina do Celi ca enq uanto eu abria o po rta-luvas e pegava 

meu revólver, depois o de Angie. Coloquei o dela no console central, junto ao freio de mão, ecoloq uei uma b ala n a câmara do m eu.

Lá adiante, a cabeça de Jay se endireitou quando ele olhou pelo retrovisor. Angie continuou

com a mão na buzina, mas o fraco ruído que ela produzia foi abafado pelo barulho do Lexusba tendo n a traseira do 3000 GT .

Os pneus di reitos do peq ueno carro espo rte subi ram na calçad a e h ouve uma chuva de fagulh asquando o l ado di reito d o carro resvalo u no pa rapeito. Jay guin ou para a esquerda p ara voltar à pista.Seu retrovisor externo fora arrancado, e abaixei a cabeça instintivamente quando o vi voando na chuva em direção ao nosso pára-brisa. O impacto formou uma teia de aranha no vidro, bem diantede meu rosto.

 Angie bateu na traseira do Lexus, enquan to a d ian teira do carro d e Jay guina va p ara a esquerda eo pneu traseiro direito subia novamente na calçada. O sr. Cushing manteve o controle do Lexus,

 jo gando -o contra o carro de Jay. Uma cal ota prateada se sol tou, bateu nas grad es de nosso rad iad or edesapareceu sob os pneus. O 3000 GT, pequeno e leve, não era páreo para o Lexus. A qualquermo men to ia ser jo gado fora da pi sta, e então o sr. Cushi ng pod eria p recipitá-lo no vazio.

 Ven do a ca beça de Jay b al an çan do para a frente e para trás, enquan to o Lexus batia mai s durocontra o lado do motorista, abaixei o vidro da minha janela e disse a Angie: “Mantenha o carroestável”. Enfrentand o o vento e a chuva torrencia l, pus metade d o co rpo pa ra fora do carro e a po nteio revólver para o vidro traseiro do Lexus. Fiz três disparos sucessivos, enquanto a chuva caía em meusolhos. O clarão dos disparos fendeu o ar como relâmpagos longínquos, e o vidro traseiro do Lexusfez-se em p edaços, cain do sob re o p orta-ma las. O sr. Cushi ng pi sou no freio, e mal tive temp o d e pô ra cabeça para dentro d o carro, quand o Angie b ateu no Lexus, e Jay aproveitou para acelerar.

 Mas Jay desceu da cal çad a rápid o demai s, e os pneus direitos do 3000 GT bateram na pista eergueram-se no ar. Angie gritou, vim os o clarão d e di sparos de den tro d o Lexus.

O pára-brisa do Celica i mp lod iu. A chuva e o ven to cob riram de fragmen tos de vidro nossos cab elos, n ossos rostos e nossos

pescoços. Angie guinou para a direita, e nossos pneus subiram na calçada novamente, as calotasrangendo contra o cimento. Por um instante o Toyota pareceu dobrar-se sobre si mesmo, mas

 voltou para a pista.O carro d e Jay, que estava n a frente do n osso, capotou.Ele caiu sob re o lad o do mo torista, depoi s sob re a cap ota. Então o Lexus acelerou e bateu com

força bastante para lan çá-lo rodop ian do contra o parapeito da p onte.“Desgraçados”, exclam ei levantando -me do ban co e incli nand o-me em direção ao pai nel d o

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carro. À força de contorções, consegui passar os punh os pel os restos do pára-b risa e fi rmei a m ão no

capô . Ignorando os fragmentos de vidro q ue entravam em m in ha pel e, disparei ma is três tiros contra o Lexus.

Devo ter atingido alguém, porque o Lexus afastou-se do carro de Jay, indo se chocar contra oparapeito sob a última barbatana dorsal com tal violência que ele virou de lado e em seguida para trás, a pesada carcaça do urada d errapan do em n ossa di reção, pela s duas pistas à no ssa frente.

“Volte pra dentro do carro”, gritou Angie enquanto virava o Celica para a direita, tentandoevitar a col isão com o p orta-mala s do Lexus, que surgiu de repen te à nossa frente.

 A massa dourada conti nuava ava nçan do na noi te em nossa di reção. Angie girou o volan tecom as duas mão s, enquanto eu tentava vol tar pa ra o m eu assento.

Nem eu nem Angie conseguim os.Quand o o Lexus ba teu contra o Celica, meu corpo foi lan çado no ar. Passei p or cima do capô

do Celi ca, ind o aterrissar no p orta-m ala s do Lexus feito um b oto, recebend o n o p eito uma saraivada de água e d e cacos de vid ro, sem n em p or isso reduzir a velo cida de. Ao mesmo tempo , ouvi a lguma coisa se chocar contra o cim ento à m in ha di reita, com tal estron do que tive a i mp ressão d e que o céu

no turno se abrira em d oi s. Meu ombro bateu contra a pista e senti al guma coisa q uebrar-se na al tura d a clavícula. Então

rolei pelo chão, rolei e tornei a rolar. Eu segurava firme o revólver, e ele disparou duas vezes enquantoo céu girava lá n o al to e a pon te rodo pi ava embai xo.

Finalmente consegui parar, ficando imóvel sobre um quadril ensangüentado e dolorido. Meuom bro esquerdo estava ao mesmo tempo mo le e en torpecido , e a pel e, lustrosa po r causa d o sangue.

 Mas minha m ão direita ai nd a p odi a em punhar o revól ver, e ainda que o quad ril sobre o q ualeu caíra me parecesse estar crivado de pedras afiadas, as duas pernas estavam firmes. Voltei-me e olheipara o Lexus quando a porta do passageiro se abriu. Ele estava cerca de dez metros atrás de mim, o

po rta-malas preso ao cap ô am assado do Celi ca. Este li berou um j ato de vapo r no m om ento em q ueeu me levan tei um tanto cam ba lean te, sentin do a m istura p astosa de sangue e água escorrend o pel omeu rosto feito m assa de tom ate.

 À mi nha d ireita, do o utro l ad o d a p onte, um jipe preto parara, e o m oto rista gritava p ara m impal avras que se perdiam na ch uva e no vento.

Igno rei-o e con centrei-m e n o Lexus.Nó-Cego caiu sobre um joelho quando descia do Lexus, a camisa branca manchada de

 vermelho, um buraco sangrento ocupan do o lugar onde an tes havi a sua sobrancelha direita.Camba leei em sua di reção enq uanto ele usava o can o d e sua pi stola como apoi o p ara levantar-se dochão. Ele se agarrou à porta aberta do Lexus e ficou olhando para mim; observando o movimentoincessante de seu pomo-de-adão, percebi que ele procurava conter o vômito. Lançou um olharind eciso à arma em sua mão , depoi s olh ou para mi m.

“Não faça i sso”, eu disse.Ele abaixou os olhos, contemplou o próprio peito, o sangue que continuava brotando, e seus

dedos se crisparam no cabo d a p istol a.“Não fa ça isso”, repeti.Por favor, não faça, pensei.

 Mas m esmo assim ele l evantou a arma , piscand o os ol hos sob o aguacei ro, o corpo pequenooscil ando feito o de um bêb ado.

 Atirei duas vezes no meio do peito, n o mom ento em que sua m ão se afastava do quad ril , e elecaiu con tra o Lexus, a bo ca desenha nd o uma o val in di stinta, como se ele estivesse querend o m e fazer

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uma pergunta. Ele tentou agarrar a p orta aberta, mas seu braço desli zou entre o esquad ro da po rta e osuporte do pára-brisa. Seu corpo começou a derrear para a direita, mas o cotovelo ficou preso entre a porta e o carro, e ele morreu ali mesmo — o corpo pendendo para o chão, pendurado no carro,tendo n o olh ar o esboço d e uma p ergunta não fo rmulad a.

Ouvi um som metálico, olhei por cima do teto do carro e vi o sr. Cushing apontando uma espingarda reluzente para mim. Com um olho fechado, um dedo branco e esquelético no gatilho,ele apo ntava para mim e sorria.

E logo uma grande nuvem vermelha irrompeu do meio de sua garganta, derramando-se nocolarinho d a cami sa.

Ele franziu o cenho, tentou levar a mão à garganta, mas antes de conseguir caiu para a frente,batendo o rosto no teto do carro. A espingarda deslizou pelo pára-brisa e foi parar no capô. Ocorpo a lto e ma gro d o sr. Cushi ng se dob rou para a d ireita, desapareceu do outro lad o do carro e fezum ruíd o surdo ao cair no chão .

 Angie surgiu d a escurid ão atrás dele, ai nda brand indo a arma, a chuva chian do no tamborainda quente. Lascas de vidro cintilavam em seus cabelos. Cortes finíssimos cobriam-lhe a pele da fron te e as asas do nariz, ma s ela pa recia ter resistid o m elh or à ba tida d o q ue eu e Nó-Cego.

Eu lh e sorri, e ela respo nd eu com um acen o frouxo.De repente ela olhou para alguma coisa por cima de meu ombro. “Meu Deus, Patrick. Oh, meu

Deus.” Voltei-me e só en tão vi o que p rovo cara o estrondo terrível no momento em que fui atirado

para fora do Celi ca.O 3000 GT de Jay estava de rodas para cima, a uns cinco metros de distância. A parte dianteira 

do carro romp era o p arapeito e pairava sob re o vazi o. Por algum temp o fiq uei espantado em ver queele não caíra da pon te. Só um terço do carro se mantin ha sob re a po nte, preso ap enas pelo concretoquebrado e pelas ferragens retorcidas. Enquanto o observávamos, a dianteira do carro inclinou-se

aind a m ais em di reção ao vazio , a pa rte traseira ergueu-se, e as ferragens rangeram .Corri em direção ao parapeito, caí de joelhos e procurei por Jay. Ele estava de cabeça para baixo em seu banco, preso pelo cinto de segurança, os joelhos encostados no queixo, a cabeça a po ucos centímetros do teto do carro.

“Não se mexa”, eu disse.Seus ol ho s se vol taram pa ra m im . “Não se preocupe. Não vou me m exer.”Olhei para o parapeito molhado e reluzente, que rangeu mais uma vez. Do outro lado havia 

um pequeno ressalto de cimento, nada que pudesse ser considerado um bom ponto de apoio para alguém com mais de quatro anos de idade, mas eu não podia ficar sentado esperando que elecrescesse. Emb aixo, não havia senão o n egro espaço vazio e água d ura com o uma rocha , centenas demetros abaixo.

 Angie ap roximou-se de mim, enquan to uma súbita ven tania varria o golfo. O carro pendeuum p ouco p ara a di reita, dep oi s emb icou um p ouco m ais.

“Oh, não ”, disse Jay. Ele riu fracamen te. “Não, nã o, n ão, n ão.”“Jay”, di sse Angie. “Estou ind o aí .”“Você  ?”, eu di sse. “Não , meu braço é ma is com prid o q ue o seu.”Ela subiu no parapeito. “Pés maiores também, e seu braço está estourado. Você ainda consegue

movê-lo?”Ela não esperou a resposta. Agarrou-se a uma parte do parapeito ainda intacta e começou a 

deslocar-se lentamente em direção ao carro. Fui andando ao seu lado, minha mão direita a poucoscentím etros de seu braço.

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Uma outra ventan ia varreu a chuva, e a po nte in teira p arecia b ala nçar. Angie al can çou o carro, e segurei firme o braço dela com am bas as mão s enquan to ela se

agachava como pod ia.Ela se deb ruçou sob re o parapei to, estendeu o b raço esquerdo, e nesse instante as sirenes soa ram

à d istância.“Jay”, di sse ela .“Sim?”“Eu não o alcan ço.” Ela se ab aixou um po uco m ais, e eu vi os tend ões de seus braços pulsand o

sob a p ele, mas seus dedos não conseguiam alcan çar a m açaneta d a p orta d o carro. “Você vai ter deme ajudar, Jay.”

“Como?”“Você con segue abrir a porta?”Ele esticou o pescoço para conseguir ver a maçaneta da porta. “Nunca fiquei de cabeça pra 

bai xo num carro, sabia?”“E eu nunca me d ebrucei n o p arapeito d e uma po nte, cem m etros acim a d a água”, disse Angie.

“Estamo s pau a p au.”

“Con segui p egar a m açan eta”, di sse ele.“Você vai ter de a brir a p orta e a garrar a m in ha mão ”, di sse Angie, enquanto seu corpo oscilava 

levemente pela ação d o vento.Ele piscou os olhos por causa da chuva que entrava pela janela, encheu as bochechas de ar,

dep oi s sop rou. “Acho que se eu me mexer um cen tím etro, esse troço vai desab ar.”“É um risco que temos de correr, Jay.” Sua mão deslizou em meu braço. Apertei ainda mais, e

seus ded os afund aram ain da m ais em mi nh a carne.“Si m”, di sse Jay. “Mas vou lhe dizer uma coi sa. Eu...”O carro sacolejou, e a ponte inteira rangeu, produzindo desta vez um ruído ensurdecedor que

ma is pa recia um grito, e o cimen to quebrado que sustentava o carro se desin tegrou.“Não, não, não , não , não , não”, di sse Jay.E o carro cai u da p on te.

 Angie gritou pulan do para trás no mom ento em que a ferragem retorcida l he atin gia o braço.Segurei sua m ão com toda a força e p uxei-a p or sob re o parapei to enq uanto suas pernas se agitavamno ar.

Com o rosto dela colado ao meu, o braço agarrado fortemente ao meu pescoço, o coraçãobatendo acelerado contra meu peito, enquanto eu próprio sentia o sangue latejando em meusouvidos, olhamos para o lugar onde o carro de Jay mergulhara em meio à chuva torrencial,desaparecend o n a escurid ão.

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 25

“Ele vai se recuperar?”, perguntou o inspetor Jefferson ao paramédico que examinava meu

ombro.“Ele trin cou uma escápula . Pod e estar quebrada . Só p osso d izer dep oi s do s raios X.”“Uma o q uê?”“Uma om op lata”, disse o p aramédi co. “Está trin cada.”

 Jefferson olh ou p ara ele com ol hos d e sono e b alan çou a cab eça devagar. “Ele vai reagir b empo r mai s algum tempo. Mais tarde vam os pedi r a um m édi co que o exami ne.”

“Merda”, disse o paramédico, e foi a vez dele de sacudir a cabeça. Ele colocou ataduras bemapertadas, que começavam na axila, passavam por cima do ombro, acompanhavam a clavícula,passavam p elas costas e pelo pei to, vol tando em seguid a à axila .

O inspetor Carnell Jefferson fixou em mim seus olhos sonolentos, enquanto o paramédico

contin uava seu trabalh o. Era um negro a lto já próxim o do s quarenta an os, peso e estatura m edi ano s,maxilar arredond ado , um ar descon traíd o e um eterno sorriso n os cantos dos lá bi os. Usava uma cap a de chuva azul-clara sob re terno ma rrom e cami sa b ranca e uma gravata de seda, com m otivo s flo raisem rosa e azul, que pendia, meio de través, do colarinho desabotoado. O cabelo era cortado tãorente que me perguntei por que ele simplesmente não raspava a cabeça. E por mais que a chuva escorresse pel a pele fi rme de seu rosto, ele nunca p iscava os ol hos.

Parecia ser um b om sujei to, o tip o d o cara com q uem se pod e jogar con versa fora na acad emi a de ginástica ou tomar umas cervejas depois do expediente. O tipo do cara que adora os filhos e sótem fantasias sexuais com a própria esposa.

 Mas eu já conh ecera pol iciai s como ele, e sabia por experiên cia própria que nã o se pod econ fia r neles. Numa sala de i nterrogatório , num trib unal p ara arrasar uma testemunha, esse cara legalpode ficar feroz feito um tubarão num abrir e fechar de olhos. Ele era inspetor da delegacia dehomicídios, era jovem e negro, num estado sulista; ele não chegou aonde chegou sendo bonzinhocom suspeitos.

“Então senh or... Kenzi e, não é?”“Sim.”“O senh or é detetive p articular em Boston , correto?”“Foi o que lhe d isse.”

“Ahn ... a cidad e é legal?“Boston?”“Sim. É uma cid ade legal?”“Gosto d e lá.”“Ouvi dizer que é muito bonita no outono”, disse ele franzindo os lábios e balançando a 

cabeça. “Mas ouvi di zer que nã o gostam muito de n egros po r lá.”“Em tod o l ugar existem bab acas”, eu di sse.“Sim, claro. Claro.” Ele esfregou a mão na cabeça, ficou contemplando a garoa por um

instante, depois piscou os olhos por causa da chuva. “Babacas em todo lugar”, repetiu ele. “Então,com o estam os aqui n a chuva faland o am istosamen te sob re relações raciai s, baba cas e coisas do tipo ,

po r que você não me fala desses doi s babacas mortos atrapal han do o trânsito em mi nh a p onte?”Seus olhos indolentes cruzaram com os meus, e por um instante vislumbrei o predador que

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havia em suas profund ezas.“Matei o mai s bai xo com d oi s tiros no p eito.”Ele ergueu as sob rancelh as. “Já tin ha no tado .”“Minha sócia atirou no outro cara quando ele avançava em minha direção com uma 

espingarda.”Ele se voltou e olh ou para Angie, que estava sentada n uma am bulânci a em frente à mi nh a; um

paramédico lhe limpava os cortes do rosto, das pernas e do pescoço com um chumaço de algodãoemb ebi do em ál cool , enq uanto o pa rceiro de Jefferson , o detetive Lyle Van dem aker, a interrogava.

“Cara”, disse Jefferson, assobiando em seguida. “Se entendi bem, além de ser um tremendoavião, ela é capaz de enfiar um balaço na garganta de um sujeito a dez metros de distância, debaixoda m aio r chuvarada ? É uma mulher especia l.”

“Ela é sim”, respo nd i.Ele coçou o queixo e balançou a cabeça como quem cisma consigo mesmo. “Vou lhe dizer

qual é o meu problema com essa história toda, senhor Kenzie. A questão é saber quem na verdadesão os verdadeiros sacanas. Entende o que quero dizer? Você diz que os sacanas são aqueles doiscadáveres ali adiante. E eu gostaria muito de acreditar em você. Puxa, como gostaria. Diabo, gostaria 

muito de di zer ‘Tudo bem ’, apertar a sua m ão e dei xar vocês vol tarem para Boston. Pode acreditar. Ma s se por acaso vo cês estiverem m entin do para m im, e os verdadeiros sacanas aqui forem vo cês, euia fazer um p apelão dei xando -os ir emb ora. E até agora não temos nenh um testemunh o, a não ser a palavra de vocês contra a palavra de dois caras que na verdade não podem nos dar sua palavra po rque vocês, bem... deram al guns tiros neles e os mataram. Está entend end o?”

“Mais ou men os.”No outro lado da ponte, o trânsito parecia muito mais pesado do que certamente costumava 

ser às três da m anh ã, porque a po lí cia transformara a p ista d upl a n a d ireção sul em duas, cada uma emum sentido. E todo carro que passava daquele lado da ponte diminuía a velocidade para dar uma 

olh ada na con fusão que havi a do n osso lad o.Um jipe preto com duas pranchas de surfe verdes amarradas no teto estava parado noacostamento, com o pisca-alerta ligado. Vi que o dono era o sujeito que gritara alguma coisa para mi m p ouco a ntes de eu atirar em Nó -Cego.

O sujeito era um varapau bronzeado, torso nu, com longos cabelos loiros descoloridos pelosol. Ele estava atrás do jipe e parecia estar travando um diálogo exaltado com dois policiais. Eleapo ntou pa ra mi m várias vezes.

Sua companheira, uma jovem tão magra e tão loira quanto ele, estava encostada no capô do ji pe. Quan do seus olhos encontraram os meus, ela fez um aceno a ni mad o, com o se fôssem os vel hosamigos.

Termi nei po r esbo çar um aceno vago, porque achei que seria ind elicado não o fazer, depoi s voltei a m e con centrar no q ue estava à minha vo lta.

O nosso lado estava obstruído pelo Lexus e pelo Celica, por seis ou sete radiopatrulhas verdes ebrancas, vários carros sem o distintivo da polícia, dois carros de bombeiro, três ambulâncias e uma 

 van preta on de se lia a inscrição em letras am arelas PINELLAS COUNT Y MARITIMEINVESTIGATIONS. Alguns minutos antes a van trouxera para a entrada da ponte quatromergulh adores que àquela altura já deviam estar em al gum l ugar, dentro da água, procurando Jay.

 Jefferson con temp lava o buraco deixad o pelo carro de Jay no parapeito. Banh ad o pela luz vermelha dos carros de bo mbeiro, ele p arecia uma ferid a ab erta.

“Fodeu bo nitinh o com m inh a pon te, não foi senhor Kenzie?”“Não fui eu”, respo nd i. “Foram a queles dois sacan as que estão mo rtos.”

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“É o q ue você d iz”, disse ele. “É o q ue você d iz.”O p aramédi co usou uma pi nça p ara retirar pedras e fragmentos de vi dro d e m eu rosto; fiz uma 

careta quando avistei, para além das luzes sinalizadoras e da chuvinha fina, a multidão que seaglomerava do outro lado da barreira. Aquelas pessoas tinham se dado ao trabalho de andar pela po nte às três ho ras da ma nh ã, deba ixo d e chuva, só p ara conseguir um b om lugar de on de se delei tarcom o espetáculo da violência. Pelo visto, o que viam na televisão não bastava. Suas próprias vidasnão b astavam . Nada b astava.

O paramédico retirou um fragmento grande de alguma coisa do meio de minha testa, e osangue começou a brotar do orifício, salpicando a parte superior de meu nariz, chegando tambémaos olh os. Enquanto ele pegava um p ouco d e gaze, pisquei o s ol ho s várias vezes. E no mo men to emque abaixava e erguia as pálpebras avistei, à luz estroboscópica dos veículos de resgate, o brilho deuma o pulenta cabeleira e uma p ele cor de mel no meio da m ultidão .

Inclinei-me para a frente, expondo-me à garoa, para escrutar as luzes que piscavam, e vi-a no vamen te, só p or um i nstante, e achei q ue devi a ter sofrido uma con cussão cerebral quando caí d ocarro, po rque aquil o n ão era p ossível .

 Mas tal vez fo sse.

Por um segund o, através da chuva, da s luzes e do sangue em meus ol hos, meu olh ar cruzou como de Desiree Stone.

E então ela desapareceu.

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 26 

 A Sunshine Skyway li ga doi s municípios. O Ma natee County, no lad o sul, constituíd o por

Braden ton, Palmetto, Lon gboat Key e Anna M aria Islan d. E o Pinel las County, no l ado no rte, quecom preend e S t. Petersburg, St. Petersburg Beach, Gulfp ort e Pinel la s Park. A pol íci a d e S t. Petersburg fora a p rim eira a chegar ao l ocal , da m esma forma q ue seus mergulh ado res e carros de b om bei ro. Porisso, depois de alguma discussão com o Departamento de Polícia de Bradenton, os policiais de St.Pete nos tiraram da p on te, levan do -no s na d ireção norte.

No momento em que saíamos da ponte — Angie presa no banco traseiro de uma radiopatrulha e eu na parte de trás de outra —, os quatro mergulhadores, vestidos com trajes debo rracha d os pés à cabeça, tiravam o corpo de Jay da b aía d e Tam pa, para colocá-lo em seguida na margem coberta de grama .

Quando estávamo s passando , olh ei p ela j anela. Eles colo caram seu corpo mo lh ado na grama,

e a p ele estava b ranca com o a ba rriga de um pei xe. Seus cabel os pretos estavam grudad os no rosto, osol ho s fechad os, a testa cheia d e ferim entos.

Não fossem os ferim entos da testa, pod eria parecer que estava do rmi nd o. Parecia estar em p az.Era como se tivesse catorze an os.

“Bem”, disse Jefferson voltando para a sala de interrogatório. “Trago-lhe más notícias, senhorKenzie.”

Pela forma com o m in ha cab eça latejava, eu tinh a a im pressão d e que uma b and a de p ercussão

se instalara em meu crânio, e minha boca estava com gosto de cabo de guarda-chuva. Eu nãoconseguia mexer o braço esquerdo — e não conseguiria mesmo que as ataduras me permitissem —, eos cortes do rosto e da cabeça agora estavam i nchado s.

“Com o assim ?”, perguntei, a custo. Jefferson col ocou um envel op e na mesa que estava entre nó s, tirou o pal etó, coloco u-o no

enco sto d a cad eira e se sentou.“Esse senh or Graham Clifton — co mo é que você se referiu a ele n a p on te? Nó-Cego?”Fiz q ue sim com a cabeça.Ele sorriu. “Gostei dessa. Bem, Nó-Cego tinha três balas no corpo. Todas de seu revólver. A

prim eira entrou pelas costas e saiu pelo pei to, do l ado di reito.”Eu disse: “Eu falei a você que disparei para dentro do carro em movimento. E que tive a im pressão de ter atin gido alguém”.

“E atingiu”, disse ele. “Aí você o atingiu duas vezes quando ele estava saindo do carro e tudo omais. De qualquer modo, a má notícia não é essa. A má notícia é que você me disse que esse Nó-Cego trabalh ava p ara um tal d e T revor Ston e, de Marbleh ead, Massachusetts?”

Con firmei com a cabeça.Ele olh ou para m im e bal ançou a cabeça d evagar.“Espere um pouco”, disse ele.“O senhor Clifton era empregado da Bullock Industries, uma empresa de pesquisa e

desenvolvim ento situada em Buckhead .”“Buckhead?”, perguntei.

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Ele confirmou. “Atlanta, Geórgia. O senhor Clifton, pelo que sabemos, nunca pôs os pés emBoston.”

“Men tira”, eu di sse.“Acho que não. Falei com seu senh orio, com seu pa trão em Atlanta, com seus vizin ho s.”“Seus vizinh os?”, eu di sse.“Sim. Você sabe o que são vizinhos, não? As pessoas que moram perto de você. Que vêem

 você tod o d ia, dão b om -dia. Bem, há um m onte d e vizi nhos como esses em Buckhead que juram ter visto o senh or Clifton quase todo d ia em Atlan ta, nos últim os dez an os.”

“E o senhor Cushing?”, eu disse, enquanto a bateria martelava seus tambores e batia pratos emmeu cérebro.

“Também era empregado da Bullock Industries. Também morava em Atlanta. Por isso oLexus tinh a p laca d a Geó rgia. E o tal senh or Stone d e que você falou ficou absolutam ente perplexoquand o l iguei p ara ele. Se b em entendi, é um h om em d e negócios já in ativo, sofrendo de câncer emfase termi nal, que o contratou para achar a filha dele. Ele n ão tem a mí ni ma i déia do que o senho restá fazendo na Fl órida . Diz q ue a últim a vez que falo u com o senho r foi h á cin co di as. Ele acha q ueo senhor fugiu da cidade com o dinheiro que ele lhe deu. Quanto ao senhor Clifton e ao senhor

Cushin g, ele d iz que nunca ouviu falar del es.”“Inspetor Jefferson”, eu disse. “O senhor chegou a identificar o verdadeiro proprietário da 

Bullock Industries?”“Qual o seu pal pi te, senh or Kenzie?”“Claro que id entificou.”Ele confirmou com a cabeça e consultou o dossiê. “Claro que identifiquei. O proprietário da 

Bull ock Ind ustries é Mo ore and Wessner Ltda ., uma hol di ng britâni ca.”“E quem é o prop rietário dessa hol di ng?”Ele consultou suas anotações. “Sir Alfred Llewyn, um conde britânico que, pelo que se

comenta, mantém relações com a família Windsor, joga bilhar com o príncipe Charles, joga pô quer com a rain ha , enfim...”“Não é Trevor Stone”, eu di sse.Ele balançou a cabeça. “A menos que ele também seja um conde britânico. E pelo que você

sabe ele n ão é, certo?”“E quan to a Jay Becker? O que o senh or Stone d isse sob re ele?”“A mesma coisa que disse sob re você. O senh or Becker fugiu com o d in hei ro que recebeu dele.”Fechei os olhos para evitar a forte luz fluorescente do teto, tentei controlar o latejar em meu

cérebro apen as com fo rça de von tade. Não ad ian tou.“Inspetor”, eu disse.“Ahn?”“O que o senho r acha que acon teceu na p on te na no ite passada ?”Ele se recostou na cadeira. “Que bom que me perguntou isso, senhor Kenzie. Muito bom.” Ele

me estend eu uma caixa d e chi cletes que tin ha tirado do bo lso d a cam isa. Quand o recusei, ele d eu deom bros e tirou a emb ala gem de um, col ocou-o na bo ca e ficou mascand o p or uns trin ta segund os.

“Você e a sua sócia encontraram Jay Becker e não comunicaram a ninguém. Você resolveuroubar o dinheiro de Trevor Stone e fugir da cidade, mas os duzentos mil que ele lhe deu nãobastavam.”

“Ele fal ou que no s deu duzentos mi l d ól ares?”

Ele confirmou. “Aí vocês encontram Jay Becker, mas ele fica desconfiado e tenta fugir de vocês. Vocês o perseguem ferozmente na S kyway, quand o esses doi s inocentes ho mens de n egóci os surgem

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em seu caminho. Chove, está escuro, o plano vai por água abaixo. Os três carros batem. O carro deBecker cai d a p on te. Por esse lad o, nen hum p rob lem a, mas aí vo cês precisam dar um j eito n os outrosdo is. Então vocês os matam, col ocam armas em suas mão s, estouram o vid ro de trás do carro delespa ra parecer que eles atiraram de d entro do carro. E pron to. A armação está feita.”

“Você n ão acredita nessa versão”, eu di sse.“Por que não?”“Porque é a hi stória ma is estúpi da que já o uvi. E você n ão é estúpi do .”“Oh, obrigado , senh or Kenzie. Por favor, elogie-m e um p ouco m ais.”“Nós quería mo s o d in heiro d e Becker, certo?”“Os duzentos mil que encontramos no porta-malas do Celica, onde havia inúmeras

im pressões digitais de vocês. É desse di nh eiro q ue estamos fala nd o.”“Mas usamos os duzentos mil para tirá-lo da cadeia”, eu disse. “Por que faríamos isso? Para 

trocar um pa cote de d uzentos mi l dó lares po r outro?”Ele me fitou com seus ol ho s de p redad or e não d isse nad a.“Se tivéssemos colocado armas nas mãos de Cushing e de Clifton, por que Clifton tinha 

resíd uos de pó lvo ra na s mão s? Porque ele tinh a, não tin ha ?”

Nenh uma respo sta. Ele ficou ol ha nd o para mim , esperand o.“Se atiramos o carro de Jay Becker para fora da ponte, por que os estragos causados pela batida 

foram todo s provocados pelo Lexus?”“Con tinue”, di sse ele.“Sab e q uanto cob ro pa ra procurar pessoas d esapa recida s?”Ele bal ançou a cabeça.Eu lh e di sse. “Você nã o a cha que isso é muitíssim o m enos do q ue os duzentos mi l?”“Acho.”“Por que Trevor Stone gastaria pelo menos quatrocentos mil dólares com dois detetives

pa rticulares di ferentes para achar sua filh a?”“O ho mem está desesperado. Está p ra morrer. Quer sua fi lh a em casa.”“E gasta meio mi lh ão d e dólares. Isso é um b om di nh eiro.”

 Jefferson levan tou a mão di reita em minha direção, pal ma para cima. “Por favor”, di sse ele.“Continue.”

“Dan e-se”, eu disse. As pernas dia ntei ras de sua cad eira vol taram ao ch ão . “O quê?”“Você me ouviu. Quero que se dane e que você se foda. Sua teoria é um monte de besteira. Nós

dois sabemos disso. E ambos sabemos que ela não se sustenta num tribunal. Qualquer júri a acharia ridícula.”

“É mesmo? ”“É.” Olhei para ele, depois dirigi o olhar para um ponto acima de seus ombros, para que seus

superiores, ou quem quer que estivesse por trás do espelho sem película, também vissem meus olhos.“Aí está você com três cadá veres, uma po nte avariada e m anch etes e, pel o q ue supo nh o, ma nchetesde primeira página. E a única história que faz sentido é a que eu e minha sócia estamos contando a 

 você n as últim as doz e h oras. Mas vo cê n ão pod e co rrob orá-la.” Fi xei o ol har nos o lhos del e. “Pelomen os é o que você diz.”

“É o q ue eu digo? Que quer dizer com isso, senh or Kenzi e? Vam os, não se acan he.”“Havia um cara do outro lado da ponte que parecia um surfista. Vi policiais interrogando-o

dep oi s que você chegou. Ele vi u o q ue acon teceu. Ou pelo men os uma pa rte.”Ele abriu um sorriso. Um sorriso l argo. Chei o d e dentes.

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“O cavalheiro em questão”, disse ele consultando suas notas, tem sete condenações nas costas,entre outras coisas po r dirigir alcooli zad o, posse de maco nh a, de cocaín a, de Ecstasy, de...”

“O que o senh or está me d izen do é que ele sofreu cond enações, inspetor. Já en tendi . O que issotem a ver com o q ue ele presencio u na p on te?”

“Sua m ãe nunca lh e falo u que é falta d e educação i nterrom per a fala d os outros?” Ele ap on touo dedo em minha direção. “O cavalheiro em questão estava dirigindo com carta de motorista 

 ven cid a, não passou no exam e de bafô metro e estava p ortan do m aconha. Sua ‘testem unh a’, se é issoo que o senhor imagina que ele seja, senhor Kenzie, estava sob o efeito de pelo menos duas drogasalucinógenas. Ele fo i p reso p ouco d epo is que saím os da po nte.” Ele se in clin ou para a frente. “Assimsend o, conte-me o que aconteceu na p on te.”

Inclinei-me para a frente, desafiando o olhar ameaçador fixo em mim. E não foi nada fácil,podem acreditar. “A única coisa que você tem é minha sócia e eu com armas ainda fumegantes, euma testemunha em que se recusa a acredi tar. E po r isso n ão vai no s li berar, não é, inspetor?”

“Entendeu perfeitamente a situação, senhor Kenzie”, disse ele. “Portanto, conte-me a história novamente.”

“Negativo.”

Ele cruzou os braços sob re o p eito e sorriu.“‘Negativo’? Você disse ‘negativo’?”“Isso mesmo.”Ele se levantou, pegou a cadeira, deu a volta à mesa com ela e colocou-a junto da minha.

Sentou-se nela, e seus lábios roçaram meus ouvidos quando ele sussurrou: “A única coisa que tenho é você, Kenzi e. S aco u? E você é um sacan a dum irlan dês conven cido , b ranco , o que signi fica que j á tive raiva de vo cê de cara. Diga-me en tão o que você vai fazer”.

“Quero meu advogado ”, eu di sse.“Não ouvi o q ue você d isse”, sussurrou ele.

Ignorei-o e dei um tapa na mesa. “Quero meu advogado”, gritei para as pessoas que estavamatrás do espel ho .

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 27 

 Meu advogado, Cheswick Hartman , pegou o avi ão em Boston uma hora depoi s de receber o

meu telefonem a às seis da man hã .Quando ele chegou ao quartel da polícia de St. Petersburg, na First Avenue North, ao meio-dia, eles se fizeram de bobos. Como o incidente se dera numa terra de ninguém entre o municípiode Pinell as e o de M anatee, eles o m andaram p ara M anatee e para o Departamento de Polí cia deBraden ton, fingin do i gnorar on de estávamos.

Em Bradenton, eles deram uma olhada no terno de dois mil dólares de Cheswick e na mala Louis of Boston que ele trazia n a m ão, e resol veram sacanear com ele m ais um po uco. Ele só chegou a St. Pete às três da tarde. O calor estava insuportável, e Cheswick estava furioso.

Conh eço três sujeitos com quem n in guém nunca deve se m eter. E quand o falo nunca, é nunca mesmo. Um é Bubb a, por mo tivos óbvio s. O outro é Devin Amron kli n, um p ol icial da Delegacia d e

Homicídios de Boston. O terceiro é Cheswick Hartman, que pode ser muito mais perigoso queBubba ou Devin, porque tem m uito ma is armas em seu arsena l.

É um dos maiores advogados criminalistas não apenas de Boston mas também do país. Elecobra cerca de o itocentos dól ares por hora po r seus serviços, e nunca l he fal ta trabalh o. Tem im óvei sem Beacon Hil l e n a Carol ina do Norte e uma casa de veraneio na i lh a de M aio rca. Tem tambémuma irmã, Elise, que eu livrei de uma situação perigosa alguns anos atrás. Desde então, Cheswick recusa-se a aceitar dinheiro de mim, e se dispõe a viajar dois mil quilômetros de avião, uma hora dep oi s de receber meu ped id o d e socorro.

 Mas para fazer i sso deve bagunçar tod a a sua agenda, e quan do ele perde ai nd a mai s tem po

com policiais caipiras de maus modos, sua pasta e sua caneta Montblanc se transformam em arma nuclear e detona do r.Pelo vi dro im und o d a sala d e in terrogatório , através de venezi ana s ain da m ais im und as, eu via 

a sala d e reuni ões da d elegacia. Vinte m in utos depois que Jefferson deixou a sala de i nterrogatório , a súbita irrupção de Cheswick, seguido de uma coorte de policiais de alta patente, provocou uma puta confusão n a sala.

Os policiais gritavam com Cheswick, discutiam entre si, falavam repetidas vezes o nome deefferson e do tenente Grimes, e na hora em que Cheswick abriu a porta da sala de interrogatório,efferson tamb ém se juntara ao grupo .

Cheswick olh ou para mi m e d isse: “Tragam água para meu cli ente. Já”.Um dos policiais de alta patente voltou para a sala de reuniões, enquanto Cheswick e osdem ais entravam . Cheswick in clin ou o corpo sobre mi m e o lh ou para o meu rosto.

“Maravilha”, disse ele voltando a cabeça e olhando para um homem suarento e de cabelosbrancos, com di visas de capitão no uni forme. “Pelo men os três desses cortes faciai s estão i nfectados.Pelo q ue sei ele está com uma om op lata q uebrada, m as só estou vend o uma atadura.”

O capitão di sse: “Bem...”.“Há quan to temp o você está aqui?”, perguntou Cheswick.“Desde três e quarenta e seis da manhã”, eu di sse.Ele con sultou o relógio. “Sã o quatro da tarde.” Ele o lh ou para o capi tão cob erto de suor. “Seu

departamento é culpado de violação dos direitos civis de meu cliente, e isso é crime de jurisdiçãofederal.”

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“Não é à toa que sou o m elh or”, di sse Cheswick.

* Em 1991, quatro p ol iciais m altrataram o cida dão Ro dn ey Kin g em Los Angeles, sofreram

processo e fo ram p uni do s severam ente. (N. T.)

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 28 

 Às no ve da noite, fomos lib ertado s.

Nesse meio tempo, um médico me examinara no Bayshore Hospital, com dois agentespostados o tempo todo a três metros de distância. Ele limpou meus ferimentos e me deu um anti-séptico pa ra evitar no vas infecções. As radi ografias mo stravam que min ha om op lata estava trin cada,mas não quebrada. Ele aplicou novas ataduras, deu-me uma tipóia e me recomendou que não

 jo gasse futebol por pelo m enos três meses.Quando lhe perguntei sobre o efeito combinado da omoplata trincada com os ferimentos

que recebera na luta con tra Gerry Glynn no a no anterio r, ele ol ho u pa ra a mi nh a mão .“Está entorpecida?”“Totalmente”, respondi.“Houve uma lesão n o nervo.”

“Si m”, eu di sse.Ele bala nçou a cabeça. “Bem, não vam os precisar am putar o braço.”“Bom saber.”Ele me olhou pelos pequenos óculos fundo de garrafa. “Você está reduzindo muito sua 

expectativa de vi da, senh or Kenzie.”“Estou com eçando a m e dar con ta disso.”“O senh or pensa em ter filho s algum d ia?”“Sim ”, respo nd i.“Com ece agora”, di sse ele. “Quem sab e po derá viver para vê-los termin ar o segund o grau.”

* * *

Quand o estávamos descendo a escada da delegacia de po lí cia, Cheswick disse: “Desta vez vocêse meteu com o ca ra errado”.

“Sem brincad eira”, di sse Angie.“Não ap enas não há nen hum registro d e Cushi ng ou Cli fton trabalh and o p ara ele, mas sabe o

 ja to que vocês me d isseram ter tom ad o? O único jato particular q ue p artiu naq uela data do Logan Airport en tre a s no ve da man hã e o meio-dia foi um Cessna, nã o um Gulfstream, e com destino a 

Dayton, Oh io .”“Com o se con segue com prar o silênci o de todo um aerop orto?”, disse Angie.“E não de um aeroporto qualquer”, disse Cheswick. “O Logan orgulha-se de ter o mais eficiente

e rigoroso sistema de segurança do pa ís. E Trevor Ston e tem po der bastante para n eutrali zá-lo.”“Merda”, eu disse.Paramos diante da limusine que Cheswick alugara. O chofer abriu a porta, mas Cheswick 

bal anço u a cabeça e vol tou-se para nós.“Vocês voltam comigo?”Balancei a cabeça, e me arrependi imediatamente de ter feito isso. A bateria ainda devia estar

tocando dentro d ela.“A gente tem umas coisas a acertar por aqui”, disse Angie. “E ainda temos de pensar o que fazer

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em relação a T revor antes de vo ltarmo s.”“Querem um conselh o?”, di sse Cheswick jogan do sua pasta na pa rte de trás da lim usine.“Claro.”“Man tenham di stância d ele. Fiquem p or aqui até ele morrer. Tal vez ele os deixe em paz.”“Não p od emo s fazer isso”, disse Angie.“Era o que eu imaginava”, disse Cheswick com um suspiro. “Ouvi uma história sobre Trevor

Stone. É só um boato. Fofoca. Pelo que se diz, um líder sindical de El Salvador estava causandoproblemas no começo da década de 70, pondo em risco os negócios de Trevor Stone noben eficiam ento d e ban ana , abacaxi e café. Então Trevor, pel o q ue se di z, deu alguns telefon emas. Eum dia os operários de uma de suas usinas de processamento de café estavam trabalhando numa cuba de grãos de café e ach aram um pé. Depo is um b raço. Depoi s uma cabeça.”

“Do lí der sin di cal”, disse Angie.“Não”, disse Cheswick. “Da fil ha do lí der sin di cal, de seis anos de i dad e.”“Meu Deus”, exclamei.Cheswick bateu no teto da limusine distraidamente, olhou para a rua banhada numa luz

ama rela. “O líder sin di cal e sua m ulh er desapareceram . Foram para a l ista d e ‘desaparecido s’ de lá. E

ni nguém nunca ma is pen sou em fazer greve na s fábricas de T revor Ston e.”Trocamo s apertos de m ãos e ele entrou na li musin e.“Só mai s uma coisa”, di sse ele a ntes de o cho fer fechar a po rta.Incli nam o-no s para ouvi-lo .“Invadiram os escritórios da Hamlyn and Kohl há duas noites. Roubaram todos os

equipam entos. Dizem que eles perderam um b om di nh eiro em má quinas de fax e copi ado ras.”“Acredito”, disse Angie.“E é pra acreditar mesmo. Porque os ladrões tiveram que matar Everett Hamlyn a tiros para 

con seguir o que queria m.”

Ficamos em silêncio enquanto ele entrava na limusine e esta subia a rua e virava à direita, emdireção à auto-estrada. A mão de Angie p rocurou a mi nha. “Si nto muito”, sussurrou ela. “Por Everett e por Jay.”Pisquei para livrar-me d e uma coisa que me in com od ava em m eus ol ho s.

 Angie apertou min ha mão um po uco m ai s.Olh ei p ara o céu e aquele espl ênd id o m atiz de a zul m e pareceu artificia l. Havia o utra coi sa que

eu vinha observando por ali: aquele estado — tão exuberante, tão opulento e colorido — parecia uma falsificação se com parado às regiõ es men os opulen tas do no rte.

Há algo de feio n a perfeição.“Eles eram ho men s bo ns”, di sse Angie b rand am ente.Fiz que sim com a cabeça. “Eles eram bel os.”

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 29 

Fomos para a Central Avenue e andamos até um ponto de táxi que nos fora indicado, com

muita má vontade, po r um p oli cial de p lantão.“Cheswick disse que eles vão voltar à carga por porte ilegal de armas, por efetuar disparos na zon a urba na, coisas do tipo .”

“Mas nad a d isso vai pegar”, di sse Angie.“Provavel men te não .”Chegam os ao p on to de táxi, mas estava vazio . A Central Avenue, ou pel o m enos a p arte on de

estávamos, não nos parecia um lugar muito amistoso. Três bêbados disputavam uma garrafa ou umcachimbo no estacionamento cheio de lixo de um depósito de bebidas incendiado. Do outrolado da rua, vários adolescentes maltrapilhos, instalados num banco em frente a um Burger King,espreitavam uma presa eventual, passando um baseado de mão em mão, e chegaram a examinar

 Angie. Tenho certeza de que as atad uras em meu o mbro e a tip ói a me fizeram parecer um tantoindefeso, mas aí eles olharam mais de perto, e encarei um deles até ele voltar a cabeça,concen trand o-se em outra coisa.

O ponto de táxi era uma espécie de meia-água de plexiglas, e, vencidos pelo calor, nosapo iam os por um in stante na p arede.

“Você está com uma aparência h orrível ”, disse Angie.Ergui uma sobrancelha e passei em revista os cortes em seu rosto, o olho direito meio

arroxeado, o lanho em sua panturrilha. “Já você...”Ela me deu um sorriso cansado e nos deixamos ficar encostados na parede, em completo

sil êncio , po r um m in uto inteiro.“Patrick.”“Sim?”, eu di sse, de olho s fechad os.“Quand o eu saí d a am bulânci a na po nte, e eles me levaram p ara a radi op atrulh a, eu...”

 Abri o s ol hos e olhei p ara ela. “O quê?”“Acho q ue vi uma coi sa estran ha . E não quero q ue você ria.”“Você vi u Desiree Ston e.”Ela se afastou da parede e b ateu em m in ha ba rriga com as costas da m ão. “Não é p ossível ! Você

tamb ém a viu?”

Passei a mão na ba rriga. “Eu também a vi .”“Você acha que era um fan tasma ?”“Não, não era um fantasma”, eu di sse.

Nossos quartos no hotel tinham sido revirados enquanto estávamos fora. A princípio penseique era obra dos homens de Trevor, talvez Nó-Cego e Cushing, antes de virem atrás de nós, mas aíenco ntrei um cartão de vi sita em meu travesseiro.

Nele se li a: INSPETOR CARNELL JEFFERS ON.Dobrei novamente as minhas roupas e as recoloquei na mala, empurrei a cama para junto da 

pa rede e fechei toda s as gavetas.“Estou com eçand o a o di ar esta cid ade”, disse Angie en trand o no quarto com duas garrafas de

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Dos Equis. Nós as levamos para a sacada, deixando as portas de vidro abertas. Se no quarto houvesseaparelhos de escuta colocados por ordem de Trevor, isso não faria a menor diferença, porque dequalquer forma já estávamos em sua lista negra; nada do que disséssemos mudaria sua decisão defazer con osco o q ue fizera com Jay e Everett Haml yn e estava tentand o fazer com sua fil ha, q ue nãoqueria fazer o obséquio de morrer. Se houvesse escuta dos policiais, nada do que disséssemos seria di ferente do q ue disséramo s na d elegacia, porque não tính amo s nad a pa ra escond er.

“Por que Trevor deseja tanto a m orte da fil ha?”, perguntou Angie.“E po r que ela se obstina em con tinuar viva ?”“Uma coisa d e cada vez.”“Tudo bem.” Apoiei meus tornozelos no parapeito e beberiquei minha cerveja. “Trevor quer

matar a filha po rque, sabe-se lá co mo , ela d escobriu que ele m atou Lisardo .”“E por que ele m atou Lisardo?”Olhei pa ra ela. “Porque...”“Sim?”, disse ela acen den do um ci garro.“Não tenho idéia.” Dei um trago em seu cigarro para controlar o efeito da adrenalina que

circula va em meu sangue desde q ue eu fora atirado p ara fora do carro, vinte horas antes.

Ela pegou o cigarro d e volta e ficou olh and o p ara ele. “Mesmo que ele tenha m atado Lisardo eque ela tenha descoberto — ainda assim —, por que haveria ele de matá-la? Ele estaria morto antesde um julgamento, e seus advogados o manteriam fora das grades até lá. Então, por que toda essa sanha?”

“Pois é.”“E depo is, tod a essa h istória d e agoni a...”“O quê?”“A maio ria das pessoas que estão à mo rte tenta se reconcili ar com Deus, com a fam íl ia, com o

mundo em geral.”

“Mas Trevor não.”“Exatamente. Se ele está mesmo para morrer, o seu ódio por Desiree deve ser tão profundo quefoge à comp reensão da mai oria d as pessoas.”

“Se é q ue ele está m orrendo ”, eu di sse.Ela concordou com um gesto de cabeça e apagou o cigarro. “Vamos considerar essa 

po ssib il id ade p or um in stante. Com o p od emo s ter certeza de q ue ele está p ara morrer?”“Basta olh ar bem pa ra ele.”Ela abriu a boca como para responder, mas logo a fechou e abaixou a cabeça em direção aos

 jo elhos p or um instan te. Quand o levan tou a cab eça, afastou os ca belos do rosto e recostou-se na cadeira. “Tem razão ”, di sse ela. “Grande b ob agem. O sujeito já está com um pé n a cova .”

“Então”, eu disse, “estamos de volta ao princípio. O que faz um sujeito odiar alguém, masespecialmente o sangue de seu sangue, ao ponto de decidir gastar seus últimos dias entregando-se a uma verdad eira caçada?”

“Jay insinuou uma hi stória d e in cesto”, di sse Angie.“Certo. Papai ama demais sua filhinha. Eles têm uma relação marital, até que aparece alguém

para atrapalh ar.”“Antho ny Lisardo . De vol ta a ele, mais uma vez.”Balan cei a cabeça. “Aí o pap ai acab a com ele.”“E com o i sso a conteceu lo go dep oi s da mo rte da m ãe, ela entra em dep ressão, con hece Price,

que man ip ula seu sofrimen to e a envo lve no roubo d e doi s mi lh ões.” Voltei a cabeça e olhei p ara ela. “Por quê?”

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“Você po de repetir?”“Ela é uma mulher bonita. É só o que sabemos sobre ela, porque é a única coisa que pudemos

testemunhar. Tudo o mais que sabemos sobre ela é de ouvir falar. Seu pai nos disse um monte decoisas sob re ela, m as com certeza pen sa o contrário , não é?”

“Sim.”“E o q ue ele nos disse no p rin cíp io é verdade?”“Você se refere àquela h istória de dep ressão?”“Refiro-me a tudo . Zumb i d iz q ue ela é uma criatura bon ita, maravilh osa. Mas Zumb i traba lh a 

para Trevor, por isso p od emo s concl uir que ele men te o temp o tod o.”Os olhos dela agora cintilavam. Ela endireitou o corpo. “E com certeza Jay estava totalmente

enganad o q uand o n os disse que ela mo rrera.”“Exatamente.”“E todas as suas imp ressões sob re ela p od em ter sido totalm ente equivo cadas.”“Ou embo tadas pelo amo r ou pela pai xão.”“Ei”, di sse ela.“O quê?”

“Se Desiree não morreu, de quem era o corpo com o suéter de Jay e o rosto destruído pelo tirode espi ngarda?”

Peguei o telefone d o q uarto, levei-o à sacada e l iguei p ara Devin Amronkli n.“Você con hece a lgum po li cial de Clearwater?”, perguntei.“Devo conhecer alguém que conhece alguém.”“Você pode se informar se identificaram uma mulher assassinada a tiros no Ambassador

Hotel, q uatro d ia s atrás?”“Passe o seu número.”Eu pa ssei, e Angie e eu giram os no ssas cadei ras até ficarem frente a frente.

“Supo nh am os que Desiree não seja essa m aravilh a tod a”, eu di sse.“Vamos supo r coi sa ai nd a p io r”, di sse ela. “Vamos con sid erar que ela é filha de q uem é e que ofruto nunca cai lo nge da á rvore. E se ela tiver in duzido Price a p lan ejar o roubo ?”

“Com o ela h averia de saber que o d in hei ro estava lá ?”“Não sei. Depoi s a gente pen sa nisso. Então el a leva Price a cometer o roubo ...”“Mas depo is de algum temp o Price pensou: ‘Ei, essa m oça n ão é b oa co isa. Ela vai me ch utar na 

prim eira oportuni dad e’, e então ele se livra dela.”“E leva o di nh eiro. Mas ela o quer de volta.”“Mas não sabe on de ele o escond eu.”“E aí ap arece Jay.”“O in strumen to ideal p ara pression ar Price”, eu di sse.“Então Desiree tem um palpite de onde possa estar o dinheiro. Mas ela tem um problema. Se

ela sim pl esmen te o roubar, vai ter atrás dela n ão a pen as o pai , mas tamb ém Price e Jay.”“Então o id eal é estar morta”, eu di sse.“E ela sabe que Jay vai acertar as con tas com Price.”“E com certeza vai pa rar na cad eia po r causa d isso.”“Será que ela po de ser tão vil ?”, disse Angie.Dei de o mb ros. “Por que nã o?”“Então el a está m orta”, di sse Angie. “E Price tamb ém. E dep oi s Jay. Nesse caso, po r que aparecer

ontem à noi te?”Eu não sabia respon der a essa questão.

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 Angie também n ão . Mas Desiree sim .Ela irrom peu na sacada de arma em punho e di sse: “Porque preciso d a ajuda d e vocês”.

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 30 

“Bela arma”, eu di sse. “Você a escolh eu pa ra com bi nar com a roupa , ou foi o contrário ?”

Ela veio para a sacada, a arma tremendo levemente em sua mão, apontada para um pontoqualquer entre o na riz d e Angie e mi nh a bo ca.“Escutem aq ui”, di sse Desiree. “Caso vo cês nã o ten ha m no tado , estou nervosa, não sei em quem

confi ar e preciso de sua aj uda, m as não sei se po sso co nfiar em vo cês.”“Tal p ai, tal filh a”, di sse Angie.Dei uma pal mad inh a em seu jo elho . “Ti rou as pal avras de min ha bo ca.”“O q uê?”, disse Desiree.

 Angie tom ou um gol e de cerveja e olhou para Desiree. “S eu pai , senhorita Ston e, n os raptoupara poder conversar conosco. Agora você está apontando uma arma para nós, pelo visto pela mesma razão.”

“Sinto muito, mas...”“Não gostamos de armas”, eu disse. “Com certeza Nó-Cego lhe diria isso se ainda estivesse

 vivo.”“Quem?”, disse ela colocan do -se pruden temente atrás de mi nh a cad eira.“Graham Clifton”, disse Angie. “A gente o cham ava d e Nó-Cego.”“Por quê?”“Por que não?”, eu disse voltando a cabeça. Ela avançava lentamente ao longo do parapeito,

parando em seguida a uns dois metros de nós, a arma sempre apontada para o espaço entre mim e Angie.

E, Deus meu, como era b on ita. Eu nam orei m uitas mulh eres bon itas em m in ha vid a. Mulheresque julgavam os próprios méritos pela a pa rência física, porque o m und o a s julgava po r esse mesmopadrão. Esbeltas ou voluptuosas, altas ou baixas, mulheres lindas de doer que faziam os homens à sua 

 volta perderem a fa la. Mas n enhuma chegava ao s pés d e Desiree. S ua perfeiçã o física era pal pável. Sua p ele parecia 

recobrir ossos que eram ao mesmo tempo delicados e pronunciados. Seus seios, livres de sutiã,avultavam contra o fino tecido do vestido cada vez que ela inspirava. O próprio vestido, uma coisinha sim pl es de al godão cor de pêssego, talh ado para ser funcion al e folgado, não po dia fazergrand e coi sa p ara escond er as li nh as vigorosas de seu abd om e nem as lin ha s graciosas e firmes de suas

coxas.Seus olho s de jade cin til avam, e pareciam ain da m ais brilhan tes por causa do nervosismo e docáli do tom do urado do p ôr-do-sol q ue sua pel e refletia.

Ela n ão ignorava, po rém, o efeito q ue prod uzia . Durante toda a n ossa con versa, seu ol ha r mal sedirigia a Angie. Mas quando falava comigo, mergulhava seus olhos nos meus, inclinando-se emmi nh a di reção de forma quase im perceptível.

“Sen ho rita Stone”, eu disse. “Largue essa a rma.”“Não po sso fazer isso. Eu não... quer dizer, não sei se...”“Largue essa arma o u atire em nó s”, disse Angie. “Você tem cinco segund os.”“Eu...”

“Um”, disse Angie.Seus ol ho s se encheram de l ágrim as.

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“Dois.”Desiree olh ou para mi m, mas fiquei im passível .“Três.”“Escutem...”“Quatro”, disse Angie virando a cadeira para a direita, e o metal raspou no concreto fazendo

um p equeno ruíd o.“Não se mexa”, disse Desiree, vol tand o p ara Angie a arma trêmula .“Cin co”, disse Angie leva ntand o-se.Desiree apo ntou-lhe a arma com as mãos trêmulas, e eu dei um tapa co m força em sua m ão.

 A arma bateu no parapeito, e eu a peguei an tes que pudesse cai r no jardi m, seis an da res ab ai xo.E foi uma sorte, porque quando olhei para baixo vi alguns meninos brincando no parquinhopróximo ao jardim do h otel.

Olh e o que eu achei , mam ãe. Bum.Desiree mergulh ou o rosto nas mã os po r um in stante, e Angie ol ho u pa ra m im .Dei de ombros. A arma de Desiree era uma pistola automática Ruger, calibre vinte e dois. Aço

inoxidável. Ela me pareceu leve em minha mão, mas não se deve confiar nesse tipo de impressão

quand o se trata de arma de fogo. Arma s nunca são leves.Ela não mexera na trava de segurança. Eu tirei o carregador da arma, apoiando-o na minha 

tip óia, p ara em seguid a colo cá-lo n o b ol so d ireito, e a pi stola no bo lso esquerdo .Desiree levantou a cabeça, os olhos vermelhos. “Não suporto mais.”“Não supo rta o quê?”, perguntou Angie trazen do mais uma cadeira. “Sente-se.”Desiree se sentou. “Isto. Armas, morte e... Por Deus, não suporto mai s...”“Você roubou a Igreja da Verdad e e da Revelação?”Ela fez que sim com a cabeça.“A idéia foi sua, não de Price.”

Ela fez um meio sinal com a cabeça. “A idéia foi dele. Mas eu o estimulei depois que ele mefalou.”“Por quê?”“Por quê?”, disse ela, as lágrimas a escorrer-lhe pelas faces, caindo nos joelhos, logo abaixo da 

barra do vestido. “Por quê? A gente tem de...” Ela aspirou o ar pela boca, levantou os olhos para o céu,enxugou os olh os. “Meu pa i m atou mi nh a m ãe.”

Por essa eu não esperava. Lancei um o lh ar a Angie. Ela tamb ém n ão.“No aci den te de carro q ue quase o m atou?”, di sse Angie. “Está faland o sério ?”Desiree ba la nço u a cab eça várias vezes.“Vamos tirar tudo a limpo”, eu disse. “Seu pai forjou um acidente de carro. É isso o que quer

dizer?”“Sim.”“E pagou aq ueles ho men s pa ra lhe d arem três tiros?”“Isso não estava n os pl ano s”, disse ela.“Bem, dá pra ima ginar que não”, di sse Angie.Desiree olhou para Angie e piscou os olhos. Em seguida olhou para mim, olhos bem abertos.

“Ele já pagara os homens. Quando tudo deu errado e o carro capotou, eles entraram em pânico eatiraram n ele depo is de matar mi nh a mãe.”

“Men tira”, di sse Angie.

Os olh os de Desiree se arregalaram ai nd a m ais. Ela vol tou a cab eça pa ra um p on to neutro entrenó s do is, e po r um i nstante ficou fitand o o chão .

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“Desiree”, eu disse. “Essa história tem tantos furos que parece um queijo suíço.”“Por exemp lo ”, disse Angie. “Por que os caras, que foram p resos e julgados, não con taram tudo à 

polícia?”“Porque eles não sabi am que meu pai os tinh a con tratado”, di sse ela . “Certo d ia alguém entra 

em con tato com uma pessoa e a con trata para matar uma mulher. O marid o vai estar com ela — d iz a tal pessoa — mas não deve ser mo rto. Só el a.”

Pensamo s naq uela h istória por algum temp o.Desiree ficou nos observando, depois acrescentou: “Havia uma série de intermediários.

Quand o a coisa chegou aos verdad eiros assassin os, eles não sabi am de o nd e pa rtira a ordem”.“Mai s uma vez: p or que, então , atirar em seu pai?”“Só posso lhes dizer o que já disse antes — eles entraram em pânico. Vocês leram sobre o

caso?”“Não”, respo nd i.“Se tivessem lido, iam ver que os três assassinos não são o que se pode chamar de brilhantes.

Eram uns garotos estúpidos, e não foram contratados por causa de sua massa cinzenta. Foramcontratados porque po di am matar uma pessoa sem p erder o sono po r causa d isso.”

Olh ei pa ra Angie n ovam ente. Era um troço com pl etamente ab struso, estranh o, m as de certa forma fazia al gum sentido.

“Por que seu pai queria matar sua m ãe?”“Ela estava querendo divorciar-se dele. E queria metade de sua fortuna. Se o caso fosse ao

tribunal, ela iria revelar todas as coisas sórdidas de sua vida conjugal. Que ele a comprou, que me viol ou quan do eu tinh a catorze an os e conti nuou me mol estand o ao lon go do s anos, mil outrospodres que ela sabia dele.” Ela fitou as próprias mãos, virou as palmas para cima, depois novamentepa ra bai xo. “A alternativa era ma tá-la. Ele j á fizera isso com o utras pessoa s.”

“E ele q uer ma tá-la p orque você sab e di sso”, di sse Angie.

“Sim”, disse ela, e a pala vra lh e saiu quase com o um silvo.“Como você sabe?”, perguntei.“Quando ele voltou do hospital, depois da morte dela, ouvi-o conversando com Julian e

Graham . Ele estava furio so po rque os três assassin os tinh am sid o presos, em vez de ser elim in ado s,pura e sim plesmen te. Para sua sorte, os três rap azes foram pegos com as arma s na m ão e con fessaram.Caso contrário, meu pai teria contratado um bom advogado e comprado um ou dois juízes para tirá-los da cadeia. E mal os dois pusessem os pés na rua, ele os mandaria torturar e matar.” Por uminstante ela ficou mo rdend o o láb io inferior. “Meu pai é o h om em m ais perigoso d o m undo .”

“Nós tam bém estamos com eçand o a ach ar isso”, eu di sse.“Quem era a mulh er que foi m orta no Am ba ssad or Hotel?”, perguntou Angie.“Não q uero fal ar sob re isso.” Ela ba lan çou a cabeça, depo is levan tou os jo elh os até a altura d o

queixo, pôs os pés na b orda d a cadei ra e ab raçou as próp rias pernas.“Você não tem escolh a”, disse Angie.“Oh, meu Deus.” Ela encostou a cabeça no s joel ho s por um in stante, os ol ho s fechad os.

 Alguns instan tes depoi s eu disse: “T ente outro ca minho. Por que você fo i a o h otel? Por que derepen te você acho u que sabia o nd e estava o dinh eiro?”.

“Por uma coi sa que Jay falou”, di sse ela aind a de ol ho s fecha do s, a vo z quase um sussurro.“O que Jay di sse?”“Ele di sse que o quarto de Price estava cheio de b aldes de água.”

“Água.”Ela levantou a cabeça. “Na verdade baldes de gelo já meio derretido. E eu lembrei que vira a 

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mesma coisa num dos motéis em que paramos durante a viagem. Price e eu. Ele ia muitas vezes à máq uina de gelo. Ele p egava um p ouco de gelo d e cada vez, nunca enchi a o bal de. E ficava di zendoque gostava de seus drin ks bem gelad os. E usava pa ra isso gelo recém-tirado da m áq uin a. Segund o el e,o gelo que ficava em cim a era mel ho r, porque os hotéis nunca substituíam o gelo sujo e a á gua q ueficava no fund o. Lembro-me d e ter percebid o q ue ele estava contand o um mo nte de men tiras, ma snão sabia po r quê, e na ocasião eu estava exausta dema is para m e preocupa r com aquilo . Além di ssoeu começara a ter medo dele. Ele tirou o dinheiro de mim na nossa segunda noite de viagem e nãoquis me dizer onde ele estava. De qualquer modo, quando Jay mencionou os baldes, comecei a pen sar no co mp ortamen to de Price na Carol in a do S ul.” Ela se voltou pa ra mi m e me b rin do u comos seus lumi no sos olh os de ja de. “Estava emb aixo do gelo.”

“O dinheiro?”, perguntou Angie.Ela fez que sim. “Num saco de lixo, no fundo da máquina, no quarto andar, na frente de seu

quarto.”“Bem ousado”, eu disse.“Mas não era fácil chegar até ele”, disse Desiree. “Era preciso retirar todo o gelo; forçando os

braços pela peq uena a bertura d a m áquina. Foi assim que Price m e encon trou quand o vo ltou da casa 

de seus comparsas.”“Ele estava sozin ho ?”Ela balançou a cabeça. “Estava com uma moça. Parecia uma prostituta. Eu já o vira com ela 

antes.”“Mesma cor de cab elo , mesma estatura, mesmo p eso que o seu?”, perguntei.Ela fez que sim. “Ela era uns poucos centímetros mais baixa, mas nada que se pudesse notar, a 

menos que estivéssemos de pé, lado a lado. Ela era cubana, acho, e seu rosto era bem diferente domeu. Mas...” Ela sacudi u os om bros.

“Con tinue”, di sse Angie.

“Eles me levaram para o quarto. Price se drogara, não sei com quê. O fato é que estava possesso,com pl etamente paranóico. Eles...”Ela se voltou para olh ar a água lá emb aixo, dep oi s contin uou num m urmúrio .“Eles fizeram coisas comi go.”“Os dois?”Ela manteve os olhos fixos na água. “O que você acha?” Sua voz agora estava perturbada, rouca.

“Depo is, a m ulh er vestiu as min ha s roupas. Acho que para zom ba r de mi m. Eles me envo lveram n umroupão de b anh o e m e levaram p ara o b airro d e Col lege Hill , em T amp a. Vocês conh ecem?”

Negamo s com um mo vimen to de cabeça.“É o South Bron x daq ui. Eles arrancaram o roupão de m im , me em purraram p ara fora d o carro

e foram embora rindo.” Por um momento ela cobriu os lábios com a mão trêmula. “Eu... consegui voltar. Roubei al gumas roupas de um varal , voltei como pude para o Amb assado r, mas havi a po li ciai s em toda pa rte. E no quarto de Price jazi a um cadáver com o suéter que Jay m e dera.”

“Por que Price a matou?”, perguntei.Ela sacudiu os ombros, os olhos novamente úmidos e vermelhos. “Acho que porque ela deve

ter se perguntado o que eu estava fazendo na máquina de gelo. Talvez ela tivesse tirado suasconcl usões, e Price nã o confiava n ela. Não sei ao certo. Ele era um h om em d oen te.”

“Por que você não en trou em con tato com Jay?”, perguntei.“Ele tinha ido embora. Atrás de Price. Deixei-me ficar em nossa cabana na praia esperando

por ele, fiquei sabendo então que ele estava na cadeia, e aí o traí.” Ela cerrou as mandíbulas, e aslágrim as j orraram.

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“Você o traiu?”, perguntei. “Com o?”“Não fui vê-lo na cadeia. Pensei, meu Deus, com certeza as pessoas me viram com Price, talvez

também com a garota assassinada. De que adiantaria ir visitar Jay na prisão? Só iria me implicar. Eupi rei. Perdi a cabeça, fiq uei assim po r um o u do is dias. E então pensei: que se dan e, vou tirar ele de l á,ped ir que me fal e on de está o di nh eiro, para que eu po ssa p agar a fia nça.”

“Mas?”“Mas àquela altura ele já tinha ido embora com vocês. E quando encontrei vocês todos...” Ela 

tirou um m aço d e Dunh il l d a bol sa, acendeu um co m um fin o i squeiro d ourado , aspi rou a fumaça eexpirou com a cabeça levantada para o céu. “Quando eu dei com vocês, Jay, o senhor Cushing eGraham Clifton estavam mo rtos. E eu nad a po di a fazer, a nã o ser ficar por ali e olhar.” Ela bala nçoua cab eça, amargurada . “Com o uma id io ta.”

“Mesmo que tivesse nos alcançado a tempo”, disse Angie, “você não podia ter feito nada para dar outro rumo ao que acon teceu.”

“Bem, n unca saberemo s, nã o é?”, disse Desiree com um sorriso triste. Angie respo ndeu com um sorriso triste. “Não , acho que não.”

Ela estava sem di nh eiro e sem ter pa ra on de i r. O que Price fizera com o s do is milh ões depo isde m atar a outra mulher e fugir do Amba ssad or era um segredo q ue mo rrera junto co m el e.

Nosso interrogatório parecia tê-la exaurido, e Angie ofereceu-lhe o quarto para que ela passassea noi te.

Desiree disse: “Basta um cochilo e eu estarei em forma”. Mas quando passamos pelo quarto de Angie cinco minutos depoi s, Desiree estava caí da de bruços, ai nda vestid a, em cima da colcha,mergulh ada no mai s profundo sono .

 Voltamos para o m eu quarto, fecham os a porta, e o telefo ne tocou. Era Devi n.

“Você aind a quer saber o n om e da m oça assassin ada ?”“Sim.”“Ill ian a Carmen Ri os. Uma prostituta. Últim o end ereço, pelo que se sabe: S eventeenth S treet

Northeast, 112, em St. Petersburg.”“Antecedentes?”“Condenada uma dezena de vezes por prostituição. Pelo menos ela não vai ter mais de pegar

cadeia.”

“Eu não sei”, disse Angie quando estávamos no banheiro, com o chuveiro ligado. Mais uma  vez, tín ham os de l evar em co nta a po ssibil idad e de o quarto estar sob escuta.

“Não sabe o quê?”, eu di sse ob servand o as nuvens de va po r que se erguiam da ba nh eira.Ela se encostou na pia. “O que pensar dela. Quer dizer, todas essas histórias que ela contou

parecem um tanto fan tásticas, não acha?”Fiz que sim. “Mas o mesmo se pode dizer de todas que temos ouvido desde o começo desse

caso.”“É isso que me incomoda. Desde que esse caso começou só ouvimos mentiras ou meias

men tiras o temp o tod o. E por que ela p recisa de nó s?”“Proteção?”

Ela soltou um suspi ro. “Não sei. Você con fia nel a?”“Não.”

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“Por que não?”“Porque não con fio em n in guém, exceto você.”“Ei, essa fala é m in ha .”“É mesmo”, respon di com um sorriso. “Desculp e.”Ela fez um gesto com a m ão. “Vá em frente. Pod e usar. O que é meu é seu.”“É mesmo? ”“Sim”, disse ela vol tando o rosto p ara o meu. “Falo sério ”, di sse ela ternam ente.“É recíp roco ”, eu di sse.Sua mão desapareceu no vapor por um i nstante, então a senti em meu pescoço.“Com o está o seu om bro?”, perguntou ela .“Dol orido . Meu quadril também.”“Vou me lembrar disso”, disse ela. Então se inclinou para tirar minha camisa de dentro da 

calça. Quando ela beijou a pele em volta da atadura acima do meu quadril, sua língua parecia elétrica.

Inclinei-me e enlacei sua cintura com meu braço são. Levantei-a do chão, fi-la sentar na pia ebeij ei-a enq uanto ela me ab raçava com as pernas e suas sandál ias caíam n o ch ão. Por pelo meno s

cinco minutos, mal conseguíamos respirar. Nos últimos meses, eu ansiava por sua língua, por seusláb ios, mas não era só i sso: o desejo m e deixara de m iol o m ol e.

“Mesmo estando exaustos”, disse ela quando rocei o seu pescoço com a língua, “desta vez só vam os parar quand o n ós do is desmaiarmo s.”

“Fechado ”, murmurei.

 Aí pelas quatro d a man hã, nó s fina lmente desma ia mos.Ela caiu no sono colada ao meu peito. As pálpebras pesadas, de repente me perguntei, pouco

antes de perder a con sciência, com o pude p ensar que Desiree — mesmo po r uma fração de segund o—, que Desiree era a mulher ma is bo ni ta que eu vira na vid a.Contemplei Angie dormindo nua sobre meu peito, os arranhões em seu rosto, as áreas

inchadas, e só naquele instante, e pela primeira vez em minha vida, comecei a entender alguma coisa sob re a verdad eira beleza .

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“Olá.”

 Abri um olho e olhei p ara o rosto de Desiree Stone.“Olá”, repetiu ela, quase sussurran do.“Olá”, eu disse.“Quer café?”, p erguntou.“Claro.”“Psst.” Ela pô s o d edo no s lábi os.

 Virei-m e e vi Angie dormind o p rofund am ente ao m eu la do .“Está no outro quarto”, di sse Desiree en quanto saía.Sentei-me na cama e peguei meu relógio na mesa-de-cabeceira. Dez da manhã. Eu dormira 

durante seis horas, mas pareciam seis minutos. Antes dessas horas de sono, eu já estava sem dormir

havia pelo meno s quarenta e oito h oras. Mas eu im aginava que não i a p oder dormir durante o d ia. Mas pel o vi sto Angie estava d ecidid a a ap rovei tar bem.Ela estava en colhi da naq uela po sição fetal que eu tantas vezes vira n o curso daq ueles meses em

que ela vinha dormindo no chão de minha sala. O lençol escorregara, ela estava descoberta da cintura para baixo, eu me inclinei e o puxei para cobrir as suas pernas e o enfiei sob o canto docolchão.

Ela não se mexeu, nem ao menos soltou um suspiro, quando me levantei da cama. Vesti uma calça jeans e uma camiseta de manga comprida no maior silêncio, fui até a porta que ligava os doisquartos e então p arei. Vol tei, contornei a cama, aj oel hei -me ao seu lad o, toquei o seu rosto quente

com a p alm a da m ão, beijei seus láb io s levem ente, senti o seu cheiro.Nas últim as trin ta e d uas horas, eu levara um tiro, fora j ogado de um carro em alta vel ocid ade,quebrara a om op lata, fora criva do de i números peda ços de vid ro, matara um h om em a tiros, perdera bem meio litro de sangue e fora submetido a doze horas de um interrogatório agressivo, numcubí culo sufocante. Não ob stante, não sei p or quê, com o rosto de Angie aquecend o a m in ha mão ,nunca me senti melh or em m inh a vida.

 Achei minha tip óia no chão do ban heiro, coloq uei meu b raço ferid o nela e di rigi-me aooutro q uarto.

 As p esadas cortinas pretas i mpediam a entrad a do sol , e som ente uma luzi nh a na mesa-de-

cabeceira iluminava o quarto fracamente. Desiree estava sentada numa poltrona ao lado da mesa-de-cabeceira, tom and o café, dand o a im pressão d e estar nua.“Senho rita Stone?”“Entre. Pod e me cha ma r de Desiree.”

 Apertei os olhos para ver melhor en quan to el a se levantava. Vi então que ela usava um b iquín ià moda francesa, de uma bela cor de mel, ligeiramente mais clara que o tom de sua pele. Cabelospresos na nuca, ela se aproximo u de m im e pô s em m in has mão s uma xícara de café.

“Não sei como você costuma tomar”, di sse ela . “Tem creme e açúcar no b alcão .” Acend i o utra lâm pad a, fui ao b al cão da cozinha e vi o creme e o açúcar junto d a cafetei ra.“Você foi n ada r um p ouco?”, perguntei voltand o p ara junto d ela.

“Só pa ra d esanuviar um po uco a men te. É melho r do q ue café, pod e acredi tar.”Pode a té ter desanuviad o a sua m ente, ma s a minh a estava en trand o em parafuso.

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Ela se sentou novamente na cadeira, a qual, eu acabava de notar, estava protegida da umidadede sua pele e de seu biquíni pelo roupão de banho que ela tirara em algum momento antes delevantar-se.

Ela d isse: “Você prefere que eu po nh a o roupão no vamen te?”.“Faça com o achar mel ho r”. Sen tei-me à bei ra da cam a. “Bom , o que está havend o?”“Hum?” Ela o lh ou para o próp rio roupão, m as não o vestiu. Dob rou os jo elh os, apo io u os pés

na bei ra da cama.“O que está haven do ? Você m e acordou por alguma razão , imagin o.”“Parto d entro d e duas ho ras.”“Para ond e?”, perguntei.“Boston.”“Acho que isso n ão faz m uito sentido .”“Eu sei.” Ela enxugou umas gotas de suor do lábio superior. “Mas amanhã à noite meu pai não

 vai estar em ca sa, e eu vou entrar lá.”“Por quê?”Ela se inclinou para a frente, pressionando o seio contra os joelhos. “Tenho umas coisas

naquela casa.”“Coisas pelas quais vale a pena morrer?” Tomei um gole de café, quando mais não fosse para 

ter para on de ol ha r.“Coi sas que mi nh a m ãe m e deu. Que têm um va lo r afetivo.”“E quand o el e mo rrer”, eu di sse, “com certeza con tinuarão lá. E aí você p od erá pegá-las.”Ela balançou a cabeça. “Quando ele morrer, o que quero pegar pode não estar mais lá. Um

pulin ho na casa, na n oi te em que ele vai estar fora, e estarei l ivre.”“Com o vo cê sabe que ele n ão va i estar lá?”“Amanhã à noite é a assembléia anual dos acionistas de sua maior empresa, a Consolidated

Petroleum. Eles a realizam uma vez por ano no Harvard Club Room, na One Federal. Na mesma data, no m esmo ho rário, chova o u faça sol .”“E po r que ele iria? Ele não vai po der ir no próximo a no.”Ela se recostou, colocou a xícara de café na mesa-de-cabeceira. “Você ainda não conseguiu

entender meu pa i, não é?”“Não, senh orita Ston e. Acho que não.”Ela balançou a cabeça e, distraidamente, limpou com um dedo uma gota de água que

desliza va p ela p anturril ha di reita. “Meu pai não acredita que esteja à b eira da m orte. E se acreditar vaiusar até o último centavo q ue lh e restar pa ra com prar a imo rtalid ade. Ele é acio ni sta maj oritário demais de vinte empresas. Sua carteira de ações nos Estados Unidos é mais volumosa que a lista telefônica d a Cida de do México.”

“É um baita vol ume”, eu di sse.Pelos seus olh os de j ade p erpa ssou um brilho fugaz, um b ril ho de raiva.“Sim”, disse ela com um sorriso manso. “É sim. Ele vai passar seus últimos meses tomando

providências para que cada uma das empresas aplique recursos para alguma coisa em seu nome —uma bi bl io teca, um lab oratório de p esquisas, um pa rque públ ico...”

“E se ele morrer como vai poder garantir que todo esse processo de imortalização vai seefetivar?”

“Dan ny”, di sse ela .

“Dan ny?”, perguntei .Seus láb io s se entreabriram, e ela p egou a xícara d e café. “Dani el G riffin , o ad vogado pessoal de

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quanto ela própria.“Por favor”, disse Desiree. “Você vai me aj uda r?”“Claro”, eu di sse.Ela estendeu o b raço e tomo u a mi nh a mã o. “Obrigada.”“Não h á de q uê.”Seu polegar deslizou pela palma de minha mão. “Não”, disse ela. “Estou falando

sinceramente.”“Eu tamb ém”, eu di sse. “Não há de quê. Fal o sério .”“Você e a senh orita G enn aro...?”, di sse ela. “Quer dizer, faz tem po que vocês estão...?”Deixei que a pergunta ficasse pairando nos poucos centímetros que nos separavam.Sua mã o sol tou a m in ha, e el a sorriu. “Tod os os caras legais já têm do na”, di sse ela . “É claro.”Ela se recostou na cadeira; eu sustentei o seu olhar, e ela não desviou os olhos. Por um minuto

in teiro, fitam o-n os em sil êncio , e então sua sobrancelha esquerda se ergueu li geiramen te.“A menos que...”“Realm ente têm m esmo”, eu di sse. “Na verdade um do s últimos caras legai s, Desiree...”“Sim?”

“Caiu de uma po nte na n oi te passada .”Eu me l evantei.Ela cruzou as pernas na altura d os torno zelos.“Obrigado pelo café. Com o você vai para o aerop orto?”“Ainda estou com o carro que Jay alugou para mim. É preciso devolvê-lo à agência hoje à 

noite.”“Quer que eu leve vo cê e depoi s o devolva? ”“Se você n ão se im po rtar”, di sse ela, ol ho s fitos na xícara de café.“Vista-se. Volto daq ui a p ouco.”

 Angie ai nda estava dormindo tão profund am ente que para despertá-l a só mesmo uma granad a d e mã o. Deixei um b il hete pa ra el a. Eu e Desiree fomo s até o seu Grand Am al ugado, e ela foi d irigin do até o aerop orto.

Era m ais um d ia quente, ensolarado. Igual a tod os os outros que tivéramos desde q ue chegam os.Eu já sabi a por experiência próp ria q ue po r vol ta das três da tarde choveria p or cerca de m eia h ora, eesfriaria um p ouco, dep oi s a umi dad e iria evap orar, e faria um cal or brutal até o p ôr-do-sol.

“So bre o q ue aco nteceu lá n o quarto...”, disse Desiree.“Esqueça”, eu d isse.“Não. Eu am ei Jay. Mesmo . E ma l conh eço você.”“É verdad e”, eu di sse.“Mas talvez, não sei... Você já ouviu falar da pa tolo gia q ue as vítim as de ab uso sexual e in cesto

desenvolvem, Patrick?”“Si m, Desiree. Já sim . Foi po r isso q ue eu falei p ara você esquecer.”Entram os na pista que leva ao a erop orto e n os dirigim os ao termi nal Delta, seguin do as placas

de sinali zação vermelh as.“Como você comprou a passagem?”, perguntei.“Foi Jay. Ele co mprou duas.”

“Jay con cordava com esse seu pl ano ?”Ela fez que sim . “Ele com prou duas”, repetiu ela.

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“Eu ouvi q uan do você fal ou a prim eira vez, Desiree.”Ela voltou a cabeça. “Você pode voltar dentro de dois dias. Nesse meio tempo, a senhorita 

Gen naro p od e toma r sol , dar umas vol tas, relaxar.”Ela p arou no termi nal Delta.“Onde vo cê quer no s encon trar em Boston ?”, perguntei. Ela ficou olh and o p ela j anel a por um

instante, as mãos no volante, os dedos tamborilando de leve, a respiração curta. Então ela remexeuna b ol sa, distraíd a, depo is pegou no ba nco d e trás uma mo chila esportiva de couro p reto. Ela estava com um boné de beisebol na cabeça, virado para trás, short cáqui, uma camisa masculina de brimcom as mangas arregaçada s até os cotovelo s. Nada d e mai s, e aind a assim ela i ria p rovo car torcicol osem m uitos ho men s com quem cruzasse no aerop orto. Enquanto estava a li , tive a im pressão de q ue ocarro se encolh ia à no ssa volta.

“Ahn... o que você perguntou?”, disse ela.“Onde e quando nos encontramo s aman hã?”“Quand o vo cê vai chegar?”“Provavel men te aman hã à tarde”, eu di sse.“Por que não no s encon tramo s na frente do ed ifício de Jay?” Ela saiu do carro.

Eu também saí, e el a tirou uma vali se do po rta-malas, fechou-a e m e deu as cha ves.“No edifício de Jay?”“É lá que vou ficar escon di da. Ele me d eu uma chave, a senh a e o có di go do ala rme.”“Tudo bem”, eu disse. “A que ho ras?”“Às seis.”“Às seis, então .”“Ótimo. Está marcado.” Ela se voltou em direção ao portão. “Oh, quase ia me esquecendo,

temos outro compromisso.”“Temos?”

Ela sorriu, colocando a mala no ombro. “Sim. Jay me fez prometer. Em 1º de abril.  Limi te de egurança.”“Limite de segurança”, eu disse, a temperatura de meu corpo caindo vinte graus no calor

sufocante.Ela fez que sim , apertand o os ol ho s por causa d o sol . “Ele di sse que se acon tecesse al guma coisa 

a ele, eu devia fa zer comp an hia a você este ano . Cacho rros-quentes, Budweiser e Henry Fon da . Não éessa a trad ição?”

“É a trad ição”, eu disse.“Bem, então está com bi nad o.”

“Se Jay falou...”, eu disse.“Ele me fez prometer.” Ela sorriu e me fez um leve aceno quando os portões eletrônicos seabriram atrás dela. “Comb in ado , então?”

“Combinado”, eu disse, fazendo-lhe por minha vez um aceno e abrindo-lhe o melhor demeus sorrisos.

“Até amanhã.” Ela entrou no aeroporto, e eu me aproximei do vidro e fiquei olhando o levebalanço de sua bunda enquanto ela avançava por entre um bando de estudantes, entrava numcorredor e desaparecia.

Os estudantes ainda contemplavam o espaço que ela ocupara por três segundos, como se eletivesse sido aben çoad o po r Deus, e eu estava fazend o o mesmo.

Dêem uma boa olhada, rapazes, pensei. Nunca mais terão a oportunidade de ver tamanha beleza tão de perto. Certamente nunca uma criatura chegou tão perto da perfeição.

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Desiree. Até o n om e mexia com o co ração.Fiquei de pé ao lado do carro, sorrindo de orelha a orelha, provavelmente com cara de

perfeito idiota, quando um carregador de malas parou na minha frente e disse: “Você está bem,cara?”.

“Estou ótimo”, eu disse.“Perdeu alguma coisa?”Bala ncei a cab eça. “Achei uma coisa.”“Bem, sorte sua”, disse ele i nd o em bo ra.So rte min ha . Sim . Azar de Desiree.

 Você estava tão, tão perto, lady . E aí pô s tudo po r água ab aixo. Em grand e estilo .

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TERCEIRA PARTE  LIMITE DE SEGURANÇA 

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Cerca de um ano depois de terminado meu aprendizado com Jay Becker, ele foi expulso de

seu próprio apartamento por uma dançarina de flamenco cubana chamada Esmeralda Vásquez.Esmeralda estava viajando com a companhia itinerante da Ópera dos três vinténs  quando, na sua segunda noite na cidade, conheceu Jay. Depois de três semanas de espetáculo, ela praticamenteestava vivendo com ele, embora Jay não encarasse as coisas dessa forma. Infelizmente para ele,Esmeralda sim, e foi certamente por isso que ela ficou tão furiosa quando pegou Jay na cama comoutra d ançarina do mesmo espetáculo . Esmerald a agarrou uma faca, e Jay m eteu a m ão na maçan eta e, junto com sua n ova conq uista, picou a mula.

 A da nça rina voltou p ara o ap artamento em que morava com o nam orado , e Jay foi bater à minh a p orta.

“Você enfureceu uma dan çarin a d e fla men co cubana ?”, perguntei.“Parece que sim ”, disse ele, col ocan do uma caixa d e Beck’s na mi nh a gelad eira e uma garrafa d e

Chivas no balcão da cozinha.“Você acha que fez uma coi sa sensata?”“Parece que nã o.”“Não teria sid o, talvez, uma coisa estúpi da?”“Você vai p assar a noite me d and o b ron ca, ou vai ser legal e m e mo strar ond e guarda as batatas

fritas?”Então termi nam os ind o p ara o sofá da sala tom ar as cervejas e o Chivas e fala r sob re tentativas

de castração po r parte de mulheres desprezad as, rom pi men tos temp estuosos, nam orados e marido s

ciumentos e vários assuntos do gênero, que não seriam tão engraçados não fosse o clima deconfraterni zação etíl ica em q ue nos encon trávam os.

E aí, no momento em que a conversa começava a se esgotar, voltamos os olhos para oapa relh o d e televi são e vimo s os primei ros crédi tos de Limi te de segurança.

“Merda”, di sse Jay. “Aumen te o vo lume.” Aumentei.“Quem di rigiu esse filme? ”, perguntou Jay.“Lumet.”“Tem certeza?”

“Tenho.”“Pensei que tin ha sid o Frankenheimer.”“Frankenhei mer fez Sete dias em maio ”, eu disse.“Tem razão. Puxa, com o gosto desse fil me.”Então passamos as duas horas seguintes assistindo, fascinados, ao presidente dos Estados

Unidos, Henry Fonda, crispando as mandíbulas diante de um mundo preto-e-brancoenlouquecido até o ponto em q ue, po r causa de uma p ane i nformá tica, uma esquadrilha a mericana ultrapassa o l im ite de segurança e b om ba rdei a Mo scou, o que faz o po bre Hank Fon da crispa r ain da mais as mandíbulas e mandar bombardear Nova York, para aplacar a fúria dos russos e evitar uma 

guerra nuclear em escala m und ia l.Quando acabou, discutimos qual era melhor:  Limi te de segurança o u Doutor Fantástico. Eu disse

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que não tinh a o que discutir: Doutor Fantástico era uma ob ra-prim a, e Stan ley Kubrick era um gênio .ay disse que eu era metido a entender de arte. Eu disse que ele era muito primário. Ele disse que

Henry Fon da era o mai or ator da h istória do cinema. Respond i que ele com certeza estava b êbado .“Se eles tivessem uma senha supersecreta para chamar os bombardeiros de volta.” Ele se

recostou no sofá, ol ho s semi cerrado s, cerveja numa m ão, cop o de Chi vas na o utra.“‘Senha supersecreta’?”, eu disse rin do .

Ele vol tou a cabeça. “Não, falo sério . Digamo s que o velh o p resid ente Fond a tivesse falad o emparticular com cada membro da esquadrilha, dizendo a cada um a senha secreta que só ele e ospi lotos conheciam. Assim ele po deria tê-los chamad o d e volta dep oi s de terem cruzado o l im ite desegurança.”

“Mas Jay”, eu disse. “Aí é que está o problema: ele não podia chamar ninguém de volta. Elesforam treinados para desconfiar que, além do limite de segurança, toda e qualquer comunicaçãopodi a ser um truque russo.”

“Mesmo assim ...”Ficamos assistindo a Fuga ao passado, que entrou imediatamente depois de  Limi te de segurança.

Outro estupen do fil me em preto-e-branco do Chann el 38, da épo ca em q ue o 38 ain da era legal. Acerta altura Jay foi a o b anh eiro e vol tou da co zin ha com ma is duas cervejas.

“Se al gum di a eu quiser man dar uma men sagem para você”, di sse ele, com a l ín gua em perrada pel o ál cool , “esse vai ser o n osso códi go.”

“Qual?”, perguntei.“Lim ite d e seguran ça”, disse ele.“Agora eu estou vendo Fuga ao passado, Jay. Limi te de segurança foi meia hora atrás. Nova York já 

foi destruíd a. Pense ni sso.”“Não, estou falan do sério .” Ele lutou contra a al mo fada do sofá e se levan tou. “Se a lgum d ia eu

tiver de lh e m and ar uma men sagem d e além-túmulo, vai ser ‘li mi te de segurança’.”

“Uma men sagem d e al ém-túmulo?”, eu di sse rind o. “Está falan do sério ?”“Feito um médico-legista. Não, não, escute.” Ele se inclinou para a frente, arregalou os olhos

para desanuviar a mente. “Esse nosso trabalho é barra-pesada, cara. Quer dizer, não tanto comotrabalhar no FBI, mas não é nenhum piquenique. Se algum dia acontecer alguma coisa comigo...”Ele esfregou os olho s e bala nço u a cab eça no vam ente. “Está vendo , eu tenho d oi s cérebros, Patrick.”

“Você quer dizer duas cabeças. E Esmeralda diria que você usou a cabeça errada esta noite, e épo r isso que ela quer que seja cortada.”

Ele bufou. “Não. Está certo, eu tenho duas cabeças, claro. Mas estou falando de cérebros. Eutenho d oi s cérebros. Ten ho mesmo.” Ele bateu o i nd icad or na cabeça, apertou os ol ho s pa ra me ver

mel ho r. “Um d eles, o n ormal , não tem prob lem a. Mas o outro, meu cérebro de pol icial, nunca pára.Ele acorda meu outro cérebro de noite, me obriga a sair da cama e refletir sobre alguma coisa queestava me incomodando sem que ao menos eu soubesse de que se tratava. Quer dizer, eu resolvimetad e de m eus casos às três da m an hã , tudo po r causa desse segund o cérebro.”

“Deve ser di fíci l se vestir a cada dia .”“Ahn?”“Com esses dois cérebros”, eu di sse. “Quer dizer, e quand o eles têm gostos diferentes em ma téria 

de roupa s e de q ue mai s? Comi da?”Ele me apon tou o d edo m édio. “Estou falan do sério .”Levantei a m ão. “Eu entendo ma is ou meno s o que você quer dizer.”“Não”, disse ele fazendo um gesto com a mão. “Você ainda está verde. Mas um dia você vai

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“Levante-se. Vamos. Levante-se.” Abri as cortinas, e a forte luz do sol entrou no quarto,

banhan do a cama.Enq uan to eu estava fora, Angie se mexera tanto q ue termi na ra atravessad a n a cam a. Descob rira as pernas, e apenas um p equeno triân gulo de l ençol branco co bria seu traseiro quand o ela m e lan çouum olh ar de sono, os cabelos cain do -lh e nas faces com o um em aranhad o d e musgo preto.

“Você não faz o gênero Rom eu de m anh ã”, di sse ela.“Vamos”, eu disse. “Vamos embora.” Peguei minha mochila esportiva, comecei a guardar

mi nh as roupas.“Deixe-me adivinhar”, disse ela. “Tem dinheiro na cômoda, foi o máximo, mas não deixe a 

porta bater quando sair.”Eu me pus de jo elh os e a b eij ei. “É por aí. Vam os, estamos atrasados.”

O len çol deslizo u quando ela ergueu o co rpo e pa ssou os braços em vo lta de meus om bros. Seucorpo, maci o e ai nd a quente de son o, se apertou con tra o m eu.

“A gente dorme j unto p ela p rim eira vez em dezessete anos, e você me acorda desse jei to?”“Infeli zm ente sim ”, respo nd i.“Tom ara que você tenh a uma b oa razão.”“Mais do que isso até. Vamo s. Eu lh e conto n o cam in ho do aerop orto.”“Aeroporto?”“Aeroporto.”“Aeroporto”, disse ela com um bocejo, saindo da cama cambaleante e dirigindo-se ao

banheiro.

Os verdes floresta, os brancos coralinos, o azul-claro e os amarelos dourados foram sedistanciando e transformando-se pouco a pouco numa bela colcha de retalhos enquanto subíamosaté as nuvens, tom and o a di reção n orte.

“Con te de no vo”, di sse Angie, “a parte em q ue ela estava semin ua.”“Ela estava de biquíni”, eu disse.“Num quarto escuro. E você lá ”, disse el a.

“Sim.”“E com o vo cê se sentiu?”“Nervoso”, eu disse.“Oh”, di sse ela . “Resposta errada, muito errad a.”“Espere”, eu di sse, sab end o, po rém, que assin ara mi nh a sentença de mo rte.“Fizemo s amor durante seis ho ras, e você ai nd a se sentiu tentado po r aquela p erua d e bi quíni ?”

Ela se in clino u para a frente, voltou-se e m e encarou.“Eu nã o d isse que me senti tentado ”, falei. “Eu di sse ‘nervoso’.”“É a mesma coi sa.” Ela sorriu e balan çou a cabeça. “Homens... puxa vid a.”“Certo”, eu di sse. “Hom ens. Você não entende?”“Não”, disse ela. Ela levou o punho ao queixo, semicerrou os olhos para que eu visse que ela 

estava atenta. “Por favor. Expl iq ue.”

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“Certo. Desiree é uma sereia. Ela atrai os homens. Ela tem uma aura que é em parte inocência,em parte pura sensualidade.”

“Uma a ura.”“Isso m esmo. Os homens adoram auras.”“Muito b em.”“Qualquer cara que chegar perto dela, ela põe sua aura pra funcionar. Ou talvez ela funcione o

tempo todo, não sei. Mas seja como for, ela é muito forte. Um sujeito se aproxima dela, olha seurosto, seu corpo , ouve sua vo z, aspira seu cheiro, e está perdi do .”

“Todos os caras?”“A ma io ria, pode ter certeza.”“Você também ?”“Não”, eu disse. “Eu não.”“Por quê?”“Porque eu am o você.”Isso lhe pôs água na fervura. Angie parou de sorrir, ficou branca feito papel e escancarou a boca 

com o se tivesse desaprendido a fala r.

“O que você disse?”, perguntou finalmente.“Você m e ouviu.”“Sim, m as...” Ela se voltou no assento e fi cou olh and o p ara a frente po r um in stante. Em seguid a 

 voltou-se para uma negra de meia-i dad e sentad a ao seu lad o, que estivera aco mpan han do no ssa conversa d esde q ue entráramos no avião, sem se dar ao trabalh o de d isfarçar.

“Eu ouvi o que ele disse, querida”, disse a mulher, tricotando o que parecia ser um gorro, comagulh as que pareciam letais. “Muitíssim o bem . Não sei n ada dessa h istória d e aura, mas a última pa rteentendi muito b em.”

“Uau”, fez Angie. “Quem di ria ?!”

“Oh, ele nã o é l á tão b on ito assim ”, di sse a m ulh er. “Tal vez ele m ereça um ‘puxa’, mas acho queum ‘uau’ é demais.” Angie voltou-se para mim. “Puxa”, disse ela.“Vá em frente”, me d isse a mulh er. “Con te mai s sobre essa piranha que lhe prepa rou um café.”“Em suma...”, eu disse a Angie.Ela piscou os olhos, fechou a boca fingindo empurrar o queixo com as costas da mão. “Sim,

sim , sim . Vol tando à vaca-fria.”“Se eu não estivesse, sabe...”“Apa ixon ado ”, di sse a senh ora.Fuzil ei-a co m o ol ha r. “...com você, Angie, aí sim , eu estaria frito n aquela h ora. Ela é uma víb ora.

Ela pega um sujei to, qualq uer um, e o ob riga a fazer tod as as suas von tades, quaisquer que sejam .”“Queria conhecer essa garota”, disse a mulher. “Queria ver se ela conseguia fazer o meu Leroy 

aparar a grama.”“Mas é isso que eu nã o en tendo”, di sse Angie. “Os caras são tão estúpid os assim ?”“Sim.”“Foi ele quem disse”, falou a mulher, concentrando-se em seu tricô.“Homen s e mulh eres são di ferentes”, eu di sse. “Ou pel o men os a m aio ria deles. Prin cipalm ente

no que tange às suas reações ao sexo op osto.” Peguei a sua m ão. “Desiree cruza com centenas de carasna rua, e pelo menos metade deles vai ficar pensando nela por dias. E quando ela passa eles não

di zem apen as ‘Que belo rosto, que bela bunda, q ue bel o sorriso’, ou coisa assim . Não, eles se exaltam,querem p ossuí-l a al i m esmo , fund ir-se com ela, aspirá-la.”

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“Aspirá-la?”, disse ela.“Sim. Dian te de uma mulher boni ta, os homen s têm uma reação m uito d iferente da q ue têm as

mulheres em presença de um h om em b on ito.”“Quer di zer então q ue Desiree é...?” Ela desli zou as costas dos ded os pel o m eu braço.“Uma cham a, e nó s som os as maripo sas.”“Até que você não está se saindo tão mal”, disse a mulher, inclinando-se para a frente para me

 ver. “S e meu Leroy fosse cap az de fal ar essas do ces m entiras que você fal a, teria conseguid o muitomai s do que conseguiu nos últim os vin te anos.”

Pobre Leroy, pensei.

 A certa altura, quan do sob revoá vam os a Pensilvâni a, Angie d isse: “Meu Deus”.Levantei a cabeça d e seu om bro. “O quê?”“Tod as as po ssib il id ades”, di sse ela.“Que possibilidades?”“Você não percebe? Se a gente inverte tudo que estávamos pensando, se olhamos as coisas

consid erand o que Desiree não é ap enas uma garota m eio perdid a o u um po uco corrupta, mas simuma viúva-n egra, uma má quin a imp la cável q ue busca ap ena s o p róprio in teresse... meu Deus.”

End ireitei o corpo . “Continue”, eu di sse.Ela balançou a cabeça. “Certo. A gente sabe que ela levou Price a cometer o roubo. Certo?

Certo. E aí ela leva Jay a pensar em tomar o dinheiro de Price. Ela finge desejar o contrário. Sabe,‘Oh, Jay, a gente não po de ser feliz sem o di nh eiro?’, ma s claro que consigo m esma ela está pensando‘Morda a isca, morda a isca, seu im becil ’. E Jay cai nessa. Mas ele n ão consegue acha r o di nh eiro. E aíela descobre onde ele está. E ela vai lá, e não é apanhada, como nos contou. Ela pega o dinheiro.

 Ma s agora ela está com um p roblema.”

“Jay.”“Exatamente. Ela sabe que, caso desapareça, ele nunca vai desistir de procurá-la. E ele é bomnisso. E ela precisa tirar Price da jogada também. Ela não pode simplesmente desaparecer. Ela temde morrer. Aí...”

“Ela ma tou Ill ian a R io s”, eu di sse.Entreol ham o-n os, e meus olh os, tenh o certeza, estavam tão arregalado s quanto os del a.“Atirou à queima-roupa em seu rosto co m uma espi ngarda”, di sse Angie.“Será que ela faria i sso?”“Por que não?”Fiq uei m atutando sob re aquilo , incorporand o aq ueles novos dad os. De fato, po r que não?“Se acei tamo s essa premissa”, eu di sse, “então estam os adm itind o q ue ela é...”“...totalmente destituída de consciência, de moralidade, de empatia e de qualquer coisa que

no s distin gue com o seres human os.” Ela ba lan çou a cabeça.“E é mesmo”, eu disse. “E isso quer dizer que ela não ficou assim da noite pro dia. Há muito

tempo que ela é assim .”“Tal p ai, tal filh a”, di sse Angie.E então sofri o impacto de uma tremenda revelação. Como se um edifício desabasse sobre

mim. O oxigênio em meu peito foi sugado num vórtice criado por um único instante de terrívellucidez.

“Qual é o mel ho r tip o d e men tira q ue existe no mundo ?”, perguntei a Angie.“O tip o q ue contém uma bo a do se de verdad e.”

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Fiz que sim . “Por que Trevor deseja tanto a mo rte de Desiree?”“Pod e me d izer.”“Porque não foi ele o respo nsável pel o atentado na T ob in Brid ge.”“Foi ela”, di sse Angie quase num sussurro.“Desiree matou a p rópria mã e”, eu di sse.“E tentou matar o p ai .”“Não é d e estranh ar que esteja tão furio so co m el a”, disse a m ulh er ao lad o d e Angie.“Não é mesmo”, conco rdei .

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Estava tudo lá, p reto no branco, p ara qualq uer um que tivesse a i nforma ção certa e o po nto d e

 vista certo. Em man chetes como TRÊS HOMENS ACUSADOS DO ASS ASS INATOBRUTAL DE UMA SOCIALITE, ou TRÊS ASSALTANTES ACUSADOS DE HOMICÍDIO,a notícia logo saiu das primeiras páginas quando os três assassinos — Harold Madsen, de Lynn,Colum Devereaux, de South Boston, e Joseph Brodine, de Revere — se declararam culpados no dia seguin te à decisão d o G ran de Júri de julgar a acusação proced ente.

 Angie e eu fomos di reto do aeroporto à Biblioteca Pública de Boston, na Cop ley Square.Fom os para a sala d os perió di cos e vasculh amo s mi crofi lm es do Trib e do News, acham os as matériasque nos in teressavam e as lem os até achar o que procurávamo s.

Não d emo rou muito. Na verdad e, levam os menos de meia h ora.Um dia antes da reunião do Grande Júri, o advogado de Harold Madsen entrara em contato

com a prom otoria para propo r um aco rdo em n om e de seu cliente. Mad sen se con fessaria culp adode homicídio culposo, não premeditado, passível de pena de catorze a vinte anos de prisão. Emtroca, ele a po ntaria o ho mem que o con tratara, e aos seus comp arsas, para m atar Trevor e Inez Ston e.

 A no tíci a cai u como uma bomba, porque até aq uela al tura nã o se fal ara senão numa morteacon tecid a d urante roubo de carro.

 ASS ALTANT E CONFES SA: ELES FOR AM CONTRATADOS!, bradava a man chetedo Trib.

 Mas quan do se d escob riu q ue o homem ap ontado como send o o man dan te morrera doisdias depois da prisão de Madsen, o promotor expulsou de seu escritório o advogado e seu

constituinte.“Anthony Lisardo?” disse Keith Simon, o assistente do promotor, ao repórter do Trib. “Você

está brincan do . Esse sujeito m orreu de o verdo se e foi colega d e col égio de d oi s dos acusado s. É uma manobra patética da defesa para dar a esse crime sórdido uma dimensão que ele nunca teve.

 Anthony Lisardo nã o teve l igação com esse caso.”Tampouco a defesa conseguiu provar essa ligação. Se Madsen, Devereaux e Brodine foram

procurado s por Lisardo, esse fato fora sepultado com ele. E com o essa h istória repo usava apenas na li gação com Lisardo , eles tiveram que respo nd er sozi nh os pelo assassin ato de Inez S tone.

Um acusado que se confessa culpado antes de um julgamento potencialmente dispendioso

para o Estado, normalmente consegue reduzir sua pena. Madsen, Devereaux e Brodine, porém,foram todos condenados por homicídio com premeditação, pois tanto o juiz como o promotorpúblico rejeitaram a classificação de crime não premeditado. Dadas as novas diretrizes jurídicas de

 Ma ssach usetts, o hom icíd io premed itado im plica uma única pena: prisão perpétua, sempossibi lid ade de lib erdade condicion al.

De m in ha parte, eu não perderia um mi nuto d e sono po r causa d e três pil antras que m ataramuma mulher a tiros e que, com certeza, em vez de coração, tin ha m um tumo r. Prazer em conh ecê-los,rapazes. Muito cuid ado no chuveiro.

 Mas o verda deiro crim in oso, a pessoa que os contratou, que plan ejou o crim e, que pagou,

deixand o tod a a culpa recair sob re os três — essa p essoa merecia sofrer, no mí ni mo , o m esmo que ostrês rapazes haveriam de sofrer pel o resto da vid a.

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“Me passe o d ossiê”, eu di sse a Angie q uand o saím os da sala de m icrofilmes.Ela me passou, e eu o vasculhei até achar as anotações sobre nossa conversa com o capitão

Emmett T. Gron in g, do Departamento d e Polí cia d e Ston eham . A pessoa q ue estava com Li sardona n oi te em que ele se afogou era um rapaz d e Stoneh am ch ama do Don ald Yeager.

“Me passa o catálogo telefôn ico”, ped iu Angie ao funcio nário d a seção de informa ções.Havia do is Yeager em S toneham.Depois de alguns telefonemas, tínhamos reduzido as duas possibilidades a apenas uma.

Helene Yeager era uma senh ora de n oven ta e três ano s e não conh ecia n enh um Donal d Y eager. Ela con hecera al guns Mi cha el, um ou outro Ed, e até um Chuck, mas não a quele Chuck.

Don ald Yeager, que m orava n a M on tvale Avenue, 123, atend eu o telefone com um hesitante“Sim?”

“Don ald Yeager?”, di sse Angie.“Sim?”“Aqui é Cand y Swan, diretora de p rogram ação da WAAF, de Worchester.”“AAF”, disse Donald. “Legal. Caras, vocês são de arrasar.”“Somos a única emissora que arrasa no rock”, disse Angie mostrando-me a língua, porque eu

levantara os polegares. “Donald, estou ligando porque estamos iniciando um novo segmento emno sso program a d as sete à mei a-no ite, chama do ... hum... Metaleiros do Inferno .”

“Irado.”“É, e a gente está entrevistando fãs como você para saber por que vocês gostam da AAF, quais

suas ban da s preferida s, esse tip o d e coi sa.”“Vão m e pôr no ar?”“A men os que você tenha outro p rogram a para hoj e à no ite.”“Não. De jeito nen hum. Puta que pariu. Posso co ntar aos meus amigos?”“Claro. Só precisamos de seu consentimento verbal, e...”

“Meu o quê?”“Preciso q ue você me d iga q ue tudo bem i r visitar você mais tarde. Aí pela s sete.”“Se tudo bem ? Puxa vid a, isso é o má ximo , cara.”“Ótim o. Você vai estar aí quando a gente chegar?”“Eu nã o vou sair de casa. Ei, será q ue vou ganh ar um p rêmio ou coisa assim?”Ela fecho u os olho s por um in stante. “Que tal d uas camisetas pretas do Metall ica, um víd eo d e

Beavis and Butthead e quatro ingressos para Wrestlemania Dezessete no Worchester Centrum?”“Um barato, cara! Um barato. Mas...”“Sim?”“Eu pensei q ue Wrestlem ania só ia até o n úmero d ezesseis.”“Engano meu, Don ald. Vam os dar um p ulo aí à s sete. Trate de ficar em casa.”“Fiq ue tran qüil a, gata.”

“De onde você tirou isso?”, perguntei enquanto tomávamos um táxi para Dorchester para deixar as nossas mala s, tom ar um ba nh o, repo r as armas perdi das na Flórid a e p egar o carro.

“Não sei. Stoneh am. AAF. Parece que com bi nam .”“A única emissora que arrasa no rock”, eu disse. “Legal.”

Tomei um banho rápido depois de Angie, voltei à sala e a encontrei remexendo pilhas de

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roupas. Ela estava de botas pretas, calça jeans preta, e sem camiseta sobre o sutiã preto, quandocom eçou a mexer numa pi lh a de cam isetas.

“Senhorita Gennaro”, eu disse. “Chicoteie-me, espanque-me, obrigue-me a assinar chequessem fund os.”

Ela sorriu para m im . “Oh, você gosta deste visual?”Pus a l in guon a pra fora e fiquei ofegando .Ela se aproxim ou de m im com uma cami seta preta pen durada n o in di cado r. “Quand o a gente

 voltar para cá mai s tarde, fiq ue à vontade pa ra tirar tudo i sso.”Resfoleguei um pouco mais, e ela me deu um belo e largo sorriso e passou a mão em meus

cabelos.“Às vezes acho você uma gracin ha , Kenzie.”Ela se virou para voltar ao sofá, mas eu estendi o braço, peguei-a pela cintura e puxei-a para 

mim. Trocamos um beijo longo e profundo como o do banheiro na noite anterior. Talvez maislon go. Talvez m ais profundo .

Quando desgrudamos nossos lábios, suas mãos em meu rosto, as minhas em suas costas, eudi sse: “Passei o di a in teiro p ensando em fazer isso”.

“Da p róxim a vez n ão se reprim a.”“Você gostou de on tem à no ite?”“Se eu gostei? Foi o má ximo .”“Sim”, eu di sse. “Você é o máximo .”Suas mão s desli zaram p elo meu rosto e foram p arar em m eu pei to. “Quand o tudo isso acaba r,

 vam os sair.”“É mesmo? ”“Sim. Pouco importa se vamos para Mauí ou para o Suisse Chalet da esquina, mas vamos pôr

na p orta um cartão d e NÃO PERT URBE, pedi r serviço d e quarto e passar uma seman a na cam a.”

“Com o q uiser, senh orita Gen naro. Você é quem m and a.”

Donald Yeager lançou um olhar a Angie, que estava de jaqueta de couro, jeans, botas e a camiseta do show da banda Fury in the Slaughterhouse com uma abertura no lado direito da caixa torácica — e tenho certeza de q ue ele com eçou a redigir mentalm ente um texto para a seção de cartasda  Penthouse .

“Puta que pariu”, disse ele.“Sen ho r Yeager?”, di sse ela . “Sou Can dy S wan , da WAAF.”

“Sério?”“Sério”, disse ela.Ele escancarou a porta do ap artam ento. “Entre. Entre.”“Esse é meu assistente, Willy Doido.”

 Willy Doid o?“Bom, bom”, disse Donald, empurrando-a para dentro e mal tomando conhecimento de

mi nh a p resença. “Prazer em con hecê-la e essa b esteirada toda.”Ele m e deu as costas, eu o segui e fechei a p orta. Seu apartamen to ficava num p rédio de tij ol os

rosa-claros da Montvale Avenue, a principal artéria de Stoneham. Era um edifício quadrado e feio,de apenas dois andares, com uns dezesseis apartamentos. O apartamentinho de Donald dava uma 

idéia de como eram os demais. Sala de estar com um sofá-cama onde se viam lençóis sujosapo ntando sob as almofadas. Uma cozinh a p equena d emais até para cozin har um o vo. Ouvi, vind o

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do banheiro, à esquerda, o ruído insistente de água pingando. Uma barata suja correu rente aorodapé, junto do sofá, certamente não à procura de comida, mas antes estonteada pela nuvem defumaça de macon ha que pai rava na sala.

Donald tirou alguns jornais do sofá para que Angie pudesse sentar sob um pôster de KeithRi chards de um m etro e mei o p or doi s. Era uma fo to que eu conh ecia, tirada n o i ní cio d a décad a de70. Keith pa recia estar totalm ente chap ado — espa ntoso, não? —, encostado n uma pa rede com uma garrafa de Jack Daniel’s numa mão e o eterno cigarro na outra, com uma camiseta onde se lia  AGG ER S UCKS.

 Angie sentou-se, e Dona ld olh ou pa ra m im quan do eu, dep ois de p assar o ferrol ho na porta,tirei a pi stola do coldre.

“Ei!”, exclamou ele.“Donald”, disse Angie, “não temos muito tempo, portanto vamos ser breves.”“Mas o que isso tem a ver com a AAF, caras?” Ele olhou para a minha pistola e, ainda que eu

não a tivesse erguid o, ele recuou com o se eu o tivesse esbofeteado .“A história da AAF era men tira”, di sse Angie. “Sen te-se, Don ald. Agora.”Ele se sentou. Era um sujeito pálido, magro, com cabelos amarelos, espessos, à escovinha, na 

cabeça em forma de maçã. Ele olhou para o cachimbinho de maconha em cima da mesinha decentro à sua frente e d isse: “Vocês têm a ver com drogas?”.

“Fico i rritado com gente im becil”, eu di sse a Angie.“Donald, nada temos a ver com drogas. Somos pessoas armadas, sem tempo pra conversa 

mo le. Então, o que aconteceu na no ite em q ue Anthon y Lisardo mo rreu?”Ele bateu com tanta força no próprio rosto que eu tinha certeza de que iam ficar marcas das

mã os. “Oh, cara! Essa história tem a ver com T on y? Oh, cara, cara!”“Tem a ver com Ton y sim ”, confirmei.“Oh, velh o!”

“Fale-no s sob re Ton y”, eu di sse. “Agora.”“Mas aí vo cês vão me m atar.”“Não, não vam os”, disse Angie dan do um tapin ha em sua perna. “Prom eto.”“Quem pôs cocaína nos cigarros dele?”, perguntei.“Não sei. Eu. Não. Sei.”“Você está mentin do .”“Não estou.”Engatilhei a pi stola.“Tá, estou”, di sse ele. “Estou men tindo . Afaste esse troço, p or favor.”“Diga o n om e del a”, eu di sse.Foi o “del a” que o p egou. Ele ol ho u pa ra m im com o se eu fosse a encarnação d a próp ria m orte

e encol heu-se no sofá. Suas pernas ergueram-se do chão . Os cotovelo s col aram-se ao pei to de p ardal.“Fale.”“Desiree Ston e, cara. Foi ela .”“Por quê?”, perguntou Angie.“Não sei”, di sse ele estend end o as mã os. “É verdad e. Eu não sei. To ny tin ha apron tado a lguma 

com ela, um troço ilegal, mas ele não me disse o que foi. Ele só disse pra manter distância daquela pi ranha porque ela era sujei ra, cara.”

“Mas você não fez isso.”

“Fiz”, disse ele. “ Eu fiz. Mas ela, cara, ela me procurou como se quisesse comprar uma erva, sabecom o é? E aí, cara, ela, como vou dizer, ela, bem , puxa vid a, é demai s.”

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“Ela fod eu com você d e um jei to que você revirou os olho s”, di sse Angie.“Os dedões do pé  reviraram, cara. O que quero dizer é que, bem, acho que se podia dar o nome

dela a uma d as atrações do Epcot, sabe?”“Os cigarros”, lem brei.“Sim, certo”, disse ele baixando os olhos para o próprio colo. “Eu não sabia”, disse ele devagar,

“o que tinha dentro deles. Juro por Deus. Sabe, Tony era meu melhor amigo.” Ele olhou para mim.

“Meu mel ho r amigo, cara.”“Ela m ando u que você d esse os cigarros a el e?”, perguntou Angie.Ele fez q ue sim. “Era a m arca que ele fuma va. Ela só q ueria q ue eu os dei xasse no carro, sabe? M as

aí saím os com o carro e termi nam os no reservatório; el e acend eu um e entrou na á gua, e aí ficou comuma expressão estranha. Como se tivesse pisado numa coisa nojenta, entendeu? De qualquer forma,foi isso. Só aquela cara esquisita; ele meio que tocou o peito com as pontas dos dedos e aí afundouna água.”

“Você não o p uxou pa ra fora?”“Eu tentei. Mas estava escuro. Não consegui achá-lo. Aí, depois de cinco minutos, entrei em

pânico e dei n o pé.”

“Desiree sabia que ele tinh a uma reação al érgica à cocaín a, não é?”, perguntei.“Sim”, disse ele balançando a cabeça. “Tony só queimava um baseado e bebia, ainda que,

sendo Mensageiro e tudo o mais, não devesse...”“Lisardo p ertencia à Igreja d a Verdad e e da R evelação?”Ele ol ho u pa ra mi m. “Sim . Pod e-se diz er que desde crian ça.”Sentei-me no braço do sofá por um instante, respirei fundo, inalando um bocado de fumaça 

da m aconh a de Donal d Yeager.“Tudo”, di sse Angie.Olh ei p ara ela. “O quê?”

“Tudo que essa mulher fez desde o primeiro dia foi calculado. A ‘depressão’, a Libertação da Dor, tudo.”“Como Lisardo se tornou Mensageiro?”, perguntei a Donald.“A mãe dele, cara, ela é meio pirada porque o marido dela vive de agiotagem e outros

trambiques; ela entrou para a Igreja, obrigou Tony a fazer o mesmo, há uns dez anos. Ele era ummenino.”

“E o q ue To ny acha va d a Igreja?”, perguntou Angie.Ele fez um gesto vago com a m ão. “Achava a quilo tudo uma merda. Mas ele meio q ue também

respeitava, porque ele dizia que eles eram um pouco como o pai dele — sempre trapaceando. Ele

disse que eles tinham montes de dinheiro — carradas de dinheiro — que não declaravam noImp osto de R enda.”“Desiree sabi a de tudo isso, nã o é?”Ele deu de om bros. “Se ela sabi a, não m e disse nad a.”“Ora, Don ald.”Ele me fitou. “Eu não sei. Tony falava demais, certo? Sendo assim, com certeza contou a 

Desiree tudo sobre si mesmo , desde que estava n o útero. Quer dizer, po uco antes de m orrer, To ny medi sse que conh eceu o cara que estava planej and o se mand ar da Igreja com uma b ela b ol ada , e eu faleimais ou menos assim: ‘Tony, não me conte esse tipo de coisa’. Você entende? Mas Tony falava demais. Falava demais.”

 Angie e eu nos entreolham os. Ela acertara na mosca no comentário que fizera um min utoantes. Cada gesto de Desiree fora calculado. Ela é que escolhera a Libertação da Dor e a Igreja da 

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Revelação como alvo, e não o contrário. O mesmo em relação a Price. E Jay. E com certeza emrelação a toda s as pessoas que um d ia im aginaram p ossuí-l a.

Dei um l eve assob io de ad mi ração. A gente tinh a d e con vir: em seu gênero, aquela mulher era imbatível.

“Quer di zer então, Don ald, que você não sabi a que os cigarros estavam adulterado s?”“Não”, di sse ele. “De jei to nen hum.”Bala ncei a cabeça. “Você pen sou que ela estava fazen do a gentileza d e dar um m aço d e cigarros

ao ex-namo rado .”“Não, escute, a verdad e é que eu não queria sab er. A Desiree, sabe... bem, ela con segue o que quer.

Sempre.”“E ela queria ver seu mel hor ami go mo rto”, disse Angie.“E você col ab orou para q ue ela conseguisse”, eu di sse.“Não, cara, nã o. Eu gostava de To ny. Mesmo. Mas Desiree...”“Era uma b ela fod a”, disse Angie.Ele fechou a bo ca, olh ou para os próp rio s pés descalços.“Espero q ue ela tenha sid o a m aio r foda d e todo s os temp os”, eu di sse. “Porque você a aj udo u a 

matar seu melhor am igo. E você va i ter que convi ver com isso pel o resto d e sua vi da. Coragem, m eurapaz.”

 And am os até a porta e a abrim os.“Ela vai matar vocês também”, disse ele.

 Voltamo-nos para fitá-lo. Ele se in clino u para a frente, p ôs erva no cach imbinh o com dedostrêmulo s. “Se vocês se puserem em seu cam in ho — com o qualquer coisa que se ponh a em seu cami nh o—, ela varrerá vocês do mapa. Ela sabe que não vou dizer uma palavra para os policiais de verdade,porque eu sou um... nada, entenderam?” Ele levantou os olhos em nossa direção. “Acho que Desireenão liga a m íni ma p ara trepar. Mesmo bem-d otada como é, acho que po de p assar muito b em sem

isso. Mas quanto a d estruir as pessoas... Cara, acho que isso a faz subi r mai s alto do que os foguetes doDia da Indep endência.”

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“O que ela tem a ganh ar voltand o p ara cá?”, perguntou Angie, ajustando o foco do bi nó culo e

ob servand o através del es as janelas il umi nad as do apartam ento de Jay no Whi ttier Place.“Com certeza nã o as memó rias de sua m ãe”, eu di sse.“Acho que podem os excluir essa h ip ótese.”Estávamos estacion ado s sob uma alça de a cesso à auto-estrada , numa espécie de i lh ota entre a 

nova Nashua Street Jail e o Whittier Place. Tínhamos afundado o mais que podíamos em nossosassentos, de forma a ter uma boa visão das janelas da sala e do quarto do apartamento de Jay, edurante o tempo em q ue ficam os ali vim os as sil huetas de duas pessoas — a de uma mulher e a de umho mem — por trás das vid raças. Nem a o men os sabí am os ao certo se a m ulh er era Desiree, porque ascortin as estavam fechada s e só po dí amo s ver as sil huetas. Aind a assim , considerando -se o sistema desegurança de Jay, concluímos que a mulher só podia ser Desiree. Quanto ao homem, podia ser

qualq uer um.“Qual é a jogada, então?”, disse Angie. “Quero dizer, com certeza ela pegou os dois milhões,

dispunha de um esconderijo seguro na Flórida com dinheiro bastante para sumir no mundo sequisesse. Por que voltar?”

“Eu não sei. Tal vez para termi nar o serviço que começou há um an o.”“Matar Trevor?”Dei de o mb ros. “Por que nã o?”“Mas com que ob jetivo?”“Ahn?”

“Com que objetivo? Patrick, essa moça sempre tem alguma coisa em mente. Ela nunca faznada por razões emocionais. Quando ela matou a mãe e tentou matar o pai, qual você acha que foisua mo tivação b ásica?”

“Eman cipação?”, p erguntei.Ela b ala nçou a cabeça. “Não é razão suficien te.”“Razão suficiente?” Abaixei o binóculo e olhei para ela. “Não acho que ela precise tanto de

uma razão. Lembre-se do que ela fez com Illiana Rios. Pombas, lembre-se do que ela fez comLisardo.”

“Certo, mas havia uma lógica nessa história. Havia uma lógica, por mais tortuosa que fosse.

Desiree ma tou Lisardo p orque ele era o único elo entre ela e o s três rapazes que mataram sua m ãe. Ela matou Illiana Rios para não deixar pistas, depois de pôr a mão nos dois milhões de Price. Emamb os os casos ela tirou uma grand e van tagem d o crime. E o q ue é que ela ganh a m atando Trevor? Eo q ue ganh aria quando tentou matá-lo, há o ito m eses?”

“Bem, pra começar, po dem os im aginar que era di nh eiro.”“Por quê?”“Porque com certeza ela era sua maior herdeira. Se seus pais morrem, ela herda algumas

centenas de mi lh ões.”“Exatamente.”“Certo”, eu disse. “Mas então isso não faz o menor sentido. Trevor deve tê-la excluído do

testamento.”“Certo. Então, por que ela vo ltou?”

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“É isso o q ue m e pergunto.”Ela ab aixou o b in óculo , esfregou os olh os. “É um mi stério , não?”Recostei-me no banco do carro por um instante, procurei relaxar os músculos da nuca e das

costas, mas logo me arrependi. Mais uma vez, eu me esquecera do ombro arrebentado, e a dorexplo di u em m in ha claví cula, espa lh ou-se pel os músculo s das costas e do lad o esquerdo do pescoçoe avanço u em d ireção ao cérebro. Respirei ofegante e procurei con trol ar a ânsia de vô mi to.

“Illiana Rios”, eu disse finalmente, “era fisicamente tão parecida com Desiree que Jay poderia confundi r o seu cadáver com o dela.”

“Sim , e daí?”“Você acha que foi coincidência?”, eu disse voltando-me no banco do carro. “Fosse lá qual

fosse a relação entre eles, Desiree resolveu ma tar Ill ia na Ri os no quarto d e mo tel justam ente por causa de suas semelh an ças físicas. Ela semp re pensa lá n a frente.”

 Angie deu de ombros. “Essa mulh er é decidida.”“Sem dúvida! E é po r isso q ue a m orte de sua mã e não faz nen hum sentid o.”“O quê?”, disse ela vol tando -se.“O carro da mã e q uebrou naquela n oi te, certo?”

“Certo.” Ela balançou a cabeça. “E então a mãe ligou para Trevor, o que garantiu que ela estaria com ele n o carro q uand o o s com pa rsas de Lisardo ...”

“Mas qual era a probabilidade de as coisas acontecerem dessa forma? Quero dizer: dada a agenda sempre carregada de Trevor, dado o tipo de relação que mantinha com a mulher — quaisseriam as chances de Inez telefonar para ele para pedir carona? E que dizer do fato de ele terconco rdad o em ir pegá-la, em vez d e sugerir que ela p egasse um táxi?”

“Seria con tar dem ais com a sorte”, di sse ela .“Isso m esmo. E Desiree nã o é d e con tar com a sorte, como você d isse.”“Você quer di zer que a m orte da m ãe não estava nos pl ano s?”

“Não sei.” Olhei para a janela e balancei a cabeça. “Tratando-se de Desiree, não dá para saber.Ela q uer que a gente a acom pan he a té a casa d o p ai. Diz ela que é para protegê-la.”“Com o se ela a lgum di a tivesse precisado d e proteção.”“Certo. Então p or que ela q uer que a gente vá? Qual é a armação , agora?”Deixamo-nos ficar ali por um bom tempo, binóculos apontados para as janelas de Jay,

esperando po r uma respo sta a m in ha pergunta.

 Às sete e mei a da man hã seguinte, Desiree apareceu.

E por po uco não me d eixei ver.Eu estava voltando de um café na Causeway Street, para onde fôramos porque Angie achava que, dad a a n ossa n ecessid ade d e cafeína , depo is de uma n oi te no carro, vali a a p ena co rrer esse risco.

Eu estava na frente do edifício, a uns metros de nosso carro, quando a porta da frente se abriu.Parei imed iatam ente, escond end o-m e detrás de um p il ar da ramp a de acesso.

Um h om em b em-vestid o, de cerca de cin qüenta an os, saiu do Whittier Place, com uma va li sena m ão. Ele colo cou a val ise no chão, pô s o sobretudo , depois aspi rou o ar, levantou a cabeça p ara osol brilhante, surpreendendo-se com o calor inusitado daquele dia de março. Então recolocou osob retudo no braço, pegou a vali se, olh ou, po r sob re o om bro, para um grupo de m oradores que saía do edi fício pa ra m ais um d ia de trabalh o. Ele sorriu para alguém q ue estava no grupo .

Ela não sorriu de volta, e num primeiro momento o coque do cabelo e os óculos escuros me

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enganaram. Usava um tailleur  cinza de executiva, cuja saia ia até os joelhos, uma sóbria blusa branca por baixo do casaco, um cachecol cinza pérola. Ela parou para ajeitar a gola do casaco preto,enq uanto os outros mo rado res dirigiam-se aos seus carros ou and avam em di reção à North Station eao Government Center; uns poucos dirigiam-se para a passarela do Museu de Ciências ou para a Lechmere Station.

Desiree acomp anh ava seus mo vim entos com um o lh ar de desprezo, e o súbi to enrijecim ento

de suas pernas fina s traía sua hostilid ad e. Ou talvez eu estivesse vend o coisas dema is.Então o homem bem-vestido se inclinou, beijou-lhe o rosto, ela roçou as costas dos dedospel as virilh as dele e se afastou.

Ela lhe disse alguma coisa, sorrindo, e ele balançou a cabeça, com uma expressão deperplexidad e no rosto grave. Ela en trou no estacio nam ento, e vi que se di rigia ao Ford Falcon azul-escuro conversível, modelo 67, pertencente a Jay, que estava no estacionamento desde que ele partira para a Flórida.

Senti um ód io profundo , imp lacável, quando a vi colocar a chave na po rta d o carro, porqueeu sabi a quan to temp o e q uanto din heiro Jay gastara para recuperar aquele carro, recon struir o m otor,procurando peças em todo o país. Era só um carro, e apropriar-se dele era o menor de seus crimes,

mas era como se ele fosse uma parte de Jay ainda viva ali no estacionamento, da qual ela seaproximava pa ra lh e dar o golpe d e mi sericórdia.

Quando o homem veio para a calçada, ficando praticamente na minha frente, recuei ainda mais para trás do pilar. Sentindo o vento cortante que soprava da Causeway Street, ele mudou deid éia o utra vez em relação ao sob retudo . No m om ento em que Desiree dava a pa rtida n o carro, ele

 vestiu o sob retudo e começou a subir a rua.Sa í d e meu escond erij o e cruzei o ol ha r com o d e Angie através do retrovi sor.Ela ap on tou pa ra Desiree, dep oi s para si m esma .Fiz que sim e apon tei p ara o ho mem.

Ela sorriu e me m and ou um b eij o.Ela deu a partida no carro, e eu atravessei a rua para pegar a calçada do outro lado e seguir oho mem , que ia em d ireção à Lom asney Way.

Um minuto depois, Desiree passou por mim no carro de Jay, seguido por um Mercedesbranco, que era seguido por Angie. Observei os três carros entrarem na Stanford Street, dobrando à direita, em di reção à Cambridge Street e a um número i nfin ito de p ossib il idad es depo is dali .

Pela forma como o sujeito que eu seguia ajeitou a valise debaixo do braço e pôs as mãos nosbolsos na esquina seguinte, percebi que íamos dar uma boa andada. Deixei uma distância de unscinqüenta metros entre nós e o segui pela Merrimac Street. Na altura da Haymarket Square, a 

 Merrimac S treet desemb oca n a Congress Street, e outro ven to n os pegou quand o cruzávam os New Sudbury. Seguim os na di reção d o centro fin anceiro, on de os estilo s arquitetôni cos se m isturam deforma tão desenfreada como jamais vi em nenhuma das cidades que conheço. Vidros cintilantes eplacas de granito dominavam súbitas explosões de pseudopalácios góticos ruskinianos eflorentinos; o modernismo ladeava a Renascença alemã, que ladeava o pós-modernismo, queladeava o pop, que ladeava colunas jônicas, cornijas francesas, pilastras coríntias e os bons e velhosedifícios de granito e de calcário da Nova Inglaterra. Eu passara dias inteiros no centro financeiro,sem fazer nada al ém d e ol har os edi fícios e sentindo , em uma época d e mai s otim ismo, que aquil opoderia ser uma metáfora de como viver no mundo — todas aquelas perspectivas diferentesmi sturand o-se, sem ma io res probl emas.

Não ob stante, pel o m eu gosto, eu varreria do map a o City Hall .Pouco antes de entrar no coração desse centro financeiro, o homem dobrou à esquerda,

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atravessou a S tate Street, a Congress Street e a Court Street, and an do sobre as ped ras que lem bram olugar do M assacre de Boston . Ele a nd ou mais vinte metros e entrou no edifício da Bol sa.

Desand ei a correr po rque o edifí cio d a Bolsa é enorme, com pel o m enos dezesseis elevado resno hall. Quando, por minha vez, pus os pés no mármore do térreo, cujo teto ficava a uma altura deuns quatro an dares acim a de m in ha cabeça, não o vi. Dob rei à d ireita, on de se encon trava o el evado rexpresso, no mo men to em que as po rtas se fechavam .

“Espere, por favor!”, gritei, precipitando-me em direção ao elevador, e consegui enfiar oombro entre as portas. Elas se abriram, mas não sem antes dar um bom apertão em meu ombro.Seman a d ura p ara o mb ros.

O homem encostou-se na parede, observando-me entrar, expressão aborrecida, como se euestivesse atrapalh and o sua vi da pessoal .

“Obrigad o po r ter segurado a p orta”, eu disse.Ele fixou o ol har num p on to à sua frente. “Há m uitos outros elevad ores a esta h ora da ma nh ã.”“Ah”, eu disse. “Um cristão caridoso...”Quando as portas se fecharam, notei que ele apertara o botão do trigésimo oitavo andar,

bal ancei a cabeça e recuei um po uco.

Ele olhou para meu rosto escalavrado e inchado, o braço na tipóia, as roupas irreconhecíveisde tão am arrotadas dep oi s de p assar onze h oras sentado no carro.

“Você tem negócio s a resol ver no trigésimo oitavo ?”, perguntou.“Sim.”Fechei os olh os, encostei-me na parede do elevador.“Que tipo de n egócio ?”, perguntou ele.“O que você ima gina?”“Bem, não sei.”“Então talvez você esteja ind o p ara o an dar errado ”, eu di sse.

“Eu trabalho lá.”“E você não sabe que tip o d e coi sa funcio na lá? Meu Deus. Prim eiro d ia?”Ele suspirou enquanto o elevador subia do primeiro ao vigésimo andar numa tal velocidade

que eu tin ha a i mp ressão de q ue mi nh as bochechas iam desli zar pelo queixo.“Meu jovem”, di sse ele. “Acho q ue você se enganou.”“Meu jovem?”, eu disse, mas quando o observei mais de perto percebi que eu errara em uns dez

anos em minha primeira estimativa de sua idade. Sua pele firme e bronzeada, seus exuberantescabelos negros me enganaram, da mesma forma que seu passo vigoroso; apesar de sua aparência 

 jo vem , ele tin ha pelo m enos sessenta anos.

“Sim, acho mesmo que você se engano u de l ugar.”“Por quê?”“Porque eu con heço tod os os cli entes da firma, e não o con heço.”“Eu sou novo”, eu di sse.“Não acredito”, disse ele.“É sério”, eu di sse.“Isso muito me espantaria”, disse ele dando-me um sorriso paternal, de perfeitos dentes

brancos p ostiços.Ele di ssera “firma ”, e im aginei que não po di a ser um escritório d e contabi li dad e.“Eu me ma chuquei”, eu di sse, ind ican do meu braço. “So u baterista d o Guns N’ Roses, a b and a 

de rock. Ouviu falar del es?”Ele fez que sim .

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“Ontem à noite, no Fleet Center, soltaram fogos de artifício onde não deviam, e agora estouprecisando de um ad vogado.”

“É mesmo? ”“É.”“O baterista do Guns N’ Roses se chama Matt Sorum, e você não se parece nem um pouco

com ele.”Um fã dos Guns N’ Roses de sessenta anos? Aquilo era possível? E por que aquela peça veio

cruzar lo go com igo?“Era Matt So rum”, eu di sse. “ Era. Ele se desentend eu com Axl, e aí me ch ama ram .”“Para tocar no Fleet Center?”, disse ele quando o elevad or parou no trigésim o oi tavo.“Isso aí , cara.”

 As po rtas se ab riram, e ele as m an teve ab ertas com a mão . “Na no ite passada, no Fleet Center,os Celtics estavam jogando contra os Bulls. Eu sei porque vendo ingressos para a temporada.” Ele medeu novamente aquele seu sorriso escancarado. “Seja lá quem você for, reze para que este elevadorchegue ao térreo antes da segurança.”

Ele saiu e ficou olhando para mim enquanto as portas se fechavam. Atrás dele, vi as palavras

GR IFFIN, MYLES, KENNEALLY AND BERG MAN em letras douradas.Eu sorri. “Desiree”, sussurrei.Ele se incli no u para a frente, enfiou a m ão entre as portas, e elas se abriram n ovam ente.“O que você di sse?”“O senh or me ouviu, senh or Griffin. Ou devo cham á-lo de Dann y?”

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genitália flácida se você não estivesse dando algo grande em troca.” Inclinei-me para a frente eafrouxei o nó da gravata d ele, desabo toei seu colarinho. “Bom , agora con te-me tudo .” Gotas de suorbrilhava m em seu láb io superior, e suas bochecha s começaram a descair. Ele di sse: “Você está sendoinvasivo”.

Ergui uma sobrancelha. “É tudo o q ue você consegue di zer? Tudo b em, Dan ny.”Levantei da mesa. Ele se recostou na cadeira de rodinhas, afastando-a de mim, mas dei meia-

 volta e a nd ei em direção à p orta. Antes de chegar nel a, vo ltei-me e o lh ei para el e. “Dentro de cincomi nutos vou ligar para Trevor Stone e l he di zer que seu advo gado está trepan do com sua fil ha . Querman dar algum recado para ele?”

“Você não po de fazer isso.”“Não? Eu tenho fotos, Dan ny.”Nada m elho r que um b om bl efe, quando funcion a.Dani el G riffin levan tou a m ão e engol iu em seco várias vezes. Ele se levan tou tão d epressa q ue a 

cadeira ficou girando atrás dele, e então, ofegante, colocou as mãos em cima da escrivaninha,man tendo-a s ali po r um instante.

“Você trab alha para Trevor?”, perguntou ele.

“Trabalhava”, eu di sse. “Não trabalh o m ais. Mas ain da tenho o n úmero do telefone.”“Você é...”, di sse ele elevan do a vo z, “...leal a ele?”“Você não é”, eu di sse com uma risadinh a.“Você é?”Bala ncei a cab eça. “Não gosto dele e não gosto d a fil ha d ele, e pelo que sei os do is querem q ue

eu esteja mo rto às seis da tarde d e ho je.”Ele b ala nçou a cab eça. “São pessoas perigosas.”“Grande novidade, Danny. Conte-me algo que não sei, para variar um pouco. O que Desiree

pediu que você fizesse?”

“Eu...” Ele balançou a cabeça e andou em direção a uma geladeirinha a um canto. Vendo-o seincli nar, saquei mi nh a pi stola e a engatilh ei. Mas o que ele tirou fo i ap enas uma garrafa de Evian . Ele b ebeu metad e sofregamen te, depois

li mp ou a boca com as costas da m ão. E arregalo u os olh os quand o vi u mi nh a arma. Dei d e om bros.“Ele é um sujeito egoísta, mau, e está para morrer”, disse ele. “Tenho que pensar no futuro.

Ten ho que pensar em q uem vai pô r a mã o em seu di nh eiro, quando ele m orrer. Quem vai controlarsua b ol sa, se vo cê p refere.”

“Uma bel a b ol sa”, eu di sse.“Sim. Um b il hão e cento e setenta e cinco m il hõ es de dó lares, pel a últim a estimativa .”

 Aquela cifra me ab al ou um pouco. Há certas som as que a gente im agina enchendo umcami nh ão ou os cofres de um grand e ba nco. E há certas som as que não caberiam neles.

“Isso não é uma b ol sa”, eu disse. “É um Prod uto Na cio na l Bruto.”Ele fez que sim . “E esse di nh eiro tem d e ir para algum l ugar quand o el e mo rrer.”“Meu Deus”, eu disse. “Você vai alterar o testamen to d ele.”Ele desviou os olho s dos meus e olho u pela jan ela.“Ou então já o alterou”, eu disse. “Ele mudou o testamento depois que tentaram matá-lo, não

foi?”Olh and o p ara a State Street, depo is para a pa rte de trás do City Hall Pla za, ele con firmou com

um gesto d e cabeça.

“Ele tirou Desiree do testamen to?”Outro gesto d e cab eça.

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“Para quem vai o d in hei ro agora?”Nada.“Dani el”, eu di sse. “Para q uem vai o di nh eiro agora?”Ele fez um gesto vago com a mão. “Instituições diversas: fundações universitárias, bibliotecas,

pesquisa méd ica, esse tipo de coisa.”“Mentira. Ele n ão é tão b onzi nh o assim .”“Noventa e do is po r cento de seus fund os irão pa ra uma conta em seu no me. Na q uali dad e de

fid eicom issário, devo repassar certa po rcentagem do s lucros ob tido s anualm ente às in stituições depesquisa méd ica d e que falei .”

“Que instituiçõ es de p esquisa?”Ele desviou os olh os da j anel a. “Instituições especiali zad as em pesquisa crio gêni ca.”Quase dei risada. “Esse louco filho da puta vai se congelar?”Ele fez q ue sim. “Até quand o descobrirem a cura d o câncer. E quand o ele a cordar, ain da será 

um dos homens mais ricos do mundo, porque só a renda gerada por seu dinheiro bastará para com pen sar as perdas da inflação p elo men os até o an o 3000.”

“Espere um pouco”, eu disse. “Se ele estiver morto, congelado ou seja lá o que for, como vai

control ar o p róp rio di nh eiro?”“Você quer saber com o ele vai im ped ir a m im e ao s meus sucessores de roubá-lo ?”“Sim.”“Através de uma firma d e contab il id ade p articular.”Encostei-me na parede por um instante, tentando entender a situação. “Mas essa firma de

contabil id ade só entra em ação quando ele m orrer ou for congelado , certo?”Ele fechou os olh os e con firmou com a cab eça.“E quand o el e pretend e se deixar con gelar?”“Amanhã.”

Comecei a rir. Aquil o n ão p od ia ser mai s absurdo .“Não ria. Ele está louco, mas não devemos subestimá-lo. Não acredito nessa história decrio genia. Mas e se eu estiver errad o e el e certo, senh or Kenzie? El e vai da nçar sob re no ssos túmulo s.”

“Não se você alterar o testamento”, eu disse. “Aí é que está o furo dos planos dele, não é? Mesmo que ele exam ine o testam ento pouco an tes d e entrar no refrigerad or, ou seja lá como secham e, você aind a p od e alterá-lo ou substituí-l o p or outro, não é?”

Ele levo u a garrafa de Evia n ao s láb io s. “É um troço mei o d elicado , mas é possível .”“Brilh ante. Onde Desiree está agora?”“Não tenho a meno r id éia.”“Tudo bem. Pegue seu casaco.”“O quê?”“Você vai vi r com igo, Dani el.”“Não vou fazer isso. Ten ho reuni ões, tenho...”“E eu tenho várias balas nesta pistola, e elas estão convocando uma reunião. Entende o que

quero dizer?”

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 37 

Pegam os um táxi n a S tate Street e avançam os no con trafluxo d o p esado trânsito d aquela h ora 

da m anh ã em di reção a Dorchester.“Há quanto tempo você trabalh a p ara Trevor?”, perguntei.“Desde 1970.”“Mai s de um q uarto de século ”, eu di sse.Ele fez que sim .“Mas você jogou tudo isso fora em poucas horas, na noite passada, para pôr a mão na filha 

dele.”Ele se aba ixou e ajeitou o vi nco d a calça d e forma que a bain ha fi casse exatamen te na altura de

seus sapatos lustrosos.“Trevor Stone”, disse ele temperando a garganta, “é um monstro. Ele trata as pessoas como se

fossem mercadorias. Ele compra, vende, negocia com elas, joga-as no lixo quando não lhe servemmais. Confesso que por muito tempo achei que sua filha era o contrário disso. A primeira vez quefizem os am or...”

“Quand o foi isso?”Ele ajei tou a gravata. “Há sete an os.”“Quand o el a tinh a dezesseis anos.”Ele olhou para o trânsito engarrafado do outro lado da auto-estrada. “Achei que ela era um

ped aço d o céu. Uma mulher bo ni ta, imaculad a, amável , generosa, que se tornaria o con trário d e seupai. Mas com o passar do tempo vi que ela estava representando. É isso o que ela é: uma atriz que

representa melhor do que o pai. Mas não é diferente. Assim sendo, como sou um velho e perdi a in ocência há m uito tempo, mudei m in ha m anei ra de encarar a situação e aproveitei o que pude. Ela me usa, eu a uso, e am bo s rezam os pela m orte de Trevor Stone.” Ele sorriu para mi m. “Ela pod e nã oser mel ho r do que o p ai, mas é mai s bo ni ta que ele e muito m ais divertid a na cam a.”

Nelson Ferrare me olhou com olhos cansados e começou a se coçar por cima da camiseta Fruit Of Th e Loom s. De trás dele vi nh a o cheiro d e suor azedo e de comi da po dre que emp esteava seu apartamento.

“Quer que eu vigie esse cara?”Daniel Griffin pareceu apavorado, mas acho que ainda não era de Nelson que tinha medo,embora devesse ter. Era do apartamento.

“Sim. Até a mei a-no ite. Trezentos paus.”Ele estend eu a mão, e eu lh e pa ssei as no tas.Ele se afastou da p orta e disse: “Entre, velh o”.Empurrei Dani el Griffin p ela soleira, e ele entrou camb alean do n a sala .“Amarre-o em algum l ugar, se precisar, Nelson. Mas não o machuque. Nem um p ouco.”Ele bocejou. “Por trezentos paus, eu lhe serviria café da manhã. Pena que eu não saiba 

cozinhar.”“Isso é um ab uso!”, disse Griffi n.“À meia-n oi te, po de soltá-lo”, eu di sse a Nelson. “Até mai s.”

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Nelson se vol tou e fechou a po rta.Quando ia andan do pelo corredor do edifício , ouvi a voz d ele através das paredes finas: “Vou

lhe explicar a primeira regra desta casa, velho: se puser a mão no controle remoto, corto sua mãocom um serrote velh o”.

Tomei o metrô de volta para o centro da cidade, peguei meu carro no estacionamento da Camb rid ge Street, on de ele costuma ficar. É um Porsche 63 que eu restaurei ma is ou meno s da m esma forma que Jay restaurou seu Falcon — peça p or peça, durante ano s; o que me agradava não era tan to oresultado final, mas o trabalho de reconstrução. Como me disse meu pai certa vez, apontando umedifício em cuja construção ele trabalhara, antes de se tornar bombeiro: “Aquele edifício nãosignifica nada para mim, mas está vendo aquele tijolo lá em cima, Patrick? E aqueles lá no segundoandar? Fui eu que os coloquei. Os primeiros dedos a tocá-los foram os meus. E eles vão sobreviver a mim”.

E assim foi. O trabalho e os seus resultados quase sempre duram mais que os que os fizeram,com o qualq uer fantasma de escravo egípcio p od e confirmar.

E talvez seja isso, pensava eu enquanto tirava a capa de meu carro, que Trevor não consiga aceitar. Porque, levand o em con ta o p ouco que eu sabia de seus negócio s (e eu pod ia estar totalmen teerrado; eles eram muito diversificados), suas chances de conseguir a imortalidade eram muitopequenas. Ele não parece ter se dedicado muito à construção. Ele comprava e vendia e explorava,mas do café salvadorenho e dos lucros que ele gerava não ficava nada tangível depois de se beber ocafé e gastar o di nh eiro.

Que edi fíci os trazem a sua m arca, Trevor?Que am an tes guardam a lembran ça de seu rosto com alegria e ternura?O q ue m arca a sua p assagem n a terra?

E quem pran teia a sua m orte?Ninguém.Eu tinh a um celular no po rta-luvas e li guei para o celular de Angie, no Crown Victoria. Mas ela 

não a tendeu.Parei o carro em frente ao m eu edi fício , liguei o ala rme, subi a escada e fiq uei esperando .Liguei para o celular de Angie dez vezes nas duas horas seguintes, cheguei a verificar se meu

telefone estava realmen te ligado. Estava. A bateria pode estar descarregad a, di sse com igo mesmo . Mas aí el a teria usad o um ad ap tador para ligá-lo ao isqueiro el étrico d o carro.Não se ela não estivesse no carro.

 Mas aí el a podi a ter li gado p ara cá.Não se ela nã o tivesse temp o o u um telefon e à mão .

 Assisti al guns minutos de Os quatro batutas, para me distrair, mas nem Harpo assediando asmulheres num pa quete nem os quatro i rmão s Marx imi tando Maurice Chevali er pa ra sair do na viocom o pa ssaporte roubado do cantor con seguiram p rend er a mi nh a atenção.

Desli guei a televisão e o vid eocassete e liguei n ovam ente para o celular de Angie.Nada.Foi assim que passei o resto da tarde. Ninguém atendia. Apenas o telefone chamando do

outro l ado d a lin ha e ecoando em min ha cabeça.

E o sil êncio que se seguia. Um silêncio ensurdecedo r, zom beteiro.

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O sil êncio me acomp anh ou enq uanto eu vol tava para o Whi ttier Place para meu encon tro às

seis h oras com Desiree. Angie não era ap enas minha sócia . Não era só m inh a m elhor am iga. E não era ap enas minha ama nte. Ela era tudo isso, com certeza, mas muito mai s. Desde que fizéramos am or na no ite an terio r,eu começara a entender que o que havia entre nós — o que certamente sempre houve entre nós,desde que éramo s crian ças — não era uma coisa apenas especia l; era uma coisa sagrada .

Lá on de eu começava, lá on de eu termi nava , estava Angie.Sem ela — sem saber ond e ela estava ou como ela estava — eu não era simp lesmente metade d o

meu ser no rmal ; eu não era m ais nad a.Desiree. Desiree estava por trás daquele silêncio. Eu tinha certeza. Logo que eu a visse, ia enfiar

uma ba la em sua rótula e fazer mi nh as perguntas. Mas Desiree, sussurrava uma voz, é esperta. Lem bre-se do que An gie disse — Desiree n unca age

sem um objetivo claro. Se ela estava por trás do desaparecimento de Angie, se ela a estivessemantendo seqüestrada em algum lugar, com certeza a usaria para fazer alguma barganha. Ela nãopo dia sim pl esmente tê-la m atado. Não havi a nen huma vantagem em fazer isso. Nenhum ganh o.

Na a uto-estrada, p eguei a alça que vai d ar na S torrow Drive e do brei à di reita d e forma a ch egarao Whittier Place, passando por Leverett Circle. Antes de chegar a este, porém, parei o carro e, semdesligar o motor, liguei o pisca-alerta, obrigando-me a respirar fundo por alguns instantes para meacalm ar, serenar o fluxo im petuoso d o sangue em mi nh as veias, pen sar.

Os celtas, murmurava a voz, lem bre-se dos celtas, Patrick. Eles eram lo ucos. Eles tin ham sangue

quente. Eram seus ancestrais e semearam o terror na Europa, um século antes de Cristo. Ninguémousava desafiá-los. Porque eles eram loucos e sanguinários e precipitavam-se para o combatecobertos de tin ta azul, no m aio r tesão. To do mundo temia o s celtas.

 Até César. Júli o César p ergunto u aos seus hom ens de on de tinh am tirad o as h istórias absurdassobre aqueles terríveis selvagens da Gália e da Germânia, da Espanha e da Irlanda. Roma não temia ninguém.

Os celtas tam bém não , respo nd eram seus sol dad os.Uma coragem cega, disse César, nad a p od e con tra a in teligência.E ele mandou cinqüenta e cinco mil homens para enfrentar duzentos e cinqüenta mil celtas

em Alésia.E estes chegaram com os olhos injetados de sangue. Eles chegaram nus e gritando, enfurecidos,de pa u duro, demo nstrand o um d esprezo total pel a própria vi da.

E os batalhões de César os ani quilaram. Val endo-se de man ob ras tática s precisas, despi ndo -se de tod a e qualquer emoção , as

guarnições de César conquistaram os celtas impetuosos, decididos e destemidos.Quando César comemorava a vitória nas ruas de Roma, afirmou nunca ter encontrado um

chefe mai s corajoso que Vercingetórix, o com and ante do s celtas da G áli a. E talvez para demo nstraro que ele pensava da mera coragem, César reforçava suas palavras brandindo a cabeça cortada de

 Vercin getórix ao lon go de todo o desfil e mi li tar. Mai s uma vez, o cérebro ven cera. As mentes do minaram o s corações.

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 Atirar-me como um celta, meter uma b al a n o joelh o de Desiree e esperar gan har al guma co isa com isso era uma estupid ez. Desiree era uma estrategista, uma rom an a.

Pouco a pouco, sentado em meu carro parado junto às águas escuras do Charles River, quecorriam à minha direita, senti meu sangue esfriar. Meu coração parou de bater descompassado.

 Mi nhas mãos pararam d e trem er.O que me esperava nã o era uma briga de socos, di sse com igo m esmo . Se você ganh a uma luta 

de socos, o que acontece é que você fica ensangüentado, e seu adversário só um pouco mais do que você, e normal mente disposto a p artir para outra se lhe der na tel ha.

 Mas o que m e esperava era a guerra. G an he a guerra, co rte a cab eça de seu ad versário. E p on tofinal.

“Com o vai vo cê?”, perguntou Desiree saind o d o Whittier Place, dez m in utos atrasada.“Bem”, respo nd i sorrin do .Ela parou ao l ado do carro e deu um assob io de ap rovação .“Deslumbrante. Queria que estivesse fazendo calor para poder abaixar a capota.”

“Eu tamb ém.”Ela p assou as mã os pela p orta, abriu-a, entrou e me d eu um b eijo rápi do no rosto. “Onde está a 

senho rita Genn aro?” Ela in clino u o corpo e passou a mão pelo volan te revestid o d e mad eira.“Ela resol veu passar mai s alguns di as tom and o sol .”“Está vend o? Bem q ue eu lh e di sse. Você perdeu uma passagem d e avi ão gratuita.”

 Atravessam os a al ça da auto-estrad a, dei uma guina da brusca para pegar a pista em di reção à rod ovi a 1, e as buzin as dispararam atrás de n ós.

“Gosto da forma como você d irige, Patrick. Bem no estilo de Boston .”“Eu sou assim”, eu disse. “Bostoni an o até a med ula .”

“Meu Deus”, di sse el a. “Escute só esse m otor! Parece o ronron ar de um leo pardo.”“Foi p or isso q ue eu o com prei. Sou louco p elo ron ron ar de um leop ardo.”Ela com eçou a rir um riso gutural. “Ima gino.” Ela cruzou as perna s, recostou-se no banco. Estava 

com uma bl usa de caxemira azul-m arinh o de gola rulê, sob re uma cal ça jean s com m otivos pi ntado sà mão e mocassim marrom de couro macio. Seu perfume cheirava a jasmim. Os cabelos, a maçãsfrescas.

“E então”, eu disse. “Você se di vertiu ba stan te desde q ue voltou?”“Divertir?” Ela balançou a cabeça. “Fiquei enfiada naquele apartamento desde que cheguei.

 Até você ch egar, eu estava com medo de pôr a cab eça para fora.” Ela tirou um maço de Dunhill da bo lsa. “Imp orta-se que eu fume?”

“Não. Eu gosto d o ch eiro.”“É ex-fuma nte?” Ela li gou o i squeiro d o p ain el.“Prefiro o termo dep end ente de n icotin a em fase de recuperação.”

 Atravessam os o Cha rlestown Tunn el e avan çam os em d ireção às luzes da T ob in Bridge.“Acho que andam pi ntand o com co res som brias dema is esses peq uenos vícios”, disse ela.“É mesmo? ”Ela a cend eu um ci garro e sugou-o ruid osam ente. “Cla ro. Tod o m und o m orre, certo?”“Pelo que sei, sim .”“Então por que evitar as coisas que vão matá-lo? Por que demonizar determinadas coisas —

heroína, álcool, sexo, nicotina, bungee-jump, seja lá qual for a sua p referência —, quand o nó s, de forma hipócrita, aceitamos cidades com substâncias tóxicas e nuvens de poluição, comemos comida 

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gordurosa, em suma, vivem os no final do século XX no p aís mai s in dustrial iza do do pl aneta?”“Pon to pa ra vo cê.”“Se eu morrer disso”, disse ela levantando o cigarro, “pelo menos foi uma opção minha.

Portanto, nada a lamentar. E eu terei tido a minha participação — o controle — em minha própria morte. É muito melhor do que ser atingido por um caminhão, a caminho de uma convenção de

 vegetarianos.”Não pude d eixar de sorrir. “Nunca vi n in guém fo rmula r as coisas nesses termo s, pode a credi tar.”Entram os na pon te, cujo vão m e lem brou a Fló rid a, pela fo rma co mo a água parecia afastar-se

bruscamente à medida que subíamos. Mas não apenas a Flórida. Foi lá que Inez Stone morreu,gritando enquanto as balas perfuravam sua carne e seus órgãos vitais, e ela se viu face a face com a lo ucura e o ma tricídi o, quer tivesse con sciênci a d este últim o ou não .

Inez. Sua m orte estaria o u não prevista no pl ano ?“Então”, disse Desiree. “Você acha q ue mi nh a fil osofia é ni il ista?”Balan cei a cab eça. “Fatalista. Cozin had a n o fogo brando do ceticismo.”Ela sorriu. “Gostei dessa.”“Fico con tente po r tê-la agrada do .”

“Quer dizer, todos vamos morrer”, disse Desiree inclinando-se para a frente. “Queiramos ounão . É um simp les fato d a vid a.”

 A essa altura ela colo cou uma coisa macia em m eu colo.Tive que esperar passar sob um poste de iluminação para ver o que era, porque o tecido era 

muito escuro.Era uma cam iseta. Nela se li am as pal avras FURY IN THE S LAUGHT ERHOUSE em letras

bran cas. Estava rasgada m ais ou men os na al tura do tórax de quem a usasse, do lad o d ireito.Desiree enfiou uma pistola em meus testículos, inclinando o corpo em minha direção e

começando a roçar a lí ngua em m inh a orelh a.

“Ela não está na Fló rid a”, disse ela. “Está enfiad a em algum lugar. Aind a n ão está morta, ma s ela  vai morrer se você nã o fi zer exatam ente o que eu man da r.”“Eu mato você”, respondi num sussurro, quando chegávamos ao ponto mais alto da ponte,

com eçando a descer pa ra a o utra m argem d o rio.“É isso o que todo s os caras costumam di zer.”

Na estrada sin uosa que subi a em di reção a M arbleh ead Neck, enquanto o oceano fervil ha va ese atirava contra os rochedos lá embaixo, afastei a lembrança de Angie de minha mente por umin stante, do mi nei as negras nuvens de p reocupa ção q ue am eaçavam me sufocar.

“Desiree.”“É o m eu no me”, disse ela com um sorriso.“Você q uer que seu pai morra”, eu di sse. “Tudo bem . Faz sentid o.”“Obrigada.”“Para um sociop ata.”“Que palavras doces, Patrick.”“Mas a sua m ãe”, eu di sse. “Que mo tivo teria pa ra m atá-la?”“Você sabe como são as coisas entre mães e filhas”, disse ela numa voz aguda, em tom frívolo.

“Tod o a quele ciúme reprimi do . Tod os aqueles espetáculo s na escola a q ue não se pô de assistir, tod as

aquela s di scussões sob re cabid es de m etal.”“Falando sério”, eu disse.

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Ela tambo rilo u com os dedos no cano d a arma po r um i nstante.“Min ha mã e”, di sse ela, “era uma bela mulher.”“Eu sei. Eu vi as fotografias.”Ela soltou um riso desdenhoso. “Fotografias enganam. Fotografias são momentos isolados.

 Mi nha mãe nã o era ap enas bon ita fisicam ente, seu imbecil. Minha mãe era a elegância personificada. Ela era a graça. Ela amava sem reservas”, completou Desiree, sugando o arruid osam ente entre os den tes.

“Mas então p or que matá-la ?”“Quando eu era pequena minha mãe me levou ao centro da cidade. Um dia de diversão para 

as garotas, com o ela di sse. Fizemo s um pi queniq ue no Comm on , visitamos os museus, tom am os chá no Ri tz e fom os passear de b arco n o Publ ic Ga rden . Foi um d ia p erfeito.” Ela ol ho u pel a jan ela. “Lá pelas três horas, topamos com aquele menino. Ele tinha a minha idade — certamente uns dez ouon ze, naquela ép oca. Ele era chin ês. Estava chorand o p orque alguém q ue pa ssara num ôn ib us escola r

 jo gara uma p edra nel e, atin gin do-lhe o o lho. E minha m ãe, nunca vo u esquecer, tom ou-o no colo echorou com ele. Em sil êncio . As lágrim as escorrend o p elas faces, e o sangue do men in o m anch and osua roupa. Assim era a minha mãe, Patrick.” Ela desviou os olhos da janela. “Ela chorava por

desconhecidos.”“E você a m atou por causa disso?”“Eu não a ma tei”, di sse ela com voz sibil ante.“Não?”“O carro dela q uebrou, seu pa naca! S acou? Isso não estava no s pla no s. Ela não devi a estar com

Trevor. A mo rte dela n ão estava no s plan os.”Ela tossiu cob rin do a bo ca com o punho e in spi rou bruscamen te, com um ruíd o l íq uid o.“Foi um en gano ”, eu di sse.“Sim.”

“Você a amava.”“ Sim.”“Quer dizer então que sentiu a sua morte”, eu disse.“Mais do que você p oderia im aginar.”“Ótimo”, eu di sse.“Ótimo q ue ela m orreu, ou bom que eu senti a sua m orte?”“As duas coisas”, respon di .

* * *

Na entrada da propriedade de Trevor Stone, os grandes portões se abriram diante de nós,fechando-se depois que passamos. As luzes dos meus faróis primeiro iluminaram os arbustosimpecavelmente podados, descrevendo em seguida um arco para a esquerda, quando eu peguei a estradinha de cascalho branco que contornava um gramado oval com um enorme chafariz aocentro, depois entrei devagar no acesso principal. A casa avultava uma centena de metros maisadiante, no fim de uma alameda ladeada de carvalhos cujas imensas silhuetas impassíveis eorgulh osas lem bravam a de sentinelas postada s a cada cinco metros.

Quando chegamo s ao cul-de-sac   no final da estrada, Desiree disse: “Continue. Lá”. E apontou.Contornei o chafariz, ele se acendeu no mesmo instante, e raios de luz amarela atravessavam ossúbitos jatos de água espumante. Uma ninfa de bronze, sobranceando tudo aquilo, girava 

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len tamente, fixand o em mi m o s ol ho s mo rtos de seu rosto d e querubi m. A estrada descrevi a um cotovelo num ân gulo da casa, depoi s se interna va num pin heiral até

um celeiro reformado .“Estacion e ali ”, di sse Desiree apo ntand o p ara uma clareira à esquerda do edi fício .Parei o carro e desliguei o mo tor.Ela pegou as chaves e saiu do carro, apontando a arma para mim através do pára-brisa 

enquanto eu abria a porta e entrava na noite, naquele ar duas vezes mais gelado que o ar da cidade,devido ao ven to cortante que sop rava do ma r.

Ouvindo o barulho inconfundível de um cartucho sendo colocado na câmara de uma espi ngarda, vol tei a cabeça e dei d e cara com o can o p reto da arma n as mã os de Juli an Archerson .

“Boa no ite, senh or Kenzie.”“Zumbi”, eu disse. “É sempre um prazer.”Tive a impressão de ver um cilindro cromado apontando do bolso esquerdo de seu casaco.

Quando meus olhos se acostumaram à escuridão, percebi que se tratava de uma espécie de garrafa deoxigênio.

Desiree, que se aproxim ara de Juli an, l evantou uma ma ngueira li gada a o cil in dro, desfez as suas

do bras e pegou a máscara am arela translúcid a q ue ha via na extremi dad e.Ela m e passou a máscara e girou a chave do cili nd ro, que com eçou a emi tir um ruíd o sibil ante.“Col oq ue isso”, disse ela.“Não seja rid ícula.”

 Julian bateu a boca da espi ngarda em meu queixo. “Você n ão tem escolh a, Kenzi e.”“Pela senhorita G enn aro”, disse Desiree em tom suave. “O amo r de sua vida .”“Devagar”, eu disse enquanto pegava a m áscara.“Como assim?”, perguntou Desiree.“É assim q ue vo cê vai m orrer, Desiree. Devagar.”

Coloquei a máscara no rosto, inspirei e imediatamente senti o torpor espalhar-se pelasminhas faces e pela extremidade de meus dedos. Inspirei novamente, e uma coisa nebulosa invadiumeu peito. Inspirei pel a terceira vez, e tudo ficou verde, dep oi s preto.

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 39 

 A prim eira coisa que pen sei, quando recuperei os sentido s, foi q ue estava paral isado .

Não conseguia mexer os braços nem as pernas. E não apenas os membros, mas também osmúsculos. Abri os olhos, pisquei várias vezes para l ivrar-me de uma crosta seca que parecia ter se forma do

sobre as córneas. O rosto de Desiree pairava à distância, sorrindo. Depois vi o peito de Julian. Depois,uma l âm pa da. E no vam ente o peito de Juli an. Depo is, o rosto de Juli an, ain da sorrin do .

“Olá”, disse ela. A sala atrás deles começou a tom ar fo rma, como se tudo de repen te co meçasse a emergir das

trevas, vin do em mi nh a d ireção, parando abruptamen te às suas costas.Eu estava no escritório de Trevor, numa cadeira próxima ao canto esquerdo da secretária. Eu

ouvia o bramido do mar atrás de mim. Quando me recuperei do torpor, ouvi o tique-taque do

relógio à minha direita. Voltei a cabeça e olhei para ele. Nove horas. Eu passara duas horasdesacordado.

 Aba ixei os ol hos p ara ver meu próprio corpo, e vi um branco só. Meus braços estava m presosno braço da cadeira, minhas pernas amarradas ao lado interno das pernas da cadeira. Eu fora amarrado com um l ençol inteiro q ue me envo lvia o p eito e as coxas, e outro q ue prendia m inh aspernas. Não d ava p ara sentir os nó s, e im aginei que ambo s os lençóis estavam am arrado s na p arte detrás da cad eira. E estavam m uito b em am arrado s. Eu estava praticamen te mumi ficado , do pescoçopara baixo, e meu corpo não apresentaria marcas de cordas nem de algemas, quando chegasse omo men to da autópsia a que Desiree certamente pretend ia me d estinar.

“Nenh uma ma rca”, eu di sse. “Ótim o.”Olhan do para mim , Juli an l evou a mã o a um ch apéu imaginário. “Foi uma coisa que aprendina Argélia”, di sse el e. “Muitos ano s atrás.”

“Sujei to via jad o”, eu di sse. “Go sto d isso num Zumb i.”Desiree aproximou-se e sentou-se na secretária, as mãos sob as coxas, pernas balançando no ar

com o as de uma garotin ha d e escola.“Olá”, repetiu ela, toda do çura e leveza.“Olá.”“Estamos só esperand o po r meu pai.”

“Ah”, eu di sse ol ha nd o p ara Juli an. “Com o Zumbi aqui e Nó -Cego mo rto, quem é q ue cuid a de seu pai quando ele vai à cidade?”“Coi tado d o Juli an”, disse ela. “Hoje a cordou grip ado .”“Sinto m uito p or isso, Zumb i.”Os láb io s de Juli an tremeram.“Então, pap ai teve de con tratar um serviço de l im usin es pa ra levá-lo à cid ade.”“Meu Deus”, eu disse. “Que dirão o s vizinh os? Meu Deus.”Ela tirou as mãos de sob as coxas, pegou um maço de Dunhill do bolso e acendeu um deles.

“Você ainda não sacou, Patrick?”Inclin ei a cab eça para ol ha r pa ra ela. “Você mata Trevor a tiros, me m ata, e faz pa recer que nós

no s matam os.”“Mais ou menos isso.” Ela p ôs o pé esquerdo em cim a d a secretária, sentou-se em cim a d o outro

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e ficou me o bservand o através do s anéi s de fuma ça que lan çava em m in ha d ireção.“A polícia da Flórida vai garantir tratar-se de uma espécie de vingança pessoal ou estranha 

ob sessão con tra seu pa i, pintand o-m e como um p aranói de ou coi sa pi or.”“Provavel men te”, di sse ela jo gando a ci nza d o cigarro n o chã o.“Puxa, Desiree, as coi sas estão ind o às mi l m aravil has para você.”Ela fez uma pequena mesura. “Normalmente é assim, Patrick. Mais cedo ou mais tarde. Price é

que devia estar sentado aí onde você está, mas então ele deu com os burros n’água, e tive deimprovisar. Pensei depois que seria o Jay, mas aí houve mais complicações, e tive de improvisarnovamente. Ela deu um suspiro e esmagou o cigarro na escrivaninha. “Mas tudo bem. Aim provisação é uma d e mi nh as especiali dades.”

Ela se recostou na escrivan in ha e me deu um sorriso l argo.“Por mi m eu batia pa lm as”, eu di sse. “Mas estou po r assim di zer imp ossib il itado .”“O que vale é a i ntenção”, disse ela.“Já que estamos aqui sem muito o que fazer antes de você matar seu pai e a mim, deixe-me

perguntar-lh e uma coi sa.”“Desembucha, cara.”

“Price p egou o d in hei ro que vocês dois roubaram e o escon deu, certo?”“Certo.”“Mas por que você o deixou fazer isso, Desiree? Por que você simplesmente não arrancou essa 

in formação del e, pa ra em seguid a matá-lo ?”“Ele era um sujeito p erigoso d emai s”, disse ela arqueand o as sob rancelha s.“Sim, mas ora, Desiree. Acho que comparado a você, em matéria de periculosidade, ele não

passava de um b und a-mo le.”Ela se inclinou para a frente, lançando-me um olhar meio que de aprovação. Ela se mexeu

novamente, cruzando as pernas em cima da escrivaninha, envolvendo os tornozelos com as mãos.

“Sim , no fin al das con tas eu po deria ter recuperado os do is mi lh ões em d uas horas, se quisesse. Mas aíteria sid o uma coisa sangrenta. E depoi s a arma ção d a d roga ia rend er um bo m di nh eiro, Patrick. Seo na vio não tivesse naufragado, ele ia receber dez mil hõ es de dó lares com o p agamento.”

“E você o teria matad o p ara pegar o d in hei ro l ogo q ue Price o pegasse.”Ela fez que sim . “Nada ma u, hein ?”“Mas aí com eçou a ap arecer heroín a na s praias da Fl órida ...”“E foi tudo po r água ab aixo.” Ela acend eu outro ci garro. “Então pa pa i m and ou você, Cli fton e

Cushi ng para lá. Cushi ng e Clifton tiraram Jay d a p arada, e ma is uma vez tive d e imp rovi sar.”“Mas você é tão boa ni sso, Desiree...”Ela sorriu, a boca aberta, passando a ponta da língua de leve sob os dentes superiores. Desceu da 

escrivani nh a, deu várias voltas em torno de m in ha cadeira, fuman do, ol han do-m e com um brilh oestranh o no s ol ho s.

Ela p arou, encostou-se na escriva ni nh a no vamen te, os olh os de jad e fitand o o s meus.Não saberia dizer quanto tempo nos mantivemos assim, olhos nos olhos, esperando que o

outro piscasse. Eu gostaria de dizer que, fitando os olhos verdes brilhantes de Desiree, eu a entendi.Go staria de d izer que entend i a n atureza d e sua al ma , que encon trei um laço co mum q ue no s uni a, epo rtanto tamb ém a todo s os seres huma no s, mas não foi o q ue acon teceu.

Quanto mais eu olhava, menos eu via. O brilho do jade deu lugar a vestígios do nada. E os vestígio s do nad a deram lugar à essência do nad a. Exceto, tal vez, a ganân cia nua e crua, a superfíci e

po lid a de uma máq uina que só con hecia a cobi ça, e que pouco sabia sobre tudo o m ais.Desiree esmagou o cigarro na escrivaninha, ao lado do outro, e agachou-se ao meu lado.

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“Patrick, sab e o que me d ói ?”“Além d e ter um co ração p od re?”, eu di sse.Ela sorriu. “Além disso. O que me dói é que de certa forma eu gostava de você. Nenhum outro

homem resistiu aos meus encantos. Nunca. E isso me excita, pode crer. Se tivéssemos tempo, eu ofaria fi car lo uco por mim .”

Bala ncei a cabeça. “Não h averia n enh uma cha nce.”“Ah, não?” Ela avançou de joelhos e colocou a cabeça em meu colo. Ela repousou a cabeça 

sobre a face esquerda e olhou para mim com o olho direito. “Eu enlouqueço todo mundo. É sóperguntar a Jay.”

“Você co nq uistou Jay?”, perguntei.Ela an in ho u o rosto em mi nh as coxas. “Eu di ria que sim .”“Então p or que você foi estúpi da a p on to de me di zer Limi te de segurança n o aerop orto?”Ela levantou a cabeça de m eu colo . “Foi isso q ue lh e deu a pista?”“Eu estava com um pé atrás com você desde que nos conhecemos, Desiree, mas foi isso que

decid iu tudo .”Ela estalo u a l ín gua. “Bem, po nto p ara ele. Pon to pa ra ele. Ele tentou me i ncrimi nar dep oi s de

mo rto, não foi?”“Sim.”Ela se agachou novam ente. “Oh, b em. Isso fez m uito bem pa ra el e. E para você.” Ela esticou o

tron co e passou as mã os pel os cabel os. “Estou sempre preparada p ara os imp revistos, Patrick. Semp re.Foi uma coisa que meu pai me ensinou. Deus sabe como eu odeio aquele canalha, mas devo isso a ele. Ele sempre tem um p la no alterna tivo. Três, se necessário.”

“Meu pai me en sin ou a mesma coi sa. Tam bém no meu caso, por mais que eu o o di asse.”Ela in clin ou a cabeça pa ra a di reita. “É mesmo?”“Ah, sim , Desiree. É sim .”

“Ele está blefan do , Juli an?”, disse ela p or sob re o o mb ro.O rosto im pa ssível de Juli an tremeu. “Ele está b lefan do , min ha cara.”“Você está blefand o”, ela me d isse.“Temo que não ”, respo nd i. “Você teve notícias do advo gado d e seu pa i hoj e?”Faróis de carro il umi naram a casa, e o cascalh o de fo ra rangeu sob os pn eus.“Deve ser seu pai”, disse Julian. Ela estava olhando para mim, os músculos da mandíbula 

crispan do -se quase im perceptivelm ente. Mergulhei n o fund o d e seus olh os com o o faria com o s ol hos de uma am an te. “Você vai matar

Trevor e a m im , para pensarem q ue eu e ele n os matamo s, mas isso n ão va i a di antar de nad a sem um

testamen to frauda do , Desiree.” A porta da frente se ab riu.“Juli an !”, gritou Trevor Ston e. “Juli an ! Ond e você está?”Lá fora, pneus fizeram ranger o cascalho novamente, depois afastaram-se em direção aos

po rtões de en trada .“Ond e el e está?”, disse Desiree.“Quem?”, eu disse.“Julian!”, gritou Trevor.

 Julian dirigiu-se à porta.“Pare”, di sse Desiree.

 Julian estacou.“Ele tam bém rol a n o gram ado , vai b uscar ossos e tudo o ma is?”, perguntei.

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“Julian! Por Deus, homem!” Os passos vacilantes de Trevor aproximaram-se soando no pisode má rmo re lá fora.

“Ond e está Danny Griffin ?”, disse Desiree.“Ima gino que não está atendend o os seus telefon emas.”Ela sacou a pi stola de sob o suéter.“Julian! Pelo amor de Deus!” As pesadas portas se abriram, e Trevor Stone surgiu, apoiado em

sua b engala, vestin do um smo king , um l enço d e seda ao pescoço, tremen do do s pés à cabeça. Ajo elhad a no ch ão , Desiree apontou a arma para ele, o braço firme fei to uma rocha.“Oi, pai”, di sse ela. “Quanto temp o, hei n?”

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40 

Trevor Stone reagiu com espa ntoso sangue-frio pa ra um h om em sob a m ira de uma arma.

Ele olhou para a filha como se a tivesse visto no dia anterior, olhou para a arma como se fosseum presente de que não gostasse muito mas que também não pretendesse recusar, entrou na sala edi rigiu-se à escrivan in ha .

“Olá, Desiree. Você fica muito bem bron zeada .”Ela sacudi u os cabelo s e in clino u a cabeça p ara vê-lo m elh or. “Você acha?”Os olhos verdes de Trevor relancearam pelo rosto de Julian, depois voltaram-se para mim.

“Ora, o senho r Kenzi e”, di sse ele. “Vejo que voltou da Flórida são e salvo.”“Apesar de estar am arrado a esta cadeira com l ençó is, estou ótimo , Trevor.”Ele apoiou a mão na escrivaninha enquanto a contornava, depois inclinou-se para pegar a 

cadeira d e rodas junto à j anel a e sentou-se. Desiree girou sob re os joel ho s, seguin do -o com a a rma.

“Quer dizer então, Julian”, disse Trevor enchendo a sala com sua voz de barítono, “que, peloque estou vend o, você p assou para o lad o da juventude.”

 Julian cruzo u as mão s na cintura e ab ai xou a cab eça. “Foi a op ção mai s pragmática, m eu caro. Você entend e, não é?”

Trevor abriu a caixa de charutos que estava na escrivaninha, e Desiree engatilhou a pistola.“Só um charuto, minha cara.” Ele tirou um charuto cubano comprido feito minha canela,

cortou a pon ta e o acendeu. Pequenos anéis de fumaça com eçaram a subi r da p on ta acesa, enquantoele sugava o ch aruto repetid as vezes, encovan do ain da mai s as faces devastada s para acend ê-lo bem , eentão um rico aroma d e folh as queim adas penetrou em m in ha s narin as.

“Não escon da as mão s, pai.”“Oh, longe de mim fazer uma coisa dessa”, disse ele recostando-se na cadeira e soltando umanel de fumaça acima de sua cabeça. “Quer dizer então que você veio para terminar o serviço queaqueles três patifes não conseguiram fazer na p on te, no ano pa ssado .”

“Mai s ou menos isso”, disse ela.Ele inclinou a cabeça e olhou para ela pelo canto do olho. “Não, é exatamente isso, Desiree.

Lemb re-se, se seu di scurso é co nfuso, pod e da r a im pressão de que suas id éia s tam bém são confusas.”“As Regras de Com ba te de Trevor Stone”, Desiree me expl ico u.“Senhor Kenzie”, disse ele, voltando a contemplar os anéis de fumaça que ia soprando. “Você

transou com m inh a filh a?”“Ora essa, pai ”, di sse Desiree. “Ora essa.”“Não”, eu di sse. “Não tive esse prazer. Por isso im agin o ser uma exceção n esta sala.”Seus lábios estragados fizeram um arremedo de sorriso. “Ah, quer dizer então que Desiree

contin ua com a fan tasia de que tivem os um caso sexual.”“Você mesmo me di sse, pap ai: quando um truque dá certo, con tinue a usá-lo .”Trevor piscou para mim. “Não sou nenhum anjinho, mas nunca cheguei ao incesto.” Ele

 voltou a cab eça. “E você, Julian . O que ach ou da performa nce de minh a filh a na cam a? Foisatisfatória?”

“Muito”, disse ele co m um leve tremo r na s faces.

“Mais do que a da m ãe dela?”Desiree virou a cab eça bruscamen te para ol ha r para Juli an, vol tando em seguid a a ol ha r para o

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pai.“Não saberia di zer sob re a m ãe del a, senh or.”“Ora, vamo s”, disse Trevor com uma risadinh a. “Não seja m od esto, Juli an. Pelo que sei, você é

que é o pai dessa m oça, não eu.” As mão s de Juli an se crispa ram, e seus pés se afastaram um pouco. “Está imaginan do coi sas,

senhor.”“É mesmo? ”, di sse Trevor vol tando a cabeça e piscand o para mim .Sen ti-me como se estivesse preso n uma peça d e Noel Coward reescrita p or Sam Sh epard.“Você acha que essa história vai funcionar?”, falou Desiree. Ela se levantou. “Pai, você nem pode

imaginar o quanto estou me lixando para esses padrões de comportamento sexual consideradosno rmai s.” Ela p assou por trás de mi m, con torno u a escrivan in ha , postou-se atrás do p ai e se incli no upor sobre seu ombro. Ela encostou o cano da pistola do lado esquerdo de sua fronte, fazendo-odeslizar com tanta força em sua pele que a mira deixou um rastro de sangue. “E o que aconteceria seulian fosse meu pai b io lógico?”

Trevor seguiu com os ol ho s uma gota de suor que caiu de suas sob rancelha s sob re o cha ruto.“Agora, pai”, di sse ela b eliscand o-l he o lo bo da o relh a esquerda, “que tal levarmos você para o

mei o d a sala, para que fiq uemo s todos juntos?”Enquanto a fi lh a o emp urrava, Trevor aspi rou um p ouco m ais a fumaça do charuto, tentand o

parecer tão indiferente quanto parecera ao entrar na sala, mas notei que a situação começava a incomodá-lo. O medo conseguira se insinuar no coração daquele homem arrogante, como pudeperceber pela expressão de seus olhos e pela súbita crispação de sua mandíbula em petição demiséria.

Desiree contornou a escrivaninha empurrando o pai na sua frente, colocando-o diante demi m; cad a um em sua cadei ra, ficamo s os doi s nos perguntand o se nos levan taríam os delas.

“Com o está se sentin do , senh or Kenzi e?”, disse T revor. “Amarrado aí, d esam pa rado , sem saber

se o próxim o suspi ro n ão será o últim o.”“Você tam bém está em cond ições de m e dizer com o é isso.”Desiree afastou-se de nós e aproximou-se de Julian, os dois cochicharam por um instante, a 

arma ap ontada p ara a nuca do pai .“Você é um sujeito esperto”, disse Trevor inclinando-se para a frente, abaixando a voz. “Tem

alguma idéi a?”“Pelo que estou vendo, você está fodido, Trevor.”Ele fez um gesto largo com o cha ruto. “Você tamb ém, garoto.”“Sim, mas um p ouco m enos.”Ele fitou meu corpo mumificado e ergueu as sobrancelhas. “É mesmo? Acho que você está 

enganad o. Ma s se nó s doi s puséssemo s a cabeça p ra funcion ar, quem sabe p od eríam os...”“Certa vez conheci um sujeito”, eu disse, “que violentou o filho, matou a mulher, provocou uma 

guerra de quadrilhas em Roxbury e Dorchester que resultou na morte de pelo menos dezesseisgarotos.”

“E daí?”, di sse Trevor.“E eu tinh a m ais sim pa tia por ele do que por você”, eu di sse. “Não muita, bem entendi do . Quer

di zer, ele era um can alh a, você tamb ém é; é com o ter de escol her entre dois tip os de po dridã o. Masele pelo menos era pobre, não tinha nenhuma instrução, a sociedade lhe dera mil e uma demonstrações de quão pouco se importava com ele. Mas você, Trevor, você tinha tudo o que um

homem pode desejar. E não lhe bastou. E você ainda comprou sua mulher como se ela fosse uma leitoa numa feira do interior. E ainda por cima pegou a criança que você pôs no mundo e a 

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transformou num monstro. O cara de quem eu estava falando foi responsável pela morte de pelomenos vinte pessoas. Provavelmente muito mais. E eu o matei como quem mata um cachorro.Porque era isso que ele merecia. Mas você? Nem com uma calculadora você poderia computar onúmero de mortes que tem nas costas, o número de vidas que destruiu ou infernizou ao longo dosanos.”

“Quer dizer que você me mataria como se mata um cachorro, senhor Kenzie?”, disse elesorrindo.

Balancei a cabeça. “Não. Mas como se mata um tubarão feroz quando se está pescando emalto-mar. Eu o içaria para dentro do barco, daria umas boas pauladas até deixar você zonzo, abriria sua barriga e o jogaria de volta no mar. E ficaria assistindo de camarote os tubarões o devorarem

 vivo.”“Ora, ora”, disse ele. “Não é q ue seria um belo espetáculo ?”

 A essa altura Desiree veio em no ssa direção. “Estão se di vertin do, cava lh eiros?”“O senh or Kenzie estava me expli cand o a s sutilezas do ‘Segund o Con certo de Brand emb urgo’

em fá m aio r, de Bach. Ele revol uciono u a mi nh a percepção dessa peça musical , querid a.”Ela lh e deu um tapa na têmp ora. “Que bo m, pap ai.”

“Bem, e o que você está pretend end o fazer con osco?”, perguntou ele.“Quer dizer, dep oi s de m atá-los?”“Bem, era sobre isso que eu estava me perguntando. Eu me pergunto por que você precisaria 

confab ular com meu querid o criad o, o senh or Archerson , se tudo estivesse saind o de a cordo com opl anej ado . Você é m uito cuidad osa, Desiree, porque eu trein ei você p ara ser assim . Se vo cê precisouconfabular com o senhor Archerson, deve ter caído a famosa mosca na sopa.” Ele olhou para mim.“Será que isso teria a ver com o esperto senh or Kenzi e?”

“Esperto”, eu disse. “É a segunda vez que diz isso.”“Você se aco stuma ”, disse ele.

“Patrick”, disse Desiree. “Nós dois temos umas coisinhas para discutir, não é?” Ela voltou a cabeça. “Juli an, você po de levar o senho r Ston e para a despensa e trancá-l o l á?”“A despensa!”, exclamou Trevor. “Adoro a despensa. Todos aqueles enlatados.”

 Julian pôs as mãos nos om bros de T revor. “O senhor sab e como sou forte, senhor Trevor. Nãome o brigue a usar a min ha força.”

“Nem em son ho ”, di sse Trevor. “Vamo s aos enla tados, Juli an, o m ais rápid o p ossível .” Julian foi empurran do a cad eira de Trevor para fora da sala , e ouvi o barulho da s rodas no

mármo re quand o eles passaram pela grand e escadaria em d ireção à cozin ha .“Tod os aqueles presuntos!”, exclam ava T revor. “E a quantid ade d e alh o-p oró!”Desiree se sentou em minhas coxas e encostou a pistola em meu ouvido esquerdo. “Cá estamos

nós.”“Que rom ântico, não?”“E o Dan ny”, di sse ela.“Sim?”“Onde el e está?”“Onde está a mi nh a sócia?”Ela sorriu. “No jardim.”“No jardim?”, perguntei.Ela fez que sim. “Enterrada até o pescoço.” Ela olhou pela janela. “Meu Deus, tomara que não

caia n eve esta noi te.”“Desenterre-a”, eu d isse.

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“Não.”“Então d iga ad eus a Dan ny.”Tive a impressão de ver lâminas brilhando em seus olhos. “Deixe-me tentar imaginar — a 

men os que você d ê um telefonem a a certa al tura, ele está mo rto, e blá b lá bl á.”Olh ei p ara o relógio por sob re seu om bro, quand o ela mudou de posição sobre mi nh as coxas.

“Na verdad e não . Mas aconteça o q ue acon tecer, ele vai levar um tiro n a cab eça den tro d e uns trin ta minutos.”

Seu maxil ar abai xou um p ouco q uand o el a sentiu o gol pe, ma s só p or um in stante, dep oi s sua mão se crispou em meus cabelos, e a pistola pressionou com tanta força o meu ouvido que porpo uco n ão saía d o o utro l ado . “A meno s que você dê um telefon ema”, disse ela.

“Não. Um telefonema não ia resolver o problema, porque o sujeito que está com ele não temtelefone. Se eu não apa recer em sua casa den tro de trin ta — não , vinte e n ove — mi nutos, vamos terum ad vogado a men os no m und o. Em tudo e por tudo , quem vai sentir falta de um ad vogado ?”

“E se ele m orrer, o q ue você ganh a com isso?”“Nada”, eu di sse. “Mas de q ualquer mo do já vou morrer mesmo.”“Você se esqueceu de sua sócia?”, disse ela i ncl in and o a cab eça em d ireção à janel a.

“Ora, Desiree. Você já a m atou.”Observei b em o s olho s dela q uand o ela respo ndeu.“Não, não ma tei.”“Prove.”Ela caiu na risada e, aind a apoi ada em mi nh as coxas, in clino u o corpo pa ra trás. “Foda-se, cara.”

Ela sacudiu um dedo diante do meu rosto. “Dá pra notar que você está começando a se desesperar,Patrick.”

“Você também , Desiree. Se vo cê perder o advo gado, perde tudo . Mesmo que você me m ate emate seu pa i, só terá do is milh ões. E amb os sabem os que isso n ão é o ba stante para você.” Incli nei a 

cabeça para deslocar a pistola de meu ouvido, depois rocei o cursor com a maçã do rosto. “Vinte eoi to m in utos”, eu disse. “Depo is di sso, você va i passar a vid a p ensando em com o esteve perto de umbi lh ão de d ól ares. E vendo outras pessoas gastando -o.”

 A co ronha bateu com tanta força em minha cab eça que o ar d a sala ficou vermel ho por umin stante e tudo com eçou a girar.

Desiree levan tou-se de mi nh as coxas e m e deu uma bo fetada . “Pensa que não conh eço vo cê?”,gritou ela . “Hein ? Você p ensa que eu nã o...”

“Eu acho q ue você está precisand o d e um a dvogad o, Desiree. É isso o q ue eu acho.” Mai s um tapa, desta vez com as unh as di la cerand o-m e a face esquerda. Ela engatil hou a pistol a 

novamente, pôs o cano da arma entre minhas sobrancelhas e começou a berrar em minha cara;agora eu via apenas o buraco de sua boca, de onde jorrava uma torrente de impropérios. A saliva espumava nos cantos dos lábios, e ela continuava a gritar, o indicador enroscando-se no gatilho etingindo-se de rosa. A violência de seus berros, combinada com a onda de choque criada por eles,martelava meu crâni o e m e queim ava os ouvid os.

“Você vai m orrer”, di sse ela numa voz d escontrol ada .“Vin te e sete mi nutos”, eu di sse.

 Julian precip itou-se porta ad entro, e ela ap onto u a arma para ele.Ele levantou as mãos. “Algum problem a, senh orita?”“Em quan to temp o você co nsegue chegar a Dorchester?”, disse ela.

“Trinta minutos”, disse ele.“Você tem vinte minutos. Vamos mostrar ao senhor Kenzie a sócia dele no jardim.” Ela 

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Desiree fez uma careta. “Onde? A casa mais perto daqui fica a uns quatrocentos metros, e osdo no s foram veranear em Nice. Ela está coberta de terra e...”

“Nesta casa”, disse Julian entre dentes, olhando por sobre o ombro para a mansão. “Ela podeestar dentro desta casa.”

Desiree balançou a cabeça. “Ela ainda está aqui fora. Sei que ela está. Ela está esperando onamorado. Não está?” Ela gritou para a escuridã o: “Não está?”.

Ouvim os um rumo r à no ssa esquerda. O ruíd o po deria ter vind o das sebes, mas era d ifícil saberao certo por causa do fragor das ondas do mar, a uns vinte metros de distância, do outro lado do

 ja rdim. Julian se inclino u em d ireção a uma sebe. “Não sei”, di sse ele devagar.Desiree apontou a pistola para a sua esquerda e soltou meu cabelo. “Os refletores. Podemos

acender os refletores, Juli an .”“Não sei...”, di sse Juli an .O ven to — ou quem sabe as on da s do m ar — sussurrou em meus ouvido s.“Merda”, disse Desiree. “Como será que ela...?”De repente ouviu-se o barulho de água, semelhante ao de um sapato entrando numa poça de

neve derretida.“Droga”, disse Julian, apontando a lanterna para o próprio peito, iluminando as duas lâminas

brilhan tes da tesoura d e jardim apon tando de seu esterno .“Droga”, repetiu ele olhando para os cabos de madeira da tesoura, como se esperasse que eles

expli cassem a p róp ria p resença.Então a lanterna caiu, e ele tombou para a frente. As pontas das lâminas letais saíram de suas

costas, ele p iscou os ol ho s uma vez, o q ueixo enfiado na sujei ra, depoi s suspi rou. Depo is nad a.Desiree voltou a pistola para mim, mas ela saltou de sua mão quando o cabo de uma enxada 

ba teu con tra seu punh o.

Ela disse: “O quê?”, voltando a cabeça para a esquerda, enquanto Angie saía da escuridão,coberta de terra da cabeça aos pés. Angie deu um soco tão forte na cara de Desiree Stone que comcerteza ela já estava no paí s do s son ho s antes que o corpo chegasse ao ch ão.

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Fiq uei ao lad o d o chuveiro no ba nh eiro de hóspedes do térreo, enquanto a água escorria p elo

corpo de Angie e o último resto de sujeira descia pelos tornozelos dela e desaparecia no ralo, numtorveli nh o. Ela p assou uma espo nj a d e ban ho no braço esquerdo , a espuma escorreu até o cotovelo,ficou ali por um instante, formando longas gotas que terminaram por cair no chão de mármore.Então ela co meçou a fazer o m esmo no outro b raço.

Ela devia ter lavado cada parte do corpo quatro vezes desde que chegáramos ali, mas ainda assim eu con tinuava extasiado .

“Você quebrou o nariz d ela ”, eu di sse.“É mesmo? Você está vendo algum xam pu por aí?”Usei uma toalhinha de mão para abrir o pequeno armário do banheiro. Enrolei a toalhinha 

no frasquinh o d e xampu, pus um p ouco em m in ha m ão e vol tei para perto do chuveiro.

“Fique de costas para mi m.”Ela ficou, eu me inclinei para a frente e passei o xampu em seus cabelos, sentindo as mechas

úmidas envolvendo meus dedos, a espuma se formando enquanto eu lhe massageava o courocabeludo.

“Assim é m uito gostoso”, di sse ela.“Sem brincadeiras”, eu disse.“Está um horror, não?” Ela se inclinou para a frente, e eu tirei as mãos de seus cabelos no

mo men to em q ue ela levan tou os braços e com eçou a esfregar os cabelos com muito ma is força d oque eu po deria usar nos meus, caso eu pretend a chegar aos quarenta an os com eles ain da n a cab eça.

Lavei o xamp u de mi nh as mão s na pia. “O quê?”“O nariz d ela.”“Muito feio”, respon di . “É como se de repen te ela tivesse três narizes.”

 Voltei p ara junto d o chuvei ro quan do ela i ncl ino u a cabeça, deixan do q ue a m istura de água eespuma escorresse entre as om op la tas, descendo em ca scata pela s costas.

“Eu am o vo cê”, disse ela, de olh os fechad os, cabeça ai nd a in clinad a para trás, as mãos tirand o a água d as têmpo ras.

“É mesmo? ”“Sim.” Ela levan tou a cab eça, estendeu a mão pa ra p egar a toalh a, e eu a p us em sua m ão.

Inclinei-me para a frente, fechei a torneira; ela enxugou o rosto, piscou os olhos, que deramcom os meus. Ela fungou por causa d a água n o nariz e enxugou o pescoço com a toal ha .“Zumbi cavou um buraco muito fundo. Então, quando ele me pôs dentro, consegui apoiar o

pé n uma ped ra q ue ap on tava da lateral do buraco, a uns dez cen tímetros do fund o. E tive q ue retesarcada m úsculo do corpo p ara manter o p é naq uela p equena sali ência . E não foi fácil. Porque eu estava 

 ven do aq uele sacana j ogand o pás de terra em mim, ab solutamente impassível .” Ela desceu a to al ha do s seio s para a cin tura. “Vire de co stas.”

Fiq uei vi rado pa ra a p arede en quanto ela se enxugava mai s um p ouco.“Vinte minutos. Foi isso o que ele levou para encher o buraco. E ele cuidou para que eu ficasse

bem presa na terra. Pelo menos na altura dos ombros. Ele nem piscou quando cuspi em sua cara.

 Você enxuga as minhas costas?”“Claro.”

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 Voltei-me, e ela me passou a toalha, sain do do chuvei ro. Passei a grossa toalh a pelos seusom bros, descend o d epo is pel os músculo s de suas costas, enquanto ela enrodi lh ava o s cabel os comas duas mã os, colo cand o-o s em seguid a no alto d a cabeça.

“Assim, embora eu estivesse naquela pequena saliência, ainda havia um bocado de terra sobmeu corpo. A prin cípi o eu não po dia me m exer, aí fiq uei ap avorada, mas então eu me l embrei doque me permitiu ficar apoiada naquela pedra com um pé só, durante vinte minutos, enquanto osenh or Morto-Vivo me en terrava vi va.”

“E o q ue foi?”Ela caiu nos meus braços. “Você.” Sua língua afagou a minha por um instante. “Nós. Você sabe.

Isto.” Ela bateu de leve em meu peito, estendeu o braço e pegou a toalha que estava atrás de mim.“Comecei então a me contorcer, sentindo mais terra caindo sob os meus pés. Continuei memexen do e, ufa, três horas depoi s com ecei a fa zer algum p rogresso.”

Ela sorriu, eu quis beijá -la, meus lá bio s esbarraram em seus den tes, mas não m e im portei.“Eu estava tão ap avorada”, disse ela abraçand o os meus om bros.“Desculpe-me.”Ela deu de ombros. “Não foi culpa sua. A culpa foi minha por não ter percebido que Zumbi

estava me seguin do enq uan to eu seguia Desiree.”Nós nos beijamos, minha mão deslizou em algumas gotas de água que tinham ficado em suas

costas, e tive vontade de estreitá-la em meus braços com tal força que seu corpo haveria dedesaparecer no m eu ou eu desapareceria no del a.

“Onde está a m ochil a?”, perguntou ela q uand o final men te nos separamo s.Peguei-a do chão do banheiro. Dentro dela estavam suas roupas sujas e o lenço que usáramos

para li mp ar suas imp ressões digitais da tesoura de j ardim e da enxad a. Ela p ôs a toal ha n a mo chi la eeu pus a toalh in ha de m ão, então ela pegou um b lusão d a peq uena p il ha de roupa s de Desiree que eucolo cara em cim a d o vaso sanitário e o vestiu. Em seguid a vestiu calça, meias e têni s.

“Os tênis estão um pouco grandes, mas todas as outras coisas servem direitinho”, disse ela.“Agora vam os en frentar aq ueles m utantes.”Ela saiu do b anh eiro, e eu a segui, com a mo chil a na mão .

Emp urrei T revor Stone para den tro d o escritório, e Angie subiu para ver como Desiree estava.Param os na frente da escrivan in ha , e ele ficou me ob servand o enq uanto eu usava o utro len ço

para limp ar os lado s da cad eira ond e eu fora amarrado .“Apagando todos os vestígios de sua presença nesta casa esta noite”, disse ele. “Muito

in teressan te. Ma s para que fazer isso? E o cria do mo rto — ele está mo rto, não está?”“Está.”“Com o se vai expli car essa m orte?”“Estou po uco l igand o. Mas de q ualq uer mo do , nin guém va i n os relacion ar com esse crim e.”“Muito esperto”, disse ele. “É o q ue você é, meu rap az.”“E imp la cável”, eu di sse. “Não se esqueça de q ue foi po r isso q ue você n os con tratou.”“Sim, claro. Mas ‘esperto’ soa tão mel ho r, não a cha?”Encostei-m e na escrivan in ha, mão s cruzad as no colo, e olh ei p ara ele. “Você sabe im itar muito

bem um velh o i mb ecil quando isso l he convém , Trevor.”Ele fez um gesto no ar com a terça parte do charuto que sobrara. “Todos nós precisamos

recorrer a esse tipo de m uleta d e vez em quando .”Balan cei a cabeça. “Quase chega a ser tocan te.”

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Ele sorriu.“Mas na verdad e não é.”“Não?”Bala ncei a cab eça. “Você tem m uito sangue na s mãos para isso.”“Todos temos sangue nas mãos”, disse ele. “Você se lembra de quando virou moda jogar fora 

Krugerran ds e bo ico tar todos os prod utos da África d o S ul?”“Claro.”“As pessoas queriam se sentir boas. Mas afinal de contas o que é um Krugerrand diante de uma 

inj ustiça com o o  apartheid , não é?” Afoguei um bo cejo com o punh o.“Não obstante, ao mesmo tempo que o público bonito e honrado dos Estados Unidos

bo icota a África d o S ul, roupas de peles ou seja l á o q ue eles cond enem e reprovem am anh ã, fecha o sol ho s para o p rocesso q ue lh es garante o café da América Central ou do Sul, roupas da Indo nésia o u

 Ma ni la, frutas do Extremo Orien te e quase tod os os produtos im portad os da Chi na .” Ele soltou uma bafo rada do charuto e m e ol ho u através da fumaça. “Nós sabemo s com o esses governos funcio nam ,com o el es tratam a di ssid ência , como muitos usam trabalh o escravo, o que eles fazem com qualquer

um que ameace seus vantajosos negócios com as empresas americanas. E nó s não apenas fecham osos ol ho s a isso. Na verdad e, nós col aboramo s ativam ente com isso. Porque você quer suas camisetasmacias, você quer o seu café, os seus tênis da última moda, suas frutas em conserva e seu açúcar. E sãopessoas como eu que fornecem essas coisas a vocês. Nós subornamos esses governos, mantemosnossos custos de mão-de-obra baixos o bastante para que vocês possam tirar proveito disso.” Elesorriu. “E isso n ão é adm irável de n ossa parte?”

Levantei mi nh a mã o sã e bati várias vezes em m in ha co xa, à guisa de aplauso.Sem deixar de sorrir, Trevor sol tou ma is uma ba forada d e fuma ça.

 Mas conti nuei ap laudi nd o. Apl audi até minha coxa começar a arder e a pal ma da minha 

mão ficar dormente. Continuei batendo na coxa sem parar, enchendo a sala com o barulho decarne contra carne, até que os olh os de T revor perderam o b ril ho , o cha ruto pen deu de sua m ão, e eledi sse: “Tudo b em. Agora você p od e p arar”.

 Mas con tin uei b aten do na coxa, fixando um ol har vazi o em seu rosto vazio .“Eu disse que basta, rapaz.”Clap , clap , clap , clap , clap , clap .“Quer parar com esse barulh o irritan te?”Clap , clap , clap , clap , clap , clap .Ele se levantou da cadeira, e eu o empurrei de volta com o pé. Então acelerei o ritmo das

batidas e a força com que batia em mi nh a p róp ria carne. Ele fechou bem o s olho s. Fechei o punho emartelei no braço de sua cadeira de rodas, subindo e descendo, subindo e descendo, cinco golpespo r segund o, in cessantemen te. E Trevor ap ertou mai s as pál pebras.

“Bravo”, eu di sse fin almente. “Você é o Cícero do s ma gnatas da ind ústria, Trevor. Parabén s.”Ele abriu os olh os.Encostei-me na escrivaninha. “Não estou preocupado agora com a filha do líder sindical que

 você cortou em pedaci nhos. Nã o estou querend o saber agora q uan tos m issioná rios e freiras j azemem co vas rasas com ba las na nuca, executados sob suas orden s ou de p ol íticos que você entron izo uem suas repúbli cas de b ana nas. Tamp ouco estou preocupa do com o fato d e você ter com prado sua mulh er, tendo provavelmente inferni zado cada m om ento de sua vid a.”

“Então o que é que o p reocupa agora, senh or Kenzie?”Ele levo u o charuto aos láb io s, e eu o arranq uei d e sua boca, deixan do -o q ueim and o n o tapete

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sob meus pés.“Estou pen sando agora em Jay Becker e Everett Ham lyn, seu rebotal ho h umano.”Ele p iscou pa ra tirar as gotas de suor que se forma ram em seus cílio s. “O senho r Becker me traiu.”“Porque nã o fazer isso teria sid o um pecad o mo rtal.”“O senhor Hamlyn resolvera ligar para várias autoridades e contar meus negócios com o

senhor Kohl.”“Porque você d estruiu um n egócio que ele levou a vida in teira para construir.”Ele tirou um lenço d o b olso in terno do  smo king  para abafa r um l on go acesso d e tosse.“Eu vou morrer”, di sse ele.“Não, não vai”, eu di sse. “Se você d e fato p ensasse que ia m orrer, não teria matad o Jay. Você n ão

teria matado Everett. Mas caso algum deles o levasse à justiça, você não poderia entrar em sua câmara criogênica, não é? E quando você pudesse fazer isso, seu cérebro já estaria destruído, seus órgãoscom pl etamente deterio rado s, e con gelar você seria uma p erda d e tempo .”

“Eu vou morrer”, repetiu ele.“Sim, agora você vai . E daí, senh or Stone?”“Eu tenho d in heiro. Diga quan to quer.”

Endi reitei o corpo e esmaguei o charuto.“Meu preço é doi s bi lh ões de dól ares.”“Eu só tenh o um.”“Tan to pi or”, eu di sse emp urrand o-o para fora do escritório, em di reção à escada.“O que você vai fazer?”, di sse ele.“Meno s do que você merece”, respo nd i. “Mas mai s do que você está preparado para agüentar.”

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Subimos a grande escadaria devagar, Trevor apoiando-se no corrimão e multiplicando as

pausas, respi rand o com d ifi culd ade.“Eu ouvi você ch egand o esta n oi te e ob servei vo cê atravessar seu escritório”, eu disse. “Seu andarestava muito mais seguro.”

Ele fez uma cara de má rtir. “Ela vem de repen te”, di sse ele. “A dor.”“Você e sua fi lh a”, eu disse. “Vocês nunca desistem, não é?” Sorri e bala ncei a cab eça.“Desistir é morrer, senhor Kenzie. Dobrar-se é quebrar.”“Errar é human o, perdoar é divin o. A gente podi a con tinuar com essa la dai nh a durante ho ras.

 Vam os, agora é a sua vez.”Ele chegou com d ificuld ade ao p atamar da escada.“Esquerda”, eu di sse, devol vend o-l he a b engala.

“Em no me d e Deus”, di sse ele. “O que você vai fazer comigo?”“No fim do corredor, dob re à di reita.”

 A mansão fora con struída de forma q ue os fundo s dessem para o l este. O escritório de Trevor eseu salã o d e jo gos, no térreo, dava m para o mar, da m esma forma q ue o quarto del e e o de Desiree, noprimeiro and ar.

No segundo andar, porém, apenas uma peça dava para o mar. Suas janelas e paredes eramremoví veis, e no verão colocava-se um parapeito em toda a volta do soalh o, removi a-se o telh ado ,

protegia-se o soalho com placas de madeira de lei. Tenho certeza de que não era nada fácildesmontar aquela peça todos os dias ensolarados de verão, nem remontá-la e protegê-la do tempoin clemen te a qualquer ho ra d a n oi te que Trevor o desejasse, mas ele não precisava p reocupar-se comisso. Isso certamen te cab ia a Zumb i e Nó -Cego, ou àqueles que lhe serviam .

No in verno , a sala d ava a im pressão de um salã o francês, com suas cadeiras dourada s estilo LuísXV, seus delicados sofás e canapés ornamentados, suas finas mesas de chá com incrustações em ouroe suas pinturas de nobres de peruca conversando sobre ópera, sobre guilhotina ou sobre o que querque os franceses di scutissem naq uele p erío do em que a aristocracia tinh a o s dias con tados.

“A vaidade”, eu disse, olhando para o nariz inchado e quebrado de Desiree e para o rosto

devastado de Trevor, “destruiu a aristocracia francesa. Ela está na raiz da revolução e levou Napoleãoà Rússia. Ou pel o m eno s foi isso o que os jesuítas me ensin aram.” Olh ei p ara Trevor. “Estou errado?”Ele deu de om bros. “Um po uco simp li sta, mas é ma is ou menos isso.”Ele e Desiree estavam amarrados a suas respectivas cadeiras, cada um numa extremidade da sala,

a mais de vinte metros um do outro. Angie estava na ala oeste do térreo, pegando algunsinstrumentos.

Desiree disse: “Vou precisar de um m édi co p ara meu nariz”.“No m om ento estam os com falta d e cirurgiões plásticos.”“Aquilo foi um b lefe?”, di sse ela.“O quê?”“A história d e Dann y Griffin .”“Sim . Um b lefe compl eto.”

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Ela soprou uma mech a de cab elo que caíra em seu rosto e b ala nçou a cabeça. Angie voltou p ara a sala , e juntos afastam os o s m óvei s p ara os lad os, deixam os um corredor

bem li vre entre Desiree e seu pai .“Você medi u o salã o?”, perguntou Angie.“Claro. Tem exatamen te vin te e oito metros de comp rim ento.”“Não tenho bem certeza de poder jogar uma bola de futebol a uma distância de vinte e oito

metros. A cadeira de Desiree está a q ue di stân cia d a parede?”“Um m etro e oitenta.”“E a de T revor?”“A mesma.”Olh ei para as mã os dela. “Belas luvas.”Ela a s mostrou. “Go sta d ela s? São de Desiree.”Foi a minha vez de levantar minha mão sã, também enluvada. “São de Trevor. Couro de

bezerro, acho . Muito d eli cadas e maci as.”Ela enfiou a mão na bolsa e tirou duas pistolas. Uma era uma Glock 17 austríaca nove

milímetros. A outra, uma Sig Sauer P226 alemã nove milímetros. A Glock era leve e preta. A Sig 

Sauer era de uma l iga de al umí ni o cor de p rata e um p ouco m ais pesada.“Havia m uitas a escol her na sala de armas”, disse Angie, “mas estas me pa recem m ais ad equada s

ao n osso o bj etivo.”“Pentes?”“A Sig con tém quin ze cartucho s. A Glock contém dezessete.”“E ma is uma ba la n a câm ara, claro.”“Cla ro. Mas as câmaras estão va zias.”“Que d iab o vocês estão fazen do ?”, perguntou Trevor. Nós o ignoramo s.“Quem você ach a que é ma is forte?”, perguntei.

Ela o lh ou para os dois. “É páreo duro. Desiree é jo vem , mas Trevor tem muita força na s mãos.”“Você fica com a G lo ck.”“Com prazer”, disse ela pa ssand o-m e a S ig Sauer.“Está pronta?”, eu disse, ajeitando a coronha da Sig Sauer entre meu braço machucado e meu

pei to, e po nd o um cartucho na câm ara.Ela ap on tou a Gl ock pa ra o ch ão e fez o mesmo. “Estou pron ta.”“Espere!”, gritou Trevor quando com ecei a cruzar a sala, com a p istol a ap on tada d iretam ente

pa ra sua cabeça.Lá fora, as on das brami am e as estrelas cintil avam .“Não!”, gritou Desiree quand o Angie foi a nd and o d evagar em d ireção a ela, pi stola em punho .Trevor arremeteu contra as cordas que o prendiam à cadeira. Ele jogou a cabeça para a 

esquerda, para a di reita, dep oi s para a esquerda .E eu contin uei an dan do em sua di reção.Eu ouvia o martelar da cadeira de Desiree no soalho, pois ela também se debatia, e a sala 

parecia fecha r-se sobre Trevor à med id a q ue eu me ap roxim ava. Seu rosto erguia-se e d il atava-se p orcim a da mi ra; seus ol ho s giravam d e um l ado p ara outro. O suor escorria -lh e pel os cabel os, e seu rostoarruin ado contraía -se viol entamen te. Os lábi os, brancos feito cal, crisparam-se contra o s dentes, e eleberrou.

 And ei até sua cad eira e encostei a p istol a na ponta d e seu nariz .

“Com o está se sentin do ?”“Não”, disse ele. “Por favor.”

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“Eu di sse ‘Com o está se sentindo ?’”, gritou Angie p ara Desiree, do outro la do da sala.“Não faça isso!”, gritou Desiree. “Não faça isso.”Eu di sse a T revor: “Eu lh e fiz uma p ergunta, Trevor”.“Eu...”“Com o está se sentin do ?”Seus olhos agitavam-se de ambos os lados do cano da pistola, e pequenos vasos sangüíneos

dilatavam-se em suas córneas.“Responda.”Seus láb io s tremi am. Ele os crispou de repente, e as veias do pescoço incharam.“Estou me sentin do ”, gritou ele, “fod id o!”“Sim, é isso”, eu disse. “Foi assim que Everett Hamlyn se sentiu quando morreu. Fodido. Foi

assim que Jay se sentiu. Foi assim que se sentiu sua mulher e uma menina de seis anos que vocêretalho u e jogou numa cuba de grãos de café. Fod id os, Trevor. Como se na da fossem.”

“Não a tire em mi m”, disse ele. “Por favor. Por favor.” E lágrim as rol avam d e seus ol ho s vazi os. Aba ixei a p istol a. “Não vou matar você, Trevor.”Então, cada vez m ais perplexo, Trevor ficou observand o en quanto eu tirava a carga da p istol a,

deixando -a cair em mi nh a tipói a. Por fim , tirei a b ala d a própria câmara, colo cando-a j unto com asoutras.

“Cinco peças no total”, eu disse a Trevor. “O pente, a culatra, a mola, o cano e a armação.Ima gino que você tem o h ábito d e desmon tar suas arma s.”

Ele fez que sim . Virei a cab eça e gritei p ara Angie: “E com o está Desiree nessa coi sa de desmo ntar arma s?”“Acho que ela ap rendeu direitinho as lições do pap ai.”“Ótim o”, eu di sse vol tando -me p ara Trevor. “Como você d eve saber, a Glo ck e a S ig Sa uer são

semel ha ntes em termo s de mo ntagem.”

Ele ba lan çou a cabeça. “Sim , sei d isso.”“Maravilha.” Com um sorriso, dei meia-volta, contei quinze passos, parei e tirei as peças da pi stola da tip óia. Arrumei-as com o mai or cuida do no soal ho , forman do uma lin ha reta.

Então atravessei a sala , aproxima nd o-m e de Angie e d e Desiree. Fiq uei d e pé j unto à cadeira deDesiree, dei -lh e as costas e con tei ma is quinze p assos. Angie me aco mp anh ou e dispô s, em l in ha reta,as cinco p eças da Gl ock desmon tada.

 Voltamos para junto d e Desiree, e Angie d esamarrou-lhe as mã os d e d etrás da cad eira, depoisse agachou e apertou os nós de seus torno zelos.

Desiree levantou os olhos para mim, respirando pesadamente pela boca, e não pelo narizarrebentado.

“Vocês são lo ucos”, di sse ela .Fiz q ue sim . “Você quer que seu pai morra, certo?”Ela desviou o olh ar de mi m, fixando -o no chão.“Ei, Trevor”, gritei eu. “Você a in da quer que sua fi lh a m orra?”“E vou con tinuar querend o a té o fim”, exclam ou ele.Cabeça baixa, Desiree agora me olhava com olhos semicerrados, o rosto coberto pela 

cabeleira cor de mel.“A situação é a seguinte, Desiree”, eu disse enquanto Angie desamarrava os braços de Trevor e

 verifi cava os nós dos tornoz elos. “Vocês dois estão am arrad os pelos tornozelos. As cordas de Trevor

estão um pouco ma is frouxas, não muito. Acho que ele é um p ouco mai s lento q ue você, por isso eulhe dei uma pequena vantagem.” Apontei para o soalho vasto e brilhante. “As armas estão ali.

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Peguem-n as, mo ntem e façam o que quiserem com elas.”“Vocês não po dem fazer isso”, disse ela.“Desiree, ‘não podem’ implica uma concepção moral. Você devia saber disso. Nós  podemos

fazer o que nos der na telha. Você é uma prova d isso.” And ei até o meio da sal a e, junto com Angie, fiquei observan do os do is fl exionan do as mão s

para o d uelo.

“Se vocês tiverem a brilh ante id éia d e juntar forças contra nós, di sse Angie, “saib am que vamossair daq ui d iretam ente para a redação do  Boston Tribune . Por isso, não percam temp o. Quem d e vocêsdois escapar dessa, a melhor coisa que tem a fazer é pegar logo um avião.” Ela me cutucou. “Temalguma coi sa a acrescentar?”

Olhei os dois esfregando as mãos nas coxas, flexionando os dedos um pouco mais e depoisagachando-se para desamarrar as cordas dos tornozelos. A semelhança genética era evidente nomovimento de seus corpos, mas era mais profunda e mais flagrante em seus olhos de jade. Neles sedissimulavam a mesma cobiça implacável, feroz, sem o menor escrúpulo. Uma força primeva, quetin ha m ais a ver com a po dridão d as covas do que com a leveza daquela sala.

Balan cei a cab eça.“Divi rtam-se no i nferno”, disse Angie sain do da sala e fechan do as portas atrás de nó s.Descemos pel a escada de serviço, passam os por uma po rtinh a que dava p ara a cozin ha . Acim a 

de n ossas cabeças, alguma coisa raspa va o soal ho in sistentemente. Ouvim os dep oi s um ba que surdo ,lo go seguid o de um o utro, do outro lad o.

Saí mo s e seguim os a estradin ha ao l ongo d o gramad o d o fundo da m ansão. Dei-me con ta deque o ma r se acalm ara.

Enquanto atravessávamos o jardim, tirei dos bolsos minhas chaves que recuperara de Desiree,contornam os o celeiro reformad o e p aramos junto ao meu Porsche.

Estava tudo escuro à nossa volta, mas havia a luz difusa das estrelas brilhando lá no alto.

Ficamos parados ao lado do carro e erguemos os olhos para o céu. O vulto imponente da casa deTrevor Stone luzia fracamente, e procurei distinguir onde a longa extensão de água escura encon trava o céu no ho rizo nte.

“Olhe”, disse Angie apontando um asterisco luminoso que riscava o céu, deixando um rastroincandescente, em direção a um ponto qualquer, fora de nosso campo de visão. Mas ele nãoconseguiu chegar até lá. Depois de percorrer dois terços do caminho, implodiu sob o olharin di ferente das estrela s à sua vo lta.

O vento impetuoso que soprava do mar quando cheguei já se aquietara. A noite estava absolutamente tranq üil a.

O primeiro tiro soou com o uma b om bi nh a.O segund o, como uma co munhã o.Esperamos, mas nada se seguiu àquele ruído, exceto o silêncio e o longínquo marulhar de

on das cansada s. Abri a porta do passageiro, Angie entrou no carro, estico u o corpo e ab riu a outra porta para 

mim.Dei ré, tomei a estradinha, contornei novamente a fonte luminosa e os carvalhos dispostos

como sentinelas, depo is o pequeno gramad o com o chafariz congelad o.Enquanto o cascalho branco ia desaparecendo sob a grade do radiador, Angie pegou um

aparelho de controle remoto que encontrara na casa, apertou um botão, e os imensos portões deferro fundido com a insígnia da família, com as letras TS no centro, abriram-se como braços numgesto de boas-vindas ou de despedida — gestos que, dependendo das circunstâncias, podem ser

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muito semelhantes.

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 EPÍLOGO

Só ficamos sabend o do que aconteceu quando voltamos do M aine.

Naquela noite, quando saímos da propriedade de Trevor, pegamos a estrada para CapeElizabeth, onde alugamos um pequeno bangalô com vista para o mar, causando surpresa aos seusproprietário s, que nã o esperavam ter clientes antes do grand e degelo da prim avera.

Não lemos jornais, não ligamos a televisão e pouco fizemos além de pendurar na porta a tabuleta com os dizeres NÃO PERTURBE, pedir que servissem as refeições no quarto e passarman hãs inteiras na cam a, ob servand o o preguiçoso mo vim ento das vagas hi bernais do Atlântico.

Desiree acertara um tiro n a b arriga do pa i, ele l he m etera uma bal a n o p eito. Os do is caíram n osoal ho , um d ian te do outro, e lá ficaram esvain do -se em sangue, enq uanto a m aré mo ntante in vestia contra o s alicerces da casa o nd e eles tin ham vivi do durante vin te e três anos.

Dizi a-se que a po lícia ficou perplexa com o cadáver do mo rdom o no jardim e o s ind ícios de

que pai e filha tinham sido amarrados em cadeiras, e de que depois se mataram. O motorista da limusine que levara Trevor para casa naquela noite foi interrogado e liberado, e a polícia nãoencon trou vestígios da p resença d e ni nguém m ais naq uela casa, além das próp rias vítim as.

E durante a seman a em que estivemos fora, começaram a ser publ icad as no Tribune  as primeirasreportagens de Richie Colgan sobre a Libertação da Dor e a Igreja da Verdade e da Revelação. AIgreja entrou imediatamente com uma ação contra Richie, mas nenhum juiz se dispôs a proibir a publicação, e no final da semana a Libertação da Dor fechou temporariamente as portas de seuscentros na Nova Inglaterra e no Mei o-Oeste.

Por mai s que tentasse, porém, Richi e nã o co nseguiu descobrir as forças que estavam por trás de

P. F. Nich ol son Kett, e o próp rio Kett tamb ém n ão fo i en contrado. Mas em Cape Eli zabeth n ão estávam os sabendo d e nada disso.Importavam-nos apenas o som de nossas vozes, o gosto do champanhe e o calor de nossa 

carne.Falávamos apenas trivialidades, e fazia muito tempo que eu não tinha conversas tão

agradá veis. Nós nos olh ávam os lon gamente, num sil êncio pl eno de erotismo, que po di a ser seguid ode gargalha das.

Certo dia encontrei no porta-malas do carro um livro de sonetos de Shakespeare. O livro mefora dado de presente por um agente do FBI com quem eu trabalhara, no ano anterior, no caso

Gerry Glynn. O agente especial Bolton me dera o livro quando eu me encontrava na mais funda dep ressão. Ele m e di sse que me traria algum consolo. Na o casião não acreditei nel e, e joguei o li vrono porta-malas. No Maine, porém, enquanto Angie estava tomando banho ou dormindo, li boa parte dos poemas. Embora nunca tenha sido um grande amante da poesia, surpreendi-meapreciando as palavras de Shakespeare, o voluptuoso fluir de sua linguagem. Ele parecia sabermuitíssimo mais do que eu sabia — sobre o amor, sobre a perda, a natureza humana... enfim, sobretudo.

 Às vezes, à no ite, bem agasalhad os com as roupas que com práramo s em Portland no di a seguin te ao da n ossa chegada, saía mo s pel a po rta de trás do no sso b angalô e íam os dar no grama do .

 Agarrado s um ao outro por causa do frio, an dá vamos até a praia , sentávam os num rochedo quedominava o mar escuro e tentávamos distinguir o mais possível a beleza que se estendia à nossa 

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frente, sob um céu escuro fei to b reu.O ornam ento d a beleza, escreveu Sha kespeare, é suspeito.E ele tinha razão.

 Mas a própria b eleza , sem ad ornos e sem a fetação, é sagrada , digna de respeito, de tod a a n ossa reverência e leal dad e.

Naquelas noites à beira-mar, eu tomava a mão de Angie na minha e a levava aos lábios. Eu a bei java . E às vezes, enquanto o mar b ram ia enfurecido e o céu ficava a in da mai s escuro, sentia crescerem m im a reverência . E me sentia h umi ld e.

Eu me sentia p len o.

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 AGRADECIMENTOS 

 Minha m ai s profund a gratidão a Cla ire Wach tel e a Ann Rittenb erg, que souberam ver o l ivro

nas págin as do man uscrito e que não m e deram sossego en quanto eu também n ão o vi.O pouco q ue sei sob re com o se desmonta uma pi stola semi -automática eu devo a Jack e Gary Sch mo ck, da Jack’s Guns and Am mo, em Quin cy, Massachusetts.

 Mal e Dawn Ell enburg preench eram as lacunas de minhas lem brança s da região de St.Pete/Tampa e da Sunshine Skyway Bridge, e me esclareceram sobre pontos bem específicos da legislação da Fl órida . Os eventuais erros são d e minh a respo nsabi li dad e.

E, com o semp re, agradeço aos que leram a s primeiras versões e me deram sua o pi ni ão sin cera:Chris, Gerry, Sheil a, Reva M ae e S terli ng.

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SÉRIE POLICIAL

 Réquiem caribenhoBrigitte Aubert

ell ini e a esfinge 

ell ini e o demônioTon y Bell otto

il hete para o cemit érioO ladrão que achava que era Bogart O ladrão que estudava EspinosaO ladrão que pintava como MondrianUma longa fil a de homens mortosOs pecados dos pais

 Punhalada no escuroLawrence Block 

O desti no bate à sua porta James Cain

Causa mortisCemitério de indigentesContágio criminoso

Co rpo de deli toesumano e degradante  Foco incial 

 avoura de corpos Post-mortem Resto s mortais

Patrici a Cornwell

ó de ratos

Vendetta Michael Dib din

dições perigosasmpressões e provas

 Joh n Dunn ing 

 áscarasLeon ardo Pad ura Fuentes

Correntezas

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og o de sombrasTão pura, tão boa

Frances Fyfiel d

chados e perdidosUma janela em Copacabana

 PerseguidoO silêncio da chuvaVento sudoeste 

Luiz Alfredo Garcia-Ro za 

Um l ugar entre os vivoseutralidade suspeita noite do professor 

Transferência mortal  Jean -Pierre Ga ttégno

Co ntinental OpDashiell Hammett

O jog o de Ripley Ripl ey debaixo d’águaO talentoso Ripley

Patricia Highsmith

Uma certa j ustiçaorte de um peritoorte no semi nário

 Pecado orig inal  torre negra

P. D. James

úsica f únebre 

 Morag JossO dia em que o rabino fo i embo ra

omi ngo o rabino ficou em casa Sábado o rabino passou fo me  Sexta-feira o rabino acordou tarde 

Harry Kemel ma n

 pelo às trevasUm drink antes da g uerra

 Sagrado

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 Sobre meninos e lobos (Mysti c River)Denn is Leha ne

orte no teatro La F enice Don na Leon

inheiro sujoTambém se morre assimRoss Macdo nald

 sempre noite Léo Malet

 ssassinos sem rosto leoa branca

Os cães de RigaHennin g Mankell

O homem da minha vi daO labirinto g regoOs mares do Sul O quinteto de Buenos Aires

 Man uel Vázquez Montalbán

O diabo vestia azul  Wal ter Mo sley 

nformações sobre a vít imaVida pregressa

 Joaquim Nogueira 

ranhas de ouroCl ientes demais

 confraria do medoCozinheiros demaisil ionários demaisulheres demais

 Ser canalha Serpente 

Rex Stout

 Fuja logo e demore para vo lt ar 

Fred Va rgas

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Casei-me com um morto noiva estava de preto

Cornel l Woolrich

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