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Universidade Federal de São Carlos - UFSCar Centro de Educação e Ciências Humanas Departamento de Artes e Comunicação Revista Universitária do Audiovisual Dossiê #12 Cinema e Psicanálise Organização Marcelo Félix Moraes e Melina Simardel Dantas Coordenador Samuel Paiva Maio de 2012 ISSN: 1983-3725

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Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

Centro de Educação e Ciências Humanas

Departamento de Artes e Comunicação

Revista Universitária do Audiovisual

Dossiê #12 – Cinema e Psicanálise

Organização

Marcelo Félix Moraes e Melina Simardel Dantas

Coordenador

Samuel Paiva

Maio de 2012

ISSN: 1983-3725

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Equipe Editorial

Coordenador

Samuel José Holanda de Paiva

Vice-coordenador

Pedro Cordebelo Dolosic

Editores Gerais

Fernanda Sales

Jéssica Agostinho

Thiago Jacot

Editores Responsáveis – Dossiê #12 – Cinema e Psicanálise

Marcelo Félix Moraes e Melina Simardel Dantas

Conselho Editorial do Dossiê #12 - Cinema e Psicanálise

Gilberto Alexandre Sobrinho (Multimeios/Unicamp)

Marcelo Gil Ikeda (Cinema e Audiovisual/UFC)

Flávia Cesarino Costa (DAC/UFSCar)

Josette Monzani (DAC/UFSCar)

Samuel José Holanda de Paiva (DAC/UFSCar)

Editores e Revisores do Dossiê #12 - Cinema e Psicanálise

Lucas Scalon

Virgínia Jangrosi

Amanda de Castro Melo Souza

Lidiane Volpi

Sofia Mussolin

Victória Cristina

Patrícia Castilho

Marcelo Felix Moraes

Melina Simardel Dantas

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Índice

Apresentação

Por Marcelo Félix Moraes

Pág. 05

Cinema e Psicanálise – Modos de usar

Por Mirian Tavares

Pag. 06

Cinema e psicanálise: os sinthomas hitchcockianos

Por Mauro Eduardo Pommer

Pag. 12

Documentando entre a memória e a linguagem

Por Larissa Leda Fonseca Rocha e Lívia Janine Leda Fonseca Rocha

Pag. 28

O filme Clube da Luta: Leituras Psicanalíticas Possíveis

Por Miriam Chnaiderman

Pág. 41

Freud e Méliès: cinema, sonho e psicanálise

Por Ronis Magdaleno Júnior

Pág. 55

Os Homens que Não Amavam as Mulheres, uma reflexão sobre o feminino

Por Daniela Quevedo

Pág. 68

Império dos Sentidos: A experiência pornográfica como expressão da liberdade

Por Plynio Thalison Alves Nava e Antonielly Cantanhêde Wolff

Pág. 77

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Lacan com Spielberg – O Olhar Abjeto da Nova Lei

Por Ivan Capeller

Pág. 90

Um método perigoso: o avesso da psicanálise

Por Janaina Namba

Pág. 105

O monstro, o cinema e o medo ao estranho

Por Verônica Guimarães Brandão

Pág. 116

Notas psicanalíticas sobre o Fantasma, de Murnau

Por Amadeu de Oliveira Weinmann

Pág. 127

A Partida, de Yojiro Takita, numa perspectiva psicanalítica do corpo

Por Bianca Scandelari

Pág. 140

A Professora de Piano: Notas Perversas

Por Raya Angel Zonana

Pág. 149

Raquel e o Duplo ou — Programa Moderno de Produção das Garotas de um Diário

Por Alessandro Zir

Pág. 163

O Teremin e a Psicanálise no Cinema Norte-americano

Por Fabrizio Di Sarno

Pág. 171

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Apresentação

A 12º edição do Dossiê da RUA aborda o tema Cinema e Psicanálise nos seus mais

diversos aspectos buscando compreender os meandros dessa relação e os caminhos que se

apresentam com as pesquisas e as reflexões sobre essa temática. Contando com análises

baseadas nas teorias de Freud, Jung, Lacan entre outros teóricos e psicanalistas, os autores

tratam de uma grande variedade de filmes como A Professsora de Piano, A Partida, Bruna

Surfistinha, Fantasma, Clube da Luta, Minority Report, Império dos Sentidos, Os Homens

que Não Amavam as Mulheres e Um Método Perigoso.

Apresentamos também artigos que analisam a obra de Hitchcock, a relação entre o

nascimento da psicanálise com Freud e obra de Méliès, a relação entre a memória e a

linguagem, uma abordagem sobre monstros, cinema e o medo ao estranho, outra sobre o

Teremin e a psicanálise no cinema americano, além de um artigo sobre a própria relação entre

cinema e psicanálise.

Todos os artigos foram apreciados pelo Conselho Editorial do Dossiê composto por

Gilberto Alexandre Sobrinho, Marcelo Ikeda, Flávia Cesarino Costa, Josette Monzani e

Samuel Paiva. Agradecemos a participação valorosa dos autores que contribuíram com os

artigos importantes para essa publicação e aos conselheiros e editores que colaboraram com a

análise, edição, revisão e publicação deste Dossiê. Muito obrigado a todos.

Uma ótima leitura e reflexão sobre Cinema e Psicanálise!

Marcelo Félix Moraes

Organizador do Dossiê – Cinema e Psicanálise

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Cinema e Psicanálise – Modos de usar

Mirian Tavares1

Resumo

As relações entre o cinema e a psicanálise são de diversas ordens: desde as mais óbvias - os dois textos

são frutos da tarda-modernidade e influenciaram a cultura do séc. XX - até as mais específicas –

teorias que tratam do funcionamento da mente humana e das suas relações com o modo de

funcionamento do cinema. Neste texto procuro analisar as aproximações entre o Cinema e a

Psicanálise buscando encontrar as ideias em comum sobre a mente humana que ambos compartilham e

de que maneira, ao longo do tempo, os teóricos do cinema usaram a psicanálise como uma ferramenta

de desvelamento do texto fílmico.

Palavras-chave: Cinema, Psicanálise, Modo de Representação Institucional.

Film and Psychoanalysis – Ways to use

Abstract

The relations between cinema and psychoanalysis are several: from the most obvious - the two texts

emerge in late nineteenth century and influenced the culture and arts - to the more specific - dealing

with the functioning of the human mind and its relations with the operation of the cinema. In this

paper I‘ll to analyze the similarities between cinema and psychoanalysis and how the film theorists

have used psychoanalysis as a tool for uncovering the film.

Keywords: cinema, psychoanalysis, ways of institutional representation.

Luís Buñuel, cineasta e surrealista, disse um dia: bastaria à branca pupila da tela do

cinema poder refletir a luz que lhe é própria para fazer explodir o universo. O que é o cinema?

(Pode parecer uma questão demasiado óbvia). De que maneira nos relacionamos com um dos

textos mais poderosos do século XX? Que resiste ainda no século XXI, apesar de ter perdido

o estatuto de ser o ecrã para onde todos os olhos se voltavam - hoje a TV e os ecrãs do

computador ocupam mais espaço, mas o cinema alcançou outro estatuto. Deixou de ser o

centro fornecedor de imagens, e converteu-se ele mesmo numa grande fonte referencial. É

nele que os outros se alimentam ou se alimentaram. Como ele, um dia, se alimentou do real.

O cinema, neste instante, chega mesmo a ocupar o lugar do real na produção da iconografia

contemporânea.

1 Professora Associada da Universidade do Algarve, Portugal. Coordenadora do CIAC – Centro de Investigação

em Artes e Comunicação (www.ciac.pt)

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Cinema e psicanálise surgem, praticamente, ao mesmo tempo: em 1895, quando os

irmãos Lumière traziam à luz o seu invento (ou melhor, uma versão aperfeiçoada do aparelho

de Edson), Freud publicava, com Breuer, os Estudos Sobre a Histeria. É interessante notar

que Freud nunca se ocupou desta nova arte, apesar de ter feito analogias entre o aparelho

psíquico e alguns aparelhos ópticos. Foi Lou Andreas Salomé que em 1913 disse que a

técnica do cinema era a que mais se aproximava do funcionamento da mente humana no que

diz respeito às nossas faculdades de representação. Para ela, o futuro do cinema poderia

contribuir para desvendar o funcionamento da nossa constituição psíquica. É interessante

observar o percurso de aproximação destes dois textos, a psicanálise e o cinema, tão

fundamentais no séc. XX, ao longo da história. E mais ainda é interessante perceber que tanto

um como o outro colocam em evidência o sujeito e é através dele que vão se constituir

enquanto instrumento de compreensão ou de sedução da mente humana.

O sujeito passa a se reconhecer como lugar originário do sentido. Os aparelhos

ópticos, quando surgem, servem para tirar o sujeito deste centro, é só pensarmos na era de

Galileu e no fim do geocentrismo. Mas são também os aparelhos ópticos que recolocam o

homem no centro da produção imagética ocidental. Através da câmara obscura, o

Renascimento reorganiza o espaço privilegiando o olho do homem, elemento central,

princípio da coerência e da ordem. O espaço geometrizado do Renascimento subverte as

hierarquias da imagética medieval e o aparente caos é substituído por uma nova ordem. Se os

artistas da renascença alimentaram pretensões demiúrgicas, de competir com Deus na criação

do universo (aliás, é nesta altura que o artista passa a ser chamado CRIADOR), concretizam

suas pretensões na criação de um universo imagético mais que perfeito, hiper real, criando, ao

mesmo tempo, a ilusão de que estavam apenas a reproduzir O REAL. E este olhar é

incorporado pela câmara, o homem volta a ter um lugar na iconografia ocidental, depois de ter

sido violentamente banido pelas vanguardas que tenderam, de uma maneira ou de outra, para

a abstracção e dissolução do sujeito. E a câmara, como um olho aperfeiçoado, passeia pelo

corpo do homem, reconstruindo, metafórica e metonimicamente o sujeito.

Falar de cinema é também fazer uma opção por um modelo que melhor se adeqúe

àquilo que queremos sublinhar. Assim, quando falo de cinema neste texto, refiro-me ao Modo

de Representação Institucional (MRI). Conforme Noel Burch, MRI é o termo que substitui e

aprofunda um conceito, o de cinema clássico, produto de Hollywood. E porque nos

interessamos particularmente por este? Por ser exatamente o modelo que mais vai ser

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explorado por todos aqueles que se aproximaram do objeto cinema como espaço de

investigação utilizando o instrumental analítico da psicanálise.

Em 1916 Hugo Munsterberg escreve aquela que é considerada a primeira teoria do

cinema, The photoplay:a psychological study. Nesta obra defendia, já de partida, que o

cinema que realmente interessava era o narrativo. Numa altura em que o cinema descobria a

sua gramática e se organizava enquanto linguagem, Munsterberg já vaticinava qual deveria

ser a vocação do cinema: contar histórias através das imagens. E vai analisar de que modo o

cinema se organiza enquanto dispositivo de representação e, neste processo, encontra imensas

similitudes entre o cinema e o funcionamento da mente humana. Para Musnterberg era óbvio

que as propriedades cinemáticas eram também propriedades mentais, e que o cinema não

acontece no ecrã, onde é projetado, mas é a nossa mente, que organiza o relato, da mesma

maneira que organiza também o mundo que a circunda. Tomemos, por exemplo, o mecanismo

da atenção. A mente não vive apenas num mundo em movimento, ela organiza esse mundo

através da propriedade da atenção. Somos capazes de hierarquizar aquilo que nos rodeia e

construir o nosso próprio percurso no real. O cinema utiliza este mesmo mecanismo só que de

uma maneira bastante perversa. Ele manipula a nossa atenção, obrigando-nos a ver apenas

aquilo que o olho da câmara capta. Além daquela imagem ali plasmada, só há o escuro da sala

que nos circunda.

E o escuro da sala que nos circunda, além da manipulação do nosso olhar, é um tema

que vai gerar os mais profícuos estudos na área do cinema produzidos, como já disse, com

instrumental da psicanálise. É através da compreensão de uma situação cinema que teóricos

como Mauerhofer, Christian Metz, Jean-Louis Baudry, Oudart, Barthes e Emile Benveniste,

dentre muitos outros, vão penetrar nos mecanismos ideológicos deste texto cultural que é, ao

mesmo tempo, instituição, dispositivo e linguagem.

Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, diz: ―ver a si mesmo metamorfoseado

diante de si e agir agora como se tivesse entrado em outro corpo, em outra pessoa‖. Fala-nos

aqui da identificação, necessária para o gozo e catarse diante do texto que se desenrola

perante os nossos olhos. E, ao falarmos do cinema, esta sua afirmação torna-se ainda mais

precisa, pois, conforme Baudry, o cinema é um aparelho de simulação que não se contenta em

fabricar imagens simulacros, percebidas como representação da realidade, mas dirige-se ao

espectador, como sujeito psíquico, provocando o ―efeito-cinema‖, o retorno a um narcisismo

relativo, a uma forma de realidade envolvente na qualos limites do próprio corpo e a sua

relação com o exterior não são muito precisos. O corpo se expande através do olhar. Para

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Emile Benveniste, no cinema, os acontecimentos ―parecem se narrar a eles próprios.‖ Daí a

preferência de alguns estudiosos pelo Modo de Representação Institucional, pois é ele que

necessita, mais do que qualquer outro, ser desvendado. Desmascarado. O cinema clássico

escamoteia o discurso, ou melhor, escamoteia a sua condição de discurso, provocando, no

sujeito, uma identificação maior do que em qualquer outra arte do espectáculo.

A análise da situação-cinema é apenas uma das vertentes de aproximação da

psicanálise ao cinema. Mas, para mim é, sem dúvida, uma das mais interessantes. Nos anos 60

Mauerhofer vai analisar o que leva um sujeito a se entregar, desarmado, quase sempre, a esta

relação com o cinema. Ele nos fala da entrada na sala escura, do corte com a realidade

exterior que seria ainda mais perfeito numa sala de cinema ideal, completamente às escuras. E

neste escuro, que para Barthes cria a mesma sensação do devaneio crepuscular, que coloca o

sujeito num estado pré-hipnótico, surge também outras condições que desempenham papéis

decisivos na situação cinema, tais como: sensação alterada de tempo e espaço, tédio incipiente

e exacerbação da atividade da imaginação. Além disso, Baudry acrescenta mais alguns

aspectos fundamentais para se compreender a situação do espectador. Utilizando o mito da

caverna platônica, Baudry vê o espectador do cinema numa situação similar: ele está ali

―amarrado‖ à cadeira, numa caverna escura (uterina, segundo Barthes), onde só tem acesso às

sombras projetadas no ecrã. Imobilidade em uma sala escura provoca o retorno a um estado

antigo do psiquismo, a uma regressão, da pessoa que dorme. O dispositivo fílmico é vizinho

ao dispositivo do sonho. (Por isso os surrealistas se interessaram tanto pelo cinema e por isso

acreditavam verdadeiramente na sua capacidade transgressora).

Imaginemos agora o sujeito na situação cinema, diante de um filme narrativo clássico,

cujo tema central quase sempre recai no herói que sai de casa, para, depois de cumprir a sua

tarefa, regressar. Maria Rita Kehl faz uma análise interessante deste cinema do eterno retorno.

Para ela, o cinema americano típico está sempre a mostrar o herói a romper com a ordem para,

logo de seguida, restabelecê-la. Ele sai de casa numa situação marginal, periférica, passa por

provas que o reconstroem e o fortalecem (mito do herói) e volta para ocupar um lugar central,

o lugar do pai. Recriando assim o mito descrito em Totem e Tabu, onde se torna necessário

matar o pai primitivo para voltar e inscrever o mito na linguagem. E, como disse Lacan, o

inconsciente é estruturado como uma linguagem, e a linguagem do cinema vai ajudando a

construir e reorganizar o real, também ele partícipe ativo deste jogo que estabelecemos

quotidianamente na tentativa de instaurar e inscrever novos sentidos. Lou Andreas Salomé

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tinha razão quando afirmou, em 1913, a importância do cinema em relação á nossa

constituição psíquica.

Além da situação cinema, há que se ressaltar outra relação importante que o cinema

mantém com o nosso psiquismo. A pulsão escópica. A relação, na pulsão escópica, repousa na

ausência do objecto percebido, daí o caráter imaginário do seu significante, que se torna uma

miragem perceptiva. O cinema pode ser visto como um encontro fracassado, conforme

Christian Metz, entre um voyeur, o espectador, e um exibicionista, o ator. E, ao mesmo

tempo, é estabelecido um jogo da identificação, que pode ser, no caso do cinema, primária -

―eu vivo‖ - e secundária - ―eu vejo‖. E é no espaço entre, ou seja, não no que efetivamente

vejo, mas naquilo que o cinema me faz ver, que nos deixamos dominar pelo filme. O filme

que opera, em todos os níveis, provocando tensões. Por exemplo, tensão entre o fluxo

narrativo e o close up, matéria cara à teoria feminista do cinema, que analisa assim a

erotização do rosto feminino no cinema clássico de Hollywood. O rosto, destacado do fluxo

narrativo, provoca stasis e cria uma retórica do não-movimento, uma pequena morte, um

instante de prazer. Que justifica o impulso à escopofilia e reitera o ponto de vista

marcadamente masculino deste tipo de cinema.

A femme fatale revela e oculta. Seu rosto, despido no ecrã, ainda esconde segredos.

Segredos que irão aguçar o desejo do desvelamento, imbricação de epistemofilia com

escopofilia: desejo de conhecer e de ver, mas ao mesmo tempo reconhecer que o visível não

está ao alcance da mão, mas está ou esteve ali. Porque é antes de mais nada fotografia em

movimento, com carácter ontológico que nos relembra uma presença, agora ausente. O isso

foi do Barthes. Na foto, como no filme, a presença fica impressa pela luz, no fotograma. E

esta presença emana provocando o desejo. Desejo que nem sempre deve ser explicitado, daí a

necessidade de sublimação ou recalque. Ele está ali, só que não deve ser presentificado ou

exposto.

Se o cinema serve como mecanismo de recalque ou sublimação, serve também para

revelar o não-dito. Para mostrar o que o espaço das paredes, entre as janelas, esconde. Para

algumas vezes, deixar que o fora de campo invada o cenário e dialogue com ele abertamente.

Mas isso, no cinema do entretenimento, no cinema do M.R.I., no tipo de cinema que triunfou,

acontece muito pouco. E é por isso que Buñuel, que havia celebrado o poder transgressor do

cinema, acaba por dizer: ―Mas, por ora, podemos dormir em paz, porque a luz

cinematográfica encontra-se devidamente dosada e aprisionada‖.

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Referências Bibliográficas

ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual. São Paulo, Edusp, 1988.

AUMONT, Jacques. A Imagem. 2ª ed. Campinas, Papirus, 1995.

AUMONT, J. e MARIE, Michel. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas, SP, Papirus,

2003.

BARTHES, Roland. Mitologias. 3ª ed. Rio de Janeiro, Difel, 1978.

BURCH, Noël. Praxis del Cine. 4 Ed. Madrid, Fundamentos, 1983.

BRUNETA, Gian Pietro. Nacimiento del Relato Cinematográfico. Madri, Cátedra, 1993.

CHNAIDERMAN, Miriam. Ensaios de Psicanálise e Semiótica. São Paulo, Escuta, 1989.

METZ, Christian. A Significação no cinema . São Paulo, Perspectiva, 1972.

MONTIEL, Alejandro. Teorías del cine . Barcelona, Montesinos, 1992.

MORIN, Edgar. As Estrelas: mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro, José Olympio, 1989.

TOSI, Virgilio. El Lenguaje de las Imágenes en Movimiento. México, Grijalbo, 1993.

XAVIER, Ismail. O Cinema no Século. Rio de Janeiro, Imago, 1996.

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Cinema e psicanálise: os sinthomas hitchcockianos

Mauro Eduardo Pommer2

Resumo

O conceito lacaniano de sinthoma, aplicado à criação artística, pode auxiliar-nos a compreender a

construção de obras como a de Alfred Hitchcock, onde obsessões temáticas compõem a trama narrativa

na qual vem se inserir o lugar do espectador enquanto sujeito.

Palavras-chave: psicanálise lacaniana; criação imagística; sinthoma.

Cinema and psychoanalysis: hitchcockian sinthomes

Abstract

Lacan‘s concept of sinthome, applied to artistic creation, may help us understand the construction of

works such as Alfred Hitchcock‘s, in which thematic obsessions integrate the narrative web where the

spectator can insert himself as subject.

Keywords: Lacan psychoanalysis, imagistic criation, sinthome

As possibilidades de se refletir acerca das interseções entre os campos do cinema e da

psicanálise conheceram importantes tentativas de sistematização já desde os trabalhos

fundamentais de Metz, Baudry, Kristeva, Rosolato, Guattari, Barthes, Vernet e Bellour, entre

outros, na antológica edição número 23 da revista Communications, em 1975. Foi nela que Metz

inaugurou suas reflexões acerca do ―significante imaginário‖ e sobre as relações identificatórias

entre o filme de ficção e seu espectador; ainda onde Baudry retoma sua célebre noção acerca do

―dispositivo fílmico‖ publicada em Cinéthique, e Bellour trabalha sobre a decupagem de uma

sequência de Intriga Internacional de Hitchcock para propor o conceito de ―bloqueio simbólico‖.

Ainda no domínio francofônico, vale citar a coletânea especial de Cinémaction organizada por

Guy Hennebelle em 1989, colocando lado a lado intervenções de psicanalistas como Alain Dhote

e Félix Guattari e teóricos do cinema, tais como Bergala, Sorlin, Rouch, Metz, Vernet e Vanoye.

No Brasil, um balanço sobre esse campo de conhecimento ocorre em 2000, na coletânea

2 Professor no Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. Diplôme d‘Études Approfondies na

Université de Paris 1 - Panthéon-Sorbonne (1992), na área de Roteiro Cinematográfico; Doutorado: Doctorat en

Arts et Sciences des Arts - Université de Paris 1 - Panthéon-Sorbonne (1996), com a tese La question du point de

vue dans le récit cinématographique, disponível nas Éditions du Septentrion; pós-doutorado em Cinema na

Universidade da Califórnia, Los Angeles (2003), com pesquisa em scripts (sinopses literárias, argumentos,

roteiros) originais e documentos de produção de filmes de Alfred Hitchcock.

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compilada por Giovanna Bartucci, Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação, dentro do

mesmo espírito de contrapor as contribuições de teóricos do cinema como Fernão Ramos,

Francisco ElinaldoTeixeira e J. C. Bernardet às de psicanalistas como Birman, Kehl e

Chnaiderman, entre outros. Nesse campo das contribuições coletivas, pode-se destacar ainda a

obra organizada em 1999 por Janet Bergstrom, professora de cinema na UCLA, Endless Night –

Cinema and psychoanalysis, parallel stories, contando com contribuições de nomes como

Vernet, Zizek e Peter Wollen.

Em sua sistematização sobre as teorias do cinema na segunda metade do século 20,

Francesco Casetti confere um papel singular à contribuição da psicanálise nesse quadro,

atribuindo-lhe a característica de ter servido, em função de seu caráter de área de conhecimento

não claramente ―disciplinar‖, o papel de elemento de transição entre a fase de predomínio dos

estudos metodológicos – centrados em disciplinas como a psicologia, a sociologia e a semiótica

– e aquela que se articula a partir dos anos 1970, centrada em recortes transversais do objeto de

estudo, que colocarão em destaque temas como a ideologia, o estatuto da representação, o

feminismo, a dimensão textual do filme, os estudos culturais e os novos enfoques

historiográficos do cinema. Desse modo, o próprio fato da psicanálise, enquanto tal, constituir-se

como uma convergência de diferentes saberes, colocando como seu tema central a questão do

sujeito, propiciou terreno fértil à transição dos estudos de cinema em direção a esse novo

paradigma, que Casetti denomina ―teorias de campo‖ (CASETTI, 2003).

Dentro dessa apontada pluralidade de abordagens trazidas à teoria e à crítica

cinematográfica pelo confronto com a tradição psicanalítica, a via que aqui me interessa

desenvolver situa-se frente ao enfoque lacaniano acerca do inconsciente estruturado como uma

linguagem, o cotejamento dessa proposição com possibilidades conceituais relativas à noção de

uma ―linguagem cinematográfica‖, e as implicações disso no que tange ao lugar do espectador,

considerando-se a teoria lacaniana acerca da estrutura do sujeito.

O ponto de partida para isso encontra-se no exame que faz Lacan, em termos metafóricos,

da estruturação do sujeito como construção ótica, do que resulta sua posição teórica constituída

na forma de uma topologia na qual a posição ideal de um suposto observador da cena é condição

de possibilidade de um acesso produtivo ao Real (real aqui tomado no sentido psicanalítico, e

não no sentido filosófico). Em função dessa analogia metafórica da construção ótica como lugar

de um sujeito, pode-se também extrair de sua relação com o aparelho cinematográfico uma

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analogia ótica referente ao processo identificatório experimentado pelo espectador, que traga

avanços teóricos frente à clássica noção de ―dispositivo‖ de Baudry.

Para Lacan, a produção de imagens, e mesmo a constituição psicológica de uma ótica,

implicam que ―a todo ponto no espaço real corresponda um único ponto em um outro espaço,

que é o espaço imaginário [...] o espaço imaginário e o espaço real confundem-se‖ (DOR, 1995,

p. 35). Isso implica a existência de uma base psico-fisiológica para o fenômeno da identificação

via apreensão de imagens, para cujo entendimento faz-se mister a distinção entre imagens reais e

imagens virtuais. Assim: ―A escolha ótica é uma outra maneira calculada, para Lacan, de inserir

a tópica subjetiva no prisma das operações ao mesmo tempo imaginárias, simbólicas e reais de

que ela depende‖ (DOR, 1995, p. 35). Pois o sujeito opera simultaneamente nessas três esferas

psíquicas, a partir da instituição de um lugar estruturante pelo acesso ao simbólico (operante na

própria manifestação do fenômeno), de modo que o mundo real e o mundo imaginário estão

estreitamente intricados na economia psíquica.

Nesses termos, e tendo em conta a proposição topológica lacaniana da contínua transição

operada pela instância do Real entre o Imaginário e o Simbólico, minha atual linha de

investigação constitui-se da tentativa de aplicação desses conceitos ao exame de um corpus

fílmico, escolhido dentre a vasta obra de Alfred Hitchcock, realizador que possui como

procedimento estético central operar circunstancialmente uma espécie de torção no uso das

imagens ―reais‖ (no sentido da realidade diegética) como símbolos, causando um curto-circuito

na qualidade da percepção espectatorial, de maneira a buscar induzir continuamente o espectador

fílmico a confrontar-se com suas formações do inconsciente, como buscarei explicitar adiante.

O viés pelo qual encontrei um ponto de acesso psicanalítico à obra de Hitchcock,

condizente com a extrema formalização presente no pensamento de Lacan, foi aquele expresso

por Slavoj Zizek no artigo ―Alfred Hitchcock ou haverá uma maneira certa de fazer o remake de

um filme?‖ (ZIZEK, 2009). Buscando localizar o que seria a ―substância‖ característica de

Hitchcock, isto é, justamente aquilo que tende a se perder nas novas versões das mesmas

histórias, Zizek recorre a três características centrais, dificilmente traduzíveis para outras versões

audiovisuais, daquilo que identifica como conferindo a esses filmes seu caráter singular. Seriam

estas, especificamente, 1) aquilo que ele nomeia como o sinthoma hitchcockiano (tradução de

sinthome, seguindo a nomenclatura lacaniana); 2) o estatuto do olhar onipresente, de natureza

fantasmática; 3) a situação, também fantasmática, da presença nesses filmes de múltiplos finais

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virtuais como desfechos igualmente possíveis. Acerca da diferença conceitual entre sintoma

(symptôme) e sinthoma (sinthome), desenvolvida no texto deliberadamente críptico do Seminário

23 de Lacan (conforme observa Jacques-Alain Miller), o resumo a seguir pode ajudar a nos

situarmos quanto a suas implicações:

« Le sinthome est un terme employé par Jacques Lacan pour désigner une

particularité de la fonction que l'écriture eut pour l'écrivain James Joyce. Ce concept a

été élaboré dans les années 1975-1976, durant le séminaire intitulé « Le sinthome ».

Ceci prend du sens dès que l'on suit l'élaboration de la psychanalyse depuis Freud

jusqu'à Lacan. Autant Freud situait le symptôme comme étant bien plus une tentative

de guérison qu'une maladie au sens médical du terme, autant Jacques Lacan a

considéré le symptôme comme ce qui permet à un sujet de s'inscrire dans un lien3 »

(http://fr.wikipedia.org/ wiki/ Sinthome).

Donde se depreende que a noção de sinthome (por oposição ao symptôme

psicossomático) está intrinsecamente imbricada com o exame do ato da criação artística, já no

próprio surgimento do conceito na obra de Lacan. Lacan trata a organização do psiquismo – com

seu trânsito contínuo entre o Real, o Simbólico e o Imaginário – como sustentada por esse

sinthoma, o que torna tal regime de funcionamento análogo ao de uma neurose constitutiva,

tendente a levar os processos mentais a percorrer trilhas repetitivas, previsíveis. Entretanto, para

enquadrar a particularidade das pessoas extremamente criativas, Lacan vai distinguir entre dois

tipos de sinthomas, que ele batiza de sinthome masdaquin e de sinthome qui roule. O primeiro

seria característico daqueles que se contentam com as formas de sublimação própria ao

―semblante‖, isto é, aquelas estabelecidas em torno de noções como o ser e seu esplendor, o

verdadeiro, o bom, o belo, a partir de uma lei de formação inicial. O segundo, equiparado àquilo

que Lacan destaca acerca da forma de organização criativa presente na obra de Joyce, liga-se à

atuação de um imaginário sem freios, produzido pela ruptura circunstancial da formação

caracterizada por Lacan como um nó borromeano, com o decorrente emaranhamento entre a

instância do Real e os processos simbólicos do inconsciente. Em outros termos, a ocorrência

daquilo que o próprio Joyce tratara como suas ―epifanias‖:

―Ainda preciso dizer algumas palavras que eu tinha preparado sobre a famosa epifania

de Joyce. [...] É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que,

graças à falha, inconsciente e real se enodem. [...] A ruptura do ego libera a relação

3 ―Sinthome é um termo empregado por Jacques Lacan para designar uma particularidade da função que a escrita

teve para o escritor James Joyce. Esse conceito foi elaborado nos anos 1975-1976, durante o seminário intitulado

`O sinthoma`. Isso ganha sentido quando se acompanha a elaboração da psicanálise desde Freud até Lacan.

Tanto quanto Freud situava o sintoma como sendo mais propriamente uma tentativa de cura que uma doença no

sentido médico do termo, Jacques Lacan considerou o sintoma como sendo aquilo que permite a um sujeito

inscrever-se em um vínculo‖ (Tradução do autor).

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imaginária, pois é fácil imaginar que o imaginário cairá fora, uma vez que o

inconsciente lhe permite isso incontestavelmente‖ (LACAN, 2007, p. 151).

Dentre aquelas características que Zizek especifica como marcas identificáveis do estilo

de Hitchcock, aquela que me interessa no escopo da presente pesquisa vincula-se à identificação

e à discussão acerca da natureza psicológica e de sua representação no campo da linguagem

cinematográfica do que aí é apontado como manifestação da presença do sinthoma lacaniano

(que este distingue, como vimos, da noção de sintoma clínico), presentes nos diversos motivos

visuais que se repetem de filme para filme, em contextos totalmente diferentes. Os exemplos

desse procedimento estético, elencados por Zizek, são seis: 1) o motivo da queda num espaço

vazio, próximo daquilo que Freud identificara como ―queda suicida melancólica‖; 2) o motivo de

um carro à beira do precipício (quase uma variante do anterior); 3) o motivo da mulher que sabe

demais; 4) o motivo do crânio mumificado; 5) o motivo de uma casa gótica com grandes

escadarias; 6) o motivo da espiral que atrai para suas profundezas abissais (ZIZEK, 2009, p. 82-

83).

Cabe mencionar aqui que, conforme propõe Peter Wollen em Signos e significação no

cinema, um traço pelo qual se pode reconhecer aqueles realizadores que, em meio às limitações

postas pela lógica da produção industrial dos estúdios e pela natureza coletiva da produção

cinematográfica, lograram guardar sua marca autoral, está justamente a tendência à repetição de

motivos básicos, mas que se apresentam ―em termos de relações móveis, tanto na sua

singularidade como na sua uniformidade‖, onde Wollen reconhece a existência de uma dinâmica

dos signos próxima àquela das permutações que Lévi-Strauss identifica enquanto aspecto latente

na estrutura mítica, tornado perceptível pelo processo de repetição.

―Os mitos, como afirmou Lévi-Strauss, existem independentemente do estilo, da

sintaxe da frase ou do som musical, da eufonia ou da cacofonia. O mito funciona a um

nível excepcionalmente elevado em que o significado consegue praticamente arrancar-

se ao terreno linguístico onde se mantém em andamento. Mutatis mutandis, o mesmo é

verdade em relação ao filme de autor.‖ (WOLLEN, 1984, p. 106).

Nesses termos, é inegavelmente a construção dos enredos hitchcockianos em torno a

motivos recorrentes um dos fatores fundamentais que dão a seus filmes suas características

inimitáveis. Zizek propõe que tais motivos, sejam visuais, formais ou materiais, constituem um

conjunto de signos materiais ―que resiste ao significado e que estabelece conexões que não estão

alicerçadas nas estruturas simbólicas narrativas: estão apenas relacionadas numa espécie de

ressonância cruzada pré-simbólica‖ (ZIZEK, 2009, p. 83). De tal modo que, contrariamente ao

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sintoma clínico, visto como código de um significado reprimido, o padrão repetitivo do sinthoma

daria corpo ―a uma matriz elementar de jouissance, de prazer excessivo [...] Assim, os sinthomas

de Hitchcock não são meros padrões formais: já condensam certo investimento libidinal.

Enquanto tais, determinaram seu processo criativo‖ (ZIZEK, 2009, p. 84).

Dentro do estudo dos processos criativos no campo da linguagem audiovisual, tema com

o qual tenho me envolvido ao longo dos últimos anos na qualidade de professor de roteiro

cinematográfico, essa via de acesso à obra de Hitchcock revela-se particularmente fecunda:

―Hitchcock não partia do argumento para sua tradução em termos audiovisuais

cinematográficos, mas começava com um conjunto de motivos (em geral visuais) que

assombravam sua imaginação, que se impunham como seus sinthomas; depois,

construía uma narrativa que servia como pretexto para o uso destes... Tais sinthomas

dão o aroma específico, a densidade substancial da textura cinematográfica dos filmes

de Hitchcock: sem eles, teríamos uma narrativa formal sem vida. Desse modo, todo

discurso acerca de Hitchcock como o ‗mestre do suspense‘, de seus argumentos

tortuosos ímpares etc., erra a dimensão fundamental‖ (ZIZEK, 2009, p. 84).

Cabe aqui destacar que a dinâmica pela qual cenas e situações que poderiam aparecer

corriqueiramente dentro da estrutura habitual do suspense – como o corpo que cai ou ameaça

cair, o nível de conhecimento detido por uma personagem, a mansão ―ameaçadora‖ etc. –

ascendem à categoria de símbolos (de modo a encarnarem sinthomas) está intrinsecamente

articulada à sua retomada, seja num mesmo filme, seja em filmes diversos, seja de modo idêntico

ou de modo análogo. A repetição constitui a condição estruturante para a ocorrência da

substituição significante própria ao processo instaurador do símbolo, como Lacan explica em sua

análise do sentido do jogo infantil ―fort-da‖ – tal qual descrito por Freud –, pelo qual o garotinho

se torna ―mestre de uma ausência‖ (DOR, 1985, p. 115). Nessa medida, a concepção narrativa

hitchcockiana, que pressupõe a construção de uma história principalmente para permitir através

dela a expressão de motivos temáticos, utiliza deliberadamente a força simbólica para atuar sobre

a percepção do espectador como um recorrente lembrete, indicador da ausência que ali se

configura, instituindo por essa via a presença do sinthoma. Tal ―presença‖, experimentada como

uma ausência, serve ao espectador, na dinâmica de seu envolvimento identificatório com a

narrativa, como indicador paradoxalmente vago, mas simultaneamente preciso, do sentido geral

da perda, característica própria à instauração do simbólico. Na expressão de Lacan: ―il faut que

la chose se perde pour être représentée‖4 (DOR, 1985, p. 115).

4 ―É preciso que a coisa se perca para ser representada‖ (Tradução do autor).

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A expressão da criatividade na forma de agendamento do sinthoma aponta para uma

necessária articulação do discurso na forma do reconhecimento de um Outro (le lieu de l’Autre,

nos termos de Lacan), com o efeito de uma comunicação de inconsciente a inconsciente. Essa

dinâmica comunicativa encontra-se na imbricação entre a expressão do desejo e a lógica da

linguagem:

―Le message, en principe, est fait pour être dans un certain rapport de distinction avec

le code, mais là c‘est sur le plan du signifiant lui-même que, manifestement, il est em

violation du code [...] Il faut que la distinction d‘avec la prescription du code soit bien

entérinée comme message au lieu de l‘Autre […] par le locuteur et l‘auditeur pour

que, de part et d‘autre, la néocomposition signifiante soit admise comme message,

c‘est à dire comme création d‘un sens nouveau‖5 (DOR, 1985, p. 215).

Nos termos da estética hitchcockiana, as configurações compostas nos filmes,

características da formação simbólica do sinthoma, constituem a condição indispensável para

que o espectador seja não apenas o receptor de um conjunto de informações objetivas, e sim

também movido emocionalmente como se o diretor do filme o tocasse nos moldes em que um

músico toca um instrumento musical (um órgão, no caso, para nos atermos à metáfora cara a

Hitchcock). Ou seja, o diretor almeja alcançar seu público para além da compreensão que cada

um individualmente detém acerca dos efeitos que a narrativa cinematográfica pode proporcionar-

lhe. No campo da linguagem, para Lacan, o processo metafórico de que se vale a formação do

sintoma clinicamente observável (sympthôme) por suas manifestações psicossomáticas é da

mesma natureza do sinthoma, nos termos de sua sobre-determinação, o que torna sua

representação capaz de ser portadora de um excesso de informação, indecifrável num nível

literal, mas perturbadora no campo intuitivo. A própria ininteligibilidade dos efeitos provocados

no espectador pela exibição fílmica do sinthoma é fator central para permitir a este ser o veículo

de uma ligação com emoções e conteúdos reprimidos. Levando-se adiante a analogia metafórica

de symptôme e sinthome, podemos observar que na manifestação do symptôme é central a

importância da ―reversão dos afetos‖ ((DOR, 1985, p. 85). Manipular os afetos da audiência via

produção de emoções perturbadoras, que trabalham profundamente sobre a base do processo

identificatório, constitui para Hitchcock o modo pelo qual ele obriga continuamente o espectador

a tomar decisões de foro íntimo quanto a posicionar-se diante do rumo que a narrativa segue,

5 ―A mensagem, em princípio, é feita para estar em certa relação de distinção com respeito ao código, mas nesse

caso é sobre o plano do próprio significante que, manifestamente, ela viola o código [...] É preciso que a

distinção com referência à prescrição do código seja bem ratificada como mensagem ao lugar do Outro [...] pelo

falante e pelo ouvinte para que, de uma parte e d‘outra, a nova composição significante seja admitida como

mensagem, isto é, como criação de um sentido novo‖ (Tradução do autor).

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estando confrontado ao valor positivo ou negativo (e eventualmente reversível) inerente a cada

percepção afetiva. Nesse quadro, a reversão dos afetos de que trata Lacan, nos termos dos

conteúdos sintomáticos (presentes tanto na manifestação enquanto symptôme quanto nas

manifestações enquanto sinthome), só pode se dar na medida em que o suporte da possibilidade

metonímica permita debitar à energia refugada dos afetos o não-sentido da operação de reversão,

quando a transformação se viabiliza pelo bloqueio do sentido anterior.

Por sua vez, o mecanismo responsável por essa substituição metonímica tem no campo

do cinema um apoio fundamental na própria constituição sígnica da imagem, já que nela a

possibilidade de recorte dos significantes revela-se mais fluida, menos definida, do que ocorre

com o significante verbal. Considerando a noção desenvolvida por Lacan acerca do que ele

denomina ―pontos de estofamento‖ (points de capiton), capazes de operar recortes no

deslizamento do discurso entre o plano dos significantes e o plano dos significados, por delimitá-

los simultaneamente, temos que a fluidez da imagem, ao permitir uma transversalidade no campo

discursivo do filme, acentua sobremaneira a potencialidade de deslocamento quanto ao próprio

local de inserção sintagmática desses ―pontos de estofamento‖. Com isso, as possibilidades

quanto ao deslizamento entre o plano dos significantes e o dos significados ficam

inevitavelmente contaminadas pela inserção da subjetividade espectatorial. Tal mecanismo nos

serve a compreender a razão pela qual o cinema de Hitchcock apoia-se na imagem quase ao

ponto de constituir uma continuidade estética do cinema mudo, no que tange à expressão visual

do sinthoma, contida nas cenas-chave de cada obra. A propriedade narrativa de que o cineasta

lança mão ao empregar deliberada e reiteradamente tal tipo de procedimento está, como vimos,

em permitir-lhe fazer alusão a conteúdos de natureza inconsciente, restituindo com isso ao

discurso sua capacidade originária de enunciar para além do intencionado racionalmente pelo

sujeito: ―l‘enfant ne sait plus ce qu‘il dit dans ce qu‘il énonce‖, com a implicação decorrente de

que, diante da própria condição de acesso à linguagem, diz-se outra coisa que aquilo que se

acredita dizer no que se diz (DOR, 1985, p. 132). Tem-se aí o inconsciente que escapa ao sujeito

falante, pois este se separou dele constitutivamente.

O reiterado uso de símbolos em Hitchcock, isto é, seu emprego da linguagem

cinematográfica de modo a fazer com que certas imagens presentes de modo causal na diegese

adquiram força de símbolo, encontra-se, portanto, em ressonância direta com as propriedades

simbólicas descritas por Lacan quanto à instauração e estruturação do inconsciente. A própria

fundação do sujeito na e pela linguagem, consequência do tipo de relação entretida pelo sujeito

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com a ordem simbólica, faz com que o real apareça-lhe por meio de um substituto simbólico.

Pois a representação do real para o sujeito surge como cisão entre o real vivido e aquilo que vem

significá-lo, de tal forma que ―a própria ausência vem se nomear‖ ((DOR, 1985, p. 136). Com

referência às estratégias narrativas escolhidas por Hitchcock, tal pregnância do símbolo – capaz

de atualizar para o espectador suas pulsões inconscientes recalcadas – produz na economia

fílmica a recorrente presença de um espaço de clivagem subjetiva, do qual o espectador se vê

feito refém.

Se a aplicação do conceito de sinthoma por Zizek à obra de Hitchcock deve-se à sua

intenção de utilizar as decorrências de semelhante abordagem em seu trabalho de crítica social,

minhas intenções quanto à leitura da obra hitchcockiana propiciada por tal viés têm outro

endereçamento. Como já enunciei mais acima, minha abordagem liga-se à busca de elementos

que auxiliem na elucidação da natureza do processo criativo. Nessa direção, parto de um

confronto com os próprios limites apresentados pelo enfoque realizado por Zizek acerca da

questão do lugar do sujeito diante do enunciado cinematográfico, com relação às finalidades que

tenho em vista.

De saída, devemos ter em conta que, se a obra de Hitchcock se presta particularmente

bem a um exame de tipo psicanalítico, a causa disso está em que ela surgiu dentro de um

contexto social em que a psicanálise vinha se tornando um discurso socialmente difundido,

mesmo se frequentemente sob uma forma de divulgação pouco formalizada. A biografia de

Hitchcock escrita por Donald Spoto, The Dark Side of Genius (SPOTO, 1993), dá bem a medida

do contato do cineasta tanto com essa literatura de divulgação, quanto com seu recurso a

psicanalistas como consultores na elaboração de alguns de seus roteiros. É. Portanto. sobre um

fértil material que se constrói o essencial da ensaística de Zizek sobre tais filmes, já presente

desde Everything You Always Wanted to Know about Lacan (But Were Afraid to Ask Hitchcock).

De modo que sua retomada dos temas psicanalíticos em Hitchcock sob um viés lacaniano – ainda

que suas conclusões por vezes idiossincráticas não tenham recepção unânime – constituem

ampla tentativa de atualização das possibilidades de convergência entre materialismo histórico e

psicanálise, auxiliando na elucidação das influências da psicanálise no discurso artístico do

século 20. Isso posto – usar para a interpretação de um conjunto de textos metodologia coerente

com aquela empregada em sua construção –, avaliemos o a priori de Zizek para sua análise:

―Como interpretar esses gestos ou motivos persistentes? Devemos resistir à tentação de tratá-los

como arquétipos jungianos de significado profundo‖ (ZIZEK, 2009, p. 83). A isso, porém, eu

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acrescentaria duas outras decorrências: 1) tampouco devemos descartar conjuntamente outras

facetas do complexo pensamento de Jung (mesmo se por vezes carente de sistematização

adequada), que se revela central para a compreensão dos processos criativos; 2) deve-se

igualmente desistir de tomar as conclusões derivadas da aplicação feita pelo próprio Zizek da

psicanálise ao cinema como respostas definitivas acerca do cinema hitchcockiano e às suas

implicações para uma teoria da sociedade onde essa obra se gestou, tema central do artigo

tomado como ponto de partida das presentes considerações. Pois o próprio da criação artística é,

evidentemente, seu caráter polissêmico, e são tantas as visões (pertinentes umas, outras nem

tanto) acerca da obra de Hitchcock quanto é vasto o número dos críticos que a ela se dedicaram.

Para se construir produtivamente uma apreciação acerca dos processos criativos em Hitchcock

precisamos em alguma medida passar além da ideia de que os símbolos numa obra como a desse

cineasta – que busca deliberadamente emular uma dinâmica onírica, tal qual um pesadelo que se

tem acordado (no que se refere às peripécias dos personagens), ou em estado de letargia semi-

hipnótica (caso do espectador) – estejam ali à espera de um deciframento, de uma interpretação

que lhes insira um extra de significação.

Quanto a Jung, deve-se ter em conta as possibilidades interpretativas derivadas de sua

assertiva proposição com respeito a um saber específico próprio ao inconsciente, que atuaria na

criação artística tanto quanto na onírica. Acerca das tentativas de ―tradução‖ dos conteúdos

oníricos, Jung mostra-se incisivo em seu debate com Freud:

―O sonho é um fenômeno normal e natural, e não significa outra coisa além do que

existe dentro dele [...] A confusão nasce do fato de os seus conteúdos serem

simbólicos e, portanto, oferecerem mais de uma explicação. Os símbolos apontam

direções diferentes daquelas que percebemos com a nossa mente consciente; e,

portanto, relacionam-se com coisas inconscientes, ou apenas parcialmente conscientes.

Para o espírito científico, fenômenos como o simbolismo são um verdadeiro

aborrecimento por não poderem formular-se de maneira precisa para o intelecto e a

lógica‖ (JUNG, 2008, p. 112-3).

Tal inadequação entre o processo de criação simbólica e as metodologias de análise

científica tem vastas consequências, que Jung trabalha do ponto de vista da clínica

psicoterapêutica, e com referência às quais gostaria aqui de colocar uma tomada de posição

também no que se refere à análise da criação artística:

―O problema começa nos fenômenos dos ‗afetos‘ ou emoções, que fogem a todas as

tentativas da psicologia de encerrá-los numa definição absoluta. Em ambos os casos, o

motivo da dificuldade é o mesmo – a intervenção do inconsciente. Conheço bastante o

ponto de vista científico para compreender o quanto é irritante lidar com fatos que não

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podem ser apreendidos apropriada ou totalmente. O problema com esse tipo de

fenômeno é que são fatos que não podem ser negados, mas que também não podem

ser formulados em termos racionais. Para fazê-lo precisaríamos ser capazes de

compreender a própria vida, pois é ela a grande criadora de emoções e ideias

simbólicas‖ (Jung, 2008, p. 113).

Tal dificuldade (ou mesmo impossibilidade) de reduzir ao campo da razão o processo de

criação simbólica – enfatizo aqui o termo de criação, e não do funcionamento discursivo do

símbolo per se – aponta para um paralelismo entre a complexidade específica ao trabalho clínico

e aquela de quem investiga o fenômeno da criatividade artística. Sobre a clínica Jung dirá:

―O psicólogo acadêmico tem total liberdade para afastar das suas considerações o

fenômeno da emoção ou o conceito de inconsciente, (ou os dois). No entanto, ambos

são fatores aos quais o médico deve prestar a devida atenção, já que conflitos

emocionais e intervenções do inconsciente são aspectos básicos da sua ciência. De

qualquer modo, quando ele for tratar de um paciente, vai defrontar-se com esses

fenômenos irracionais como fatos resistentes que não levam em conta a sua

capacidade para formulá-los em termos racionais‖ (JUNG, 2008, p. 113).

Muito embora seja discutível a tentativa de aplicação de uma leitura psicanalítica à

relação entre vida e obra de qualquer artista – veja-se, no caso de Hitchcock, o fato de que

esse tipo de tentativa responde pela parte mais contestada da citada obra de Spoto – parece-me

pertinente estender essas reflexões de Jung àquilo que toca ao tipo de disposição intelectual e

de postura analítica que deve ter quem se proponha ao estudo dos fatores subjetivos

envolvidos no processo criativo de um artista. Assim, resumo na seguinte proposição os

elementos que creio justificarem o escopo da pesquisa aqui proposta: buscar os caminhos do

processo criativo pelos quais aquilo que é da ordem do Real e, por decorrência, em si

destituído de afeto (isto é, construído como linguagem), pode ser trabalhado de modo a gerar

afeto no espectador. Não se trata aqui, especificamente, da questão da estrutura

melodramática, pois no interior da obra de Hitchcock a própria noção de melodrama constitui

para o cineasta unicamente o suporte para a criação de um ―McGuffin‖, ou seja, de formas

vazias que lhe permitem negociar suas intenções autorais dentro do sistema dos estúdios. Sua

verdadeira busca estética consiste em produzir criativamente as condições para explorar

aquilo que Zizek caracteriza como a expressão de sinthomas, de maneira a agir sobre a

própria percepção subconsciente do espectador. Porém, tal como vejo a presença dessas

imagens e situações recorrentes habilmente tornadas símbolos por Hitchcock, para um estudo

de seu trabalho criativo pouco importa qual o sentido último que o autor a elas almejava

explicitamente ou implicitamente atribuir (se é que existiria algum), e sim compreender como

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elas operam no âmbito da economia narrativa dos filmes. As interpretações que à sua obra

vêm sendo dadas trazem sempre, inevitavelmente, a marca das condições históricas e dos

interesses hermenêuticos de cada um de seus intérpretes, e é tendo isso em mente que

pretendo delas manter distância crítica ao concentrar-me no exame de seu processo formativo.

Dentre os motivos tomados como sinthoma na obra de Hitchcock, na presente

pesquisa ainda em andamento, pretendo dar destaque à recorrência das formas visuais

circulares, motivos, em sua maior parte, não mencionados por Zizek. Tais formas circulares,

com frequência enquadradas frontalmente na forma de inserts, ligam-se a contextos diegéticos

os mais diversos, constituindo imagens que momentaneamente associam-se a estados de

espírito (ou os insinuam) que a sequência da história encarrega-se de confirmar ou negar. Eis

alguns exemplos:

Acesso ao objeto de desejo e à verdade: a fechadura do cofre em Marnie; o anel de

noivado em Rear Window, assim como as lentes da teleobjetiva do fotógrafo Jeff; o furo na

parede em Psycho; as rodas do moinho, que indicam o local da conspiração dos espiões em

Foreign Correspondent;

Suposto alívio: o chuveiro em Psycho, e pouco antes, no mesmo filme, o vaso

sanitário onde se jogam as contas do dinheiro a devolver;

Frustração: o prato com ensopado de peixe em Frenzy; a travessa com frango assado

em The Man Who Knew Too Much – isto é, o alimento insatisfatório;

Vida ameaçada, ou que se esvai: o ralo da banheira e a pupila do olho em Psycho;

mãos que estrangulam, em Strangers on a Train; o laço da gravata em Frenzy; o fio do

telefone que estrangula, em Dial M for Murder; os címbalos da orquestra, em The Man Who

Knew Too Much, que representam tanto a ameaça ao político presente no auditório quanto as

consequências da decisão da cantora, no tocante às repercussões para seu filho raptado.

A unir a presença desses motivos em contextos tão diversos, está um conjunto comum de

substratos, que se poderia esquematicamente descrever como: o caminho para o objetivo, o que

esclarece esse objetivo, ou o aponta, ou tenta ocultá-lo, ou o dificulta, ou o mostra como

desejável. Em comum, portanto, sua presença a lembrar-nos de que, conforme aponta Lacan, a

falta não é especularizável, e, portanto, não pode haver imagem dela. Só pode ser acessada por

processos indiretos, donde o recurso sistemático de Hitchcock ao suspense, como encenação da

falta em ato: algo falta, e a demora na satisfação, continuamente adiada, constitui-se num fim em

si mesma. Pois, tragicamente, se algo surge que venha a ocupar o lugar da falta – de modo que

esta venha a faltar – aparece a angústia de castração (DOR, 1995, p. 47). Nessa linha de reflexão,

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pode-se perceber como a recorrente imagem do objeto redondo constituído pela fechadura da

porta do cofre em Marnie dá margem a um elenco de associações no contexto da história,

tornando-se suporte para diversas conotações: 1) a apenas aparente segurança do cofre (ou,

simbolicamente nesta situação, o ―feminino‖), pois ele de fato é devassável pela esperta ladra,

aquela que, como mulher frígida, tornou-se mestra da dissimulação; 2) o dinheiro por trás dessa

fechadura da porta, enquanto promessa de liberdade; 3) a atitude ―fálica‖ de penetração no cofre,

passagem no caminho de Marnie em busca da recuperação de sua capacidade desejante. Mas é

em contraponto a isso que o casamento momentaneamente priva Marnie de sua ―falta‖, trazendo-

lhe a angústia de castração, interiorizada a partir da sua convivência infantil frustrante com a

mãe prostituta.

Há outros importantes motivos recorrentes na obra de Hitchcock, como o da comida e

bebida associadas à morte, por vezes na forma de um banquete fúnebre, como em Rope, The

Birds, Dial M for Murder, Psycho... Ou o da comida associada ao sexo, como em To Catch a

Thief, Psycho, Frenzy, etc., conforme tive ocasião de examinar em um artigo consagrado a esses

temas (POMMER, 2001).

Mas é no motivo das formas circulares que gostaria de concentrar a presente pesquisa,

motivo formal ao qual me parece pertinente a aplicação das propriedades topológicas do plano

projetivo conhecido como cross-cap, acerca do qual Lacan destaca o seguinte: ―Essa superfície

assim estruturada é particularmente propícia a fazer com que funcione diante de vocês este

elemento mais inapreensível que se chama desejo enquanto tal, em outras palavras, a falta‖

(DOR, 1995, p. 189). Essa forma, em sua potencialidade enquanto esquema explicativo, mostra-

se complementar àquela da topologia da figura geométrica batizada toro, gerada por um círculo

que percorre uma trajetória em torno de outro círculo, e que, segundo propõe Lacan, ilustra a

dialética da demanda e do desejo entre o sujeito e o Outro. Tais figuras compostas por círculos

que envolvem círculos prestam-se bastante bem (até mesmo no plano visual, mas mais ainda no

plano da dramaturgia e do enredo) a caracterizar a dinâmica de cenas como aquelas que

envolvem o assassinato em Psycho, com o giro da câmera sobre a pupila do olho e a água

ensanguentada que gira, ralo abaixo, assim como a dualidade da função simbólica da fechadura

circular em Marnie, a que já me referi.

Para além de estimular uma identificação do espectador com os protagonistas, as

estratégias narrativas empregadas por Hitchcock buscam também induzir a identificação do

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espectador, enquanto sujeito desejante, com a própria imagem quando dotada de potencial

simbólico, situação que, segundo Lacan, torna-se possível já que o sujeito só pode figurar em seu

próprio discurso – isto é, em sua auto-identidade – ao preço de uma cisão, desaparecendo

enquanto sujeito para se reencontrar representado na forma de um símbolo, especificamente

aquele significante individualizado a que cada um atribui o lugar simbólico do pai no

inconsciente. O vazio estrutural deixado pela forclusão desse significante Nome-do-Pai abre

espaço para as imagens que confrontam o espectador enquanto sujeito – daí podermos inferir a

força alusiva dos enquadramentos frontais utilizados por Hitchcock para diversos ―círculos de

círculos‖, como o chuveiro em Psycho e a fechadura do cofre em Marnie (em duas variantes do

tema da ladra). Não há razão diegética a justificar a frontalidade desses planos; ao representá-los

assim, o filme os faz interlocutores da personagem e do espectador, simultaneamente. Eles se

tornam o vazio que devolve o olhar, acarretando uma subjetivação do objeto, num exercício do

estilo que Hitchcock aprendera dos expressionistas. Nos termos lacanianos, um confronto com a

coisidade da Coisa.

Tal confrontação narrativa aparece como decorrência natural do processo descrito na

terminologia lacaniana como sutura, caracterizando a relação do sujeito que fala com seu próprio

discurso, e que Jean-Pierre Oudart estendeu aos enunciados cinematográficos:

―A sutura é um modo de articulação entre dois planos sucessivos, que não se funda no

significado das imagens que devem ser articuladas (...), mas se desenrola em termos

do significante fílmico e especialmente da relação entre campo e fora-de-campo, ou

‗campo ausente‘, aquele que se constitui como uma ‗falta‗ a partir de certos elementos

dados no campo – especialmente os olhares. A sutura é o processo pelo qual a falta em

questão é abolida, para o espectador, por alguma coisa que se produz no segundo

plano‖ (AUMONT e MARIE, 2006).

Pela sua capacidade de assegurar a representação simbólica do sujeito em seu discurso,

no que concerne à posição do espectador, a estética hitchcockiana consegue mobilizar de modo

permanente as instâncias psíquicas relacionadas à atribuição de valorações morais às situações

representadas. Uma vez que, nos termos de Lacan, o sujeito é causado por sua linguagem (e não

sua causa), a preponderância dada por Hitchcock ao conteúdo simbólico da imagem (isto é, para

além de sua presença icônica) promove a imersão do espectador no discurso fílmico enquanto

sujeito, produzindo uma diminuição ou restrição de seu possível distanciamento. Assim, ao

deparar-se com o símbolo tomado como sinthoma, o espectador reconecta-se de forma profunda

com a própria experiência de sua subjetividade.

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Quanto às decorrências do uso reiterado desse tipo de procedimento na forma de

exercício autoral da linguagem cinematográfica, temos que, para Lacan, um significante é aquilo

que representa um sujeito para outro significante, o qual por sua vez é o constituidor originário

do sujeito receptor do discurso (DOR, 1985, p. 138), já que o sujeito é barrado a si mesmo ($ na

representação lacaniana). Nesses termos, vemos que o estilo hitchcockiano de dar proeminência

ao símbolo faz com que seu cinema com frequência tenha momentos de endereçar-se

explicitamente ao espectador enquanto sujeito, rompendo com a forma enviesada pela qual a

narrativa clássica busca construir a experiência cinematográfica como se fora uma realidade

―autônoma‖, observada por um espectador independente, mesmo se emocionalmente

participante. No caso do cinema de Hitchcock, não é, portanto, somente a câmera que busca

colocar o espectador ―dentro da cena‖ (efeito visado pela decupagem clássica), mas também o

tratamento narrativo do significante enquanto símbolo/sinthoma procura situar à experiência do

espectador simultaneamente para além da identificação secundária (com os personagens) e

aquém da identificação primária (com o dispositivo), para identificá-lo com a própria

possibilidade de uma cadeia narrativa, enquanto sujeito.

Encerro estas premissas com uma alegoria. Ao permitir o trânsito contínuo pela via do

Real entre o Simbólico e o Imaginário, a experiência do cinema hitchcockiano revela-se

perturbadora – para o espectador que aceite ―jogar o jogo‖ de seu gênero de cinema, bem

evidentemente – por permitir uma espécie de ―psicose imagística‖, na qual interior e exterior da

experiência subjetiva são percorridos em sequência, de maneira contínua, imprevista e indistinta.

A fita do filme atua, alegoricamente, como uma fita de Möbius, em que a narrativa fílmica

―constitui o espectador‖, ao passo que este se reconhece nela. As implicações dessa dinâmica no

campo projetivo são vastas, sendo esse um dos aspectos que pretendo aprofundar na pesquisa

aqui esboçada. Considerando que no cinema de Hitchcock os enredos – estruturados sobre

pretextos (literalmente, pré-textos) vazios, os ―McGuffins‖ – existem basicamente para veicular

as cenas capazes de induzir no espectador tais experiências de ―psicotização sob controle‖,

podemos ver nesse procedimento um dos centros de sua estética

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Documentando entre a memória e a linguagem

Larissa Leda Fonseca Rocha6

Lívia Janine Leda Fonseca Rocha7

Resumo

Buscamos, neste trabalho, a partir da obra do cineasta maranhense Murilo Santos, pensar o

documentário problematizando seu papel de preservação da memória, exercitando um diálogo entre a

comunicação, com conceitos como lugar de memória, e a psicanálise, com pressupostos como o do

sujeito de linguagem. Utilizamos quatro filmes, sendo dois com a importante particularidade de terem

como tema a própria obra do diretor.

Palavras-chave: Documentário; memória; linguagem.

Documenting between memory and language

Abstract

In this work, we seek from the work of Maranhão's filmmaker Murilo Santos, reflect about the

documentary, questioning its role in preserving the memory; exercise a dialogue between the

communication, with concepts such as place of memory, and psychoanalysis, with assumptions such

as the subject of language. We use four films, two with the important feature to have, as its theme, the

director's own work.

Keywords: Documentary, memory, language

O documentário ―Periquito Sujo‖ (1979), de Euclides Moreira, baseado na obra de

Ferreira Gullar, ―Poema Sujo‖, de 1976, nos brinda com imagens que só podem existir hoje

pelos caminhos das reminiscências: um trem que passa lento embaixo da ponte Camboa. A

ponte resiste aos anos, o trem já não existe mais. Difícil não ver a cena sem ser tomado por

um alerta, por uma tristeza que se disfarça mal. É justamente disso que nos fala este trabalho:

de cinema, memória, lembranças e esquecimentos.

6 Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão, mestre em

Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense. Autora do livro ―Diluindo Fronteiras: hibridizações

entre o real e o ficcional na narrativa da telenovela‖ pela Edufma. Email: [email protected] 7 Jornalista e Radialista formada pela PUC Campinas e especialista em Comunicação em Saúde; Psicanalista

Pesquisadora bolsista Projeto Canguru Hospital Universitário Universidade Federal do Maranhão/Ministério da

Saúde, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail:

[email protected].

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Documentários no Maranhão

É verdade que a produção do Uirá – um Cineclube Universitário que nasceu pelas

mãos da Coordenação de Extensão e Assuntos Comunitários (CEAC) da Universidade

Federal do Maranhão nos anos 1970 e por onde circularam nomes que viriam a marcar a

produção audiovisual do estado, como Murilo Santos e Euclides Moreira Neto – foi

fortemente marcado pela realização de filmes documentários que traziam como temática

questões políticas e sociais e, parte da explicação para isso, estava no próprio contexto de

sufocamento ideológico vivido pela sociedade naquele momento. Desde o início do Festival

Guarnicê8 – por onde efetivamente até hoje escoa a produção cinematográfica local e se

tornam conhecidos os filmes de realizadores independentes9 – foram contabilizados 316

filmes documentários feitos por maranhenses ou tendo o Maranhão como foco de interesse

principal. Cerca de 40% deles trazem como temática central questões relacionadas à política

e/ou sociedade10

. Naturalmente o assunto os interessava e interessa ainda hoje.

Mas, junto a isso, é também difícil negar o papel atribuído ao documentário de

preservação da memória, papel que buscamos aqui problematizar, e que remete aos filmes

feitos nos anos 70, que deixam tão expostos os modos de vida desse povo naquela época, mas

também os recentes movimentos de revisitação desse material feito pelos próprios

documentaristas. É o caso de dois filmes lançados recentemente pelo cineasta Murilo Santos.

―Fronteiras de Imagens‖ (2010) e ―Afinado a fogo: o Tambor de Crioula revisitado‖ (2009).

Ambos os filmes são esforços de visita do documentarista a trabalhos anteriores, ―Bandeiras

Verdes‖ (1979/1987) e ―Tambor de Crioula‖ (1979), respectivamente, ambos filmados em 16

milímetros.

―Bandeiras Verdes‖ conta os modos de vida e a expansão camponesa de

comunidades no Vale do Rio Carú, interior do Maranhão. O filme registra esse momento e as

lutas sindicais e camponesas, muitas vezes violentas, que aconteciam no período. A primeira

captação de imagens para o filme aconteceu em sucessivas visitas ao local em 1979, com

8 O Festival Guarnicê de Cinema, hoje com este nome, nasceu em 1977 sob a denominação de I Jornada

Maranhense de Super 8. Em 2012 o festival realizará sua 35º edição. 9 Consideramos como realizadores independentes aqueles que não estão ligados aos mecanismos de produção

audiovisual midiática e que realizam seus filmes com apoio de financiamentos conseguidos em editais públicos

ou por outras vias, mas que conseguem assegurar, de algum modo, uma certa liberdade narrativa do ponto de

vista político e ideológico. 10

Os dados foram coletados pelo projeto de pesquisa ―Documentário no Maranhão: realização, linguagem

audiovisual e memória‖, coordenado pela autora Larissa Leda F. Rocha e realizado no curso de Comunicação

Social da UFMA. O projeto tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento

Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema).

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equipamentos menos sofisticados. Em 1985, o documentarista retornou ao local, para captar

mais imagens já com aparelho síncrono e apoio da extinta Embrafilme11

. No entanto, o

personagem principal do documentário, ―seu‖ Domingos Bala, já havia falecido, o que não

prejudicou o desenvolvimento do filme. ―Bandeiras Verdes‖ foi apresentado em 1988 no

Festival Guarnicê, tendo Murilo Santos dividido a autoria do material com a montadora Aída

Marques.

Sob inúmeros aspectos ―Bandeiras Verdes‖ é um clássico documentário ao modo

―participativo‖ de Nichols (2009), ou seja, bebe no Cinema Verdade. Mas também brinca com

a exigência do real na narrativa. Em cena que Domingos Bala narra um encontro com os

índios na mata, o documentário usa ―imagens ficcionais‖, como nominou Murilo Santos em

―Fronteiras de Imagens‖, e mesmo com ―receio de macular o real‖ apostou na cena, pois o uso

das ―imagens ficcionais‖ era o melhor modo de narrar a história real do protagonista.

―Bandeiras Verdes‖ funciona como uma tentativa de — na dinâmica narrativa do

documentário — compreender o presente antes que ele se converta em passado. ―Documentar

é algo importante do ponto de vista da humanidade. Subjacente a esse acto (sic) estará,

porventura, a vontade de preservação das nossas memórias, uma tomada de consciência da

nossa diversidade ou uma necessidade de nos manifestarmos‖ (PENAFRIA, 2009, p. 11).

Os documentários podem atuar como elemento de rememoração, mas também como

documentação de um determinado momento histórico, como uma fonte armazenadora de

dados sobre certa temporalidade. E a isso, claramente, serve ―Bandeiras Verdes‖. É, logo, um

documento de época. ―O cinema tem uma missão tão importante quanto urgente a cumprir:

filmar o presente. O cinema é assim chamado a colaborar numa consolidação do presente

impedindo que o mesmo se transforme num passado opaco‖ (PENAFRIA, 2008, p. 2).

Já ―Fronteiras de Imagens‖ (2010), ao contrário de ―Bandeiras Verdes‖ não está

ocupado em narrar um modo de vida, em documentar uma temporalidade, em deixar visível

uma realidade. É um filme que se encaixa no modo ―performático‖ de Nichols (2009) e é ele

todo um esforço de rememoração, de resgate, de resguardar uma lembrança do esquecimento.

Sem disfarces. Sem subterfúgios. O filme, com off narrado pelo próprio Murilo em primeira

pessoa, é todo montado com imagens de arquivo, com fotos feitas durante a produção do

documentário ―Bandeiras Verdes‖ pelo próprio diretor. Em uma digressão, por vezes,

emocionada, Murilo conta a história de como nasceu ―Bandeiras Verdes‖, sua relação com os

11

Embrafilme, estatal que tinha por objetivo produzir e distribuir filmes, foi criada em 1969 e extinta em 1990,

pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), desenvolvido no governo de Fernando Collor de Mello.

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intervenientes, com a família de Domingos Bala, seus sentimentos em relação àquele povo, as

situações que culminaram no registro das imagens. Em parte do filme, Murilo nos conta sobre

a vida dos intervenientes, sobre o material de que se serviu para fazer ―Bandeiras Verdes‖,

numa rememoração permanente. Na outra parte do filme o diretor lembra os procedimentos

na feitura do filme, equipamentos usados, dificuldades técnicas, escolhas narrativas.

―Fronteiras de Imagens‖ é um exercício de rememoração sobre a produção de algo que, em si

mesmo, já é a construção de uma memória, o documentário ―Bandeiras Verdes‖. Murilo

parece desejar durante todo o filme de 2010 relembrar como foi construída sua primeira

lembrança, em 1979. Mas o que se encontra nas fronteiras desse desejo de rememoração?

Sigamos mais um pouco.

Podemos estender as mesmas considerações ao trabalho do diretor em ―Afinado a

fogo: o Tambor de Crioula Revisitado‖ (2009). O filme, também do modo ―performático‖ e

com off em primeira pessoa, narrado pelo diretor, é montado com imagens de arquivo – fotos

da realização do filme ―Tambor de Crioula‖ (1979), e imagens novas, que mostram o diretor

indo ao encontro dos intervenientes registrados no filme de 1979 ou seus descendentes. O

filme é, essencialmente, um encontro com o passado, encontro nunca ingênuo e sempre caro.

―Tambor de Crioula‖, de 1979, obedece à estética do modo ―expositivo‖ de Nichols (2009),

ou seja, forte preponderância da voz de Deus com a apresentação de fragmentos do mundo

histórico numa estrutura retórica e argumentativa. O material foi o resultado de uma das

primeiras experiências do diretor com a película de 16 milímetros, um curta metragem (15

minutos) que buscava registrar a manifestação da cultura popular maranhense, documentar,

pois o realizador acreditava que a expansão do turismo fosse fazer a manifestação sumir das

ruas. O filme de 2009 pede perdão por essa afirmação. O tambor de crioula não acabou,

continua sendo um traço marcante da cultura popular do Estado. Mas o movimento do

documentarista em ―Afinado a fogo‖ não é colocar sob teste o filme de 1979, mas

reencontrar-se com o passado, dar aos intervenientes do primeiro filme um retorno, dialogar

com o passado, fazer as pazes com o presente, marcado por uma angústia confessa do diretor

por não ter mostrado aquela documentação aos documentados. Enquanto ―Tambor de

Crioula‖ fala de hábitos, de formas de se comportar, sendo ele próprio uma tentativa de

arquivamento, da manutenção de um tempo que não vai voltar e que passou impunemente,

―Afinado a fogo‖ é pura rememoração, um retorno a esse passado, um reavivamento do já

vivido, mas que é, ele próprio, a construção de uma nova memória. Murilo, novamente,

parece desejar, durante todo o filme de 2009, exercitar a lembrança do que foi o filme de

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1979, convocando os intervenientes do primeiro filme – e seus descendentes – a relembrar

com ele e assim constrói um novo discurso – um discurso do presente – sobre seu objeto, o

Tambor de Crioula, mais ainda assim um discurso do presente revisitado pela memória. Nesse

exercício de rememoração ele vai além e constrói novas imagens, impossível não ir, não se

trata de uma escolha, rememorar é ―ir além‖ ainda que não se objetive construir novas

imagens.

Entre a memória e a linguagem

Este presente, que nos dá o tom da lembrança do passado, remete à idéia dos

―enquadramentos de memória‖ de Pollak (1992). Falar de memória e usar o filme

documentário como um lugar para esses debates nos confronta com a necessária observação

do contexto contemporâneo marcado por um ―boom‖ de memória, pelo que Huyssen (2000)

chamou de ―inflação da memória‖. De fato, vivemos hoje um mundo radicalmente marcado

pela emergência das Novas Tecnologias da Comunicação e Informação (NTCI) e, como sua

consequência, do ciberespaço que reconfigura as noções de tempo e espaço, bem como de

identidade, cultura e memória. Os apelos de memória aparecem facilmente seja na moda

retrô, na quantidade de museus, na recuperação de monumentos, no estabelecimento de

patrimônios culturais da humanidade, na obsessão pelo arquivamento coletivo e individual.

Cresce, quase instantaneamente, a quantidade de memória disponível para o arquivamento de

material digital. Nunca se voltou tanto ao passado e nunca se desejou tanto preservá-lo para o

futuro. Experimentamos uma inversão do paradigma vigorado durante o Renascimento e o

Modernismo, no qual as expectativas eram voltadas para o futuro. Agora, as esperanças estão

focadas nos dias já passados, são os anseios pelos ―passados presentes‖ (HUYSSEN, 2000).

Huyssen continua: ―não há dúvida de que o mundo está sendo musealizado e que todos nós

representamos nossos papéis nesse processo. É como se o objetivo fosse conseguir a

recordação total‖ (2000, p. 15).

Isto porque parecemos funcionar em uma visão platônica da reminiscência, observa

Garcia-Roza (2003), segundo a qual recordamos para preencher lacunas de memória em busca

de uma verdade esquecida da qual somos portadores, uma essência que diga o que somos, que

dê o verdadeiro significado ao que fazemos. Desde o início da psicanálise Freud

(1911/1915/1996) se defronta com o fato de que recordar não é preencher lacunas da

memória, não se tratava, para seus pacientes, de recordar algo esquecido ou recalcado, isso

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era o tempo da catarse, pré-história da psicanálise. O que ele percebeu com aquelas histéricas

é que se trata sobretudo de expressar algo pela atuação, elas repetiam sem saber que o faziam.

Memória viva, atuada, mas ainda assim indo inevitavelmente além e construindo

novas imagens. Pois o humano não diz de uma repetição12

do mesmo, não se trata de memória

de acontecimentos passados, uma memória da consciência, memória-lembrança. A mera

reprodução (movimento mais referenciado à natureza) é quase impossível para este ser que se

encontra além da natureza, o ser de linguagem que é o homem quando repete e produz

novidade, é uma repetição diferencial (GARCIA-ROZA, 2003; 2004). Esse diferencial

produzido quando recordamos uma lembrança é um estranho assustador que remete ao

conhecido, ao velho, ao estranhamente familiar, daí que nos sentimos impelidos a rememorar

sem deixar de sentir receio nesse movimento, pois, lembra Garcia-Roza, só ―o absolutamente

novo, o que jamais se deu na experiência, não pode ser temido‖ (2003, p. 24).

Rememorar, para o homem, portanto, está longe de ser voltar ao mesmo, assim como

um acontecimento, quando repetido, já não é o mesmo. O autor acima referido, esforça-se

para demonstrar como o eterno retorno de que falam os gregos aponta justamente para essa

repetição diferencial: ―a própria repetição de uma palavra não traz com ela a repetição do

sentido (...) a repetição se opõe às leis da natureza; ela diz respeito ao que há de mais interior

na vontade e não às mudanças e igualdades que se dão em conformidade com as leis da

natureza‖ (GARCIA-ROZA, 2003, p. 31-32). Assim, quando afirmamos que Murilo, ao

produzir ―Afinado a Fogo‖ e ―Fronteiras de Imagens‖, cria novas imagens e constrói uma

nova memória, nos referimos também a ―Bandeiras Verdes‖ e ―Tambor de Crioula‖, que, a

partir desse retorno, já não podem ser os mesmos para o próprio diretor, e não só porque

predições não se concretizaram, personagens morreram, ou arquivos não foram encontrados,

mas porque ao revisitar suas lembranças teve que ir além, encontrando-se com novas antigas

lembranças de bandeiras e tambores.

O desejo de lembrar e registrar, arquivar, ainda assim, coloca-se. Coloca-se apesar do

encontro com um estranhamente familiar, e impelido pelo medo de esquecer. É verdade que

lembrança e esquecimento estão em uma relação dialética, dinâmica. Lembrar é também

esquecer. A seletividade do que pode ou deve ser lembrado é uma das características de

memórias apresentadas por Pollak (1992, p. 203), ―a memória é seletiva. Nem tudo fica

12

O conceito de repetição é bem mais complexo na obra freudiana, inclusive se lido a partir do Mais Além do Princípio do Prazer, ou a partir da obra lacaniana com seu conceito de gozo. Mas para este texto nos limitamos à leitura feita por Garcia-Roza.

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gravado. Nem tudo fica registrado‖. Acrescentaríamos a Pollak, que algumas experiências,

por exemplo, a dos desejos infantis, não deixam traços na memória consciente, no entanto

produzem efeitos que perduram toda a vida. O esquecimento é concebido, na psicanálise,

como ativo e não passivo, esquecemos pela eficiência de um funcionamento e não pela

deficiência ou desgaste do material mnêmico (GARCIA-ROZA, 2004).

Atualmente, nos mostramos obcecados com as atividades de lembrar, nossa cultura

está obcecada com a memória e dessa forma, ―está também de alguma maneira tomada por

um medo, um terror mesmo, do esquecimento‖ (HUYSSEN, 2000, p. 19). Para combater esse

terror nos dedicamos mais e mais a processos de rememoração, tanto pública quanto privada.

Monumentos, museus, álbum de fotos, vídeos de família. Arquivos. Cada vez mais arquivos.

Ao mesmo tempo temos a consciência que esses arquivos falham. Como nos lembra Colombo

(1991), os arquivos são imperfeitos.

Pollak (1992) lembra ainda que falar de memória é falar de uma relação tríade entre a

memória, o esquecimento e o silêncio. Diz ele que há enquadramentos de memória, que pode

se transformar num objeto de poder. Na verdade a memória coletiva, organizada, oficial de

uma nação é lugar de disputa de poder e sofre, constantemente, enquadramentos. O presente

dá o tom da lembrança do passado e esse ―tom‖, bem como a própria memória, é

permanentemente construído e reconstruído. A memória é organizada em função de

preocupações pessoais e políticas, é disputada permanentemente. Há um jogo, uma trama em

negociação, há, como diz, memórias subterrâneas que buscam o tempo todo um ―lugar ao

sol‖, um lugar para serem, no presente, lembradas pois podem ser silenciadas mas não,

necessariamente, esquecidas. Ou ainda pode esse mesmo silêncio ser a própria lembrança, ou

―a gestão da memória segundo as possibilidades de comunicação‖ (POLLAK, 1989, p. 13).

Obviamente a construção dessa memória não é arbitrária, então, esse enquadramento tem

limitações e se alimenta de material fornecido pela história.

Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de

referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras

sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o

passado em função dos combates do presente e do futuro (POLLAK, 1989, p. 9-

10).

Os dois filmes de Murilo Santos, ―Fronteiras de Imagens‖ e ―Afinado a fogo‖ nos

parecem, claramente, trabalhos que se ligam à ideia do enquadramento de memória. São

trabalhos de ajuste, de reorganização, de ressignificação do sentido do que vimos nos

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primeiros filmes, logo uma orientação, um enquadramento dos modos de lembrar as primeiras

histórias, nos indicando o que deve ser relembrado e valorizado e o que pode ser ―esquecido‖

na retomada da história. O discurso de Murilo sobre os filmes, feitos cerca de 30 anos antes, é

feito no presente. É seu trabalho como documentarista hoje que revê seu trabalho como

documentarista nos anos 70, portanto é o presente que dá o ―tom‖ do passado, da lembrança

do que já foi, é o Murilo de hoje que avalia a história, que valoriza certas reminiscências,

aponta falhas, traz à luz equivocadas deduções passadas para um futuro que hoje é presente. É

o Murilo de hoje que legitima certas lembranças e deixa outras abafadas nos porões da

memória. Mas não que essa seleção seja toda ela consciente, ou se trate de uma orientação

inteiramente ou quase toda sob domínio da pessoa. É uma edição que ultrapassa o próprio

Murilo, queira ele ou não. Essa seleção pode tornar-se objeto de poder, ser limitada e

alimentada pela história, ou ainda gerenciada pelas possibilidades e tecnologias de

comunicação, mas está submetida ao aparato anímico do sujeito, ao seu Inconsciente. E esse

aparato anímico, sublinha incansavelmente Garcia-Roza (2003; 2004), é antes de tudo um

aparelho de memória e de linguagem, ―a memória desse aparelho é memória de linguagem, de

uma escritura‖ (GARIA-ROZA, 2004, p. 29). A voz em off pode tentar conduzir o outro

nesse passeio de rememoração, mas ultrapassa inclusive a vontade expressa do seu próprio

dono.

Garcia-Roza observa que Freud nos fala da permanência de traços de memória e não

da lembrança de um acontecimento, os traços são permanentes, mas a memória é sempre

diferencial, tem a ver com os diferentes caminhos realizados no aparelho: ―a memória não é

um processo mecânico pontual, não é a reprodução sempre idêntica de um traço imutável,

mas um processo que implica um diferencial de valor entre caminhos possíveis‖ (GARIA-

ROZA, 2004, p. 35). Como se o traço não trouxesse um significado em si, assim os sentidos

podem ser diversos a cada rememoração, uma vez que pode estar o sujeito, a cada

rememoração, em diferentes posições subjetivas, a ponto de dizermos que é de outra coisa que

se trata. Como bem observa o autor, memória tem a ver também com o poder de uma vivência

de continuar produzindo efeitos no sujeito. Daí que uma experiência não é traumática em si

(ou qualquer que seja o acento que tomará), é sua lembrança, melhor dizendo, é sua

representação, sendo reinvestida num après coup, que irá produzir um efeito traumático.

Assim podemos dizer que uma lembrança é tecida ao longo de um processo que a revela e

produz ao mesmo tempo. Nesse sentido, também, o presente dá o ―tom‖ do passado.

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O aparato anímico do sujeito é também determinado pela linguagem, melhor dizendo,

é estruturado como uma linguagem (LACAN, 1998), assim, é pela palavra que a verdade do

sujeito faz sua emergência, a palavra opera a transmissão do desejo do sujeito, ―em termos

psicanalíticos o que importa não é sua função de informação, mas sua função de verdade‖

(GARIA-ROZA, 2004, p. 15). Desse modo, se o inconsciente não se oferece benevolamente e

sim de modo distorcido, equivocado, dissimulado nos sonhos, nas lacunas do discurso e nos

atos do sujeito, observa Freud (1914/1996), concomitantemente as poderosas forças de

resistência anímica determinam a sequência do material que será recordado, ou, ainda,

repetido, se tomamos este como um modo de recordar. Poderíamos dizer que a produção de

um sonho, de um sintoma, ou ainda de um documentário, por exemplo, pode ser entendido em

função dessa dupla referência: memória e linguagem. A palavra, onde quer que ela esteja,

dissimula e mente, mas também porta uma verdade do sujeito. Retomando as palavras de

Penafria (2009) sem deixar de dialogar com elas, documentar é um importante ato do homem,

no qual subjaz uma vontade de preservar lembranças.

O dilema atual que vivemos de valorizar o passado, de consumir esse mercado de

memória, parece ter como motivo inicial aparente, de acordo com Huyssen, as transformações

de espaço-tempo. A memória é, de fato, todo o tempo espetacularizada e comercializada pela

mídia. É alimentada e usada por ela. E nesse cenário, a enorme influência das novas

tecnologias de mídia são quase óbvias, afinal, são os veículos para muitas formas de memória.

Não é possível falar de memórias, de arquivos, sem falar no desenvolvimento das novas

tecnologias da comunicação e do papel da mídia nesse processo de construção, manutenção,

desenvolvimento e consumo da cultura da memória. A nova mídia tem sim, também,

impactos consideráveis sobre a articulação da temporalidade. A tecnologia se desenvolve cada

vez mais rápido e as inovações técnicas, culturais e científicas, por vezes, já nascem

defasadas. O tempo, hoje, corre muito rápido. O presente se torna passado cada vez mais

rápido. Vivemos, como lembra Nora (1984), uma ―aceleração da história‖.

Experimentamos hoje uma ―lenta, mas palpável transformação da temporalidade nas

nossas vidas, provocada pela complexa interseção de mudança tecnológica, mídia de massa e

novos padrões de consumo, trabalho e mobilidade global‖ (HUYSSEN, 2000, p.25). Barbosa

e Ribeiro (2005, p. 4) acreditam que esse crescimento e estabelecimento de uma cultura da

memória têm relações com ―uma tentativa de compensar o ritmo acelerado das informações,

de resistir à dissolução do tempo, de descobrir outras formas de contemplação para além da

informação rápida. Trata-se de afirmar territórios em um mundo marcado pela fragmentação‖.

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Lembrar pode trazer uma sensação de segurança, permanência, algo sólido, definido,

no qual podemos nos apoiar diante de um presente e futuro incertos, marcados pela rápida

mudança de tudo. Ora, um mundo em crescente e permanente mobilidade e transformação é

um mundo inseguro. Melman (2008) observa que nos tem faltado o que até então constituiu

nossa organização, psíquica tanto quanto social: a referência à norma, que Freud organizou

numa relação privilegiada com a figura paterna. Identificando como um sintoma moderno a

denúncia suspeitosa de qualquer imagem paterna que sirva de suporte à autoridade,

entendendo a referência paterna não mais como um organizador psíquico, mas como uma

suprema violência, o homem contemporâneo encontra-se em um individualismo do ―cada um

por si‖, que floresce diante de referências pulverizadas e de interesses de que não haja mais

limites que venham se impor às nossas exigências de satisfações. O homem tem assim afetado

o cerne do processo de sua constituição enquanto sujeito e encontra-se, como disse Ehrenberg

(1998), curvado sob o peso dessa liberdade.

A memória seria, então, um terreno sólido contra a pulverização e a fugacidade da

contemporaneidade. Lembrar ajudaria a se identificar, a fazer parte de algo, a ter uma

referência que, desde que bem arquivada, não se perderá nas mudanças nos dias de hoje. Tudo

é muito fugidio, a lembrança não, é algo que se pode ter, que não se dissolve no ar, ―voltamos

para a memória em busca de conforto‖ (HUYSSEN, 2000, p. 32).

Daí um desejo de lembrar o passado que parece ser um fenômeno mundial, embora

com uma conotação claramente regional, local. Afinal, lembra Pollak (1992), memória e

identidade estão em íntima relação, ―a memória é um elemento constituinte do sentimento de

identidade (...) sentimento de continuidade e de coerência‖ (POLLAK, 1992, p. 204).

Nora (1984) observa que, uma vez que a memória não é mais espontânea e que há um

interesse social em preservá-la, precisamos criar lugares de memória, manter arquivos,

organizar celebrações, caso contrário, sem essa vigilância permanente das comemorações,

essas lembranças seriam esquecidas. Precisamos dos lugares de memória para poder lembrar

as memórias que foram privilegiadas como importantes e que não podem ser esquecidas com

o desenvolver da história. Podemos pensar o lugar de memória como uma tentativa de

materialização da reminiscência.

Desse modo, em nossa contemporaneidade, a memória ajudaria a responder quem

somos nós num universo permeado por múltiplos chamados culturais, onde as referências

podem ser fluidas e passageiras, num tempo que passa cada vez mais rápido. No esforço de

rememoração, no intenso movimento de reencontrar-se com o passado há a tentativa do

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sujeito de encontrar-se, ou ainda reencontrar-se, com essa verdade, tomando-a, erroneamente,

como uma essência, ou uma palavra última, que lhe dissesse quem é.

Naturalmente, a memória e a identidade podem ser negociadas. Pollak afirma que ―a

memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e

particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos‖ (1992, p. 205). É como

também lembra Huyssen, ―a memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e

passível de esquecimento; em suma, ela é humana e social‖ (2000, p. 37). Mas não só isso.

Como vimos, quando se trata do ser de linguagem que é o homem, não recordamos uma

lembrança como uma reminiscência em-si, idêntica a si mesma, nem mesmo uma palavra

repetida é a mesma quando se trata do ser humano. Desse modo damos especial peso e

precisão à palavra ―humana‖ da citação de Huyssen.

Para Nora (1993), um suporte, material ou imaterial, só pode ser considerado ―lugar de

memória‖, a partir do momento que representa algo da memória coletiva, tendo aí tanto um

retorno reflexivo da história sobre si mesmo quanto um viver sob o olhar de uma história

reconstituída. Assim, é possível pensar o documentário como um possível reprodutor da

memória social, com as implicações apontadas por Nora, mas também como o ato de um

sujeito de linguagem, um ato que ao tentar fazer uma lembrança constrói outra coisa, e

constrói novamente sem cessar a cada vez que se retornar a ele.

Os documentários ―Bandeiras Verdes‖ e ―Tambor de Crioula‖ são lugares de

memória, arquivam, documentam aquilo que é história, mas ainda é memória que necessita do

arquivo para manter-se vivo, é memória pois comemora, celebra, sacraliza. Mas os filmes

―Fronteiras de Imagens‖ e ―Afinado a fogo‖ também são lugares de memória, e há ai um fato

novo. Trata-se do objeto da história ser a própria história. Toda história analisa o vivido, que é

seu objeto de questionamento, mas, como diz Nora,

a história da história não pode ser uma operação inocente. Ela traduz a subversão

interior de uma história-memória por uma história-crítica (...). Mas alguma coisa

fundamental se inicia quando a história começa a fazer sua própria história. O

nascimento de uma preocupação historiográfica, é a história que se empenha em

emboscar em si mesmo o que não é Ela própria, descobrindo-se como vítima da

memória e fazendo um esforço para se livrar dela (1993, p. 10).

Considerações Finais

Esse fato novo, encontramos também ao pensarmos o ato de Murilo de retorno e

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debruçamento sobre seu próprio ato, um empenho em emboscar em si mesmo o que não é ele

próprio e, por consequência, cercar o que é.

Pontuamos que a repetição enquanto reprodução do mesmo está para a natureza como

estaria para uma ciência que objetiva que um mesmo estímulo possa levar a uma mesma

resposta (supondo um animal), desse modo uma repetição só possível em condições

artificiais; e mesmo assim, observa Garcia-Roza (2003), é discutível. Transpor o resultado

para o terreno humano é desconhecer que ele é impensável fora do campo do simbólico. Por

isso o autor lembra que Lacan, em algum seminário, afirma que não há behavior humano, mas

ato humano, algo indissociável da linguagem e que se constitui como sentido, ou, diríamos

ainda, radicalmente tendo sempre à espreita de si e de seus atos um não-sentido radical como

verdade. É assim que nos questionamos sobre o ato de retorno de Murilo à própria obra, a seu

próprio ato. Mas, neste ato simbólico, portanto humano, de construir e retornar ao mesmo

tempo, o que Murilo quer reencontrar? Não é só um ajuste com o passado, levantamento do

que mudou, predições que falharam, o que restou ou sucumbiu, embora sejam também

objetivos. Não só o que representa e apresenta em seu retorno, cujo resultado vemos em

―Fronteiras de Imagens‖ e ―Afinado a Fogo‖, mas o que significa o próprio retorno; o que

significa o retorno constante aos nossos arquivos.

Interrogando seu ato, retornando a ele, reencontrando-se com o passado, o sujeito

busca a resposta sobre si. A repetição, nos lembra Garcia-Roza (2003), é constituinte do

sexual, assim repetimos indefinidamente nosso primeiro encontro amoroso, nosso primeiro

romance familiar (FREUD, 1908/1909/ 1996). Esse tempo do infantil que repetimos sem

cessar não é um tempo passado como também não é uma repetição do mesmo. Contudo,

apesar de instaurar uma experiência diferencial (que escapa ao presente texto debater), esse

primeiro encontro amoroso está numa séria de outros encontros anteriores. Não há um

elemento primeiro, um elemento em-si que fosse a referência absoluta e a verdade sob todas

essas repetições, não há uma resposta última que diga desse sujeito. Dito de outro modo, se

para a psicanálise o desejo é a própria busca sem fim de um objeto nunca encontrado e se o

desejo se constitui na alteridade, quando o sujeito se vê diante da grande questão ―o que este

outro13

quer?‖ para, a partir da pergunta, erigir-se como sujeito, sujeito de desejo, o fato é que

13

Aqui se refere mais especificamente ao conceito de Outro da teoria lacaniana e à grande questão lançada a esse

Outro, contudo tal especificidade escapa aos objetivos do presente texto, bastando, para tanto, a ideia veiculada.

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ele não encontra a resposta. A pergunta não existe, mas não cessamos de perguntar, e este

objeto é faltoso desde sempre, mas não cessamos de procurar.

Referências Bibliográficas

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HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro:

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LACAN, Jacques. ―Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise‖. In: LACAN, Jacques.

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SANTOS, Murilo. Tambor de Crioula. 1979.

SANTOS, Murilo. Afinado a fogo: o Tambor de Crioula revisitado. 2009.

SANTOS, Murilo. Fronteiras de imagens. 2010.

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O filme Clube da Luta: Leituras Psicanalíticas Possíveis

Miriam Chnaiderman14

Resumo

Duas abordagens possíveis de análise do filme ―Clube da Luta‖ são colocadas lado a lado. Na

primeira, de Denise Hausen, a questão da crítica social está em primeiro plano. Na outra, explicitada

em ensaio meu já publicado, a questão do masculino e do feminino norteia a abordagem do filme.

Palavras-chave: Violência, castração, psicanálise, consumo, corpo, sexualidade, feminino, masculino,

linguagem.

The movie Fight Club: Psychoanalytic possible approaches

Abstract

Two possible approaches to analyse the movie ―Fight Club‖ are placed here side by side. In one of

them, by Denise Hausen, the issue of social criticism is in the foreground. In the other one, already

explained in an essay I have published, the issue of masculine and feminine guides the approach of the

film.

Keywords: Violence, Castration, Psychoanalysis, Consumption, Body, Sexuality, Feminine,

Masculine, Language.

Introduzindo a questão

Em 2005 publiquei na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre o texto ―O

filme Clube da luta: produção ensandecida de masculinidades‖15

. O texto era parte de um

painel que acontecia dentro de um congresso de psicanalistas que tinha como tema

―Masculinidades‖. A partir da leitura do livro recém-lançado Cinema e Psicanálise - o

14

Miriam Chnaiderman é psicanalista, documentarista e ensaísta. Psicanalista, ligada ao Departamento de

Psicanálise do Sédes Sapientiae, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, doutora em Artes pela

Escola de Comunicações e Artes da USP. Ensaísta, vem publicando em vários jornais e revistas artigos sobre

psicanálise, cinema e teatro. Tem dois livros publicados sobre a relação entre arte e psicanálise: O hiato convexo:

literatura e psicanálise (Brasiliense) e Ensaios de Psicanálise e Semiótica (Escuta). Vem participando de debates,

mesas redonda, conferências para profissionais de artes,e psicanálise nas mais diversas instituições e nos mais

diferentes eventos, pelo Brasil todo. É diretora dos curtas documentário: Dizem que sou louco (1994), Artesãos

da Morte (2001), Gilete Azul (2003), Isso, aquilo e aquilo outro (2004), Você faz a diferença (2005) , Passeios

no Recanto Silvestre (2006), Afirmando a vida (2009), Mboi Mirim, Dos ïndios, das Águas, dos Sonhos (2009).

Realizou os médias-metragens, Procura-se Janaína (2007) e Sobreviventes (2008).

15

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n° 28 – Abril – 2005.

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conceito de Castração em transversal de Denise Costa Hausen16

e da análise que faz do

mesmo filme, resolvi voltar ao meu texto para indagar de que forma a psicanálise pode operar

na análise fílmica conduzindo por caminhos tão distintos a conclusões tão diversas. Diversas e

não necessariamente divergentes. Mas, tomar as duas análises, do mesmo filme, pode nos

mostrar formas distintas de utilizar o instrumental psicanalítico.

Sobre o livro Cinema e Psicanálise – o conceito de castração em transversal, seus

pressupostos na abordagem do filme O Clube da Luta

Denise Hausen escolhe trabalhar três filmes: O clamor do sexo, de Elia Kazan, de

1961, Império dos sentidos, de Nagisa Oshima, de 1976, e Clube da luta, de David Fincher,

de 1999. A autora justifica a escolha desses três filmes: ―tiveram força de ruptura no trato da

questão da sexualidade, foram propulsores dessas mesmas mudanças e também puderam se

realizar, pela sensibilidade de seus diretores, no sentido da antecipação, pela imagem, de algo

que estava posto no imaginário social‖. Para pensar a sexualidade através desses nossos dois

séculos, Denise se detém no conceito de castração, central na construção freudiana. Todo

percurso de Freud é percorrido, a autora passeando com desenvoltura pelos textos fundadores

– Três ensaios sobre a sexualide (1905) e As teorias sexuais das crianças (1908).Não é meu

propósito aqui discutir a centralidade do conceito de castração na psicanálise tanto freudiana

quanto pós-freudiana, nem abordar as várias possibilidades de leitura desse conceito. Aliás,

Renata Cromberg, no ―Prefácio‖ ao livro faz isso brilhantemente.

Meu foco aqui é refletir sobre de que forma o cinema é trabalhado quando o foco é um

conceito psicanalítico. É visando estudar fatos da cultura que Denise vai se deter no cinema.

Afirma: ―O cinema, tomado como um produto e um produtor do imaginário coletivo, se

oferece como uma alternativa de estudo dos fatos culturais, viabilizando, portanto, ser usado

como objeto de conhecimento.‖ E explicita sua meta: ―Através de sua forma, como do seu

conteúdo, permitiu revelar e informar sobre o conceito de castração‖.

Aqui Denise deixa claro que vai aos filmes tendo um foco ou uma questão: quer ver de

que forma a sexualidade de cada contexto se faz presente nos filmes sendo a castração o

conceito freudiano que a noteia em sua abordagem. Não ignora a existência de outras

abordagens, sendo que inclusive as enumera, indagando-se sobre o conceito de linguagem.

16

Denise Hausen, Cinema e psicanálise - o conceito de castração em transversal. Porto Alegre, Editora

Movimento, 2012.

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Denise assume que escolhe o cinema como ―pano de fundo habilitado a descortinar

desdobramentos com relação à sexualidade e, portanto à castração‖. Toma o cinema como

―ferramenta de pesquisa outorgando a ela o lugar de poder expressar mudanças ocorridas nos

modos de viver a vida‖.

Sobre meu trabalho com o cinema e o que me norteou na análise de Clube da Luta

Nunca tenho uma questão em mente quando assisto a um filme. Tenho um prazer

enorme de ir sendo conduzida, sem mais. Um delicioso mergulho. Em geral são os filmes que

me colocam as questões, conceituais ou não. Discuto muito, em vários textos meus, o perigo

de utilizar um filme para ilustrar os conceitos psicanalíticos. Não é o que Denise Hausen faz,

pois seu objetivo é utilizar os filmes para refletir sobre fatos da cultura, sobre a sexualidade

em diferentes momentos da nossa história . Seu referencial é psicanalítico, portanto, busca ver

de que maneira os filmes explicitam conceitos tais como o ―complexo de castração‖ para

poder pensar a sexualidade no mundo.

Em relação ao Clube da luta, encontrei-me em situação próxima àquela que Denise

Hausen explicitou: embora seja eu que tenha escolhido trabalhar esse filme, a demanda que

me foi feita era de uma fala dentro de um evento que queria refletir sobre a questão da

masculinidade. Pediam-me também que falasse algo ligado ao cinema, sugeriam que eu

escolhesse um filme. Passei alguns dias pensando e logo me veio à mente o Clube da luta. Eu

não tinha muito claro por quê, embora, de imediato, esse fosse um filme ―de homens‖. Um

filme masculino?

Sempre me coloquei se existiria, por exemplo, uma escrita feminina. Ou se existiria

uma diferença no cinema feito por mulheres. Foi lendo Clarisse Lispector que pude aceitar

que algo do corpo determina sobre nossa escrita. No cinema também. Mas, não sei se o

cinema que ―sentimos‖ como masculino é sempre feito por homens. E há lindos filmes

femininos feitos por homens. A feminilidade ou masculinidade não estão ligados ao

anatômico.

Foi mergulhando no filme Clube da Luta e indo às questões psicanalíticas que ele me

suscitou que tentei me debruçar sobre o masculino (e o feminino, é claro). Sempre que analiso

um filme fico com a sensação que as questões psicanalíticas brotam dele e não de mim ou de

um questionamento teórico. Tanto que, muitas vezes, os filmes questionam a própria teoria.

Penso ser esse o caso de Clube da luta.

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A construção das análises fílmicas

Em todo seu livro, na análise que Desise Hausen faz dos três filmes, há sempre a

contextualização do campo onde surge cada uma das produções: dá sempre uma breve

biografia dos diretores e atores, situa a crítica de cada momento dos lançamentos ou

relançamentos. E isso é sempre muito útil e curioso. Depois, conta do enredo para então

iniciar sua análise.

No capítulo dedicado ao Clube da Luta há o item ―Reportagens, cartazes de divulgação e

crítica cinematográfica acerca do filme‖. Nesse item, a questão de se o filme incitaria ou não à

violência fica em primeiro plano.

Realmente, o primeiro item de meu artigo já publicado é: ―O filme Clube da Luta

estimularia a violência?‖

Denise Hausen faz um interessante levantamento do que foi dito sobre o filme desde o

seu lançamento, contando que seu produtor, Tom Sherak, teria dito para a imprensa: ―vocês

vão adorar esse filme. Ele é diferente...‖. Na estreia na França o Le monde publicou uma

entrevista com o diretor, Fincher, onde ele contesta o pressuposto de risco com relação a

filmes violentos. No Brasil ele foi liberado para maiores de 12 anos. Nos Estados Unidos,

menores de 18 anos deveriam estar acompanhados. Foi censurado no Reino Unido, teve cenas

de violência suprimidas.

Segundo Denise Hausen ―a imprensa escrita polarizou-se entre considerá-lo um filme

violento ou esperançoso‖. Conta que a produtora exigiu, no Reino Unido, que fosse publicada

uma entrevista com os dois atores principais, Brad Pitt e Edward Norton, onde afirmam a

―impropriedade de considerá-lo como um filme pernicioso ou gratuito em sua violência‖.

Depois do 56° Festival de Veneza, a imprensa o considerou um filme anti-Deus. O autor do

livro no qual o filme se baseou, Palahniuk comentou: ―acho que você pode retratar essas

coisas, rir delas e, assim, tira o poder delas. Daí as pessoas vão desistir de fazer isso‖. A

seguir, Denise Hausen conta o episódio que ocorreu no Morumbi Shopping, durante a

exibição do filme em novembro de 1999. É com esse episódio que inicio meu artigo, no

trecho que, passo agora a reproduzir.

Assim me referia ao episódio do shopping Morumbi: ―O filme O Clube da Luta,

exibido no Brasil no segundo semestre de 1999, ficou ligado a um antes anônimo estudante de

medicina, Mateus Rocha Meira: durante uma sessão, em pleno Shopping Morumbi, depois de

dar um tiro no espelho, na sua própria imagem refletida, o jovem dirigiu-se à sala de projeção

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e, com a metralhadora semi-automática, adquirida no decorrer daquele mesmo dia, disparou

contra a platéia e matou três pessoas. A matança aconteceu durante as cenas de luta.

Também nos Estados Unidos um jovem de 16 anos foi violentamente espancado numa

briga em Seattle, quando do lançamento do filme. Os pais do adolescente ferido disseram que

os jovens agressores ―estavam lutando como no filme‖, conforme reportagem publicada no Le

monde.

A seguir, eu polemizava com as posições que abominavam o filme, e, principalmente

com Contardo Calligaris:

Contardo Calligaris, no ensaio ―Virilidade em crise‖17

assim escreve:

―Na semana passada, nos EUA, estreou ‗Clube da Luta‘, filme

dirigido por David Fincher, com Brad Pitt e Edward Norton...(...) o

que ficará desse filme no sonho dos espectadores eventualmente

seduzidos, será a seguinte mensagem: para não se perder no

consumismo ornamental que nos aliena, os homens devem se reunir

entre eles, encher a cara reciprocamente de porradas e, enfim, salpicar

a cidade de bombas. Se há um filme que merece ser classificado de

pornográfico, é esse.

Continua Contardo: ―Infelizmente, contrariamente a Thelma e

Louise, Norton e Pitt não se jogam em nenhum abismo. Ao

contrário, eles fundam um grupinho que tem toda a cara de um

partido fascista".

Segundo Contardo, criticar o equivocado ideal masculino da

propaganda Calvin Klein (Contardo está se referindo ao livro de

Susan Faludi, jornalista feminista) poderia levar a aprovar uma

boa homossexualidade reprimida de grupo. Contardo afirma

preferir "qualquer Parada Gay ou qualquer desfile de moda-

homem à marcha alinhada de enrustidos da SS"

(CHNAIDERMAN, 2005).

Eu, a partir de pesquisa que havia feito para um documentário sobre a violência, havia

tentado um contato com Mateus da Rocha Meira. Assim prosseguia meu artigo:

Mateus da Rocha Meira foi preso e, em 2004 foi responsabilizado por

seus atos, considerado não-psicótico, ou seja, sem direito a qualquer

tratamento especial. Quando tentei entrevistar Mateus para um

documentário que estava buscando fazer, sobre a violência, ele ainda

estava sendo julgado. Negou-se a conceder a entrevista pois o

jornalista Roberto Cabrine havia traído sua confiança e levado ao ar

trechos que ele pedira que não aparecessem. Soube então que Mateus

não se dá com ninguém, arruma briga por todos os lugares de

carceragem pelos quais tem passado e que, assistindo à entrevista na

17

Contardo Calligaris, ―Virilidade em crise‖, in jornal Folha de S.Paulo, 28-10-1999.

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televisão, arrebentou o aparelho. Tudo leva a pensar em paranóia e

todos sabemos das relações entre paranóia e homossexualismo.

Contardo teria razão, então? Logo que soube que Mateus Meira

fora considerado não psicótico, pensei que o júri deveria ter

assistido ao filme Clube da Luta. Basta assistir ao filme para

perceber a fragmentação dolorosa de Mateus e a confusão total

em que devia estar imerso, invadido por vozes e visões

(CHNAIDERMAN, 2005).

Eu continuava o artigo polemizando ou concordando com outras leituras. Assim, no

segundo item, ―Outras leituras‖, referia-me a Jorge Coli que, contrariamente a Contardo

Caligaris, afirmou que ―o filme de Fincher é ‗diabolicamente inventivo‘ pois é uma história

regressiva de homens-meninos, bonzinhos e inconformados, física ou socialmente

emasculados, sentindo a necessidade imperiosa de se reencontrarem num mundo próprio,

onde uma ‗saudável violência‘, sangrenta e regeneradora é o núcleo18

‖.

Continuava citando o ensaio de Paulo Jorge Ribeiro, "A era da frustração: melancolia, contra-

utopia e violência em Clube da Luta19

". Citando meu artigo: ―Para o autor, o que se revela, na

visão de Contardo e de Jorge Colli, é a percepção de uma imagem traumática fornecida por

Clube da Luta, ‗na qual coexiste o mito da indignação (ética) e a sedução da violência e da

câmera‘. Lembra Cães de Aluguel de Tarantino‖. Paulo J. Ribeiro pensa que o Clube da Luta

não é um culto à violência. Afirma:

"De todo modo, este universo em chamas não deixaria também de conter, como sua

tarefa, refletir sobre os possíveis limites na representação da perversidade. Limites

externos - a questão da censura, a existência ou não de temas proibidos às artes, os

prejuízos que essa exposição pode ocasionar - e internos - o fracasso de vários

discursos em dramatizar o fenômeno da gratuidade do mal, em transformar o

Inominável em matéria de reflexão comunicável, o desafio à tendência teleológica

de certas narrativas que vêem na obrigação de apresentar uma justificativa final -

assimilável e indubitável - para as metódicas carnificinas perpetradas por seus

personagens" (RIBEIRO, 2002).

Abordagens possíveis

Para Denise Hausen, o que norteia a construção do filme é ―a denúncia de uma

sociedade que esvazia o homem‖. Afirma que os personagens são ―viciados em violência

como forma de dar conta de uma angústia sem nome‖. Será que aqui não há uma busca de

18

J. Colli, ―Punhos‖ in ―Caderno ‗Mais‘‖ do jornal Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 1999. 19

Trabalho apresentado na IV Reunião de Antropologia do Mercosul, em Curitiba, no Fórum de Pesquisa

"Estudos recentes sobre arte, cultura e sociedade".

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razão para a violência, quando o filme irrompe em um não-sentido total para o que vai se

passando? A luta seria luta ―ferramenta de resistência a uma sociedade que gera nas pessoas o

despojamento da responsabilidade pela própria vida, da própria angústia do viver, organizada

em torno de pressupostos do consumo que obrigam os indivíduos à aquisição de objetos

talvez inúteis...‖ O filme mostraria então a ausência de qualquer limite e a ausência da

castração. Haveria uma identificação com a imposição social, a luta seria uma forma de

submeter em vez de ser submetido. Os corpos sangram ―na impossibilidade de

reconhecimento de um limite simbólico‖.

Na análise de Denise Hausen, no filme, o ato se encarrega de executar o que seria

função da palavra. Haveria uma impossibilidade de abdicar do mundo das sensações do

corpo.

É interessante pensar que, na abordagem que fiz, também parto da questão da

impossibilidade de simbolização. Faço toda uma reflexão sobre o não-lugar que o feminino

vem ocupando na teoria psicanalítica para tomar o filme como uma importante reflexão sobre

o também não-lugar do masculino.

Afirmava eu no terceiro subtítulo ―O enigmático na masculinidade‖:

―O filme Clube da Luta interroga até o limite exatamente a masculinidade. Em nosso mundo

contemporâneo, sem dúvida. Mas também questiona radicalmente o como a psicanálise vem

pensando o masculino‖. Eu partia da constatação do quanto a psicanálise vem deixando o

enigmático apenas do lado do feminino e citava Marie Claire Booms, no ensaio "Da sedução

entre os homens e as mulheres: uma abordagem lacaniana"20

onde mostra como nossa cultura

vem colocando a mulher fora da possibilidade do simbólico. Afirma Marie Claire Booms:

... pois numa sociedade que se funda sobre a rejeição para fora do simbólico do

feminino não há significante de A mulher. Há apenas o significante fálico e sua

função para significar a diferença, dividindo a humanidade falante em metade

masculina e metade feminina, segundo a maneira como cada sujeito se inscreveu

em relação à castração que esta função designa (BOOMS, 1987).

A metade masculina tem o acesso ao simbólico bem garantida. Na outra metade, a

nomeada como feminina, haveria um gozo que escaparia à castração, sendo então portadora

de um segredo sempre inviolado. Nessa metade, o acesso ao simbólico ―permanece

problemático‖. É interessante notar que os termos psicanalíticos que Marie Claire Booms usa

20

M.C. Booms, "Da sedução entre os homens e as mulheres: uma abordagem lacaniana" in Homem mulher,

abordagens sociais e psicanalíticas, org. Carmen Da Poian; R.J.: Livraria Taurus Editora.

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para se referir ao feminino são aqueles que Denise Hausen usa para se referir ao filme Clube

da Luta.

O que eu propunha era, citando meu ensaio, que ―o Clube da Luta inverte a lógica

baseada no falo e recoloca o enigmático do lado do masculino. Daí sua importância. Não por

acaso, em um dos vários grandes momentos do filme, Marla, único personagem feminino,

competindo com o personagem em relação aos grupos de ajuda que cada um deveria

frequentar, afirma sobre os homens portadores de câncer nos testículos: "Eu é que deveria ir a

esse grupo. Você ainda tem as suas bolas..."

Eu refletia então: ―Se o Real, tal como pensado por Lacan, é o verdadeiro contrário da

realidade, não há um significante que dê conta seja de ―O‖ homem seja de ―A‖ mulher‖.

Analisando a mesma cena

Transcrevo aqui de que maneira Denise Hausen nos conta sobre o início do filme:

O filme abre, desde o início, se mostrando como um filme caracterizado pela

velocidade. A velocidade com que inicia sua apresentação, os efeitos especiais são

paradigmáticos dos anos 90. Uma série de fotos mostra uma sequência que tem

início em um close up de uma sinapse. A partir daí, a ―câmera se afasta‖,

mostrando o neurônio, a substância cinzenta, o crânio, a pele e termina em uma

tomada de Jack pensando se deve disparar uma arma ou não. Arma na boca

simulando um felatio. A cena expõe dois homens (HAUSEN, 2012).

No quarto item de meu ensaio, ―O filme - Quem é quem‖, assim descrevo o início do

filme:

As primeiras tomadas de o Clube da Luta são imagens de entranhas -

entranhas/teias. Os primeiros ruídos são orgânicos, barulhos de vísceras. Um corpo

- nem feminino nem masculino. A câmera penetra e se afasta, a cópula no

movimento da câmera.

Vai surgindo uma epiderme, invólucro pele, gotas de suor, a câmera se fixa em

dois globos oculares - o olho de Bataille, aquele que, se revirado, cega.

Surge a imagem de um revólver enfiado em uma boca. E uma voz em off: ―"Com

uma arma na boca, você fala apenas em vogais‖. Um homem ameaçado de morte

só fala vogais, é um homem feminilizado - a vogal tem a ver com o feminino, as

consoantes cortantes lembram o masculino (CHNAIDERMAN, 2005)..

É interessante observar o quanto a problemática que suscita a análise do filme vai

determinando o olhar. Para Denise, o revólver na boca é um felatio. Para mim, aponta para a

feminilização do homem.

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Assim continuo minha análise:

O momento inicial do filme, o personagem principal, que dá o foco ao filme (ele

não tem nome ou é chamado por diferentes nomes no decorrer do filme - pois

somos todos nós...) ameaçado de morte fala em off: "Sempre me pergunto se

conheço Tyler Durden". Quem é quem? Em um determinado momento escutamos:

"Sou o fígado de Jack. Sou o ódio de Jack". No momento inicial Tyler tira a arma

da boca de seu parceiro e afirma: "Está ficando excitante". A única excitação

possível é a da proximidade da morte e a busca da morte ou a vida por um fio

permeia o filme todo. Trata-se da busca exasperada de uma linguagem que dê conta

do inomeável do êxtase e da dor, busca tão característica dos místicos. São João da

Cruz afirmava: ―Que mais queres, ó alma, e que mais buscas fora de ti, se tens

dentro de ti tuas riquezas, teus deleites, tua satisfação, tua fartura e teu reino, que é

teu Amado a quem procuras e desejas (...) não vás busca-lo fora de ti, porque te

distrairás....‖ ―A causa é estar ele escondido e não te esconderes também para

acha-lo e senti-lo‖21

. O Clube da Luta é montado para que todos possam encontrar

esse amado inomeável – e o encontro tem que ser clandestino, escondido. Na

pertinência à seita, os seguidores passam a olhar o mundo de outro jeito. Os meros

mortais não têm acesso a esse saber do inomeável (CHNAIDERMAN, 2005).

Denise Hausen afirma: ―Na fita, o corpo dos personagens precisa ser batido,

deformando, mostrado com cicatrizes (...) Teatro do psíquico, o corpo precisa ser destruído

para aludir a um sistema social: ‗me dê um soco bem no meio da cara‘, ordena Tyler ao

narrador‖.

Eu, em meu ensaio, buscando a partir do filme colocar questões da possibilidade da

linguagem associadas ao feminino e/ou masculino e Denise Hausen buscando os sintomas do

laço social na construção da sexualidade.

Não que eu abandone a questão do contemporâneo. Cito, logo após o início do filme, a

afirmação em off: "Estamos na primeira fila neste teatro de destruição em massa". Afirmo

então:

a referência, a nós, espectadores, é clara - nós que, em nosso dia a dia e na tela do

cinema e da televisão assistimos, de camarote, a destruição em massa. Zizek

mostrou como no dia 11 de setembro, na destruição do World Trade Center, ficou

evidenciado como a realidade é a melhor aparência de si mesma22

. Zizek faz essa

afirmação para pensar mega-eventos televisionáveis, como a destruição das torres

em Nova Iorque. Mas, podemos pensar essa afirmação também a nível molecular.

Se a realidade é sempre semblante, temos que repensar o masculino

(CHNAIDERMAN, 2005).

21

São João da Cruz (1542-1591) – Canções de amor entre a alma e Deus. 22

Zizek, Slavoy, Bem-vindo ao deserto do real. SP; Editora Boitempo, 2003.

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Mas, a citação de Zizek vem apenas para problematizar formas da psicanálise pensar o

feminino e o masculino. Citando:

A confusão entre pênis e falo tem colocado o masculino como mais capaz de

simbolização. O falo (pênis?) seria a possibilidade de diferença e constituição da

linguagem. Marie Claire Booms, citada acima, já criticara essa confusão de

conceitos. A partir de Zizek podemos afirmar que a realidade do masculino o torna

puro semblante, ilusão de um simbólico que se esvai e por isso leva a um mergulho

no Real (ZIZEK, 2003).

A questão do consumo e da imagem também é presente na reflexão de Denise Hausen,

quando cita Dantas e Tobler, que falam de indivíduos que se deixam apreender pela

manipulação do imaginário social. Eu cito Zizek: "Na sociedade consumista do capitalismo

recente, a 'vida social real' adquire, de certa forma, as características de uma farsa

representada, em que nossos vizinhos se comportam 'na vida real' como atores no palco..‖

Cito então Badiou para quem a paixão pelo Real, característica do sec. XX, culminaria no seu

oposto aparente – o espetáculo teatral: "Estamos na primeira fila neste teatro de destruição em

massa". Afirmo: ―Se a paixão pelo Real termina no puro semblante do espetacular efeito do

Real, então, em exata inversão, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta

violenta à paixão pelo Real‖.

A paixão pelo Real

Para mim o tema do filme Clube da Luta tem como tema a paixão pelo Real . É um

filme que aparentemente exemplificaria a paixão pelo Real. E aí, sim, cairíamos na pura

pornografia de que nos fala Calligaris. A imagem obscena é um conceito que nos vem de

Andre Bazin - é o termo que cunhou para exprimir o que sentia quando ia todas as tardes ao

cinema para ver a morte de um toureiro. A morte é única e sua repetição obscena. A paixão

pelo Real só poderia levar à obscenidade. Mas, é essa paixão pelo Real que é questionada.

Quando Denise Hausen fala da ausência de palavra também está fazendo referência ao

inomeável, ao Real. Afirma: ―O filme é fundado de tal forma que as palavras não sejam ditas

e que o corpo não seja destruído...‖.

Tyler pede que todos se livrem do mundo das aparências e quando organiza um

exército destruidor afirma que está prestando um grande serviço à humanidade. Sua missão é

libertadora - quer libertar o homem do mundo das aparências. Como São João da Cruz.

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A violência como possibilidade de redenção ou como negação do limite

Assim continuo a análise que faço do filme:

Depois da cena em que o revólver está enfiado na boca do ator, ficamos sabendo,

enquanto a câmera se move por subsolos de prédios, que dois edifícios vão

explodir, foram colocados explosivos em suas fundações. Ouvimos a voz em off:

―Em dois minutos uma cadeia de explosivos vai se iniciar e alguns blocos serão

reduzidos a uma pilha de entulho". ―Depois ficamos sabendo que são os prédios

centrais dos Cartões de Crédito e que os homens serão libertos de suas dívidas com

o capitalismo. Surge então a violência como possibilidade de redenção do mundo

(CHNAIDERMAN, 2005).

Para Denise Hausen, ―atrelada à idéia de uma cultura do consumo vem a da cultura da

imagem...‖ Faz uma crítica do discurso publicitário onde ―a castração como normatizadora da

interdição do gozo se esvai uma vez que o postulado é o dever do gozo suplantar a tudo, até

mesmo o princípio da realidade que advoga que nada se alcança sem que se processe um

trabalho físico ou mental‖. No filme de Fincher, para Denise Hausen, a luta é a única forma

de resistência, sendo o ato a única possibilidade de subjetivação. Ou de não subjetivação,

busca da pura descarga.

Denise Hausen toma como tema norteador de sua análise a frase de um dos

protagonistas: ―somos filhos de uma geração criada por mulheres‖ para afirmar uma ausência

do Pai na sociedade contemporânea. Cita Fantimi no artigo ―Violência e imagens do pai no

cinema contemporâneo‖, onde mostra em o Clube da luta o quanto o pai não é reconhecido

como pai simbólico, aquele que realiza a função castradora.

O fato de o personagem buscar grupos de ajuda apenas atesta a falência da função

paterna: é um médico que em vez de medicar a insônia de Jack o aconselha a procurar grupos

de pessoas que sofrem. Ou seja, o médico não assume a função paterna. Afirma Denise: ―O

médico, por presunção podendo exercer o lugar de função paterna, daquele que cuida, o

remete para o grupo dos que representam a falência‖.

Assim me refiro aos grupos de ajuda: ―Na construção do roteiro, vamos,

paulatinamente, conhecendo nosso personagem e podendo entender o que o leva a procurar

tais grupos de ajuda. A compreensão é sempre a-posteriori: primeiramente surge uma

situação que nos estranha e depois a trama que dá algum sentido ao que estamos assistindo‖.

Relato como surgem os grupos de ajuda:

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―O personagem é apresentado no trabalho. E, ainda depois, em

sua casa bem montada,"escravo do consumismo". Em off, a

pergunta: "Que tipo de porcelana me define como pessoa?" Há

uma clara referência à porcelana azul de Oscar Wilde, escritor

que assumiu seus conflitos com a masculinidade, tanto em obra

quanto na vida. Ficamos sabendo que o personagem sofria de

terríveis insônias. Procurara um médico que lhe aconselhara

exercícios de relaxamento, e ele, desesperado, lhe implora algo

que o alivie, pois está sofrendo. O médico aconselha que entre

em contato com o sofrimento, indo ver o grupo de homens com

câncer nos testículos‖ (CHNAIDERMAN, 2005).

Denise Hausen afirma que ―a insônia é o início da produção fílmica‖. Recorre a todo

um pensamento psicanalítico que vê na insônia uma das ―primeiras alterações manifestadas

pelos bebês, denunciadora de uma indiferenciação dos corpos, num pressuposto de fusão

vivenciada pelas mães que não identificam, atropelam ou ignoram os sinais expressivos da

necessidade ou vontade peculiar do bebê‖. O filme denunciaria um mundo fusional, sem

distinção entre sujeito e objeto.

Vou refletindo, em meu ensaio, que ―nosso personagem se vicia nesses grupos de

ajuda e a partir daí sua insônia desaparece: alcóolicos anônimos, positividade positiva,

tuberculose, livre e limpo, todos os cânceres possíveis. Há uma busca identificatória

exasperada, onde a perda como marca, traço unário, é vivida no concreto do real do corpo‖.

Concluo: ―A ironia, tão clara na caricatura desses grupos, marca um mundo contemporâneo

onde os modelos ideais se perderam, onde não há mais heróis‖. Prossigo: ―Nesses grupos

conhece Marla, que tem o mesmo vício: não consegue viver sem freqüentar os grupos de

ajuda. Marla entra na sala do câncer dos testículos perguntando: ‗Aqui é câncer, certo?‘"

Em off, a voz: "Ela é uma mentirosa, não tinha câncer nenhum!" "Marla, a grande

turista. Sua mentira refletia a minha!"

Conclusões possíveis

Em meu texto afirmo: ―A questão da morte é tema do filme. Morte tem tanto a ver

com a possibilidade da linguagem - a linguagem só pode acontecer na ausência do objeto -

quanto com os limites da linguagem‖. Lembro então quando ―em um grupo de autoajuda de

cancerosos, uma mulher anuncia: ‗Tenho uma boa nova: não tenho medo da morte. Só que

gostaria de uma última transa‘".

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Remeto então ao texto de Foucault onde afirma: "A palavra que demos à sexualidade é

contemporânea, no tempo e na estrutura, daquela pela qual anunciamos que Deus está

morto‖23

. Continuo: ―Falar a sexualidade tem a ver com a nomeação de um morto. No filme, a

busca desenfreada por algum Deus. Deus é Tyler, Deus é o clube da luta. Pois, o clube da

briga não era sobre palavras. Não se trata de falar e sim de brigar. A briga é o encontro

místico com Deus‖.

Interessante, tantos anos depois, ler, através do texto de Denise, que o filme, depois de

56º Festival de Veneza, foi considerado um filme anti- Deus.

As conclusões de Denise vão em outra direção. A partir do texto de Freud

Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental, fala de uma perda de contato

com a realidade em Tyler, ―sobretudo a impossibilidade de dar conta do que desagrada através

do pensamento e da palavra‖. Há um não confronto com a própria dor, os afetos indesejáveis

são dissipados. Denise afirma que há um não reconhecimento da castração e portanto uma

impossibilidade de simbolização.

Em minha conclusão lembro que

Zizek nos lembra de Ernest Jünger que, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial

já celebrava o combate corpo-a-corpo como o autêntico encontro intersubjetivo.

Tyler e o personagem fundam um clube onde o combate corpo-a-corpo propicia o

autêntico encontro inter-subjetivo.

Zizek refletiu sobre o sintoma, bastante comum em nosso mundo: a necessidade

que algumas pessoas têm de se auto-mutilar. Esses indivíduos estariam tentando

fugir não apenas da sensação de irrealidade, de virtualidade artificial do mundo em

que vivemos, mas do próprio real que explode sob a forma de alucinações

descontroladas que nos invadem quando perdemos a âncora que nos prende à

realidade (CHNAIDERMAN, 2005).

Denise também discute exatamente essas questões ao final do seu texto: ―é através do

corpo concreto que Tyler emerge, numa metáfora ao primeiro tempo do processo de

constituição psíquica em que o corpo fala direto, Tyler implora que Jack o reconheça e o faça

vivo mediante o toque violento no corpo: não quero morrer sem cicatrizes‖. Cita Lacan,

através de Nasio, que se refere ao corpo como aquele através do qual é possível dizer mais do

que se sabe sobre si mesmo.

Em meu ensaio concluo indo para o final do filme:

23

M. Foucault,―Prefácio à transgressão‖, In: Ditos & escritos III – estética: literatura e pintura, música e

cinema. RJ, Forense Universitária, 2001.

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quando o personagem atira em Tyler e é ele que sangra, ficamos sabendo que

talvez tudo que aconteceu tenha sido uma explosão do Real, bem no sentido em

que nos fala Zizek. Os dois personagens são um só e nós também nos fundimos ao

personagem. Tyler é também Fincher, o diretor do filme, que insere um pequeno

pênis no canto do quadro da cena – Tyler inseria imagens pornográficas em filmes

inocentes (CHNAIDERMAN, 2005).

A luta é então a automutilação de que nos fala Zizek, a possibilidade de ter alguma

âncora na realidade. Mas, o filme como um todo nos teria mostrado alucinações

descontroladas...

Ausência de castração ou busca exasperada de encarnar um corpo para além de uma

lógica do consumo e da pura imagem?

Concluo meu ensaio afirmando que no final ―abraçado a Marla, o personagem assiste à

destruição dos prédios que são a sede dos cartões de crédito, não é de um encontro

homem/mulher de que se trata: a mulher é o duplo do homem, e o homem o duplo da mulher

naquilo que ambos têm de inomeável e não simbolizável‖.

Afinal, assim como Denise Hausen tinha como foco a questão da sexualidade em

nosso mundo contemporâneo, eu queria desmontar um pensamento psicanalítico sobre o que

consiste o masculino e o feminino. O interessante é poder ver o quanto as duas abordagens se

complementam. E mostrar como, a partir de referenciais próximos, podemos chegar a

diferentes leituras de um mesmo filme.

Referências Bibliográficas

BOOMS, M.C. ―Da sedução entre os homens e as mulheres: uma abordagem lacaniana‖ in Homem

mulher, abordagens sociais e psicanalíticas, org. Carmen Da Poian; R.J.: Livraria Taurus Editora.

CALLIGARIS, CONTARDO. ―Virilidade em crise‖, in jornal Folha de S.Paulo, 28-10-1999.

COLLI, J. ―Punhos‖ in ―Caderno ‗Mais‘‖ do jornal Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 1999.

CHNAIDERMAN, Miriam. O filme Clube da luta: produção ensandecida de masculinidades.

In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n° 28 – Abril – 2005.

FOUCAULT, M. ―Prefácio à transgressão‖, In: Ditos & escritos III – estética: literatura e pintura,

música e cinema. RJ, Forense Universitária, 2001.

HAUSEN, Denise. Cinema e Psicanálise – o conceito de Castração em transversal. Porto Alegre,

Editora Movimento, 2012.

RIBEIRO, Paulo Jorge. A era da frustração: melancolia, contra-utopia e violência em Clube da Luta.

In: REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2002, V. 45 nº 1.

ZIZEK, Slovoy. Bem-vindo ao deserto do real. SP; Editora Boitempo, 2003.

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Freud e Méliès: cinema, sonho e psicanálise

Ronis Magdaleno Júnior24

Resumo

Cinema e Psicanálise são duas áreas que se sobrepõem em vários aspectos. Há uma coincidência, não

casual, do período em que surgem no final do século XIX. Georges Méliès e Sigmund Freud são dois

personagens intimamente relacionados à criação do Cinema e da Psicanálise, e, a partir de suas

produções, do lugar do sonho na Cultura. Procuramos fazer uma aproximação das criações destes dois

importantes personagens e apresentar suas contribuições para a Cultura.

Palavras-chave: Cinema, Georges Méliès, Psicanálise, Sigmund Freud, Sonhos.

Freud e Méliès: cinema, dream and psychoanalysis

Abstract

Cinema and psychoanalysis are two areas that overlap in several aspects. There is a coincidence, not

casual, of the period in which they appear in the late nineteenth century. Georges Méliès and Sigmund

Freud are two characters closely related to the creation of cinema and psychoanalysis, and from their

productions, of the place of the dream in culture. We seek to make an approximation of the creations

of these two important figures and present their contributions to culture.

Keywords: Cinema, Georges Méliès, Psychoanalysis, Sigmund Freud, Dreams.

A Cultura expande-se acompanhando o desenvolvimento do Homem, e, de tempos em

tempos, produz indivíduos com capacidades singulares para apreender a demanda humana em

momentos chave da História. Nesse sentido, podemos dizer que não foi por acaso que o

Cinema e a Psicanálise nasceram no mesmo momento histórico: a Europa do final do século

XIX. Nesse momento, no qual a Ciência procurava ganhar espaço sobre as crenças, sobre os

dogmas religiosos e sobre as produções humanas, tanto as externas como aquelas de foro

íntimo, surgem os Irmãos Lumière e Sigmund Freud.

O ano é 1895. Os irmãos Lumière realizam a primeira projeção pública de um filme na

história da humanidade, nos subterrâneos do Grand Cafè de Paris. Não muito longe dali, em

Viena, Sigmund Freud e seu amigo e professor Joseph Breuer lançam aquela que é a primeira

apresentação pública do trabalho psicanalítico, “Estudos sobre a Histeria”, na qual expõem

24

Psiquiatra, Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Membro de Grupo de Estudos

Psicanalíticos de Campinas, Doutor em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas, Pesquisador

Colaborador do Laboratório de Pesquisa Clínico Qualitativa da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.

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as primeiras ideias sobre o Inconsciente, a essência da nova ciência que nascia e que ganharia

o nome de Psicanálise.

Ao saber das atividades dos irmãos Lumière, Georges Méliès, uma curiosa figura e

mágico ilusionista de Paris, quis comprar um cinematógrafo para utilizá-lo em seus números

de mágica. Tal aquisição foi desestimulada pelos criadores da máquina com o argumento de

que o aparelho tinha finalidade científica e que não daria certo se tentasse usá-lo como

entretenimento. Méliès insistiu e acabou por conseguir um aparelho semelhante na Inglaterra

e, a partir dele, tornar-se o primeiro grande produtor de filmes de ficção voltados para o

entretenimento, sendo considerado hoje o pai dos efeitos especiais. Produziu durante a vida

mais de 500 filmes, sendo sua primeira produção, datada de 1896, Une partie de cartes.

Une partie de cartes (1896)

Poucos anos depois, em 1899, tanto o Cinema como a Psicanálise tinham feito

progessos importantes. Georges Méliès produz Cendrillon, a primeira produção

cinematográfica em forma de narrativa fantástica, e Sigmund Freud termina a redação daquela

que seria sua obra seminal: “A Interpretação dos Sonhos”, duas inovações que introduziam

um novo paradigma na Ciência e na Cultura, ou seja, destacar o lugar do sonho e da fantasia

entre os mais nobres anseios humanos.

Assim como os irmãos Lumière, que idealizavam o uso científico do cinematógrafo, a

intenção de Freud era desenvolver um instrumento científico para investigação dos sonhos,

para desvendar seus sentidos e para compreender o funcionamento mental normal e

patológico. “A Interpretação dos Sonhos” sempre foi considerada por ele como sua obra mais

importante, tendo mesmo chegado a afirmar que um insight como este sucede a alguém

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apenas uma vez na vida. Contam seus biógrafos que Freud guardou o livro já pronto por um

ano, para que fosse publicado apenas na virada do século, em 1900, tamanha era sua

expectativa quanto ao seu potencial transformador da Ciência e da Cultura, opinião que

manteve apesar da desilusão inicial que sofreu com a venda de apenas 351 exemplares nos

primeiros 6 anos após sua publicação.

Ainda que fortemente influenciado pelo positvismo, hegemônico da época, Freud

criou uma revolução ao introduzir no corpo teórico da Psicanálise, elementos praticamente

proscritos da chamada ciência oficial, entre eles, o sentido dos sonhos, a sexualidade, o

Inconsciente e a perversão como constitutiva do indivíduo, mesmo daqueles com os mais

altos princípios e valores morais. De algum modo, Méliès, ao trangredir a imagem e a

realidade com o recurso dos efeitos especiais que criou, também obrigou, lançando mão da

Ciência e de sua coirmã a Tecnologia, um redimensionamento do conceito de Verdade que se

apoiava nos sentidos e na razão. Isso sem falar do efeito transgressor do elemento erótico

claramente presente nas imagens criadas por ele, como no filme L'Eclipse du Soleil en Pleine

Lune, de 1907, no qual o astrônomo (representado pelo próprio Méliès) observa com um

telescópio um eclipse solar. A lua ao passar pelo sol delicia-se prazerosamente desse contato,

expressando em sua face o gozo sexual, momento em que o astrônomo, excitado com o que

vê debruça-se mais e mais da janela e acaba caindo para fora do prédio, tamanha a turbulência

emocional que as imagens vistas provocam nele. Tudo se passa numa aparente inocência, mas

tendo como pano de fundo o coito e a escopofilia, elementos constitutivos da cena primária

que introduz a criança no complicado mundo da sexualidade adulta, campo tão extensamente

explorado por Freud a partir dos ―Três Ensaios da Teoria da Sexualidade‖ (1905).

L'Eclipse du Soleil en Pleine Lune (1907)

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A perversão da realidade a partir de imagens gera um estranhamento e mesmo um

desconforto no espectador, semelhante ao incômodo provocado por Freud ao afirmar que

somos todos crianças perversas polimorfas no Inconsciente, civilizados apenas à custa da

neurose (FREUD, S., 1905). Contudo, é justamente por introduzir o estranhamento que, tanto

o Cinema como a Psicanálise, causam o fascínio que é responsável pelas suas existências

vigorosas até os dias de hoje.

Historicamente, o filme de Méliès que primeiro realiza a fusão da Ciência com o

irracional, do mesmo modo que a Psicanálise criada por Freud, é Cendrillon, de 1899, a

primeira produção em forma de narrativa fantástica que mescla elementos de irrealidade e

realidade.

Cendrillon (1899)

Nesse estilo, o fantástico e o real estão de tal maneira entrelaçados no argumento, que

se torna praticamente impossível isolar um do outro. Ray Douglas Bradbury (citado por

CERQUEIRA, D.D.P. 2005), chega mesmo a afirmar que um contador de histórias fantásticas

não pode aspirar a outra coisa que induzir no leitor a experiência da presença da irrealidade da

realidade, algo que poderíamos considerar um campo próximo ao do sonho, que é real e

fantasia ao mesmo tempo. TODOROV reforça esta ideia ao propor que o fantástico ―é a

hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, frente a um

acontecimento aparentemente sobrenatural‖ (tradução livre do autor, p. 29). Ainda que esse

autor se refira especificamente à narrativa fantástica, sua fala abarca precisamente a

experiência emocional de estranhamento que temos frente a nossos próprios sonhos, essa

hesitação que é consequência dos lugares aos quais somos lançados ao sonhar, sobretudo no

momento em que acordamos: Como é que fui sonhar isto? Em tempo, foi esta a indagação

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que levou Freud a lançar-se na exploração do sentido dos sonhos, fundamentando uma

metapsicologia que se tornou o pilar de sustentação de toda a teoria psicanalítica.

O estranhamento é a experiência emocional par excellence frente àquilo que é ao

mesmo tempo familiar e não familiar, e que constitui a essência do fantástico e dos sonhos.

Ao estudar este fenômeno, Freud (1919) lançou mão da concepção de Schelling acerca da

palavra alemã unheimlich, ou seja, ―tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas

veio à luz‖ (p.282). O que produz esse tipo de experiência é tudo aquilo que se refere a formas

superadas de pensamento, como o animismo, a onipotência do pensamento e, sobretudo, o

retorno do recalcado. Desse modo, partindo da angústia que necessariamente acompanha a

experiência do unheimlich, Freud propõe, entre os exemplos de coisas assustadoras, a

existência dessa categoria especial em que o elemento que amedronta remete a algo reprimido

que retorna. É a essa categoria de coisas assustadoras que denomina unheimlich, e que remete

a experiência emocional frente aos sonhos, ao sintoma psíquico e, porque não dizer, frente às

construções fantásticas de Méliès e seu cinema.

Na segunda metade do século XIX, os ―théâtre d'ombres‖ eram comuns e muito

apreciados em Paris, sendo os espetáculos realizados com a ajuda de silhuetas animadas por

fios, colocadas entre uma fonte luminosa e uma tela, que representavam reproduções

animadas de questões humanas. Estas apresentações colocavam em cena a relação do Homem

com sua imagem, com seu duplo, com sua sombra e com sua identidade, ou seja, com aquilo

que remetia à parte recusada deles mesmos ou àquela parte reprimida pela sociedade, sendo,

nesse sentido, os ilusionistas agentes de uma espécie de retorno do recalcado social por meio

do espetáculo popular (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984). Era

nesses mesmos lugares públicos que ocorriam os espetáculos de hipnotismo, através de

técnicas que combinavam artifícios óticos, processos mecânicos, a destreza do ilusionista e a

sugestão. Para estes ilusionistas, sugestionar era desviar a atenção, ou seja, jogar com a

diferença que existe entre a atenção fixa sobre um ponto e a atenção flutuante, sendo aquilo

que opera na sombra, na parte escondida dos olhos, o que permitia a execução do truque.

Estas apresentações refletiam os desejos de um público que queria ser chocado pelo

que via, o gosto pelo irracional e pelo fantástico, em pleno auge da lógica racional. Estava

nesse ponto o caráter subversivo destas apresentações teatrais, assim como o caráter

subversivo da Psicanálise estava em revelar o duplo e a cisão de cada indivíduo, sendo o Eu

social que apresentado aos outros apenas uma parte civilizada de um todo que permanece

selvagem e perverso, arredio a qualquer tentativa de dominação. Foi o anseio popular por

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expressar-se, ou por sentir-se representado, que permitiu o nascimento da Psicanálise e do

novo gênero teatral proposto por Méliès, que conjugava uma aparelhagem complexa com

jogos de ótica, temas fantásticos e cenários em transformação.

Méliès era fascinado pelas possibilidades e pelos truques oferecidos pelas artes

mágicas ligadas às técnicas cinematográficas inovadoras da época, tendo sido este o motivo

que o levou a comprar, em 1888, o teatro Robert-Houdin, que se tornou o ―Théâtre

d'illusions‖ mais reputado da época. Inicialmente, empolga-se em poder integrar a mágica que

constitui a reprodução de imagens reais com seus programas no teatro, mas logo vê nisso uma

possibilidade maior e monta, na casa de seus pais, seu próprio estúdio cinematográfico

(QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984). Lança-se na árdua tarefa de

criar filmes, mas não filmes comuns e sim aquilo que ele próprio considerava o gênero mais

difícil, ou seja, o gênero ―vues fantastiques‖ que, em suas palavras, tinha como objetivo

―realizar tudo, mesmo o impossível, e a dar a aparência de realidade aos sonhos mais

mirabolantes, às invenções mais improváveis da imaginação (…) tornar real o impossível‖

(Méliès, G. 1907; citado por QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984).

Tratava-se, portanto, de um projeto de colocar em imagens coisas que, até aquele momento,

nunca tinham sido vistas, sendo um modo sem precedentes de criar ilusões e libertar a

imaginação. Provavelmente a novidade não tenha sido absoluta, pois, à noite as pessoas

sonhavam com coisas semelhantes àquilo que Méliès projetava na tela, e que Freud veio da

descobrir serem montagens psíquicas dirigidas pelo desejo. Parte do impacto causado pelo

cinema de Méliès remeta, talvez, a essa familiaridade do público com seus próprios sonhos e

com seu próprio desejo, que agora podiam ser compartilhados ali na tela das salas de

exibição, ainda com o atenuante de ser algo fora deles, projetado, o que permitia o

relaxamento do recalque, a diminuição do conflito, podendo, em decorrência disso, ser

experimentados com prazer.

A produção de Méliès que talvez melhor expresse esse gênero seja ―Le Voyage dans la

Lune‖ (1902), considerado o primeiro filme de ficção científica da história, uma vez que

concretiza, na tela, o desejo do homem de chegar à lua, muitos anos antes de haver qualquer

possibilidade de uma realização dessa espécie pela tecnologia. Curiosamente, é nesse ponto

que se encontra a mais profunda oposição entre Freud e Méliès, pois enquanto este

reivindicava o direito à ilusão e apoiava toda sua arte na criação dela, Freud considerava as

ilusões restos de um funcionamento psíquico primitivo, que deveriam ser abandonados após

sua elaboração psíquica através do processo de análise de sua lógica infantil.

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Para Freud (1927) a ilusão seria uma forma primitiva de realização ―dos mais antigos,

fortes e prementes desejos da humanidade‖ (p. 43), residindo sua força precisamente na

intensidade desses desejos. Nesse sentido, a ilusão não seria um erro comum de avaliação da

realidade, mas a tentativa de suprir uma necessidade real e o desamparo por meio de um

recurso psíquico primitivo, que, para Freud, não teria qualquer função evolutiva para o

sujeito, mas perpetuaria um modo de atividade mental infantil (FREUD, S. 1927). No final

das contas, Freud propõe como atitude evoluída para a espécie humana funcionar sob a

―primazia do intelecto‖ (p. 68), na qual a razão sobrepor-se-ia à ilusão e aos enganos advindos

dela. Esta oposição de Freud à ilusão se concretiza quando questiona: ―de que vale a miragem

de amplos campos na lua, cujas colheitas ainda ninguém viu?‖ (p. 64). Méliès já havia visto e

conquistado, há alguns anos, esses campos e deixado lá sua marca, que se eternizou na

imagem da lua perfurada pela cápsula interplanetária sonhada por ele.

Le Voyage dans la Lune (1902)

Entretanto, apesar dessa oposição, foi justamente o espetáculo da magia em sua forma

teatral do final do século XIX que aproximou os caminhos criativos de Freud e Méliès, em

suas buscas pelo novo. Méliès vai ao encontro do prestidigitador e ilusionista inglês David

Devant e Freud vai a Paris ao encontro do neurólogo da Salpêtrière, Jean-Martin Charcot. As

sessões de hipnotismo deste último, do mesmo modo que os espetáculos de ilusionismo da

época, eram particularmente impressionantes pelo efeito que provocavam naqueles que as

assistiam (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), sendo o poder

quase mágico de suas palavras o truque que causava o intrigante efeito terapêutico que tinham

suas exibições.

Charcot fazia desaparecer os sintomas de suas pacientes apenas com o poder de sua

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palavra quase mágica, lançando mão da sugestão e da teatralidade. No meio médico da época

a sugestão estava ligada às questões da dupla personalidade, o Homem e seu duplo, sobretudo

nos casos de histeria. Charcot chegou mesmo a criar um laboratório de fotografia médica na

Salpêtrière, com a finalidade didática de tornar visível o desenvolvimento de crises histéricas

(GRAMARY, A. 2008). Vemos nessa situação por que caminhos - que se queriam científicos e

racionais - a parte doente da personalidade, ou seja, a sombra, o duplo obscuro e recalcado, se

encontrava ligada aos aparelhos de espetáculo e à encenação, mesmo no meio médico. Esse

era o clima cultural europeu da época.

Une leçon clinique à la Salpêtrière, Pierre-André Brouillet Charroux,(1887)

Méliès retorna de Londres e passa a atuar como ilusionista, profissão que era mal vista

pelas pessoas a sua volta e que marginalizava aqueles que a praticam (QUÉVRAIN, A-M. &

CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), assim como Freud, ao retornar de Paris faz um breve

percurso clínico pela hipnose e pela sugestão, práticas mal vistas no círculo científico. Freud

pouco a pouco se afasta das técnicas correntes de hipnose, e cria novas técnicas para

desvendar o mistério das neuroses. A técnica da pressão sobre a fronte do paciente (FREUD,

S. & BREUER, J, 1895), desenvolvida por ele como uma opção ao método hipnótico, guarda

muita semelhança com o ―truque‖ dos ilusionistas, pois ao desviar a atenção do paciente para

um ponto fixo, que é a pressão da mão, libera as associações marginais que estavam

encobertas por reflexões conscientes e por mecanismos de defesa. A pressão da mão sobre a

testa era, portanto, um truque com forte caráter sugestivo. Com esse recurso técnico vemos

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Freud se afastando do uso da hipnose e utilizando em seu lugar a sugestão, que se aproxima

muito do fundamento das técnicas de magia: um contato corporal para impor sua própria

vontade à do paciente.

Posteriormente Méliès dirige seus esforços para a execução de filmes, e Freud, ao se

dar conta de sua incapacidade para exercer a mágica necessária para o funcionamento das

técnicas sugestivas, abandona-as e cria aquilo que foi inicialmente chamado por Joseph

Breuer de talking cure. Essa técnica consistia em estimular o paciente a falar sobre o que

achasse que estaria relacionado ao sintoma apresentado, visando reproduzir a emoção que

esteve presente em determinada situação traumática de sua vida e que teria um efeito

etiológico na formação do sintoma neurótico. A ab-reação, ou a lembrança do fato traumático

com a revivescência do afeto correlato, faria com o que o sintoma desaparecesse, sendo uma

espécie de purgação (FREUD, S. & BREUER, J, 1895). A recomendação principal que Freud

fazia a seus pacientes era, novamente, semelhante ao truque utilizado pelos ilusionistas, ou

seja, que se deixassem levar, distraidamente para onde suas associações os levassem, para

aquilo que era marginal, para aquilo que era sombra.

É nesse momento que Freud começa a se interessar pelos sonhos de suas pacientes e

pelos seus próprios, empreendendo sua análise, o que dará origem à “Interpretação dos

Sonhos”. Desenvolve uma técnica de análise de sonhos na qual o sonhador é um ator-autor e

seu próprio espectador, que se expressa para o analista não em atos, mas em palavras. Freud

concebe que o sonho é formado, durante o sono, quando a pulsão transforma pequenos

cenários inspirados pelo desejo em fantasias, sendo a atividade mental transformada,

regressivamente, em pensamentos por imagens, que são essencialmente diferentes da

atividade mental de vigília que é formada por pensamentos em palavras. Este modo regressivo

de funcionamento é característico do Inconsciente, e efetua-se por deslocamento, condensação

e figurabilidade (FREUD, S. 1900).

A fantasia e a imaginação são, portanto, peças chaves para a construção do cinema de

Méliès e para a representação psíquica do sonho, assim como para a montagem da

metapsicologia sobre a qual Freud fundamentou sua ciência. Alguns anos mais tarde, o poeta

e crítico do surrealismo André Breton proporia, influenciado pelas concepções de Freud, que

a imaginação é uma via de percepção do mundo, mas que se encontra frequentemente

recalcada. Considera que reduzir a imaginação à condição de escrava da realidade seria

atraiçoar o supremo imperativo de justiça que se encontra no íntimo de cada homem, pois

somente ela seria capaz de mostrar aquilo que pode ser. Isto já seria razão suficiente para que

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se trabalhasse para retirar a interdição a qual estava submetida. Breton chega mesmo a fazer

uma reverência a Freud na medida em que reconhece que foram suas descobertas que

permitiriam ao investigador da alma humana ir mais longe, ―uma vez que está autorizado a

não levar em conta tão-somente as realidades sumárias‖ (BRETON, A. 2001: 23).

Podemos postular que foi a partir de uma demanda cultural de espaço para o sonho,

para a fantasia, para a imaginação e para o que estava além da razão, que surgiu a Psicanálise

e que Méliès criou, de fato, uma máquina para representar ficções. Contrariamente àqueles

que desejavam utilizar o cinema cientificamente ou como documentário, Méliès queria que o

cinema tivesse um valor cultural com potencial para objetivar e multiplicar o sonho, propondo

realidades que obedeciam a outras regras que aquelas do Establishment. Pela imaginação e

pela tecnologia disponível, Méliès transformava o que pode ser em imagens. Para ele, a tela

não era somente uma superfície de projeção que reproduz o mundo cotidiano, mas também

um lugar que preserva as ilusões, as fábulas, os mitos e as fantasias ligadas às lembranças da

infância, ou seja, era sítio para tudo aquilo que constitui o sonho. Dispor de uma máquina que

podia fabricar o sonho era para Méliès o que constituía a verdadeira libertação da imaginação,

justamente por permitir representar o impensável.

Assim como o espetáculo cinematográfico criado por Méliès veio para subverter o

espírito dos homens, neste mesmo momento histórico, Freud procurava decifrar o ―espetáculo

cinematográfico‖ (num sentido metafórico) representado pelo sintoma histérico e pelos

sonhos noturnos, subvertendo as teorias aceitas na época de que a histeria seria apenas

simulação e os sonhos descargas neurológicas anárquicas e sem sentido. Ao aproximar a

estrutura do sintoma neurótico da estrutura dos sonhos, Freud percebeu que eram o mesmo

fenômeno apresentado de formas diversas: uma representação de fantasias, desejos infantis e

mitos pessoais que se traduziam em imagens, sensações e posturas corporais. Num âmbito

privado, suas pacientes apresentavam a ele seu “cinema pessoal”, com todos os recursos dos

quais dispunham, e através do fenômeno que chamou de transferência (FREUD, S. 1912),

reviviam seus conflitos na sessão de análise relacionando-os com a figura do analista, o que

permitia sua elaboração psíquica e a cura da neurose. Desde essa descoberta o manejo da

transferência tornou-se a principal ferramenta técnica para a cura psicanalítica.

No campo cultural, o ano de 1899 apresenta a sobreposição do surgimento de duas

obras emblemáticas: Méliès produz Cendrillon, sua primeira narrativa fantástica, e Freud

escreve Interpretação dos Sonhos, onde define o papel dos sonhos na vida psíquica e

desenvolve um método para compreender seu significado. Não é por acaso o nascimento

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simultâneo do Cinema e da Psicanálise, a coincidência histórica destas duas técnicas que

permitiam reabilitar a potência da imaginação e dos sonhos no modo de viver e de criar dos

seres humanos. Contudo, contrariamente a Méliès que construía sonhos na tela de projeção

pública do cinema, Freud desconstruía os sonhos e sintomas de seus pacientes e os seus

próprios, insistindo na importância do sentido profundo que tinham quando desconstruídos e

analisados em seus detalhes.

Podemos dizer que Cinema e Psicanálise tratam dos sonhos e das fantasias dos

homens, pois ambos ocupam-se das mais variadas e desconhecidas emoções humanas. O

Cinema cria o sonho, dá forma real a ele e o projeta na tela vazia, ato semelhante ao do

sonhador que faz o sonho, cria as cenas, une-as em sequências (por vezes incompreensíveis),

dá-lhes forma real no momento em que é vivido e projetado na tela interna da mente daquele

que dorme. Quando assistimos a um filme ou quando dormimos, estamos muito próximos do

sonho: nosso corpo encontra-se entregue à poltrona ou ao leito, há o silêncio e a escuridão, ou

seja, um estado de mente propício ao mergulho necessário, seja pela tela de luz seja pela tela

interna da mente, no universo do fantástico com suas leis próprias. Não é por acaso que o

quarto de dormir dos homens, o cenário dos ilusionistas, as salas de projeção dos cinemas e os

consultórios dos psicanalistas guardam semelhanças quanto aos artifícios utilizados para o

favorecimento do fantasiar, sendo a penumbra, o elemento principal, o ―truque‖ que permite

ao sujeito colocar-se num estado de espírito tal que se torne vulnerável à ilusão e ao sonho, ou

seja, apto a deixar-se distrair e deixar-se enganar.

Tanto Freud como Méliès criaram para suas invenções dispositivos próprios que

modificam o enquadre espaço-temporal dos sujeitos envolvidos, uma cena na qual a

prioridade é dada à imagem e ao imaginário, onde são buscados os sonhos, as fantasias e as

coisas impossíveis. Assim, cineasta e psicanalista têm à sua frente o desafio de dar corpo a

seus objetos, o que exige um enquadre rigoroso de muita auto-disciplina e criatividade.

Chegamos aqui a um ponto de convergência entre Freud e Méliès. A maneira pela qual

Freud concebe a formação dos sonhos e o funcionamento do Inconsciente remete diretamente

ao trabalho do diretor de um filme, sobretudo dos filmes fantásticos, nos quais os efeitos das

imagens sofrem atuações semelhantes àquelas da formação do sonho: figuras que se criam

livremente e que se sobrepõem, objetos e personagens que simbolizam outras coisas, livre

fluir de afetos e emoções, e, sobretudo, a criação de um tempo próprio que não se submete ao

convencionado, um tempo que é presente sempre, mas que flui livremente para frente e para

trás. Podemos dizer que Méliès, com seu cinema inovador, foi um sonhador para o exterior,

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um construtor de sonhos públicos, assim como fez Freud ao publicar seus sonhos. Méliès o

fez em imagens, Freud em palavra escrita. Não foi por acaso que tanto Freud como Méliès

sofreram uma rejeição inicial, possivelmente defensiva, contra o novo que rompe com

paradigmas anteriores e expõe a intimidade do desejo, rejeição esta seguida por uma

aceitação resignada devida, certamente, ao potencial heurístico que suas inovações

carregavam em si. Contudo, apesar do grande impacto que tiveram suas invenções, Freud

sofreu – e sofre até os dias de hoje - grande rejeição do meio médico acadêmico, sobretudo,

ao propor que a causa do Inconsciente era necessariamente de natureza sexual, assim como a

obra de Méliès, em sua época, não foi plenamente compreendida, tendo que ser resgatada

muitos anos depois.

Méliès propunha que para se trabalhar com cinema o praticante deveria ser uma

pessoa rigorosa, disciplinada e muito precisa, o que o obrigou muitas vezes a fazer tudo

sozinho, da montagem do cenário ao ator principal. Tudo deveria estar previsto, nada

improvisado (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984) . Nesse sentido

podemos contrapor o dirigismo de Méliès à neutralidade de Freud frente a seus pacientes, e

supor que estas posturas estejam fundamentadas na natureza inversa do trabalho executado

por cada um deles: Méliès construía sonho, Freud os desfazia, os analisava até os menores

componentes que os constituíam. Méliès reivindicava o direito à ilusão, e Freud a necessidade

de abandoná-la e fazer seu luto. Para Méliès, até por que produzia o cinema mudo, ―a palavra

não é nada, o gesto é tudo‖ (Méliès, G. 1907; citado por QUÉVRAIN, A-M. &

CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), ao passo que para Freud a palavra era tudo na direção

da cura, do desvelamento do sentido dos sonhos e dos sintomas psíquicos.

De todo modo, são dois maestros que sob suas batutas executavam sua arte inovadora

com genialidade e precisão e teriam sucumbido às pressões de seu entorno se não fossem

personalidades que tinham o desafio e a persistência como características fundamentais, o que

é condição necessária para tornar-se um inovador que rompe paradigmas. Freud criou a

Psicanálise, Méliès o cinema fantástico. Não resta dúvida que o interesse da Cultura naquele

momento era dar contornos lógicos, racionais, para as manifestações da Natureza e do

Homem, mas tanto Freud como Méliès tiveram a sensibilidade de perceber o anseio das

pessoas por não se deixar envolver completamente na dureza da ciência positivista, ávidas que

eram pelo sonho. Freud desvendou o mistério dos sonhos, Méliès criou o sonho

compartilhado, ambos partindo de um anseio científico positivista que foi sendo abandonado,

e que possibilitou a emergência do novo, da criatividade, do salto de qualidade na relação do

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Homem com o mundo e consigo mesmo.

Referências Bibliográficas

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Editora, 2001. (Original publicado em 1924).

CERQUEIRA, Dorine Daisy Pedreira de. Jorge Luís Borges e a narrativa fantástica (2005).

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2012.

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250. (Original publicado em 1905).

_______________. A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XII, Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 131-43.

(Original publicado em 1912).

_______________. O Estranho. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de

Sigmund Freud, volume XVII, p. 273- 314. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Original publicado em

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_______________. O futuro de uma ilusão. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud, volume XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 123-250. (Original

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GRAMARY, Adrian. Charcot e a Iconografia Fotográfica de La Salpêtrière (2008). Disponível em:

http://www.saude-mental.net/pdf/vol10_rev3_leituras1.pdf. Acessado em 30 de março de 2012.

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spectacle cinématographique (1981). Paris: Editions Klincksieck, 1984.

TODOROV, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil, 1970.

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Os homens que não amavam as mulheres, uma reflexão sobre o

feminino

Daniela Quevedo25

Resumo

Este texto foi escrito a partir das considerações perpetradas para o filme “Os Homens que Não

Amavam as Mulheres‖ exibido no evento ―Diálogos Cinemáticos‖. É uma reflexão sobre as

possibilidades da mulher em se inventar no feminino na atualidade. Em conceber uma saída, a partir

da psicanálise, para retirar-se da condição de vítima numa sociedade prioritariamente desigual e

machista.

Palavras-chave: mulher, feminino, psicanálise, cinema, invenção

Men Who Hate Women, It reflects about the feminine

Abstract

This text was written since the author‘s considerations about the film: ―Millennium Part 1: The Men

Who Hate Women‖ wich was exhibited and debated in the event ―Diálogos cinemáticos‖. It reflects

about the feminine and its invention by women of present time. Also about the conception and the

construction of a psychoanalytical and feminine ―way out‖ from the victim condition in our unequal

and chauvinist society.

Keywords: women, feminine, psychoanalysis, cinema, invention

Introdução

O texto a seguir foi produzido para a 14ª sessão do projeto Diálogo Cinemático,

organizado pelo psicanalista Márcio Mariguela e apresentado no segundo semestre de 2011,

em Piracicaba. Fui convidada a participar como mediadora. Num primeiro momento o público

teve a oportunidade de assistir ao longa-metragem Os Homens que Não Amavam as Mulheres,

do diretor Niels Arden Oplev. Em seguida, dialogar por inúmeros caminhos (sistema textual)

e perspectivas cinematográficas, como por exemplo, sobre o argumento, o enredo, as

imagens, a fotografia, a direção, a interpretação, etc. A proposta era que, com o sentimento

ainda bastante presente, a plateia refletisse sobre os pontos mais tocantes da película. Eu optei

25 Daniela Quevedo Jornalista e Radialista formada pela PUC Campinas e especialista em Comunicação em

Saúde; Psicanalista participante da Escola de Psicanálise de Campinas; Cronista do Jornal de Integração

Regional ―A Folha‖ de São Sebastião da Grama. e-mail: [email protected]

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por falar sobre três personagens que me chamaram mais à reflexão: Martin Vanger, Harriet

Vanger e Lisbeth Salander.

O filme

Os Homens que Não Amavam as Mulheres é o primeiro longa-metragem da trilogia

Millenium e o único dos três dirigido pelo dinamarquês Niels Arden Oplev. Adaptado do

best-seller do escritor sueco Stieg Larsson, esse suspense trata das relações de gênero,

principalmente a violência contra mulher, o racismo e o nazismo na Suécia, pais que possui

uma economia altamente desenvolvida e considerado um dos maiores e mais importantes

países da União Europeia.

A heroína desse thriller é Lisbeth Salander, uma hacker tatuada e cheia de piercings,

que possui passado que vai sendo explicado mais ou menos em flashbacks durante o filme.

Ela trabalha como freelance numa empresa de investigação que a contrata, inicialmente, para

investigar a vida do jornalista Mikael Blomkvist, editor de uma revista econômica, que acaba

de ser processado por calúnia. Lisbeth se une a Blomkvist depois que este é contratado por

um milionário, Henrik Vanger, para investigar o desaparecimento da sobrinha, suspeita de ter

sido assassinada há 40 anos. Como o corpo nunca foi encontrado o patriarca supõe que um

dos membros da própria família, constituída de pessoas gananciosas por dinheiro e poder e

com passado nazista, tenham cometido o crime.

O autor da trilogia Millenium, Stieg Larson (1954-2004) foi fundador e editor-chefe

da revista sueca Expo, que tinha por objetivo denunciar grupos neofascistas e racistas nos

países nórdicos (Suécia, Finlândia, Dinamarca, Islândia e Noruega). Especialista na atuação

das organizações de extrema direita, Larson é coautor de Extremhögern, livro que trata do

assunto. Morreu vítima de um ataque cardíaco, pouco depois de ter entregue os originais dos

romances que compõem a trilogia Millennium: “Os Homens que Não Amavam as Mulheres‖

(2005), ―A Menina que Brincava com Fogo‖ (2006) e ―A Rainha do Castelo de Ar‖ (2007), e

assinar um contrato para transformar o primeiro livro em filme.

A escolha

Fui escolhida. Assisti ao filme pela primeira vez sem saber do que se tratava. Tive um

choque. Deparei-me com um realismo que entendo ser bastante incomum no cinema atual. É

um filme que trata da violência contra mulher sem delicadezas. Não consegui parar de pensar

em algumas cenas durante dias. A imagem de jovens bêbados atacando a protagonista no

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metrô, a violência psicológica, o estupro sofrido por Lisbeth e praticado pelo seu tutor, a

violência doméstica sofrida por Harriet e por fim os assassinatos das mulheres. Isso num país

como a Suécia, símbolo de civilidade.

Mas as questões de gênero ultrapassam fronteiras. Foi o que me revelou a

coordenadora do ILUMINAR26

Campinas, Verônica G. Alencar, em uma entrevista cedida

semanas antes do evento em Piracicaba. Segundo ela, os casos de violência contra a mulher

são semelhantes em diversos países, mesmo que tenham realidades politico e econômica

diferentes, como é o caso do Brasil, França ou em povos indígenas. Embora o número de

denuncias tenha aumentado com a criação da Lei Maria da Penha27

, o quadro brasileiro ainda

é bastante preocupante. A implantação de políticas públicas, intensificadas nos centros de

saúde e o acesso à informação poderiam ser caminhos para mudar essa realidade, acredita

Verônica. Certamente, penso eu. Mas levando em conta os dados apresentados, talvez apenas

um caminho.

No livro, o autor expõe informações que surpreendem. Aponta que na Suécia:

(...) 18% das mulheres foram ameaçadas por um homem pelo menos uma vez na

vida; 46% das mulheres sofreram violência de um homem; 13% das mulheres

foram vítimas de violências sexuais cometidas fora de uma relação sexual; 97% das

mulheres que sofreram violências sexuais após uma agressão não apresentaram

queixa a polícia. (LARSSON, 2005, pg. 08).

No Brasil, de acordo com o Anuário das Mulheres Brasileiras 2011, quatro em cada

dez mulheres já foram vítimas de violência doméstica. Este documento reúne dados da

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio que demonstra que 43,1% das mulheres já

foram vítimas de violência (MERLINO, 2012).

No entanto, ao trazer para uma cena ―familiar‖ e atual a questão da segregação e da

violência, que pode chegar ao assassinato, o autor dos livros, bem como o diretor do filme,

propõem indagações que vão além das questões como a de implantação de políticas públicas,

acesso a informação, ou o conservadorismo e atraso da sociedade. Há nas relações de gênero,

dois aspectos primordiais e bastante visíveis no filme.

26

Programa do município de Campinas, que atua no cuidado as vítimas de violência sexual urbana e domestica.

Opera com uma rede intersetorial e interinstitucional de serviços nas áreas de saúde, educação, assistência social,

jurídica e de cidadania.

27 Lei de número 11 340, criada em 7 de agosto de 2006, que alterou o Código Penal Brasileiro e possibilitou que

agressores de mulheres no âmbito domestico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva

decretada. Também decreta: 1. que esses agressores não peguem mais penas alternativas; 2. Aumenta o tempo

máximo de detenção para três anos; 3. Medidas como saída do agressor do domicílio e até proibição de

aproximar-se da mulher agredida.

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Em primeiro lugar a dominação exercida sobre a mulher. Ela diz respeito à ameaça

hierárquica que esta pode impelir sobre relações capitalistas, prioritariamente masculinas.

Harriet, a neta do magnata Vanger é supostamente assassinada por ser ela a herdeira que

assumiria o controle do grupo empresarial que, no filme, tinha grande poder econômico e

político na Suécia. Um exemplo fictício: uma mulher no comando de um império. Qual o

paradoxo que essa hipótese comporta? Será que, considerando a trama do filme essa situação

seria, em si, ameaçadora? Por quê? Na realidade atual a mulher em quase todo mundo ainda

exerce na sociedade o mínimo de participação política e econômica que seria necessária para

que a desigualdade de gênero diminuísse (MONCAU, 2012).

Para a Psicanálise: o que quer o outro de mim?

Outra perspectiva aponta para o campo da psicanálise e abre caminho para

considerações que dizem respeito à maneira como a sociedade tem lidado com as fronteiras

inconscientes que a diferença entre homem/mulher imprime. A mulher é uma das formas do

estrangeiro (KOLTAI, C., 2000). Como então ela, tida como ―além-fronteira‖, se apresentaria

ao sujeito homem e que reação provocaria?

Para o psicanalista Philippe Julien há um ―outro‖ que possui elementos que se

aproximam da compreensão do sujeito e o torna semelhante (espelho). Ou seja, vejo o outro à

minha imagem e meu Eu se vê no outro (JULLIEN, 1996). É possível ama-lo como

semelhante, como a si próprio. Essa identificação pode estender-se à família, à sociedade e,

por que não dizer, à humanidade, aos bens físicos, psicológicos e sociais (JULLIEN, 2008).

Mas, há um próximo, um Outro (com O maiúsculo). Um diferente. Que está além do

semelhante, daquele conhecido pelo sujeito. Que se mostra muito diferente da imagem que

esse sujeito tem de si próprio. Esse ser parece então terrivelmente estranho. In-compreensível.

Estrangeiro. O que poderia essa figura esquisita querer de mim? Se ele não se parece comigo,

certamente não quer o mesmo que eu. Quer outra coisa. Se eu quero o bem, possivelmente Ele

quer o mal. Assim esse Outro, próximo, mas não semelhante, exibe seu limite, sua fronteira,

que aparece para o sujeito sob o signo de capricho, ou, melhor dizendo, como arbitrário, sem

crença nem moral, que não pode dar garantia alguma sobre o bem-querer que pode conceder

ao sujeito (JULLIEN, 1996).

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Penso que para a psicanálise é nesse momento que o sujeito se depara com o gozo do

Outro, que segundo Freud, não é a ideia de ―evitação do prazer‖, ou do desprazer, mas aquilo

que é ―mais-além do princípio do prazer, ou seja, o gozo‖ (JULLIEN, 1996). Essa

consideração infere uma compreensão sobre a consequência que o gozo desse ―próximo‖

(desse Outro) tem no próprio sujeito. Não há referencial, não há garantia quanto ao que o ele

quer, quanto a seu bem-querer ou seu mal-querer. Seu des-amor. Seu ódio. E quais seriam

exemplos encarnados desse Outro? Muitos. Mas principalmente homens e mulheres de etnias

e religiões minoritárias. Como negros, latinos, árabes, judeus, islâmico, etc.

O imperfeito

Por outro lado, penso que essa diferença assinala um algo mais, que vai além do ódio.

Vejamos! Se esse próximo, de que falamos – diferente, estrangeiro, mulher –, não se parece

comigo, falta a ele aquilo que eu tenho. Ele é carente, falho daquilo que o faz semelhante a

mim. É portanto, imperfeito. É claro que Ele pode muito bem aprender a ser como Eu. Mas se

insistir em ser diferente? Em não a-prender? Então é por que não tem jeito. É deficiente.

Defeituoso. Portanto pode ter uma vida considerada ―uma vida sem valor‖. Para o filósofo

Giorgio Agamben (2010) quem decide sobre o valor e ou sobre o desvalor da vida é o

soberano. Nessa perspectiva o homem, soberano, politica e economicamente, pode muito bem

escolher que vida é digna de ser vivida.

1) Martin Vanger

Nazistas declarados, os personagens de Martin Vanger e seu pai Gottifrid traçam, no

filme, uma linha macabra de assassinatos de mulheres pelo interior da Suécia. Ironicamente

Gottifrid utiliza-se de passagens do Levítico, livro da Lei dos sacerdotes da Tribo de Levi

(tribo de Israel que foi escolhida para exercer a função sacerdotal no meio do seu povo) para

escolher a maneira de ―purificar‖ e por que não dizer, de sacralizar suas vitimas.

Agamben diz que toda sociedade fixa um limite onde se escolhe quais serão os eleitos,

os ―homens sacros‖:

―...É como se toda valoração da vida e toda politização da vida (como está

implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre sua própria existência)

implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida

cessa de ser relevante, é então somente a ―vida sacra‖ e, como tal pode ser

impunimente eliminada...‖ (AGAMBEN, 2010, pg. 135).

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O curso que encadeia o nazismo aos assassinatos de mulheres parece ser evidente.

Embora não caiba nesse texto aprofundarmo-nos de todas questões do estado nacional-

socialista alemão, podemos dizer que o nazismo atribuiu ao Estado, e consequentemente ao

sujeito, a decisão soberana pela escolha de qual vida que não é digna de ser vivida.

Aos olhos de Martin, o pai é fraco, pois se deixa levar por artifícios, como os

religiosos, na execução das vítimas. ―... isso era um projeto de papai. Misturou raça e religião

com seu hobby, mas foi um erro. Não se deve deixar corpos por aí. Pego os meus, ponho no

barco e jogo no mar...‖. Por sua vez, Martin se coloca como o verdadeiro soberano ―...eu faço

o que todos os homens desejam, pego o que quero! Mulheres desse tipo vivem desaparecendo,

ninguém sente falta. Prostitutas, imigrantes!...‖, diz . Num dos diálogos finais acrescenta que

as mulheres sabem seus destinos e mesmo assim se entregam a ele. Rudolf Höss, comandante

do campo de Auschwitz, justificou o extermínio declarando que ―...apenas obedecera ao

desejo das vítimas‖ (ROUDINESCO, 2010, pg. 128).

Em outra fala, Martin enfatiza: ―...As mulheres sempre acham que vão escapar. Basta

um único gesto de humanidade e elas já se iludem. Gosto de ver a decepção no rosto de cada

uma no minuto que entendem que vão morrer...‖. Penso que ele diz do gozo que sente em ser

soberano. Não há nada além dele que possa salva-las.

2) Harriet

Harriet Vanger é apontada no filme como a figura feminina escolhida. Inicialmente

para a sucessão da liderança das empresas Vanger. Depois aos constantes estupros cometidos

pelo pai e irmão. Personagem central da trama, Harriet investiga e descobre os assassinatos de

mulheres cometidos pelos dois. Após sofrer um novo estupro, foge do pai e o mata

―acidentalmente‖ afogado. Passa a ser então violentada apenas por Martin, que segundo

revela em uma das cenas do filme, é ainda mais violento que o pai. Harriet sofre calada. Odeia

calada. Não tem coragem de revelar a verdade a ninguém.

Para o psicanalista Philippe Jullien

... é nesse momento de desarvoramento e desespero que a tentação se apresenta

tomar a si o encargo de restaurar e salvar a figura da autoridade (...) para que assim

determinado grupo, sociedade ou família recupere a força e a coesão. É esse o

trágico moderno‖ (JULLIEN, 1996, pg. 98).

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Harriet, à moda antiga, escolhe se submeter ao destino. Sua saída? Fugir fingindo-se

de morta.

No entanto, sua atitude resolve apenas o seu problema. Foge e deixa para traz um

resto, um rastro: o irmão Martin. Este, além de continuar a obra do pai morto, violentando e

matando outras mulheres, converte-se desveladamente no escolhido. Ocupa o cargo de líder

das empresas Vanger e assume-se como soberano. O pai, soberano nazista, passa do judeu à

mulher. O filho, da mulher judia (referência bíblica) à mulher comum.

Interessante notar que Harriet deixa mais um resto que mantem sua história atualizada.

Sua posição de mártir, heroína em evidência. Todo ano seu velho tio recebe flores no dia do

aniversário dela. Quem manda as flores? O assassino de Harriet? Aliás, é importante notar

que, ao buscarem o assassino, os investigadores, Blomkvist e Salander, encontram-se no final

com própria ―morta‖.

3)Lisbeth: a heroína moderna

Lisbeth Salander definitivamente não é um personagem qualquer. Não é nenhum

semelhante. Apresentada como uma ciber punk encarna o que seria um estereótipo da mulher

moderna, ou da guerrilheira contemporânea. A causa dessa batalha parece ser sua própria

sobrevivência. Mas é claro, penso que há um mais além.

Todavia pareça que Lisbeth tenha lutado para se vingar daqueles que lhe fizeram mal,

assistindo ao filme já pela segunda vez tive a impressão de que seu revide tenha sido mais que

uma manifestação de ódio. Embora o ódio seja evidente em todas as palavras da protagonista.

Em seu combate cotidiano Lisbeth lança um sinal de basta. Um gesto que assemelha-se com

um Não para a sua condição de vítima. Um não para a sua condição de mulher oprimida. De

estrangeira em sua própria casa.

Na cena em que participa da primeira entrevista com seu novo tutor ele deixa claro ―...

é só você se comportar direitinho que não terá problemas‖. Lê-se: é só você aprender a se

comportar como meu semelhante, pois dessa maneira, eu sei o que é melhor para você. E em

nome desse saber, faça você a minha vontade. Mais uma vez penso no que diz Philippe Julien

sobre o que chama de ―a lógica-do-bem‖: ―Primeiramente o bem que quero para o outro é

decerto aquele que eu queria para mim na mesma situação. Segundo, quero que o bem do

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outro se realize através de mim. Assim é a vontade-do-bem em sua lógica própria...‖

(JULLIEN, 1996, pg. 47).

Mas a heroína da história se recusa a servir a esse jogo. Num primeiro momento ele, o

tutor, a obriga a fazer sexo oral. Depois, ela finge precisar de dinheiro e o procura na casa dele

com o intuito de filmar o abuso, que certamente aconteceria. Mas o inesperado. Ele a violenta.

A estupra. ―Ora, mas que o Outro não é o outro: ele recusa esse bem que eu quero para ele, ou

para ela.(...) Seu murro [sua negação] (....) tenta despertar-me de minha boa vontade ...‖

(JULLIEN, 1996, pg. 47).

Ao chegar em casa, Lisbeth assiste a gravação. Ao invés da renuncia, diz mais um

Não. Talvez um Não diferente. Em certo sentido decide dar um basta a realização do gozo do

Outro. Este Outro que goza através dela, por meio de sua submissão. Sua saída? Gozar ela

mesma. Volta à casa do tutor. Faz ele assistir à gravação. Violenta-o e tatua em sua barriga a

frase ―Sou um porco sádico e estuprador‖. Ao ir embora é imperativa ―...Vou te dizer o que

vamos fazer (...) Eu é que vou cuidar da minha conta. Você não terá mais acesso (...)

[independência financeira]. Vai escrever todo mês um relatório dizendo que meu

comportamento é exemplar (...) Dentro de um ano pedirá a cassação de minha curatela (...)

[independência psíquica]. Nunca mais me contatará (...) Se fizer enviarei cópias do vídeo à

polícia e à imprensa‖.

Para tanto, assume ela própria a imagem da maldade que vê no outro. Tenta, da mesma

maneira que seu opressor, impor a sua vontade do bem ―(...) a ponto de me tornar, por minha

vez – oh! Surpresa! – mau, mau com esta maldade que comporta – oh! Horror! – meu próprio

gozo‖ (JULLIEN, 1996 pg. 47). Assim, reconhece no espelho, que mostra os dois lados dela

mesma, um terceiro, invisível (irreflexível), que resvala na maldade do seu opressor, mas não

se fixa ali.

No final do filme se lança imperativa quanto a Martin: ―...ele estuprava e matava e

gostava disso. Teve as mesmas chances que nós. Escolhemos o que queremos ser. Ele não era

uma vítima, era um desgraçado que odiava as mulheres‖.

Mas que escolhas, que saídas seriam essas? Em que ética se apoia a heroína para se

distinguir dos outros personagens?

No recorte de outras situações ela deixa evidente suas escolhas. Para começar se

apresenta como ―fora da lei‖. Hacker. Posteriormente revela seus antecedentes de ter

incendiado o pai (justo quem!). Deixa o vilão Martin morrer incendiado. Acusa Harriet de

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uma covardia pérfida por não entregar o irmão. Investiga e rouba o dinheiro do empresário

Wennerstöm acusado de corrupção.

Não faz o bem. Por outro lado, não fazendo o bem, também não se identifica como

fazedora do mal. Em várias cenas do filme recorda ter aprendido que ―todo ato tem uma

consequência‖. Por isso não é especularmente ou previamente má. Se dispõe a reinventar-se a

cada experiência, ou, por que não dizer, a cada fracasso – o que é Outra coisa. Não se trata

mais nem de bem, nem de mal, mas do estatuto de um ato que permite uma mudança. E essa

mudança vai se constituindo por sua negação.

Lisbeth não se serve de modelo, de amante, de filha arrependida, de justiceira. A cada

enquadre, uma nova saída, uma outra faceta. Um ―Não‖ polimórfico, que parece deixar claro

a todo momento a decisão pela impossibilidade de uma cristalização. Lisbeth em sua posição

de estrangeira revela-se, ela, sem fronteiras, sempre.

A meu ver, destaca-se dessa experiência o ato de inscrever-se numa Outra condição do

feminino. Não há resposta. A condição está por vir.

Referencias Bibliografia

JULLIEN, P. (2008). A psicanálise e o religioso: Freud, Jung, Lacan, Rio de Janeiro, Editora Jorge

Zahar, 2010, p89.

JULLIEN, P. (1996). O estranho gozo do próximo: ética, e psicanalise, Rio de Janeiro, Editora Jorge

Zahar, 1996, 176p. (Transmissão da Psicanálise).

AGAMBEN, G. (2004) ―Estado de exceção”, 2ª Edição, São Paulo, Editora Boitempo, 2007, 133p.

(Estado de sítio).

AGAMBEN, G. (2002) ―Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I‖, Belo Horizonte, 2ª Edição,

Editora UFMG, 2010, 197p.

ROUDINESCO, E. (2010) ―Retorno a questão judaica”, Rio de Janeiro, Editora Jorge Zahar, 2010,

245 p. (Transmissão da Psicanálise).

KOLTAI, C. (2000) ―Politica e Psicanalise. O estrangeiro‖, Editora Escuta, 2000, 160 p.

FREUD, S. (1930-1936). O mal-estar na civilização, novas conferencias introdutórias à psicanalise e

outros textos. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, volume 18 (Sigmund Freud, obras completas).

MONCAU, G. A era da mulher, conquistas e desafios. In: Caros Amigos, a primeira à esquerda. São

Paulo, ano XV, Edição Especial nº 55, p. 08-09, 2012.

MERLINO, T. A era da mulher, conquistas e desafios. In: Caros Amigos, a primeira à esquerda São

Paulo, ano XV, Edição Especial nº 55, p. 04-06, 2012.

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Império dos Sentidos: A experiência pornográfica como expressão

da liberdade.

Autor: Plynio Thalison Alves Nava28

Co-autora: Antonielly Cantanhêde Wolff 29

Resumo

Na urgência de preservar a tradição, o filme Império dos Sentidos constrói uma narrativa que

fundamenta o resgate das experiências culturais ancestrais do país como crítica ao processo de

ocidentalização, responsável pelo progressivo soterramento do legado cultural japonês. Mediante a

integração de dois movimentos antagônicos – o impulso de eros e thanatos, expressos na performance

realista de sexo entre atores, no recuo às suas práticas culturais primitivas do país e na utilização da

pornografia como expressão da fruição sensual, Império dos Sentidos mostra a sobrevivência da

tradição erótica japonesa ao sinalizar a busca por uma cultura de liberdade. Este trabalho pretende

analisar de que forma esta obra reflete questões acerca da transmissão da experiência, da educação dos

sentidos e compreensão do prazer e sua busca como garantia da autonomia do sujeito.

Palavras-Chave: Erotismo, Cultura, Império dos Sentidos

In the Realm of the Senses: Experience pornography as an expression of freedom.

Abstract

Trying to preserve tradition, the film Empire of the Senses builds a narrative based on the rescue of

cultural experiences of the country as critical to the process of westernization, responsible for the

progressive burial of the Japanese cultural heritage. Through the integration of two antagonistic

movements - the impulse of eros and thanatos, expressed in the performance of realistic sex between

actors, the retreat to their primitive cultural practices of the country and the use of pornography as an

expression of sensuous enjoyment, Empire of the senses shows the survival Japanese erotic tradition,

to signal the search for a culture of freedom.This paper aims to examine how this movie reflects

questions about the transmission of experience, education of the senses and understanding of pleasure

and its quest to guarantee the autonomy of the subject.

Keywords: Eroticism, Culture, In the realm of the senses.

28

Graduando em Comunicação Social - UFMA 29

Graduando em Filosofia - UFMA

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A Fruição na História Cultural Japonesa

Embora orientada por uma rígida disciplina, os japoneses nunca extraíram de seu foco

a satisfação pelos prazeres do corpo. No interior de uma vida social controlada por uma

conduta rigorosa, a satisfação dos sentidos ocupa lugar privilegiado no Japão, a ponto de sua

fruição ser precedida por um aprendizado. Seja nos tradicionais banhos, na contemplação das

cerejeiras, ou na arte dos origamis - atitudes que sobreviveram à massiva ocidentalização dos

costumes japoneses - tais hábitos, que se encontram imersos no território a que Ruth

Benedict30

traduziu como Círculo dos Sentimentos Humanos31

são reflexos da condução de

uma vida dedicada à apreciação dos prazeres.

Tal assertiva aplica-se também ao território da sexualidade: desde os primeiros anos de

sua vida, as experiências sexuais das crianças japonesas são vividas sem a iminência dos

tabus, tampouco constrangimentos paternos.

―As crianças sabem coisas da vida tanto por parte da liberdade de conversas dos

adultos, quanto devido à proximidade das dependências em que vive uma família

japonesa. Além do mais, suas mães geralmente chamam a atenção para os órgãos

genitais dos filhos quando brincam com eles e lhes dão banho, mesmo quando se

trata de meninos. Os japoneses não condenam a sexualidade infantil, a não ser nos

locais e companhias errados. A masturbação não é considerada perigosa. As

turmas infantis são também bastante livres no lançamento de críticas uns para os

outros – que mais tarde seriam insultos - e na jactância – que mais tarde daria

motivo a profunda vergonha.‖ (BENEDICT, 2002, p.226)

Para uma compreensão da percepção japonesa sobre o prazer erótico, um retrospecto

histórico já seria suficientemente válido para visualizar de que forma a vida urbana oferecia

alternativas compensatórias e regozijantes ao homem japonês. Dividido entre uma jornada

dupla e indissociável de dever e prazer – separadas moral e espacialmente, a priorização do

30

Salvaguardadas as críticas acerca de sua pesquisa sobre o Japão, o método de análise proposto por Ruth

Benedict revolucionou as técnicas de pesquisa antropológica, ao abrir mão de um recurso tão imprescindível ao

antropólogo como o trabalho de campo, para debruçar-se em pesquisas anteriormente desenvolvidas por

antropólogos acerca do Japão e entrevistas com japoneses que, naquele momento, moravam fora de seu país.

31 Ver Ruth Benedict, p. 151.

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cumprimento de suas obrigações de cidadão, pai e marido não era vista como pretexto ao

usufruto do prazer erótico. Estava circunscrita em uma rotina social como outra qualquer.

Os japoneses recorriam à diversão junto de gueixas, ou usufruíam corriqueiramente

dos favores dos prostíbulos. Frequentavam as casas sem constrangimento e não atrelavam às

suas visitas qualquer indício de comportamento marginal. A atividade das casas de prazer, no

Japão, era regulamentada pelo xogunato e cada proprietária devia seus tributos e satisfações

ao governo. Aos japoneses, o exercício da prostituição não era visto sob a ótica do moralismo.

Legalizada desde a instalação do primeiro bairro do prazer, em 1585, na cidade de Osaka32

, o

concubinato não era visto de forma degradante, embora o status de prostituta não oferecesse

privilégios a nenhuma das mulheres que o praticavam. Segundo Maurice Pinguet (1987)

“Não se projetava sobre esta útil profissão a aura sulfurosa do vício. A prostituta

não inspirava nem desprezo nem nojo. Era lastimada por se ver na obrigação de

se vender ou ser vendida.”

No que toca à produção artística, uma expressão em especial ocupou-se de explorar o

universo dos prazeres do Japão. Nascido no período Edo, o Uykio-o diz respeito a uma

produção desenvolvida pela classe popular, cuja principal característica estava na exposição

do prazer e do divertimento no cotidiano japonês. Esta pintura, que nunca tencionou igualar

suas expressões à natureza, apresentava o mundo dos prazeres como uma espécie de metáfora.

Sua fusão de duas narrativas – literária e visual – num único trabalho xilográfico antecederam

dois séculos das artes visuais europeias ao empreenderem sua técnica em direção oposta à

representação fiel do real.

“A arte japonesa jamais deixou-se seduzir pelo caráter de verossimilhança, de

identificação plausível com a realidade. Talvez a natureza anímica dos japoneses,

seu amor e respeito pelas forças e belezas da natureza tenha sido o mote para que

a própria natureza surgisse na arte sempre como metáfora e não como pura

imitação. Gravura, pintura, escultura, Bunraku, Nô e Kabuki sempre deixaram à

mostra, de uma maneira ou de outra, a artificialidade da representação, sempre

assumindo-se como exercício estético da linguagem.”(MEDEIROS, Afonso.

32

Sobre os bairros do prazer japoneses, ver Cecilia Segawa Seigle, Yoshiwara. The Glittering World of the

Japanese courtesan, Honolulu, University of Hawai Press, 1993.

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Crônica Visual: a gravura japonesa como matriz da modernidade. Coleção

Desenredos; Ed 4. Goiânia: Funape, 2008. 1v.)

Nas gravuras do Mundo Flutuante japonês, esse caráter crônico de que dispõe sua

narrativa não se poupou de explorar a encenação do sexo em suas gravuras. Dentro da vasta

gama de obras do Uykio-o, a gravura Makura-e é de sumária importância para o

desenvolvimento de uma estética do sexo. Produzidas intencionalmente para estimular

sexualmente os seus leitores, as gravuras, que conceitualmente se aproximam da pornografia,

dispõem de um enorme catálogo dedicado a mostrar a intimidade do japonês, em cenas de

sexo em diversas facetas, que vão da bissexualidade ao uso de primitivas formas de consolos

que penetram as mulheres nas gravuras.

A compreensão de um Mundo Flutuante, onde o prazer protagoniza a narrativa

makura-e, não se furtou a descrever o sexo com o recato eufemista: nestas gravuras, em

particular, as relações sexuais se restringem em grande parte ao âmbito do domicílio, onde

casais são expostos partilhando sua sexualidade – às vezes acompanhados de um terceiro

parceiro – sem qualquer privação de sentido ou recorte moralista do artista xilográfico, fato

que serve como hipótese ao exaustivo consumo desses produtos pelos japoneses do Edo.

“El ukiyo-e y por endeelmakura-e, era uma producción centrada enlo comercial,

dedicada y dispuesta a satisfacerlaincreíble demanda de materialesimpresos, tanto

literarios como visuales, de una ampla masa popular que consumía esta obras de

maneramuy similar a como hoy se consumenloslibros de historietas eróticas, las

revistas de chismes o laspostalitas desouvenir” (GARCÍA RODRÍGUEZ, Amaury.

Desentrañando ―lo pornográfico‖: La xilogravura makura-e. Analesdel Instituto de

Investigaciones estéticas).

Nascido em um momento decisivo da história do Japão – época em que o país efetivou

sua política de isolamento e projetou seu olhar no interior de sua cultura, a estética do Ukiyo-e

possui importância inegável na história das artes do país: sua narrativa, que efetua uma

retomada da tradição estética do Período Heian (794-1192), serve como barômetro para a

compreensão de um movimento singular, o resgate das tradições eróticas diluído no contínuo

processo de ocidentalização ocorrido no século XX.

Com a rendição do Japão e, consequentemente, o fim da 2º Guerra Mundial, uma forte

onda de transformações ocorreu na tradicional esfera social do país. Retomando o

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empreendimento modernizador ocorrido na Era Meiji, a ocidentalização do Japão no século

XX reflete a mesma força que abalou as estruturas sociais nipônicas há dois séculos. Suas

implicações, entretanto, desencadearam transformações consideravelmente mais abruptas que

as da Restauração, a julgar pela adoção de novos paradigmas de produção industrial, como o

toyotismo, cuja projeção alcançou escalas globais e dinamizou a economia do país através de

uma nova ideologia orgânica da administração da produção capitalista.

No campo cultural, a euforia da ocidentalização deixava claras suas marcas ao

redesenhar as paisagens do Japão: o trânsito dos automóveis de luxo, a importação de gêneros

musicais, como jazz e rock, e a ebulição de uma juventude seduzida pelos ideais da

democracia são traços de um novo perfil cultural inaugurado pela sociedade japonesa após a

ocupação do país pelos Estados Unidos. Estes novos ideais, levados pelos americanos,

presentes no discurso político, na música, no cinema e no progresso, logo foram eclipsados

pelo clima de desconfiança que pairava no Japão.

“O salto do Japão feudal para a economia capitalista industrial se deu de forma

quase milagrosa na superfície, mas, como hoje já se reconhece, acarretou

problemas sociais em todos os níveis. Entre os jovens, havia naturalmente uma

euforia com a liberdade recém-adquirida, mas ao mesmo tempo um desconforto

pela forma abrupta e inapelável da introdução de novos costumes” (NAGIB,1993,

p. 18)

É neste contexto que um grupo de jovens cineastas entra em cena no Japão.

Questionando tendências e subvertendo posições, a Nouvelle Vague Japonesa representa o

segundo momento das transformações culturais do país, caracterizado pela crítica social e

pelo resgate das tradições perdidas com a ocidentalização que atravessou a década de 1950.

Império dos Sentidos: O legado transgressor do cinema novo japonês

Em 1955, após a interrupção promovida pelo governo militarista, o estúdio Nikkatsu

retoma suas atividades de produção. Coroando sua reabertura, os filmes Estação do Sol e

Paixão Juvenil, muito mais do que incorporar valores ocidentais recém-introduzidos no

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Japão, rompiam o até então inflexível paradigma dos mestres diretores no Japão para se

tornarem precursores da Nouvelle Vague Japonesa, momento histórico fundamental para a

compreensão do novo direcionamento dado ao cinema do país.

“Era o ano marcante de 1960, e os dois filmes-manifesto da nouvelle vague

francesa tinham acabado de ser distribuídos no Japão: Os Incompreendidos

(Lesquatrecentscoups, 1959), de François Truffaut e Acossado (À bout de souffle,

1960), de Jean-Luc Godard. Sob o impacto dessa onda francesa, carregada de

novidades, dois críticos do jornal Yomiurishukan não tardaram em batizar de

nouvelle vague o segundo filme do jovem diretor Nagisa Oshima, Conto Cruel da

Juventude (Seishunzankokumonogatari), que chegava aos cinemas junto com o de

seus contemporâneos franceses. A partir daí a alcunha se estendeu para os demais

colegas de Oshima da produtora Shochiku, notadamente Yoshishige Yoshida e

Masahiro Shinoda. É que a empresa farejou prováveis vantagens comerciais na

utilização da expressão, que vinha a calhar para sua intenção, desenvolvida já nos

últimos anos, de estimular a formação de diretores jovens. Surgiu assim a

“nouvelle vague da Shochiku”, que depois se generalizou para “nouvelle vague

japonesa”, incluindo filmes de outras produtoras” (NAGIB, 2006, p. 160).

Propiciado o encontro da publicidade com os interesses comerciais, a Nouvelle Vague

consolida-se como movimento. Do ponto de vista do gênero, esta peculiaridade não pode ser

vista como óbice. O momento histórico, marcado por profundas transformações no Japão,

aliado à inserção de jovens diretores e novas concepções acerca do cinema, aproximou estilos

e determinou o início de uma nova produção, marcada pela influência do Cinema Veritè, pelas

técnicas dramatúrgicas de Bertold Brecht e pela experiência dialética com as religiões

nacionalistas.

Agregando influências dos novos cinemas ocidentais, os jovens cineastas da Nouvelle

Vague Japonesa buscavam um cinema mais realista como contraponto à percepção tradicional

das grandes produtoras japonesas, para quem a mais remota possibilidade de mudança era

vista com desapreço.

“Na base desse realismo, encontra-se o agnosticismo ou a ausência de metafísica

e de um deus sobrenatural e punitivo tal como concebem as religiões monoteístas.

Embora os jovens cineastas, em especial Oshima, primassem pela rebeldia contra

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toda forma de autoridade ou figura paterna, sobretudo contra a crença

etnocêntrica na origem divina do imperador que levou o país à guerra, tentavam

resgatar do xintoísmo seu empirismo e intimidade com a natureza e o mundo

material‖ (NAGIB, 2006, p. 131).

Como resultado da intensa busca pelo realismo, um vasto catálogo filmográfico foi

produzido no Japão por esses cineastas. Os títulos, compostos por ficções e documentários,

possuíam uma função-chave para esse novo cinema: apresentar o Japão a um novo elenco de

personagens destituídos de culpa e dotados de instintos e individualidade. A era dos filmes da

Nouvelle Vague japonesa atravessa duas décadas – 50 e 60 – mas sua força estética, que

integra tradição e quebra de tabus, arrastou-se até o final da década de 70, quando Nagisa

Oshima, o mais transgressor e pessimista dos novos cineastas, radicalizou sua experiência

realista através do filme Império dos Sentidos.

Considerado um dos mais ousados filmes eróticos feitos na década de 70, Império dos

Sentidos é o roteiro adaptado de um sui generis caso de homicídio ocorrido no Japão.

“Trata-se da reencenação da história real de Sade Abe, uma criada que,

nos anos 30 (isto é, auge do militarismo), após semanas de sexo de sexo

ininterrupto com seu patrão, o estrangulou e emasculou, para obter o

máximo de satisfação sexual” (NAGIB, 2006, p. 14).

Financiado pelo mecenas francês Anatole Duman, Império dos Sentidos foi o primeiro

filme de Nagisa Oshima produzido por uma empresa estrangeira e, curiosamente, o primeiro

empreendimento do diretor dedicado à exposição da ancestralidade japonesa, cujas

ressonâncias de uma cultura de liberdade sobreviveram a vários séculos de mudanças

ocorridas no país. Sob a tutela da produtora Argos, Nagisa Oshima efetuou seu trabalho sem

grandes interferências de seus investidores, nem forte controle da empresa, cuja única

exigência feita ao diretor dizia respeito ao enfoque erótico dado à história.

“Oshima submeteu dois projetos a Dauman, que se decidiu pela história de Sada

Abe, baseada num fato real. Dauman sugeriu a mudança do enfoque do tema, com

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que, segundo diz, nada fez senão explicitar um desejo irrevelado do cineasta” (

NAGIB, 1995, p. 146)

Surge, então, o primeiro filme pornográfico de Oshima. Resgatar num homicídio a

nuance erótica do Japão tornou-se para o diretor uma diligência estética: contrastes

cromáticos, a forte presença da cor vermelha, a influência do teatro kabuki e as claras

referências às gravuras eróticas do período Edo, imersas numa atmosfera carregada de

sensualidade e poder, reforçam a transgressão da esfera privada ao promover a afirmação da

individualidade e da publicização de sua intimidade. Como nos filmes da indústria pornô,

Sada Abe e Kichizan são cobertos por olhares, a princípio obscurecidos, tão logo se apressam

a serem convidados pelo casal para o seu ritual de libertação. Sob a atribuição do olhar

voyeaur, Lúcia Nagib (1995) faz uma análise essencial à compreensão deste na trama de

Oshima, na qual, segundo o crítico Pascal Bonitzer, o voyeaur ofereceria ao filme um caráter

de distanciamento.

“Igualmente, como na maioria dos filmes do gênero, dá-se ênfase à figura do

voyeaur, com o qual o espectador se identifica e que, por sua vez, se identifica com

os personagens em ação. Não sendo propriamente uma consciência intermediária,

mas apenas um olho sensível, o voyeaur serve de reforço para a emoção do

espectador e não para seu distanciamento”. (NAGIB, 2005, pág. 157)

Mesmo ultrapassando as limitações padronizadoras do gênero em questão, Império

dos Sentidos dialoga abertamente com o filme pornô. Sua composição, que reflete num

mesmo instante o recuo ao passado de um Japão que celebra a sexualidade e a integração de

um padrão ocidental de cinema à reconstituição de um fato real, atualiza todo o reducionismo

deste gênero, conferindo ao mesmo o imprescindível status de filme pornô, como afirmaria

mais tarde o próprio Nagisa Oshima.

Ao olhar desavisado e desconfiado do espectador, abundam indicações de um link

entre o jidaigeki33

e o filme hardcore34

: o caráter conceitual da orgia, visto sob a ótica da

integração dos indivíduos focalizados pelo entusiasmo de Sada Abe, a presença dos consolos,

que penetram orifícios, conferindo à gueixa deflorada a participação em rituais de passagem, a

33

Tratam-se dos dramas de época japonês 34

Filme de sexo explícito

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contribuição do moneyshot35

, além da constante presença do voyeaur, fazem de Império dos

Sentidos um filme meta-pornográfico, que supera a inanição de uma narrativa de estrutura

delicada em favor da celebração dos indivíduos, mergulhados numa atmosfera de total

liberdade, para a vida e para a morte.

Estes dois impulsos – Eros e Tanatos – fundem-se na figura central de Sada Abe, cujas

ações transgressoras ressignificam culturalmente a representação do corpo feminino no

cinema japonês, reposicionando-o em contextos diversos, culturalmente, daqueles por ele

antes ocupados.

Ao dedicar-se ao estudo do cinema novo japonês – e reservar-se mais particularmente

à filmografia de Nagisa Oshima, Lucia Nagib observa uma tripla revolução provocada por

Império dos Sentidos. A primeira refere-se à prática real do sexo na sétima arte. A segunda,

por sua vez, diz respeito à reversão dos efeitos de distanciamento utilizados nos cinemas de

vanguarda para subtrair o efeito do real em suas narrativas. E por último, a terceira revolução

tratará da identificação do ―princípio de realidade‖ ao ―princípio de prazer‖, dois conceitos,

até então, opostos nos estudos da psicanálise e na filosofia da cultura.

Um pequeno percurso da repressão ocidental

Uma das tarefas que cabe à cultura é a educação do homem, uma educação que

preserve e aguce (potencialize) todas as faculdades humanas. Freud afirma que ―A história do

homem é a historia de sua repressão‖. A civilização (considerando-se neste caso, cultura e

civilização como sinônimos) começa quando o homem abre mão da satisfação integral de

suas necessidades. O principio de prazer é reprimido em prol do principio de realidade. Esta

coerção se dá para que haja progresso e para a manutenção da cultura. O principio de

realidade reprime princípios da natureza humana, transformando-os em instintos perversos e

irracionais, que passam a ser prejudiciais à vida na civilização, resultando na supressão das

capacidades e no modo de vida do homem. A civilização decreta que Eros (instinto de vida)

deve ser controlado para não seguir funesto como Thanatos (instinto de morte). Os impulsos

35

Na estética Hardcore, prevalece como característica fulcral o close da ejaculação no rosto da mulher, mais

conhecido como Money Shot, plano que representa na dramaturgia pornô o clímax de uma ação. Para mais

informações sobre o termo, consultar O olhar Pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo, de

Nuno Cesar Abreu.

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naturais do homem são convertidos, se antes dedicava-se mais tempo à atividade lúdica (ao

prazer), agora se volta à emergência da produtividade. A história da repressão do homem nos

apresenta tanto sua necessidade de ter cultura como suas sequelas e perdas.

Desde Platão, em sua República, já se havia uma forte presença da repressão em relação

à educação e à mimese. Esta última, segundo o filósofo, é vista como agradável, porém inútil,

e seu perigo está em ser agradável, pois tal sentimento pode ser configurado como um desvio.

Platão nos diz que há uma mimese ―negativa‖, que constrói apenas simulacros e ameaça o

processo de construção da civilização. Como a mimese pode ser uma ameaça no processo de

construção da civilização, se o aprendizado mimético produz prazer e favorece o processo de

conhecimento? Imitar, criar e construir está por trás de toda e qualquer manifestação do ser

humano para expressão dos mais diversos sentimentos.

“A luta começa com a perpetua conquista interna das faculdades “inferiores” do

individuo: as suas faculdades sensuais e apetitivas. A sua subjugação é

considerada, pelo menos desde Platão, um elemento constitutivo da razão humana,

a qual é, assim, repressiva em sua própria função”. (MARCUSE, 1972, p. 107).

As faculdades sensuais sempre estiveram condenadas ao reino das faculdades

inferiores. A disciplina estética prova com o seu nascimento essa subjugação. Se antes não era

levada a sério, quando esta surge enquanto ciência da arte e do belo, continuou a ser vista

como um conhecimento inferior.

Para os ocidentais, as influências da realidade externa dão vazão ao sentimento de

culpa, pois ―à medida que a civilização avança, o sentimento de culpa é ainda mais

―reforçado‖, ―intensificado‖, está em constante incremento‖. (MARCUSE, 1972, p. 83). Os

japoneses, por sua vez, são envolvidos por outro sentimento – a vergonha, não sendo esta o

resultado de uma repressão, e sim de uma conduta, pois consiste no que é bom para a vida

consigo e com o outro, uma vez que os japoneses se ocupam em trabalhar e viver bem em

conjunto. Se o sentimento de culpa é uma espécie de castração para os nossos desejos, os

japoneses, em contrapartida, não abriram mão do prazer: o princípio de prazer atua seguido

de suas potencialidades naturais, nas quais a educação ocupa espaço fundamental para o seu

aprimoramento.

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A cultura ocidental abriu mão do lúdico em prol do trabalho e da produção, o princípio

de prazer o mostra, enquanto tido como ameaça à civilização. Para os japoneses, contudo, o

prazer é a própria libertação, é um saber lidar com o que é natural ao homem e com o que este

constrói: civilização, técnica, condutas, educação e etc.

O retorno do Erótico

O sexo, visto como uma quebra de tabu - já que não pertence aos conformes da

normalidade e da moralidade, é libertador, pois aspira à consumação efetiva do prazer: a

gratificação. Essa ação erótica se encontra à margem da cultura: tudo o que se mantém livre

vive à margem ou se anula a exemplo da arte. A sexualidade, na maioria das culturas,

permanece no âmbito das instituições monogâmicas, ficando a serviço da procriação – uma

sexualidade procriadora. Império dos Sentidos, na contramão deste juízo, resgata uma tradição

erótica que está entrelaçada com a morte – ―a morte como ápice do prazer‖.

“Os jovens diretores se lançaram no exercício de recuperação de tradições

japonesas de cultivo do corpo humano e do entorno físico sufocadas pelo

militarismo e a ocidentalização... Assim dedicaram-se a experiências

cinematográficas extremas de sexo, violência e morte, incluindo a pratica (e a

etiqueta) do suicídio” (NAGIB,2006, pág.130 e 131).

Em Império dos Sentidos, o erótico é resgatado pelo relacionamento de Sada Abe e

Kichizan – uma relação transgressora, também exemplificada na cena em que crianças correm

nuas pela chuva, que é um elemento erótico, pelo abrupto toque no órgão genital do menino e,

no decorrer do filme, a pornografia se esvai e dá vazão ao puro erotismo. Oshima, ao trazer de

volta o erotismo, agrediu a cultura moralista ocidental estabelecida, já que mostra indivíduos

livres, cujo comportamento subversivo seria definido pela perversão. A essa imagem,

recorramos ao princípio de prazer e ao princípio da realidade. Quando o princípio de prazer,

assim como a fantasia, é classificado como perversão, tudo o que adquirimos pelo princípio

ordenador nos faz recuar e sentir culpa ao dar espaço a esses instintos que há muito vem

sendo esquecidos, pois o que a cultura tenciona é promover o apagamento de uma natureza

autêntica. O erótico mostra a liberdade da qual abrimos mão para viver em civilização. A isso

se sobressai a proposta de uma educação estética, que não tentaria dominar a natureza e

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reprimir nossos instintos, mas educar para sermos completos, não considerando uma ameaça

nossos impulsos eróticos.

Considerações Finais

À medida que o Japão se desenvolvia tecnologicamente, parte de seu legado era

soterrado por um massivo processo de ocidentalização, resultando não somente no progresso

do país, mas no esquecimento de uma tradição voltada à busca do prazer, da educação do

corpo e, principalmente, na manutenção de uma cultura de liberdade.

Tais ideais, entretanto, reaparecem no país, em plena euforia de sua americanização.

Através de jovens artistas, efetuou-se um recuo às origens primitivas do Japão, no intuito de

questionar a situação de um país cujo processo de ocidentalização, bem como episódios como

a derrota japonesa na 2º guerra, determinariam o apagamento de suas antigas tradições.

Conhecido como Nouvelle Vague Japonesa, o movimento artístico que buscou o recuo

às origens culturais nipônicas caracterizou-se pelo resgate de um ideal de liberdade cuja

principal expressão, através do cinema, foi a sexualidade e seus desdobramentos no Japão.

Reunindo uma diversidade de cineastas, questionou não somente paradigmas da cultura

ocidental no país, mas o próprio modelo de produção do cinema ao colocar no centro da

discussão a presença do jovem cineasta em confronto com a figura do ―mestre‖, e a relação do

Japão com seu passado cultural.

O filme Império dos Sentidos é uma obra influenciada por esta proposta de resgate e

expõe que, mesmo reféns do processo de ocidentalização, os ideais de liberdade da tradição

japonesa resistiram ao impacto das transformações culturais sofridas pelo país. O filme tem

por intuito visualizar de que modo a experiência de liberdade proposta por sua narrativa pode

ser percebida como modelo para uma cultura ocidental fundamentada na negação do prazer e

no sentimento da culpa.

Império dos Sentidos, ao mostrar a quebra de tabus e a busca incessante pelo prazer,

leva-nos a pensar no principio ordenador da cultura ocidental, como a subjugação dos

instintos efetivada pelos controles repressivos, restando uma proposta de educação estética,

que resgate o prazer e a liberdade e, consequentemente, liberte a civilização de suas amarras

repressivas. À educação estética caberá essa tarefa, já que, assim como os homens, a educação

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encontra-se no véu da cultura, não oferecendo fundamentos na promoção da autonomia dos

homens: uma educação libertadora.

A necessidade da educação é imprescindível ao convívio em sociedade, mas seu

procedimento deveria estar atrelado à compreensão de sua tarefa de domesticar os instintos,

ao invés da repressão de pulsões que integram a natureza dos homens.

O corpo nipônico é um corpo educado. A pornografia japonesa, como nos apresenta

o filme Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, mostra o resgate do erotismo, mostrando um

homem que, destituído de culpa e de toda a conformidade que o ser-humano mantém com a

sua natureza, torna a sua ação sempre provida de uma moral, pois há um perceptível

reconhecimento nas ações que preservam a espécie.

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Lacan com Spielberg - O Olhar Abjeto da Nova Lei

Ivan Capeller36

Resumo

Uma análise do filme Minority Report – A Nova Lei, de Steven Spielberg, a partir do conceito de

olhar-objeto, precedida por uma breve revisão da recepção das ideias de Jacques Lacan pela teoria do

cinema, bem como de sua crítica.

Palavras-chave: cinema; psicanálise; olhar-objeto

Spielberg with Lacan: Minority Report’s Abject Gaze

Abstract

An attempt to read Steven Spielberg‘s Minority Report through the concept of gaze as an object,

opened by a brief revision of the way that cinema theory absorbed Jacques Lacan‘s ideas as well as

criticized them.

Keywords: cinema; psychoanalysis; gaze

O desvão cinematográfico do olhar

O psicanalista interpretado por Bruce Willis em O Sexto Sentido (The Sixth Sense, de

M. Night Shyamalan) empenha-se com todo o seu profissionalismo e sabedoria científica na

compreensão do verdadeiro significado das alucinações a que seu paciente de oito anos de

idade é constantemente submetido - apavorantes visões de pessoas que haviam acabado de

morrer de forma violenta sem que o tivessem compreendido ainda, imagens sangrentas de

gente que relutava em reconhecer seu próprio fim. O Sexto Sentido começa dando-nos a

impressão de que assistiremos à narrativa de um processo terapêutico de cura pela psicanálise

- trabalho a ser realizado através da elaboração verbal deste complexo imaginário de

fantasmas e de sua austera redução à dimensão puramente simbólica de seus elementos

constituintes, atenuando seus efeitos traumáticos e almejando a gradativa desaparição dos

sintomas. Porém, sentado em sua poltrona, o psicanalista conscientiza-se da insustentabilidade

de sua posição e da impotência radical de seu empreendimento, já que até mesmo a

velocidade e o ritmo de assédio das horripilantes imagens que assolam seu paciente são muito

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Ivan Capeller é doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor adjunto da

ECO – Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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mais impactantes do que o lento trabalho de elaboração simbólica próprio ao trabalho de

análise. Podemos observá-lo no instante preciso em que, percebendo-se como já morto,

compreende o sentido terminal do encontro que tivera com esse último paciente. E é

justamente neste instante que percebemos que seu olhar e seu silêncio ao longo do filme não

representavam realmente sua profunda interioridade subjetiva, refletindo na verdade o vazio

opaco e superficial de um espectro. A própria irredutibilidade final do fantasma a todas as

suas possíveis determinações simbólicas (velho tema dos filmes de terror desde O Exorcista)

é levada neste filme às últimas consequências.

Neste embate entre a razão simbólica que deve ordenar e conferir sentido às imagens e

um imaginário incontrolável e perturbador, há uma diferença radical entre a representação

cinematográfica clássica da ameaça espectral e suas versões mais contemporâneas: enquanto o

cinema de um Hitchcock (Vertigo, 1958) ou de um Tourneur (Cat People, 1942) estruturava-

se a partir de uma razão interpretante mobilizada para a esconjuração simbólica de fantasmas

imaginários, apresentando espectros ou fenômenos assustadores e inexplicáveis apenas com a

intenção de anular seus possíveis efeitos perturbadores e relegá-los ao desvanecimento

completo no final do filme, o cinema contemporâneo prefere acentuar a descrição labiríntica

das múltiplas armadilhas imaginárias em que o mais experiente analista pode acabar se

enredando.

Essa inversão de ênfase entre os aspectos simbólico e imaginário de um filme é uma

característica presente não só na prática cinematográfica contemporânea como também em

sua teoria, cada vez menos confiante nos modelos de orientação marxista e

semiológico/estruturalista próximos da psicanálise lacaniana que ficaram conhecidos sob a

denominação de teoria do aparato (ou dispositivo) cinematográfico. Tais modelos recorreram

à idéia lacaniana de uma "fase do espelho" na constituição do sujeito humano para descrever o

modo específico com que o cinema obtém a adesão inconsciente do espectador à ideologia

que veicula. Através de sua identificação imaginária com o ponto de vista monocular da

câmera, isto é, com um sujeito do olhar simbolicamente pré-determinado - identificação

facilitada pela impressão fotográfica da realidade em movimento - o espectador é convidado a

estabelecer com o filme uma série de identificações secundárias com os tipos e situações nele

representados, projetando-se psiquicamente na tela e envolvendo-se afetivamente com o

conteudo ideológico da representação, de forma a aceitá-lo acriticamente.

Para Jean Louis Baudry, tanto o aparato técnico necessário ao registro e à projeção de

imagens em movimento como os procedimentos de continuidade que perpassam todas as

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etapas de execução de um filme (da filmagem à projeção, passando pela montagem) têm o

objetivo de simular imaginariamente um sujeito transcendental do olhar com o qual o

espectador deve se identificar. O que garante a ocorrência deste processo de identificação é o

fato de que o processo de constituição do sujeito exige - em um estágio anterior à aquisiçao da

capacidade de andar e de falar pela criança - a percepção do próprio reflexo especular, da

própria imagem no espelho, como a imagem primordial de um eu ideal com o qual o sujeito

estabelece identificações primárias de forte carga afetiva.

O processo de identificação do espectador ao ponto de vista da câmera enquanto

sujeito transcendental do olhar estimularia os processos mais profundos de identificação

narcísica do espectador consigo mesmo, aproximando a tela do cinema da função do espelho:

fazer com que o espectador identifique-se ao filme, identificando-se a si mesmo como o

próprio sujeito do olhar que constitui o filme.

Autores como Stephen Shaviro, no entanto, desmontam o esquematismo

reducionista implícito à teoria do aparato cinematográfico e revalorizam teoricamente a idéia

de uma irredutibilidade conceitual do imaginário cinematográfico à lei simbólica - uma

tendência que a produção cinematográfica contemporânea parece confirmar. Shaviro insurge-

se radicalmente contra a ideia de que a imagem cinematográfica seja essencialmente ilusória

e vazia, e de que derive seu poder de persuasão ideológica justamente de uma potência

"imaginária" de atribuição da impressão de realidade a qualquer objeto por ela representado.

Enquanto Metz declara que "aquilo que define o regime escópico propriamente

cinematográfico não é tanto a distância mantida, (…) como a ausência do objeto visto"

(METZ, 1993, p.86), Shaviro afirma que

a imagem não é um substituto representacional para o objeto tanto quanto é - como um

cadáver - resíduo ou traço material do fracasso do objeto em desaparecer completamente

(…) a imagem não é um sintoma da ausência, da falta, mas sim um resíduo estranho,

excessivo, que subsiste quando tudo deveria estar ausente (SHAVIRO, 1993, p.16).

A ontologia da imagem cinematográfica deve afastar-se assim de uma concepção

baseada na representação e na ideologia que procura - nas palavras de Metz -"retirar o objeto-

cinema do imaginário para conquistá-lo ao simbólico, na esperança de anexar a este último

uma nova província" (METZ, 1993, p.9). Tentando apreender as potências intrínsecas de sua

materialidade própria e de sua irredutibilidade essencial a qualquer objeto de representação,

Shaviro não descreve a imagem cinematográfica como um instrumento ou aparato de sujeição

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e domínio da realidade pela ideologia, mas como um fator de ameaça e de desagregação deste

mesmo domínio:

Ver um filme é algo que resiste aos cânones da "verdade" perceptiva (…) as imagens na

tela são violentamente afastadas de qualquer horizonte ou contexto externo, assim como de

qualquer presença (…) a imediaticidade da imagem curto-circuita os processos de

significação, enquanto sua incorporalidade impede qualquer referência objetiva.

(SHAVIRO, 1993, p.28)

A experiência cinematográfica estaria baseada na reprodução direta de eventos e na

exposição do público aos seus efeitos. Um bom exemplo pode ser estabelecido a partir da

famosa anedota acerca da primeira exibição, em 1895, de L'Arrivée d'un Train à la Gare de la

Ciotat, dos irmãos Lumière:

A materialidade da sensação permanece irredutível a - e irrecuperável pela - idealidade da

significação. Foi pelo choque e pela surpresa deste movimento que se encantaram os

primeiros espectadores do cinema no final do século XIX e não por sua capacidade ou

complacência de reconhecer o real em sua reprodução. Godard evoca esta sensação muito

bem em uma sequência de 'Les Carabiniers' em que seu jovem protagonista vai ao cinema

pela primeira vez. Ao ver o filme de Lumière com a tomada do trem aproximando-se

diretamente a câmera (e portanto da audiência), reação imediata do garoto nao é - como

poderíamos supor - a de tentar fugir correndo, mas a de cobrir os olhos. Ele não reage como

se o trem estivesse realmente ali; ele responde antes à imagem real de um trem. Ele não é

afetado por qualquer suposta verossimilhança representacional da imagem, mas por sua

persistência e movimento viscerais. Um trem está de fato se dirigindo para ele - não para a

sua cadeira na sala de projeção, evidentemente - mas para a sua linha de visão. (SHAVIRO,

1993, p.33)

Há uma irredutibilidade ontológica da imagem cinematográfica ao domínio simbólico

da representação. Para Shaviro, a objetividade material da imagem cinematográfica ultrapassa

- por sua própria constituição e por seus efeitos concretos - qualquer tentativa de

determinação simbólica a partir de um sujeito transcendental do olhar:

Quando eu olho [um filme], minha mente não está presente: a visão e a audição, a

antecipação e a memória, não me pertencem mais. Minhas reações não são internamente

motivadas e não são espontâneas; são impostas sobre mim do exterior. (…) Quando eu olho

um filme, um estranho interesse se apossa de mim, do qual não posso escapar, mas de que

também não posso me apropriar. (SHAVIRO, 1993, p.49)

Ao substituir a idéia de uma representação cinematográfica propiciadora de

identificações imaginárias por um dispositivo de reprodução de imagens que é o único

verdadeiro sujeito dos efeitos cinemáticos que provoca, Shaviro revela-nos o limite

epistemológico comum tanto à teoria do aparato como à sua: a necessária postulação de um

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suposto sujeito do olhar como garantia da eficácia do dispositivo. Destituindo o espectador de

sua posição de identificação com o sujeito transcendental do olhar, Shaviro não considera

mais a imagem como a representação de um objeto para o espectador, mas sim como o

próprio objeto de reprodução do dispositivo - apesar do espectador: "Não é o olhar [do

espectador] que demanda imagens, mas são as imagens que solicitam e sustentam o olhar

enquanto lhe permanecem indiferentes" (Shaviro, 1993, 20). Portanto a imagem captura o

olhar do espectador e o sujeita de forma completamente inequívoca, sem nenhuma brecha ou

desvio possível de sentido; se antes a relação imaginária de identificação do espectador com o

filme era pensada em suas mediações com a representação, agora é pensada como imersão

direta do olhar do espectador no objeto-imagem - ou, no sentido inverso, como a projeção real

deste objeto sobre o olhar do espectador. É a imagem que atua como sujeito sobre o olhar do

espectador, transformado em objeto: assim a sujeição deste aos efeitos do dispositivo é

completa, sendo a visibilidade deste último total. Shaviro aproxima o dispositivo

cinematográfico do dispositivo panóptico de Foucault, considerando o efeito de subjetivação

no espectador como uma realização direta e integral do dispositivo, o que o impossibilita

pensar em que medida este efeito de subjetivação é também resistência ao dispositivo, e

sobretudo impossibilitando-o pensar o olhar-objeto como aquilo a que resiste o sujeito em seu

processo de subjetivação.

Esta "resistência à resistência" é uma das características mais problemáticas do que Joan

Copjec define como "o argumento panóptico" em um artigo fundamental para a compreensão

da complexa história da recepção das ideias lacanianas pela teoria cinematográfica. No

dispositivo panóptico, a circularidade sem falhas do olhar baseia-se, segundo Copjec, na

equiparação das categorias de visibilidade e conhecimento por um lado, e nas de efeito e

realização, por outro. Pois, se a imagem é perfeitamente reconhecível através de sua

visibilidade integral, o sujeito se realiza inteiramente enquanto efeito do dispositivo:

[Há] um paradoxo manifesto na descrição de Foucault do poder panóptico e na descrição

pela teoria cinematográfica da relação entre o aparato e o olhar. Em ambos os casos o

modelo de auto-vigilância recorre implicitamente ao modelo psicanalítico da consciência

moral, mesmo quando essa proximidade é negada. A imagem da auto-vigilância, da auto-

correção, é ao mesmo tempo necessária para construir o sujeito e redundante devido ao fato

de que o sujeito assim construído é, por definição, integralmente correto e 'direito'. A

inevitabilidade e completude de seu sucesso faz com que o gesto ortopédico de vigilância

seja desnecessário (…) a relação entre o aparato e o olhar cria apenas uma miragem de

psicanálise. Não há, de fato, nenhum sujeito psicanalítico à vista (COPJEC, 2000, p.444).

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Copjec descreve aqui a influência do dispositivo panóptico sobre a teoria do aparato

cinematográfico de Metz e Baudry, demonstrando como a sujeição do espectador ao

dispositivo já era pensada indiretamente pelos teóricos do aparato em sua leitura da fase do

espelho:

Este é o quadro descrito por Metz. O sujeito reconhece primeiro a si mesmo ao identificar-

se com o olhar e então reconhece as imagens na tela. Mas, o que é precisamente o olhar

neste contexto? (…) o olhar é sempre o ponto a partir do qual a teoria cinematográfica

concebe o processo de identificação (…) o sujeito vem a ser ao identificar-se com o sentido

da imagem. O sentido funda o sujeito. (COPJEC, 2000, p.442)

Há um equívoco fundamental nesta leitura da fase do espelho em Lacan, equívoco que

também se manifesta na analogia traçada por Baudry entre a alegoria da caverna e a sala de

projeção de cinema: a ideia de que a identificação do espectador com as imagens será sempre

eficaz na medida em que se baseia em uma identificação primordial com sua própria imagem

no espelho, garantindo assim sua sujeição aos efeitos ideológicos do aparato.

Segundo Copjec,

a imagem não só parece representar perfeitamente o sujeito, como também parece ser uma

imagem da perfeição do sujeito. A definição comum de narcisismo parece apoiar esta

relação: o sujeito apaixona-se pela própria imagem como imagem de seu eu ideal. A não ser

pelo fato de que o narcisismo transforma-se nesta versão em uma estrutura que facilita a

relação de harmonia entre o sujeito e a ordem social (…) enquanto, na versão psicanalítica,

a relação narcísica do sujeito com seu eu é vista como um conflito disruptivo com outras

relações sociais. Estou tentando apontar aqui para um ponto de discordância entre a

psicanálise e o argumento panóptico que não é de pouca importância: a oposição entre a

força disruptiva do narcisismo e a força de constituição das relações sociais é um dos

postulados básicos da psicanálise. (COPJEC, 2000, p.442)

A identificação primordial de um sujeito consigo mesmo, através de sua imagem, está

longe de garantir a sua adesão à lei social, constituindo-se, pelo contrário, em ameaça

permanente à eficácia integral desta adesão. Assim, o processo narcísico de identificação

imaginária não pode ser considerado como uma fonte de coesão e sentido para o olhar; sua

especularidade coloca o sujeito em fundamental desacordo com sua própria imagem,

alienando-o de si mesmo em seu próprio processo de constituição.

Para Copjec, a psicanálise não "condena" platonicamente o imaginário como fonte de

desengano e desilusão para o sujeito, como pretende Shaviro. Antes, demonstra de que forma

o imaginário será sempre uma fonte de suspeita para o sujeito e de ameaça à sua consistência

simbólica, de que forma o olhar se estabelece contra o sujeito. Embora correto em sua crítica

aos teóricos do aparato e à sua interpretação específica da questão do imaginário em Lacan,

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Shaviro partilha de seu equívoco fundamental - a confusão da teoria psicanalítica com um seu

objeto, já que a tentativa de redução do imaginário à representação simbólica é considerada

por Shaviro como uma operação teórica da psicanálise (e os teóricos do aparato o

confirmaram em seu equívoco, pois acreditavam ser esta a intenção da psicanálise) enquanto a

própria psicanálise nada mais é do que a constatação cabal da impossibilidade radical desta

redução.

Ao eliminar a necessidade da representação ideológica e da identificação imaginária

para o funcionamento do aparato cinematográfico, Shaviro inverte a relação de determinação

entre o simbólico e o imaginário sem perceber que sua concepção panóptica do olhar apenas

acentua este reducionismo ao invés de evitá-lo. Assim, se o modelo semiológico de aparato

pensado por Metz e Baudry era mais adaptado ao olhar clássico-narrativo que dominava a

produção cinematográfica dos anos 30 até meados dos anos 70, a teoria de Shaviro apresenta

um instrumental de análise evidentemente muito mais apropriado para a discussão do cinema

industrial contemporâneo e de seus efeitos. No entanto, sujeitando o olhar ao dispositivo

panóptico, Shaviro perde a possibilidade de pensá-lo plenamente em seu desvio para o objeto.

Isto ocorre porque ele identifica a função do olhar com o campo escópico ou visual, ou seja,

com a dissociaçao panóptica ver/ser visto.

Joan Copjec, por sua vez, chama a atenção para o fato de que

a teoria cinematográfica introduziu o sujeito em seus estudos, incorporando assim a

psicanálise lacaniana, basicamente através d'O Estádio do Espelho como Formador da

Funçao do Eu. Era a este ensaio que os teóricos faziam referência quando formularam suas

idéias sobre a relação narcísica do sujeito com o filme e sobre a dependência desta relação

ao 'olhar'. Embora o ensaio sobre a fase do espelho realmente descreva a relação narcísica

da criança com sua imagem no espelho, não é neste ensaio e sim no Seminário XI que

Lacan formula o seu conceito de olhar. Aqui (…) Lacan reformula seu ensaio anterior sobre

a fase do espelho e traça um panorama muito diferente daquele que foi pintado pela teoria

cinematográfica. (COPJEC, 2000, p.447)

Para Jacques Lacan, o olhar pode ser tratado como um objeto na medida em que o

considerarmos como aquilo que da imagem não se deixa ver:

Em nossa relação com as coisas, na medida em que esta relação é constituída através da

visão, e ordenada pelas figuras da representação, algo desliza, passa, é transmitido de

estágio em estágio, e é sempre eludido em certo nível - isto é o que chamamos de olhar.

(LACAN, 1979, p.73)

Para além da dicotomia entre o ver e o ser visto, há uma dicotomia fundamental entre

a visão e o olhar que é o próprio fundamento do campo escópico, da visibilidade. Enquanto a

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visão está ligada ao olho e àquilo que é especificamente ótico na imagem, o olhar responde

pelo desvio ou desencontro constante entre o visível e seu sentido:

Não há e não pode haver visão pura, visão totalmente desprovida de sentido (…) como os

significantes são materiais, ou seja, como são mais opacos do que translúcidos, como se

referem a outros significantes ao invés de referir-se diretamente ao significado, o campo da

visão não é claro ou facilmente percorrível. (COPJEC, 2000, p.449)

Como as leis da ótica mapeiam a propagação da luz apenas através do espaço,

revelam-se insuficientes para entendermos como olhamos uma imagem para não a ver,

elidindo assim o que a faz propriamente imagem - o olhar. Uma descrição puramente ótica do

jogo perceptivo de luzes e cores que conforma uma imagem deve necessariamente excluir de

sua perspectiva a questão da função do olhar. Isto só é possível porque o olhar é precisamente

aquilo que falta à imagem para que esta apareça como tal aos olhos de um sujeito.

A emergência do campo escópico se dá com o desvio do olhar para o objeto e a

instalação do olho como orgão subjetivo da visão. O olhar é aquilo que falta à imagem, aquilo

que é expulso da imagem para que esta possa vir a ser (imagem). Mas a falta de que falamos

aqui não é constitutiva de um "significante imaginário" especificamente cinematográfico

como em Metz ou como em Shaviro - que cita um artigo de 1988 de Kaja Silverman em que

esta fala do "espectro de uma perda ou ausência no centro da produção cinemática"

(SILVERMAN, 1990, p.110-127) e parte daí para criticar o uso da noção de falta pela teoria

cinematográfica. Correto em sua crítica, Shaviro apenas desconhece o fato de que o que a

teoria do olhar-objeto precisamente não faz é localizar a falta na diferença entre a imagem

cinematográfica e as imagens reais. Não se trata da ausência de um referente concreto que

caracterizaria a imagem cinematográfica como um substituto ou duplo da realidade, e sim

daquilo que "aparece [na imagem] como uma 'tela' ou 'mancha', como um 'ponto': o olhar que,

no espaço visual, apresenta-se sempre como um jogo de transparência e opacidade"

(ZUPANCIC, 1996, p.34-35).

O olhar-objeto é o significante da própria falta - daquilo que, na imagem, não se deixa

desvelar pelo campo visual. A constituição de um sujeito transcendental do olhar identificado

à monocularidade perspectiva da camera obscura - uma importante premissa da teoria do

aparato – é, portanto, simplesmente incompatível com a teoria lacaniana do olhar-objeto, pois

a identificação do sujeito já não pode mais ser feita com o olhar enquanto o centro

organizador das significações da imagem, e sim "com o olhar como o significante da falta que

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esmorece a imagem" (COPJEC, 2000, p.449). O olhar-objeto é ponto de quase dissolução da

imagem, de suspensão de seu sentido, portanto de ameaça à constituição do sujeito:

Pois, para além de tudo o que é exibido ao sujeito, uma questão é colocada: o que está

sendo escondido de mim? O que é que neste espaço gráfico não se expõe, não cessa de não

se inscrever? Este ponto em que algo aparenta ser invisível, este ponto em que algo se furta

à representação, em que algum sentido permanece oculto, é o ponto do olhar lacaniano. (…)

É um ponto em que o sujeito desaparece. A imagem, o campo visual, aparece então com

uma aterrorizante alteridade que impede o sujeito de se identificar com a representação.

Aquela 'sensação de intimidade' é subitamente esvaziada da representação, na medida em

que o espelho assume a função de tela. (COPJEC, 2000, p.450)

A tela não é mais comparada a um espelho, antes é o próprio espelho que adquire aqui

a função de tela: qualquer imagem é uma imagem apenas na medida em que se interpõe entre

o sujeito (da visão) e o olhar-objeto, e não entre sujeito e "realidade". Do ponto de vista do

sujeito, o olhar-objeto será sempre olhar-abjeto, será sempre mau-olhado: isto ocorre porque a

própria constituição do sujeito é atravessada pela dicotomia entre a visão e o olhar. "Ali onde

o sujeito se vê…não é dali que ele se olha…" (LACAN, 1979, p.73).

A ambiguidade do imaginário não está mais situada aqui em relação ao conteúdo de

sua representação ou às suas condições simbólicas de enunciação, mas sim àquilo que a

imagem oculta em sua própria mostração, àquilo que deve ser suprimido do campo do visível

para que este se faça visível. Assim, o sujeito identifica-se com a imagem enquanto

representação ideológica não porque acredite em sua verdade, porque seja enganado por ela

(como pretende a teoria do aparato) - e sim porque sabe que ela é falsa:

Enquanto a posição da teoria cinematográfica tende a enquadrar o sujeito na armadilha da

representação (um erro idealista), a conceber a linguagem como a construção dos muros da

prisão que é a existência do sujeito, Lacan afirma que o sujeito vê esses muros como um

trompe-l'œil e é, portanto, construído por algo além deles. (…) Lacan certamente não está

oferecendo uma descrição agnóstica da maneira com que o objeto real escapa à captura no

interior da rede de significantes. (…) A opacidade da linguagem é considerada a própria

causa da existência do sujeito, de seu desejo. O fato de que é materialmente impossível

dizer a verdade toda (…) funda o sujeito. (COPJEC, 2000, p.450)

Por trás da representação imaginária propiciada pelo campo escópico não há nada

além do olhar-objeto enquanto significante da falta. Esta última reside precisamente na

opacidade material do olhar. A "falsidade" do imaginário garante assim a própria existência

do sujeito, que se verá sempre ameaçado, por outro lado, pela materialidade excessivamente

verista e inquietante de certas imagens, por algo na imagem que não corresponde inteiramente

à imagem e que escapa ao seu sentido.

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Shaviro concebe o dispositivo cinematográfico exatamente como um dispositivo de

produção desta "inquietude". Sua descrição das propriedades da imagem cinematográfica

enfatiza a materialidade de seus distúrbios, a proliferação monstruosa de seu olhar e seus

reflexos no cinema contemporâneo. Porém, ao basear a materialidade deste olhar na

especificidade de seu dispositivo - a reprodução cinematográfica - Shaviro não percebe que é

a materialidade de qualquer dispositivo de visão que se suporta do olhar enquanto objeto; o

sujeito para Shaviro é apenas um elemento do circuito de reprodução das imagens, e não um

fator de desvio ou resistência ao olhar.

A mera constatação de que há uma descontinuidade radical de sentido entre os

diversos dispositivos de visão e seus respectivos sujeitos do olhar não basta para a

compreensão do olhar-objeto. Este erro ou fantasia acerca de um sujeito do olhar (seja ele

transcendental ou materializado em seu dispositivo) é descrito por Lacan através da fórmula

―vejo-me ver-me‖: a pretensa eficácia e suposta transparência do dispositivo panóptico reside

precisamente nesta ilusão, a de que a dimensão ótico-geométrica da imagem possa esgotar as

possibilidades significantes do campo escópico e operar a sutura entre sujeito (da visão) e

olhar-objeto através de um possível sujeito do olhar. O que a teoria do panoptismo descreve

em termos de potência e produção só pode ser lido pela teoria do olhar-objeto como

manifestação de impotência e ameaça de destruição: o encontro do sujeito com o olhar que lhe

devolve a sua própria imagem deve ser evitado a todo o custo para que a representação

imaginária se estabeleça no campo escópico.

Nossa hipótese é a de que a emergência deste olhar é acompanhada pelo fracasso

imediato do dispositivo panóptico, de sua falência social : é a própria crença na eficácia do

sujeito do olhar panóptico que reforça o caráter socialmente abjeto deste olhar.

O olhar abjeto do dispositivo panóptico

Minority Report - A Nova Lei, de Steven Spielberg, ilustra esta questão de maneira

quase involuntária: Spielberg idealiza um dispositivo panóptico absolutamente sem falhas,

uma sociedade em que até o tráfego dos carros é controlado automaticamente por mecanismos

de identificação imediata de seus passageiros. O sujeito do olhar panóptico está presente por

toda a parte, esquadrinhando e identificando todas as atividades humanas a partir de um olho-

mecânico tão perfeito que é capaz de proceder ao rastreamento imediato de qualquer pessoa a

partir do padrão reticular de sua íris: o panóptico de Spielberg pretende realizar integralmente

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a redução do olho a um puro objeto e a captura total do olhar pelo dispositivo. A circularidade

total do dispositivo exige o controle não só do espaço de locomoção dos homens mas

principalmente da temporalidade de suas ações, "realizando" integralmente a existência do

sujeito dentro dos mecanismos do dispositivo panóptico. O olho-mecânico deve ser portanto

complementado por um olho-psíquico sensível às imagens que chegam do futuro

(representado no filme pelos chamados "pré-cognitivos", filhos de ex-viciados em heroína que

nasceram com poderes de vidência), reduzindo ao máximo as possibilidades subjetivas de

desvio (crimes) e configurando assim um sujeito do olhar literalmente empírico-

transcendental - o delegado John Anderton da divisao de pré-crimes, que é interpretado por

Tom Cruise.

É sua ação "corretiva" que preenche os intervalos de tempo cada vez menores que são

necessários para a autorregulação do olhar panóptico, tema da primeira sequência do filme: a

interação imaginada aqui entre os aspectos psíquico e mecânico do olhar é quase exata, e é

precisamente neste "quase" que se insere a mancha na imagem, o primeiro sintoma do olhar-

objeto. No caso, a mancha é claramente representada pelo fato de que todas as casas da rua

em que se passará o crime são iguais, e este só pode ser evitado porque a imagem da porta

entreaberta funciona como o ponto ou mancha a partir do qual o objeto nos olha por detrás da

imagem; é precisamente a identificação deste ponto que permite à polícia evitar o crime e

fechar o circuito do olhar panóptico. Portanto, a realização máxima do olhar enquanto sujeito

do dispositivo apenas desencobre a evidência cada vez mais insuportável de seu caráter

abjeto.

Esta abjeção, resolvida idealmente dentro do dispositivo panóptico nesta primeira

sequência, exerce na verdade um efeito profundamente disruptivo sobre o próprio circuito, e

este é o tema abortado de Minority Report. O olhar-objeto destaca-se com a máxima

intensidade do dispositivo panóptico durante a primeira metade do filme, transformando a

vida de seu protagonista em um inferno. Em uma das primeiras sequências noturnas do filme,

o chefe de polícia Anderton compra nas ruas da cidade uma substância ilegal

(sintomaticamente denominada clarity) das mãos de um traficante; a princípio, ouvimos

apenas a voz de um homem de capuz e óculos escuros que diz saber que ele é o chefe de

polícia, mas que, diante de sua reação de espanto e preocupação, o tranquiliza afirmando

literalmente que "em terra de cego quem tem um olho é rei". No momento em que o traficante

está proferindo esta última frase, a câmera enquadra-o em close enquanto ele tira os óculos

escuros: ele não tem os dois olhos, que foram retirados. Seu olhar para Anderton é abjeto na

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medida em que é ao mesmo tempo onividente e cego, isto é, sua impotência é pré-condição de

sua onividência. O olhar-objeto aparece aqui em sua plena oposição ao sujeito do olhar

panóptico, ao mesmo tempo em que é esse mesmo sujeito em sua busca pela transparência

total ("clarity") que o provoca, que o conjura.

O olhar-objeto assume outras formas igualmente desagradáveis para Anderton e

ligadas à sua posição central no dispositivo. Ao contemplar-se cometendo um crime com data

e hora marcadas contra um completo desconhecido ("vejo-me ver-me…"), Anderton torna-se

ele mesmo objeto do olhar panóptico, começa a ser perseguido como um criminoso e deve

trocar seus olhos para escapar à vigilância do dispositivo. O desvio total para o olhar-objeto

realiza-se no lapso de tempo de 12 horas em que Anderton deve ficar escondido com uma

venda sobre seus novos olhos, sem poder abri-los. Ao final deste período, sua venda é aberta

pelo olho "escaneador" de um escorpião mecânico da polícia, um dispositivo abjeto de

controle da identidade que, no entanto, lê a sua íris sem reconhecê-lo, deixando-o livre. Nesta

sequência, o desvio do panoptismo aparece como uma decorrência direta da emergência de

um olhar-objeto claramente provocado pelo próprio panoptismo. Mas Spielberg preferiu

ressuscitar aqui, sintomaticamente, a velha "psicanálise de botequim" do trauma pessoal a ser

imaginariamente exorcisado. O confronto com o vazio abissal da não-identidade implícito à

troca de olhos é "preenchido" com as imagens "mentais" do filho desaparecido de Anderton -

ressubjetivando e repsicologizando o desvio do olhar. A partir daí, o filme afasta-se

progressivamente da questão do olhar-objeto para ensaiar uma crítica de tons "liberais" ao

"totalitarismo" do dispositivo panóptico, perdendo grande parte de seu interesse.

Devemos analisar mais detidamente, porém, a maneira com que Spielberg se afasta da

questão do olhar-objeto à medida em que se aproxima a hora da execução do crime pelo qual

Anderton é perseguido. A sequência de imagens desta execução, já familiar ao espectador,

começa a desenrolar-se como previsto até o momento em que Anderton deve apertar o

gatilho; sabe-se agora que ele matará o suposto responsável pelo desaparecimento de seu

filho, do qual há várias fotos espalhadas no aposento. Mas Anderton retém seu impulso e dá

voz de prisão à sua indignada vítima, que revela então o fato de que havia sido na verdade

contratada para enganá-lo, provocando em seguida a própria morte. Embora a pré-visão tenha

portanto se realizado, Anderton não pode ser considerado o verdadeiro responsável pelo

"crime" na medida em que opôs ao real do acontecimento o limite da lei simbólica (a "voz de

prisão"). Além disso, a pré-visão do futuro real é reconvertida aqui na tradicional armadilha

imaginária construída para o logro do sujeito (no caso, o próprio Anderton): a "orgia de

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evidências" de que nos fala logo depois o investigador do FBI que quer acabar com a divisão

de pré-crimes coloca sob suspeita de fraude o funcionamento do dispositivo panóptico e a

idoneidade de seu mentor, que é também o chefe e principal incentivador de Anderton.

Spielberg prefere portanto denunciar o panopticum como uma fraude ou armação,

como um esquema de dominação baseado no logro do imaginário e na manipulação do

dispositivo. Anderton estava sendo falsamente acusado para que outro crime (cometido por

seu chefe e conectado, evidentemente, ao período de implantação da divisão pré-crimes)

permanecesse oculto. O olhar-objeto já não é mais a ameaça radical ao domínio panóptico do

campo escópico que a primeira parte do filme sugere de maneira tão vívida. O problema agora

é bem mais prosaico, e Spielberg sente-se nitidamente mais à vontade: um crime verdadeiro

foi cometido, há portanto uma cena da origem a ser (des)velada!

As imagens deste crime vêm à tona em uma recepção em homenagem à divisão pré-

crimes, que está para ser implantada nacionalmente. São imagens erroneamente consideradas

como "ecos" do dispositivo, imagens levemente atrasadas de crimes que acabaram de ser

previstos. A fraude, cometida pelo chefe de Anderton, consistiu na execução de um crime real

logo após a sua própria encenação, repetindo as mesmas condições imaginárias do evento de

forma a que o crime real parecesse um eco do encenado. O logro imaginário está portanto na

própria origem do dispositivo panóptico para Spielberg, que o condena apenas na medida em

que este ainda não é o "verdadeiro" panóptico, o dispositivo sem desvio.

Ao desviar-se do olhar-objeto, Spielberg perde a oportunidade de realizar a crítica ao

dispositivo panóptico enquanto tal e contenta-se com a resolução simbólica de um conflito

imaginário: no final do filme, o chefe de Anderton é destituído de sua posição benevolamente

paternal para assumir características obscenas (Enjoy yourselves! It's an order! é o brinde que

ele propõe no início da recepção em que será desmascarado). A confiança das pessoas no

dispositivo panóptico desaparece e a "nova lei" do controle real é derrotada pela "velha lei"

simbólica baseada na "voz", isto é, no engagamento subjetivo da palavra.

Há uma ironia latente nas relações deste filme com a psicanálise: em sua primeira

parte, quando Spielberg descreve a lógica puramente cinemática de um dispositivo panóptico

quase perfeito, o olhar-objeto é evocado de forma praticamente involuntária em todas as

cenas. Mas é precisamente quando Spielberg recorre à psicanálise (ou ao que ele pensa que

ela é), que o filme se afasta das questões que a teoria do olhar-objeto levanta para refugiar-se

na velha solução, bem conhecida pela teoria do aparato, das armadilhas imaginárias e de suas

resoluções simbólicas.

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Referências Bibliográficas

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Um método perigoso: o avesso da psicanálise

Janaina Namba37

Resumo

Trata-se de examinar o filme Um método perigoso, de David Cronenbergh, nos termos da psicanálise

freudiana, teoria (e prática) a que ele se refere, com destaque para a noção de transferência.

Palavras-Chave: Psicanálise, C. G. Jung, Sigmund Freud, Transferência, Sabina Spielrein.

A dangerous method: on the reverse of psychoanalysis.

Abstract

The aim of the article is to examine the movie A dangerous method, by David Cronenbergh, from the

point of view of the Freudian notion of transference.

Keywords. Psychoanalysis, C. G. Jung, Sigmund Freud, Transference, Sabina Spielrein.

O filme Um método perigoso, de David Cronenberg, começa com um clichê: Keira

Knightley, que no filme faz o papel de Sabina Spielrein, uma histérica, grita e se debate ao ser

levada para uma clínica psiquiátrica em Zurique no ano de 1904. Na cena seguinte entra na

sala Michael Fassbinder que se apresenta como Dr. Jung, quem a recebeu na internação. Ela

logo lhe diz que não é louca e ele a tranquiliza dizendo que o tratamento será baseado apenas

em conversas diárias, com ele sentado atrás dela, tendo como única condição ela não se virar

para trás para olhá-lo. O clichê da histeria continua, a paciente se contorce como numa

conversão histérica, mas ainda assim consegue falar, consegue, a partir de uma única

pergunta, numa primeira sessão desenvolver uma série de associações a respeito de uma

possível causa de seus sintomas.

Os primórdios da psicanálise e o conceito de transferência

Onze anos antes da internação mostrada no filme, em 1893, Freud, juntamente com

Breuer, já havia publicado alguns casos clínicos e estudos teóricos sobre os fenômenos

37

Doutora em filosofia pelo DFMC da UFSCar e pós-doutoranda pela mesma instituição.

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histéricos. As investigações desses autores os levaram a crer que os sintomas histéricos eram

produzidos por vivências, as quais os enfermos não conseguiam se recordar: ―o histérico

padece principalmente de reminiscências‖38

. Algumas recordações de vivências são

suprimidas da consciência, nessa época chamada de normal, em contraposição a uma outra

patológica em função de um trauma psíquico. Nesse período, os métodos de tratamento

utilizados baseavam-se na hipnose e na ab-reação, que consiste na catarse do paciente (o

segundo é denominado método catártico). A hipnose é logo abandonada por Freud, pois ele

nem sempre conseguia hipnotizar suas pacientes, já a ab-reação seria uma reação obtida pela

palavra, tão eficiente quanto uma reação adequada, obtida por uma ação, na qual há uma

descarga de afetos (catarse), e, que o leva à constatação de que os sintomas histéricos podiam

desaparecer por completo caso houvesse uma lembrança do processo e do afeto

desencadeantes dos sintomas.39

Tanto o método quanto a teoria da histeria e da neurose sofreram importantes

modificações com o desenvolvimento da psicanálise. O psiquismo, antes dividido e

classificado como normal ou como patológico, passa a ser pensado de maneira estratificada.

Ainda que contenha um núcleo patológico, inacessível à consciência, as camadas

correspondem a zonas de alteração da consciência. Ou seja, essas camadas corresponderiam a

zonas de transição caracterizadas por uma crescente resistência à lembrança à medida que se

aproxima do núcleo. Esse núcleo patológico abrigaria então representações que o enfermo não

pode se lembrar, seriam seus motivos escondidos, inconscientes e causadores de sua

enfermidade.

Essa mudança teórica implicaria numa mudança também de método, pois a terapia não

consistia mais em extirpar algo, senão ―dissolver a resistência e facilitar a circulação, o

caminho, por um âmbito antes bloqueado‖40

. Freud utilizou junto com a livre associação, o

recurso da pressão sobre a testa que consistia na seguinte prática: o paciente deveria dizer a

ele livremente o que lhe ocorresse à mente, no entanto, na ausência de uma lembranças, ou de

pensamentos, a mão era colocada sobre sua testa e este deveria lhe dizer qualquer coisa que

viesse à mente, uma imagem, uma palavra, um sentimento, etc, assim que a mão fosse

38

BREUER, J. y FREUD, S. ―Sobre el mecanismo psíquico de fenômenos histéricos: comunicaión preliminar

(Breuer y Freud) (1893)‖ in Estudios sobre la histeria (1893-1895). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003,

p. 33. 39

BREUER, J. y FREUD, S. ―Sobre el mecanismo psíquico de fenômenos histéricos: comunicaión preliminar

(Breuer y Freud) (1893)‖ in Estudios sobre la histeria (1893-1895). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003,

p. 32. 40

FREUD, S. ―Sobre la psicoterapia de la histeria‖ in Estudios sobre la histeria (1893-1895). Buenos Aires,

Amorrortu Editores, 2003, p. 296.

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retirada. A tarefa do psicanalista seria então a de seguir fios associativos das lembranças, bem

como dos esquecimentos, isto é daquilo que está escondido, inconsciente.

Diz Freud em Sobre a psicoterapia (1905): ―à raiz de minha participação na criação

desta terapia, me sinto pessoalmente obrigado a consagrá-la, a explorá-la e a edificar sua

técnica.‖41

Isso porque considerava a psicanálise, do ponto de vista da técnica, como uma

psicoterapia de efeitos penetrantes e altamente modificadores do enfermo. E do ponto de vista

teórico como a mais interessante por levar em consideração a gênese da trama dos fenômenos

patológicos.

Ainda nos primórdios da psicanálise, Freud aponta como um obstáculo importante à

análise, de origem externa, uma possível perturbação do vínculo entre o analista e o paciente.

O enfermo transfere à figura do médico, representações penosas que florescem do conteúdo

de sua análise, a transferência se daria assim por um enlace falso.42

É interessante notar que

Freud se refere à transferência como um enlace que não é verdadeiro, isto é, sentimentos de

amor, de ódio, de indiferença, etc. que não são verdadeiramente destinados ao analista. Muitas

vezes ele atua como um substituto do personagem principal da trama contada durante a

análise.

O tema da transferência é abordado principalmente ao descrever o caso Dora, com o

título de Fragmento de uma análise de um caso de histeria, em 1905 (ano de publicação).

Neste artigo Freud se pergunta ―o que seriam as transferências?‖ e responde que são

―reedições, recriações de moções e fantasias que, na medida em que a análise avança, não

podem senão serem despertadas e tornarem-se conscientes.‖43

Ou seja, o que é dito em

análise, não é lembrado como algo que se viveu no passado, mas como algo que é

reatualizado no vínculo com a figura do analista. Diz ele numa correspondência a Jung, em

1906:

A transferência fornece o estímulo necessário à compreensão e tradução da

linguagem do Inconsciente; na ausência dela o paciente deixa de fazer esforço ou

41

FREUD, S. ―Sobre psicoterapia (1905 [1904])‖ in Fragmento de análisis de um caso de histeria (Dora), Três

ensayos de teoria sexual y otras obras (1901-1905), Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003. p. 249. 42

FREUD, S. ―Sobre la psicoterapia de la histeria‖ in Estudios sobre la histeria ( 1893-1895). Buenos Aires,

Amorrortu Editores, 2003, p. 306. 43

FREUD, S. ―Fragmento de análisis de um caso de histeria (1905 [1901])‖ in Fragmento de análisis de um

caso de histeria (Dora), Três ensayos de teoria sexual y otras obras (1901-1905), Buenos Aires, Amorrortu

Editores, 2003. p. 101.

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de ouvir quando o submetemos à nossa tradução. Poder-se-ia dizer que a cura é

essencialmente efetuada pelo amor44

.

A transferência seria ela mesma uma prova de que as neuroses são determinadas pela

história de amor do indivíduo, ou seja, na figura do analista seriam depositadas e revividas as

tramas amorosas passadas. Por volta de 1912, Freud escreve uma série de textos relativos à

transferência, mas já havia constatado há bastante tempo, com o avanço da técnica

psicanalítica, que a transferência não era uma ―perturbação do vínculo‖, mas ao contrário,

algo absolutamente necessário, uma expressão psíquica de como são estabelecidos os vínculos

amorosos. Esclarece em Sobre a dinâmica da transferência (1912) que todo ser humano, de

maneira regular, adquire uma ―especificidade‖ para o exercício da vida amorosa. Tal

especificidade se deve tanto a uma disposição inata quanto às influências pelas quais passa na

infância. Isto diz respeito às pulsões, ou ainda, às representações afetivas que irá satisfazer.

Parte dessas representações torna-se inconsciente e é satisfeita pela via da fantasia, parte é

satisfeita pela realidade objetiva e a parte que não é conscientemente satisfeita tenta de algum

modo se satisfazer com outras ―representações-expectativa libidinosas‖ a cada nova pessoa

envolvida. A figura do analista seria justamente o alvo dos investimentos dessas

representações afetivas insatisfeitas, ou mesmo satisfeitas de modo fantasioso.45

Segundo Mezan, o que interessa saber é ―por que a transferência se presta tão bem às

finalidades da resistência? ‘‘ Sua resposta a essa pergunta é direta: ―os protótipos infantis

exercem uma atração sobre as vivências presentes; o tratamento vai liberar a libido

acorrentada a esses protótipos; quem opõe a resistência a ela são os protótipos mesmos, e a

transferência obedece às finalidades da resistência porque reproduz uma maneira infantil de

amar/odiar, ou seja, de investir em objetos‖46

.

Desde o início, a psicanálise se depara com o fenômeno da resistência, seja esta de

aproximação ao núcleo patológico, seja, posteriormente, uma resistência à própria cura. A

transferência enquanto substituto, enquanto reedição dos vínculos amorosos, não passa

incólume. Como afirma Mezan, há uma reprodução do modo infantil de estabelecer uma

44

Mc GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,

Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 51. 45

FREUD, S. ―Sobre la dinámica de la transferência (1912)‖ in Sobre um caso de paranoia descrito

autobiográficamente (Schreber) Trabajos sobre técnica psicoanalítica y otras obras (1911-1913). Buenos Aires,

Amorrortu Editores, 2003, p. 98. 46

MEZAN, R. ―A transferência em Freud: apontamentos para um debate‖ in Tempo de muda, São Paulo,

Companhia das Letras, 1998, p. 258

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relação de amor/ódio no vínculo transferencial, que acaba por deixar livre a libido outrora

fixada.

A teorização sobre a libido será o alvo da maior disputa entre Freud e Jung. Em 1922,

Freud escreve dois artigos de enciclopédia: ―Psicanálise‖ e ―Teoria da libido‖. Neste último

condensa, recupera e parece finalizar sua antiga querela com Jung a respeito da natureza das

pulsões.

Libido é uma expressão tomada da doutrina da afetividade. Chamamos assim a

energia considerada como magnitude quantitativa de pulsões que tem a ver com

tudo o que pode ser sintetizado como amor47

.

O amor a que Freud se refere é o amor cuja finalidade é a união sexual, ainda que

possa haver outros amores (filiais, de amizade), muito pouco é modificado de sua natureza

originária, o que leva a psicanálise a chamar as pulsões de amor como pulsões sexuais; e,

sobre pulsões elementares como estas, estariam edificados os eventos psíquicos. Ou ainda,

para Freud, esses últimos se edificam sobre um jogo de forças pulsionais. Daí um dos motivos

do conflito estabelecido com Jung.

A teoria junguiana da libido pressupõe uma libido primordial, única, tanto

―sexualizada [quanto] dessexualizada e, portanto, coincide essencialmente com a energia

anímica‖48

O monismo de Jung se contrapõe a um dualismo pulsional sustentado por Freud

ao longo da teoria. Para Freud haveria pulsões sexuais e pulsões relativas ao ego,

denominadas pulsões de autoconservação. Essa posição dual das pulsões e oposta à posição

de Jung é defendida numa carta a propósito da tradução francesa de suas conferências de

1910:

Eu havia declarado e repetido com a máxima clareza que estabeleço uma distinção

entre as pulsões egóicas e as pulsões sexuais, e, a libido designa apenas a energia

das primeiras, isto é, das pulsões sexuais. É Jung e não eu quem faz uma

47

FREUD, S. ―Psicologia de las masas e análisis del yo (1921)‖ in Más allá del principio del placer Psicología

de las massas y análisis del yo y otras obras (1920-1922), Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003, p. 86. 48

FREUD, S. ―Teoria da libido‖ in Más allá del principio del placer Psicología de las massas y análisis del yo y

otras obras (1920-1922). Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003, p. 250.

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equivalência entre a libido como força pulsional de todas as operações psíquicas e

quem combate a natureza sexual da libido49

.

Esse esclarecimento vem a propósito de uma confusão feita pela introdução da edição

francesa, que supunha uma unidade pulsional exclusivamente sexual. O que poderia dar vazão

―na imaginação dos críticos‖, à ideia de um pansexualismo que não existe em nenhuma das

concepções pulsionais50

.

No entanto, a ameaça ao dualismo pulsional existe e, nas palavras de Monzani, tal

dualismo ―está evidentemente se esfumaçando‖, na medida em que ao formular o conceito de

narcisismo, o ―ego é também investido libidinalmente‖ [...] torna-se o ―grande reservatório da

libido‖51

. Isso nos levaria a pensar ou ―imaginar‖, como nos disse Freud, em uma natureza

libidinal das pulsões de autoconservação e, portanto, a ter uma ideia pansexualista da

psicanálise como temia, mas a resolução desse impasse se deu ainda no âmbito da dualidade:

Nossa concepção foi desde o início dualista e o é de maneira ainda mais clara hoje,

quando deixamos de chamar os opostos pulsões egóicas e sexuais para dar-lhes o

nome de pulsão de vida e de morte52

.

O contexto, melhor dizendo, o texto em que anuncia essa nova dualidade é justamente

o Para além do princípio do prazer (1920), onde irá mencionar uma insuficiência na oposição

entre pulsões do ego e pulsões sexuais. As pulsões de vida abarcariam então a primeira

oposição, isto é, seriam elas tanto as do ego quanto as sexuais, em contraposição à de morte.

A correspondência entre Freud e Jung

Em 1904, Jung não era alheio ao método psicanalítico, nem às teorias que Freud

desenvolvia. No início de 1906, quando começou a se corresponder com Freud, anuncia que

está tratando de um caso difícil, uma paciente histérica, proveniente da Rússia, de vinte anos,

com o método de seu interlocutor.

49

FREUD, S. ―La pertubación psicógena de la visión según el psicoanálisis (1910)‖ in Cinco conferenciassobre

psiconálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci y otras obras (1910). Buenos Aires, Amorrortu

editores, 2003, p. 212. 50

Idem. 51

MONZANI, L.R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas, Ed. da Unicamp, 1989, p. 146. 52

FREUD, S. ―Más allá del principio del placer (1920)‖ in Más allá del principio del placer Psicología de las

massas y análisis del yo y otras obras (1920-1922), Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003 p. 51-52.

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Em termos teóricos, já nessa época contesta uma causa exclusivamente sexual na

gênese da histeria, bem como supõe que o método analítico não se deva exclusivamente à ab-

reação, mas também a relações (rapport) pessoais com o analista. Como vimos Freud já nos

falava da transferência desde 1893, mas é interessante notar que para Jung, a terapia dependa

de ―relações pessoais‖.53

A paciente acima referida é Sabina Spielrein que permaneceu

internada no hospital psiquiátrico até junho de 1905, mas seu tratamento com dr. Jung

provavelmente se estendeu até 1906.54

Numa carta à Freud datada de julho de 1907, Jung escreve sobre uma paciente

histérica que lhe conta um poema russo que não lhe sai da cabeça. Nesse poema a única

companhia do prisioneiro é um pássaro engaiolado, e, ―uma só vontade anima esse

prisioneiro: nalgum momento da vida, como feito mais nobre, conceder-lhe a liberdade a uma

criatura. Abre então a gaiola e deixa escapar o pássaro a que tanto se apega.‖55

Segundo a

paciente, sua maior vontade é libertar alguém por meio do método psicanalítico e que em seus

sonhos há uma condensação entre ela e Jung, terminando por admitir que sua maior vontade

seria ter um filho dele e que este pudesse realizar todos os seus desejos irrealizáveis. Trata-se

de Sabina Spielrein, sua paciente russa com quem, indica a Freud, em março de 1909, ter tido

um relacionamento amoroso, mas que agora lhe custava caro, uma vez que a sua antiga

paciente lhe armava um escândalo. Diz Jung: ―uma paciente que há anos tirei de uma neurose

incômoda, sem poupar esforços, traiu minha confiança e amizade da maneira mais

mortificante que se possa imaginar.‖56

Supõe que isso tenha acontecido porque lhe negara um

filho.

Ainda que numa carta em resposta, Freud mencione que haviam dito que ele tinha uma

amante, e, que desconfiara que isso fazia parte da neurose de quem havia se apresentado como tal,

Jung lhe responde que aquilo era ―chinês‖ para ele e que nunca teve, na verdade, uma amante e era o

mais inocente dos maridos. Além disso, também não supunha que tal boato tivesse sido espalhado pela

sua paciente.

53

MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,

trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 42. 54

CAROTENUTO, A. Diário de uma secreta simetria Sabina Spielrein entre Jung e Freud. Trad. Amélia R.

Coutinho, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p. 26. 55

MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,

Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 105. 56

MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,

Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 233.

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111

Por volta de junho de 1909, a trama entre Jung e Sabina parece se esclarecer quando Sabina

escreve a Freud, que por sua vez, acredita se tratar de uma ―faladeira e paranóica.‖ 57

Mas, Jung

finalmente lhe conta quem é a autora da carta: uma paciente sua que já havia mencionado a Freud, e

com quem prolongara o relacionamento. Dedicou a Sabina uma grande amizade, porém pareceu-lhe

oportuno romper com ela no momento em que ―as coisas já haviam tomado o rumo desejado‖58

. No

entanto, tal rompimento não era exatamente desejado pelos dois, e, somente após uma conversa

―muito decente‖ com ela, faz o pedido a Freud que este escrevesse à senhorita Spielrein dando notícias

que havia sido informado de todo o assunto. Diz na sua carta a Freud:

Embora sem me deixar levar a um remorso infundado, deploro os pecados que

cometi, pois em grande parte, posso ser incriminado pelas extravagantes esperanças

de minha ex-paciente. Com efeito, em obediência a meu princípio fundamental de

levar todas as pessoas a sério, até o limite extremo, discuti com ela o problema do

filho, imaginando que falava em termos teóricos quando na realidade Eros se

agitava sorrateiramente nos bastidores59

.

O tom dessa carta era de confissão a um pai, revela que a situação havia ficado tão

tensa que chegara a estabelecer relações sexuais com a moça, e, que se defendia de um modo

que não encontrava justificativa moral. Ainda que estivesse se confessando, parecia estar

sendo pressionado por Sabina a contar esse romance a Freud, declaradamente sua ―imago

paterna‖.

Até essa data o relacionamento de Freud e Jung era de devoção e confiança. A

resposta de Freud a esse caso foi de inteira compreensão. Contudo, nesse mesmo ano, numa

carta a Freud, Jung se compara a Fliess e gratuitamente lhe diz que ―nada parecido [entre eles]

irá acontecer‖60

. Subentendia-se assim que o fim do romance com Sabina já prenunciava o

final da amizade entre Jung e Freud, anunciada entre dezembro de 1912 e janeiro de 1913:

Caro prof. Freud, Posso dizer-lhe algumas palavras a sério? Admito a minha

ambivalência dos meus sentimentos com relação ao senhor [...] Eu, mostraria,

contudo, que sua técnica de tratar discípulos como pacientes é uma asneira. [...]

57

MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,

Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 250. 58

MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,

Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p 252. 59

MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,

Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 259. 60

GAY, P. Freud: a life for our time. New York, The Anchor books, 1988, p. 206.

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Não sou de nenhuma maneira neurótico! Se o senhor se livrasse dos seus

complexos e parasse de bancar o pai de seus filhos e, ao invés de visar

continuamente seus pontos fracos eu me corrigiria e erradicaria num só golpe o

vício de hesitar em relação ao senhor. [...] Continuarei apoiando o senhor

publicamente, enquanto mantenho minhas própria opiniões, mas, em caráter

privado vou começar a dizer o que realmente penso do senhor.

Caro Presidente61

, Caro doutor, Só posso responder com detalhes a um ponto de

sua carta anterior. A sua alegação de que trato meus seguidores como pacientes é

falsa. Em Viena sou censurado pelo exato oposto [...] De outra forma sua carta não

pode ser respondida. Ela cria uma situação que será difícil tratar numa conversa

pessoal e totalmente impossível por correspondência. É uma convenção entre nós,

analistas, a de que nenhum de nós precisa sentir-se envergonhado por sua própria

dose de neurose. Mas alguém que, enquanto se comporta anormalmente, fica

gritando que é normal, dá ensejo à suspeita de que lhe falta compreensão de sua

doença. Portanto, proponho que abandonemos inteiramente nossas relações

pessoais.

Um método perigoso

O filme é ambientado entre 1904 e 1913, anos em que Freud e Jung se conheceram, se

admiraram e se odiaram até que finalmente a amizade foi rompida. A correspondência entre

os dois perdurou até 1923, ainda que em tom estritamente profissional.

Como dissemos no início, o filme começa com um clichê psicanalítico. Uma histérica,

Sabina Spielrein, (Keyra Knightley) é conduzida a uma clínica psiquiátrica na Suíça, e, como

muitas vezes é mostrado, essa histérica grita, tem acessos de riso, se contorce e tenta se

libertar. No entanto, aceita o tratamento proposto por Jung (Michael Fassbinder) e supõe que

seus sintomas teriam iniciado a partir de humilhações sofridas na infância, pois seu pai

obrigava-a a beijar sua mão depois de lhe bater.

O roteiro do filme, feito por Christopher Hamptom baseia-se num livro de Aldo

Carotenuto, um psicanalista junguiano que descobriu em Genebra, no ano de 1977, uma série

de cartas trocadas entre Jung e Sabina Spielrein e um diário bastante fragmentado que

pertenciam a Sabina. Ou seja, os fatos contados no filme são históricos, mas, como diz

61

Até 1914 Jung foi presidente da Associação internacional de psicanálise.

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Michael Wood, ―não é um filme histórico. É uma fantasia sobre autoridade e desejo, com

nomes simbólicos forjados para papéis chaves‖62

.

Ainda que não seja um filme biográfico, mas apenas um filme com dados históricos, é

mais uma vez a psicanálise que é posta em questão ora como tratamento, ora como teoria que

carece ainda de validação.

Jung inicia um relacionamento com Sabina, ao que parece por influência de um outro

paciente seu, Otto Gross (Vincent Cassel), um paciente psiquiatra, que se coloca muitas vezes

num lugar de conselheiro sexual. Gross escala os muros do hospital psiquiátrico e foge

deixando a Jung uma carta dizendo que estava curado e saudável graças a ele, pede, no

entanto, que ele diga ao pai que estava morto.

A figura de Jung enquanto analista nos é mostrada como bastante reticente. Envolve-

se pessoalmente com seus dois pacientes difíceis, cede aos apelos transferenciais e se coloca

de fato no lugar do pai de Sabina, ao satisfazer-lhe com injúrias corporais, bem como à

provocação de Gross, que o considerava sexualmente reprimido.

Com relação à Sabina, não só houve um problema contratransferencial, como Freud

chega a mencionar em 1915, em Observações sobre o amor de transferência63

, a ser

ultrapassado, mas como uma inversão no uso de informações obtidas pelo processo analítico,

isto é, Jung não teve conhecimento das fantasias contadas por Sabina tomando o chá da tarde,

ao contrário, foi uma descoberta da própria paciente que ela ficava excitada quando apanhava

do pai em sua infância. Mesmo nos isentando do julgamento se Jung estava correto ou não em

suas relações amorosas, o filme acaba por nos mostrar que a cura e a liberdade proporcionada

por esta só são possíveis quando há um envolvimento pessoal com o analista.

Além disso, do ponto de vista teórico, o temor de Freud de acusação da psicanálise ser

tomada como uma teoria pansexualista parece mais uma vez se concretizar. Freud defende a

idéia da sexualidade como fator etiológico na gênese da histeria, diferentemente de Jung que

considera o fator sexual como não sendo o único. Pela sequência de filmagem, nas discussões

teóricas, Freud é muito mais razoável e cauteloso com a incipiente ciência, mas confirma-se o

fator sexual na apresentação dos casos (de Sabina, do próprio Jung, ou mesmo em seu sonho

do cavalo que é inibido por um cavalo menor, mas que só consegue parar na presença do

cavaleiro), o que não seria um problema se o romance entre Sabina e Jung não fosse a estrela

62

WOOD, M. ―At the movies‖ in London Review of books, v. 34, no 5, 2012. 63

Para o médico significa um esclarecimento valioso e uma boa prevenção para uma possível contratransferência

que se prepara nele in Sobre um caso de paranoia descrito autobiográficamente (Schreber) Trabajos sobre

técnica psicoanalítica y otras obras (1911-1913). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003, p. 164.

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do filme. Ou seja, sexualidade, fator sexual e relação sexual tornam-se a mesma coisa. Outra

possibilidade é de que a cura se deve mais ao envolvimento sexual, do que ao tratamento

analítico.

E, para a psicanálise, ―a sexualidade circulante no campo da representação é que estaria em

questão na produção dos sintomas das psiconeuroses‖.64

As enfermidades ocorrem em função da

repressão, ou dos ―diques anímicos‖, e, uma vez erigida a barreira da repressão, há uma

impossibilidade de satisfação plena da pulsão sexual, que por sua vez, mediante um rodeio,

busca uma satisfação substitutiva na formação do sintoma patológico.

Apesar de não ser um filme histórico, conta com dados históricos, alguns deles

equivocados, como, por exemplo, uma certa hesitação por parte de Freud com o fato de Jung

não ser judeu; ao contrário, essa era justamente uma de suas virtudes, pois era a esperança de

que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência e não como uma ―ciência judaica‖.

Outro seria o encontro que Freud teve com Sabina e confiar-lhe alguns pacientes seus durante

a estadia dela em Viena.

Desde o término do relacionamento entre Freud e Jung, Jung fica confinado, se retrai

em suas atividades e confessa a Sabina, no final do filme que tem tido um sonho catastrófico:

uma inundação que aparece como uma avalanche e vai arrastando casas e corpos que de

repente se torna sangue, ―o sangue da Europa‖. Ao ser questionado sobre o significado, não

tinha a menor ideia, a não ser o que estava para acontecer. Era esse um sonho premonitório

como a queimação gástrica no próprio Jung, que precede o estalo da calefação durante uma

conversa com Freud, ou estaria esse sonho dentro do contexto de uma Europa em conflito

prestes a entrar na primeira guerra Mundial?

Freud morreu de câncer, no exílio em Londres, em 1939. Sabina Spielrein tornou-se

analista, ―treinou‖ muitos analistas, voltou para sua terra natal para exercer a medicina e, em

1941, foi fuzilada juntamente com as filhas, pelos alemães. Otto Gross morreu de fome. E

Jung morreu tranquilamente, em 1961, depois de ter se tornado o psicólogo mais importante

do mundo. Ironia, sarcasmo, uma retratação com a figura de Jung proposta pelo filme, ou uma

crença no próprio modo de contar a história?

64

BIRMAN, J. A constituição da clínica psicanalítica in Freud e a interpretação Psicanalítica. Rio de Janeiro,

Relume-Dumará, 1991,p. 144-5.

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115

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O monstro, o cinema e o medo ao estranho

Verônica Guimarães Brandão65

Resumo

Revelamos comportamentos, conhecimentos, criamos imagens em movimento para transmitirmos

medos,obsessões, fobias, costumes estranhos que, às vezes, revelam um mal-estar cultural imenso em

nós. Há gerações e gerações, aprendemos a temer os monstros que nós mesmos engendramos. Criado a

nossa barbárie e semelhança, o monstro é o que é a sociedade, quase como nós, por todos os lados, e

na tela o monstro age conforme a sociedade o molda.

Palavras-chave: Monstro. Medo. Cinema. Horror. Psicanálise.

The monster, the cinema and the fear of the stranger

Abstract

Reveal behaviors, knowledge, create moving images to convey fears, obsessions, phobias, strange

customs that sometimes reveal an immense cultural malaise in us. For generations and generations

have learned to fear the monsters that we ourselves engender. Created our barbarity and likeness, the

monster is what society is, almost like us, on all sides, and the monster on the screen acts as the

society shapes.

Keywords: Monster. Fear. Cinema. Horror. Psychoanalysis.

As representações das monstruosidades no campo cultural nos diversos setores do

conhecimento (ciências da religião, mitologia, filosofia, história, antropologia, psicologia,

arte, comunicação, entre outras) têm como pressuposto a ordenação de um conjunto de

estratégias utilizadas para suscitar um determinado conjunto de efeitos nos seus receptores.

Em obras religiosas, a representação da monstruosidade é utilizada para manter a ordem, a

moral, a organização interna através do horror; através do dualismo, separando aquilo que no

concreto vem junto (bondade, maldade). Já na mitologia, a dualidade coloca ―e‖, onde o

dualismo colocou ―ou‖: bem e mal, belo e feio, verdadeiro e falso, ordem e desordem,

realidade e ficção. O engendramento de monstros começou na dualidade, pois os monstros;

como descortina a filosofia, a psicologia, a antropologia, são reflexos do humano; são parte

65

Produtora Audiovisual pela Universidade Estadual de Goiás, Mestranda no Programa de Pós-Graduação pela

Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Linha de Imagem e Som. Pesquisadora da ―Estética da

Monstruosidade‖. Contato: [email protected]

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do homo sapiens (racional, realista), são seus demens (produtor de mitos, magias, fantasmas).

O saber cultural se apoia na engenhosidade da unidualidade de um homem complexo, de um

homem que tece seus pensamentos em devaneios, de um ser metafísico e físico que deseja

construir monstros como remissão constante em um futuro inquietante e desconhecido.

Transmitimos comportamentos, conhecimentos, que tentamos explicar

racionalmente. Esquecemos, porém, que transmitimos medos, obsessões, fobias, costumes

estranhos que, às vezes, revelam um mal-estar cultural imenso em nós. ―O mundo‖, escreveu

o poeta Rainer Maria Rilke (1875- 1956), ―é grande, mas em nós ele é profundo como o

mar‖66

.

Há gerações e gerações, aprendemos a temer os monstros. ―O monstro, em sua

irrupção, era considerado como signo anunciador e precursor de acontecimentos destinados,

por decisão transcendente, a revolucionar a ordem do mundo e da História‖ (NAZÁRIO:

1998, página 43). Vivemos e sentimos a dimensão trágica do encontro com a alteridade. O

outro me é estranho, pois não é meu reflexo. O encontro deve ser inesperado, como o

encontro de um monstro com um humano. ―Se não esperas o inesperado, não o encontrarás‖

(HERÁCLITO apud MORIN: 2001, página 50). Para Freud (1856-1939), em O mal-estar na

cultura (2010), a maior fonte de nossos sofrimentos se encontra em nossos relacionamentos.

Mas sem este outro, um inferno corporificado, não haveria mundo humano. Todo desejo

nasce de uma falta, de um sofrimento. Se esperamos ansiosos por mais uma representação da

monstruosidade, é porque sentimos falta de olhar curiosamente a alteridade, fato ou estado de

ser outro; definição do sujeito em relação a outro.

O estranho é um não-eu, uma exterioridade absoluta; assim, ele "não hesitará em me

prejudicar, caso tenha oportunidade" (FREUD: 1976, página 131). Quando este estranho não

nos prejudica, começamos, assim, a amá-lo como a nós mesmos, amando o nosso próximo

como ele nos ama. A perseguição movida pelos monstros é uma perseguição interior.

Devemos amar o nosso próximo como a nós mesmo, pois é o outro que nos socorrerá no

desamparo estrutural de nosso ser. As prostitutas, os loucos, os pobres, os marginalizados, os

homossexuais, os ladrões, eram considerados (alguns ainda o são) monstros que deveriam ser

repudiados. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), em O crepúsculo dos ídolos,

afirma que ―os antropólogos entre os criminalistas dizem que o criminoso típico é feio:

monstrum in fronte, monstrum in animo [monstro na face, monstro na alma]‖ (2006, página

07). Fomos educados a repudiar o que é diferente, feio. Porém, quando nos entendemos por

66

Rilke apud Campbell: 2006, página191.

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seres pensantes, tomamos noção que as belezas singulares nunca estão livres da noção de

escória e de impureza. O feio torna-se parte do belo, o feio existe ao lado do belo. ―O belo

tem apenas um tipo, o feio tem mil (...). Aquilo que chamamos de feio é o detalhe de um

grande todo que nos escapa e que se harmoniza, não com o homem apenas, mas com a criação

inteira‖ (HUGO: 1827 apud ECO: 2007, página 281).

A monstruosidade não nós é estranha. Alguns nem são feios por defeitos da natureza,

mas por desarmonia das feições. Sartre escreveu sobre sua infância em As Palavras (1964),

narrando que o espelho lhe prestava grande auxílio, pois o escritor existencialista se

encarregava de informar ao espelho que o pequeno Sartre era um monstro: ―O espelho me

ensinara o que eu sabia desde sempre: eu era horrivelmente natural. Nunca mais me refiz‖

(SARTRE: 1964 apud ECO: 2007, página 300). Por qual motivo o monstro é útil? Porque é

na sua fealdade que encontramos o prazer. ―Para certos espíritos mais curiosos e entediados, o

gozo da feiúra, provém de um sentimento ainda mais misterioso, que é a sede do

desconhecido e gosto do horrível‖ (BAUDELAIRE: 1846 apud ECO: 2007, página 352). E é

esta sede do desconhecido que faz a representação da monstruosidade persistir e existir por

séculos. Temos sede, mas também medo do desconhecido, medo do estranho67

, do monstro,

do inquietante. Para H. P. Lovecraft, escritor norte-americano de fantasia e horror, ―a emoção

mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o

medo do desconhecido‖. O que nos era exterior, que acontecia ao nosso redor, era assimilado

pelos povos em formas de representações monstruosas68

. Se haviam guerras, depressões,

falências, conflitos, perseguições, lá estava o monstro representando nossos medos. Criado a

nossa barbárie e semelhança, o mostro era o que era a sociedade, quase como nós, por todos

os lados. Os monstros rememoram nossa animalidade, por isso nos fascinam. Nascem como

corporificação de certo momento cultural de uma época69

, de um sentimento e de um lugar.

Por que sentimos medo dos monstros? Os seres humanos já foram ―superprimatas

num planeta minúsculo‖ (MENCKEN apud HOEBEL, 2006, página 79), foram presas, mas

67

Freud, em O mal estar na cultura, usa a palavra alemã Unheimlich (estranho, sinistro) como sendo algo

procedente da psique humana do individuo e que é, segundo definição do filosofo idealista Schelling e aprovada

por Freud, ―tudo aquilo que deveria ter permanecido em segredo e oculto veio à luz‖ (2010: página 25). 68

Tais representações, possivelmente, seriam criadas e transmitidas oralmente, ritualmente (incorporação em

seres inumanos), em forma de desenhos em cavernas, pinturas, esculturas, literaturas, fotografias, representações

imagéticas, entre outras. 69

Compartilho a definição de Jeffrey Jerome Cohen nas notas de seu artigo ―A cultura dos monstros: sete teses‖

(2000, página 55) sobre a palavra Zeitgeist usada como ‗fantasma do tempo‘, espírito incorpóreo que

estranhamente incorpora um ―lugar‖ (ou série de lugares, como a encruzilhada que é um ponto de movimento em

direção a um incerto outro lugar). Diferentes culturas têm diferentes Zeitgeist, como têm diferentes eras e

diferentes localizações geográficas.

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com a curiosidade e o desenvolvimento cerebral70

tornaram-se homo sapiens, seres pensantes.

No período anterior à escrita71

, a natureza dominava as ações dos hominídeos. Feras famintas

transformavam homens primitivos em carne72

, alimento. Passamos de antropóides dominados

pelo instinto a seres humanos adaptáveis culturalmente. O desenvolvimento humano foi

―biológico e cultural‖ (HOEBEL: 2006, página 77). Tinham fome, caçavam. Tinham frio,

esfolavam. Produzir fogo, produzir armas, aprimorar artigos de caça, pintar em rochas; arte

rupestre, pintar o corpo e o rosto; celebrar, invocar ancestrais, amedrontar espíritos ruins,

monstros, nossos medos.

A cultura está apinhada de animais que não tem equivalentes exatos na natureza.

Uma fauna de monstros, prodígios e maravilhas imensa e de mentirinha

serpenteiam e enxameia e assalta todas as artes, como se o mundo natural fosse de

certa forma deficiente. É preciso perguntar: qual é o fim dessas criaturas

imaginárias? Elas são realmente substitutas para animais comuns ou tem seus

próprios propósitos? O que são elas, de onde vêm e o que fazem aqui? (...) Nosso

medo noturno de monstros, provavelmente tem suas origens nos princípios da

evolução de nossos ancestrais primatas, cujas tribos foram desbastadas por horrores

cujas sombras continuam a elicitar nossos gritos de macacos em teatros escuros.

(SHEPARD: 1997, página 275 apud QUAMMEN: 2007, página 238).

A repugnância e o encantamento que os monstros exercem atravessam séculos. Eles

são a própria representação dos medos e perigos presentes na experiência humana, em nosso

processo evolutivo. Todos nós expurgamos nossos medos e, ás vezes, eles ganham forma

iconográfica.

Somos, a todo o momento, bombardeados com imagens de monstros. Vampiros,

Lobisomens, Zumbis, Bruxas, Titãs, e toda uma sorte de demônios que saem das sombras

para dominar pessoas, casas e objetos. Desde a tenra infância, somos moralizados pela figura

do monstro: boi da cara-preta, bicho-papão, monstro do armário, fantasma que mora debaixo

da cama, homem do saco, saci. Todos estes foram citados em algum momento de nossas

vidas, apenas para nos fazer dormir na hora estipulada pelos pais; comer verduras; tomar

banho ou somente para nos amedrontar. Com o tempo, a figura do monstro foi perdendo lugar

para a violência urbana. Meninos de rua, assassinos, pedófilos, pais que jogam filhos da janela

70

O cientista britânico Robert Winston (1940) realizou pesquisa, em sua obra Instinto Humano, sobre a

curiosidade humana e o cérebro em desenvolvimento (2006: página 78-115). 71

Período Pré-Histórico, aproximadamente 4000 a. C.. Tomemos como ponto de partida a Era Terciária (50

milhões de anos) e o aparecimento dos hominídeos (Australopithecus). 72

Na contracapa de Monstro de Deus: feras predadoras: história, ciência e mito (2007), do cientista norte-

americano David Quammen (1948), encontramos a seguinte afirmação: ―Uma coisa é estar morto, outra coisa é

ser transformado em carne. A idéia de sermos devorados evoca em nós terror profundo‖.

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do apartamento, ladrões e os noticiários que a todo o momento, aterrorizam a sociedade. Em

contraparte, as artes souberam aproveitar contextos vários, em diferentes épocas para,

metaforicamente, criar monstros com singularidades humanas (e vice-versa).

Por medo do desconhecido construímos sociedades com muralhas e fronteiras,

nostálgicos, contamos histórias para não esquecer sua pálida presença. As trevas,

os seres monstruosos, os fantasmas, os cemitérios, a magia, os bosques

impenetráveis e (a partir do século XVIII) as ruínas e os mistérios da ciência são os

elementos principais das histórias de horror. Eles surgem assim que a noite cai: na

Mesopotâmia, no Egito, na Índia, no Japão, na China, na Grécia. Em Roma,

curiosamente, o horror se confunde com o que é proibido ou vulgar. Quando o pai

de Sêneca pede ao escritor Albúcio Silo que enumere alguns temas "horríveis"

(sordissima), este responde: "Rinocerontes, latrinas e esponjas, e prossegue:

"animais domésticos, pessoas adulteras, fontes de alimento, a morte e os jardins‖.

(MANGUEL: 2009, página 09).

Por qual razão a cultura contemporânea reproduz figuras monstruosas com novas

contextualizações e novas roupagens é nosso maior interesse; assim como entender: vampiros

vegetarianos, lobisomens sem a carga animalesca, zumbis ágeis que cozinham o cérebro antes

de saborear, medusas que entendem de moda, bruxas adolescentes que trabalham para se

sustentar, sereias deprimidas e a noiva cadáver que desiste do casamento. Hoje vamos aos

cinemas encarar o sofrimento dos monstros para saber que, em algum momento, também

estamos sós, sofrendo e, talvez, os monstros possam nos mostrar como agir em meio à

truculência desse mundo tão volúvel.

[O espectador] vai para ver, sentir e se identificar. Durante aquele breve intervalo

de tempo, é transportado para além das limitações de seu ambiente; passeia pelas

ruas de Paris; vê o dia nascer com o caubói do faroeste; mergulha nas profundezas

da terra com mineiros cobertos de cinzas, ou se lança ao mar com marinheiros e

pescadores. Sente, além disso, a emoção de solidarizar-se com os pobres e

necessitados... O artista cinematográfico é capaz de tocar cada uma das teclas do

grande órgão da humanidade (FITCH: 1910 apud STAM: 2006, página 40).

O cinema de horror funciona como ―catarse programada‖, purga nossos medos em

segurança. Para Luiz Nazário, em entrevista concedida a revista Superinteressante, ―o

monstro foi banalizado pela indústria cultural e deixou de (...) ser índice de transgressão, de

porta-voz da diferença. O monstro já foi uma metáfora do outsider; hoje é um objeto de

consumo‖ (NAZÁRIO, 2009).

No horror pós-moderno desintegram-se os valores, monstros e homens se

confundem. Mas por que vamos ao cinema olhar os monstros? Às vezes somos incautos e, por

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isso, entramos na casa do diabo, assim como sentamos para ver um filme de horror e

aguardamos a sua revelação. A espera, porém, demora, eterniza-se. Porque ele apenas se

mostra quando (nos) olhamos no espelho, ou vemos um monstro humanizado na tela.

(...) também vamos ao cinema por outras razões: para confirmarmos (ou

questionarmos) nossos preconceitos, para nos identificarmos com as personagens,

para sentirmos emoções e ―efeitos subjetivos‖ intensos, para imaginarmos uma

outra vida, para experimentarmos prazeres cinestésicos, para sentirmos glamour,

erotismo, carinho e paixão (STAM, 2006, p.267).

Somos seres desviantes de qualquer norma convencionada. Segundo a teologia cristã,

começamos com o pecado e não paramos de pecar. Fomos e somos monstros. A simples

tentativa de eliminar um monstro não resolve qualquer problema.

A estranheza do que não é familiar é a chave para entender tudo aquilo que nos

assusta e também nos fascina. Stephenie Meyer, autora da saga Crepúsculo (2005), no qual

vampiros vegetarianos e lobisomens carentes passaram de monstros/vilões a queridinhos das

adolescentes, cita por qual motivo os monstros deixaram de ser perigosos sem perder o

charme sobrenatural: ―Eles são atraentes porque fazem aflorar aspectos ocultos do desejo e do

instinto. São fascinantes porque geram medo e desejo a um só tempo‖ 73

. Para o repórter da

revista Época, Danilo Venticinque, a história de amor entre vampiros, lobisomens e humanos

parece não desagradar os pais. ―Para quem via as filhas se descabelar por astros pop

imprevisíveis e atores rebeldes, os monstros também viraram heróis‖ (2009).

Filmes de horror são aqueles que pretendem provocar a sensação de medo,

sentimento que proporciona um estado de alerta. As histórias de horror/terror sempre fizeram

parte do imaginário coletivo. Segundo o minidicionário da língua portuguesa, as definições de

monstro e monstruoso são:

Monstro (sm). 1. Corpo organizado que apresenta, parcial ou totalmente,

conformação anômala. 2. Ser, mitológico ou lendário, de conformação

extravagante. 3. Individuo que causa pasmo. 4. Pessoa cruel ou horrenda.

Monstruoso (ô) adj. 1. Que tem conformação de monstro. 2. Enorme,

extraordinário. 3. Que assombra pela grande perversidade. 4. Feio em demasia.

(FERREIRA: 2009, página 470).

O medo, a fonte nos filmes de terror e horror, pode provocar reações físicas, como:

descarga de adrenalina, aceleração cardíaca, tremor, atenção exagerada a tudo que ocorre ao

73

MEYER apud VENTICINQUE: 2009.

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redor, depressão, pânico, entre outros sintomas. Mas o medo proporcionado por um filme de

terror é o mesmo proporcionado por um filme de horror?

Duas palavras que parecem sinônimas, mas não são, porque, linguisticamente, não

se justifica a existência de dois termos para um conceito idêntico [...]. Falamos em

"filme de terror", mas seria mais apropriado "filme de horror". A diferença entre

essas duas palavras está no sujeito que, ao assistir ao filme, se horroriza [...]. O

verbo horrorizar normalmente é reflexivo: horrorizar-se. Para funcionar, o verbo

horrorizar necessita da colaboração do horrorizado. No caso de horrorizar-se, eu

me horrorizo na medida em que estou suscetível a sentir o horror. O terror é outra

história. Dificilmente alguém diz "aterrorizei-me vendo aquelas imagens", pois o

terror é produzido por outro sobre mim, e quem aterroriza (e isso é horrível e

terrível!) não está aterrorizado nem horrorizado consigo mesmo. O terror vem de

fora. O horror vem de dentro. Horror é um sentimento de receio, de medo, de pavor

perante algo ameaçador, odioso e perverso. Em sua origem latina, horrere

significava ficar com os cabelos em pé. O horripilante, no horror, é essa sensação

de um frio no estômago, na espinha, o suor frio, o frio da morte (PERISSÉ: 2001).

Conforme Carroll (1999: página 13), ―o horror tornou-se um artigo básico em meio

às formas artísticas contemporâneas, populares ou não‖. O cinema de horror sempre abusou

do estado de alerta para fascinar suas vitimas, para avisá-las que alguém sabe o que foi feito

no verão passado, para visitá-las nos pesadelos ou em uma sexta-feira treze, para avisar por

telefone que alguém quer vingança, ou simplesmente, para que você (vitima/público) aperte o

braço da pessoa sentada ao lado.

O cinema de horror forma uma ligação entre nossa fantasia sobre o medo e nossos

verdadeiros medos. Os filmes de terror nos deixam desconfortáveis e quanto mais

desconfortáveis, mais fascinados. O cinema de horror tem necessário papel de purgar nossos

medos e atirá-los fora, de elevar a produção de adrenalina, dando a entender que seriamos

capazes de lutar pela vida. O cinema horror é sim, a favor da vida.

O gênero horror tem a capacidade de provocar certo afeto (affect) [...]. Os membros

do gênero horror serão identificados como narrativas e/ou imagens (no caso das

belas-artes, do cinema etc.) que têm como base provocar afeto de horror no

público. (CARROLLL: 1999, página.28).

O horror analisado nesta pesquisa é o ―horror artístico‖. Uma forma de ―gênero que

atravessa várias formas artísticas e vários tipos de mídia‖ (CARROLL: 1999, página 27). O

horror como elemento artístico remonta à Idade Média, quando proliferou a meditação sobre a

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morte perante uma caveira, que despertava pensamentos moralizadores sobre a variedade da

curta existência terrestre (SOUSA: 1979).

O horror, a fantasia, o medo, não se contentaram em ficar apenas na literatura. No

campo audiovisual, tais expressões ganharam representação cinematográfica, ganharam olhos

e corações em salas escuras e, figuras como, vampiros, zumbis, marcianos, lobisomens,

bruxas, demônios, seres criados em laboratórios, feras gigantescas, pessoas deformadas e os

mais diversos monstros, passaram a habitar o imaginário social.

Utilizando um cinematógrafo (máquina de filmar e projetor de cinema), inventado

em 1892 por Lèon Bouly, os irmãos Louis e Auguste Lumière deram o primeiro susto no

público (em formação) da sétima arte. Em 28 de setembro de 1895, na comuna francesa de La

Ciotat, sudeste da França, surge à provável primeira sala de cinema do mundo. Mas foi em

Paris, no dia 28 de dezembro de 1895, que os irmãos Lumière, no subterrâneo do Grand Café,

realizaram a primeira exibição pública e paga de cinema, com uma série de dez filmes, com

duração de 40 a 50 segundos cada, dentre os quais estava o filme que daria o primeiro susto

no público - "A chegada do trem à Estação Ciotat". Nesta sessão estava presente aquele que é

considerado ―o pai dos efeitos especiais‖- Georges Méliès. Criador de mundos fantásticos,

Méliès foi um dos primeiros cineastas a dar vida aos primeiros monstros do cinema. Mas ao

contrário dos irmãos Lumiére, Méliès não assustou o grande público, pelo contrário, seus

monstros eram mais cômicos que horripilantes.

O cinema, maior expoente da arte que se estabeleceu e marcou o século XX,

começou com sustos, correria e cadeiras derrubadas na plateia. O homem da sétima arte viu

que aquilo era bom e resolveu explorar o reino desconfortável do medo, este sentimento que

causa fascínio por ser uma questão cultural que inspira apreensão, pois estamos

constantemente diante da morte ou perdidos em nossos pesadelos.

[...] O homem sempre abominou a morte e, provavelmente, sempre a repelirá. Do

ponto de vista psiquiátrico, isto é bastante compreensível e talvez se explique

melhor pela noção básica de que, em nosso inconsciente a morte nunca é possível

quando se trata de nós mesmos. É inconcebível para o inconsciente imaginar um

fim real para nossa vida na terra e, se a vida tiver um fim, este será atribuído a uma

intervenção maligna fora de nosso alcance... A morte em si está ligada a uma ação

má, a um acontecimento medonho, a algo que em si clama por recompensa ou

castigo (KUBLER-ROSS: 1994, página 13).

Parece estranho que quanto mais desconfortáveis pareçamos diante de um filme de

horror/terror, melhor será nossa opinião sobre aquele filme. Mas o coração acelerado não é

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sinônimo de filme de terror/horror, pois com o passar do século XX e começo do século XXI,

observaremos uma mudança de comportamento, de recepção, de afeto do público, diante de

um filme de horror, com um monstro na tela. O que era criado para assustar, não assusta mais.

Os monstros, conforme veremos, não serão mais seres disformes, anormais, estrangeiros, mal

quistos e mal vistos, mas tornar-se-ão queridinhos do cinema.

O primeiro filme do gênero horror feito, segundo a Enciclopédia dos Monstros, foi

L´ Inferno (1911). Foi a primeira adaptação para o cinema da obra A Divina Comédia de

Dante Alighiere. Os cineastas Francesco Bertolini, Adolfo Padovan e Giuseppe De Liguoro

realizaram uma jornada pela obra de Dante e gravuras de Gustave Doré74

, que fez ilustrações

sobre A Divina Comédia de 1861 a 1868.

Depois do susto proporcionado pelos irmãos Lumière, dos monstros de Méliès e dos

71 minutos de pavor em movimento no filme L´Inferno, o expressionismo alemão surge em

filmes de Robert Wienne com sua obra Das Cabinet des Dr. Caligari (1919) e F.W. Murnau

com Nosferatu (1922). As obras de Wienne, Murnau, a gótica fotografia e atmosfera

sobrenatural influenciaram/influenciam o cinema de horror até hoje. O medo proporcionado

pelos monstros do expressionismo alemão era repleto de uma carga psicossocial. A Europa

está em período bélico. A Grande Guerra (1914-1918) apresenta a fome, a morte,

desconfiança, violência, solidão nas trincheiras (―terra de ninguém‖) e é neste contexto

horrendo que os filmes alemães ganham maior expressão, pois mostravam ―por meio de

imagens do real, conceitos abstratos da alma e do espírito‖, terreno fértil para o ―conceito de

expressionismo‖, ligado à ideia que Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche desenvolveram

sobre ―o consciente e inconsciente humano‖ (GONÇALO, 2008, p.163-164). Os filmes de

horror revelam que o horror é visionário, pois capturam de maneira consistente nossos medos

e ansiedades coletivas. Muitos filmes de horror dão a entender que o inimigo vem de dentro,

que está entre nós, não do desconhecido, mas de nossa mente.

Aqui está a verdade final sobre os filmes de horror. Eles não amam a morte, como

alguns têm proposto, eles amam a vida. Eles não celebram a deformidade, mas,

habitando a deformidade, cantam a saúde e a energia. Eles são os purificadores da

mente, tirando não rancor, mas ansiedade. (KING: 2003, página 259).

Os monstros somos nós do outro lado da tela. Seres que amam como nós, mas têm

medo de não serem correspondidos, pois sabem de antemão que não serão aceitos e que a

74

Paul Gustave Doré (Estrasburgo, 6 de janeiro de 1832 — Paris, 23 de janeiro de 1883) foi um pintor,

desenhista e o mais produtivo e bem-sucedido ilustrador francês de livros de meados do século XIX, com forte

inclinação para a fantasia.

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verdadeira felicidade é repentina e, portanto, rara. ―Nada é mais difícil de suportar que uma

sucessão de dias belos‖ (GOETHE: 1810 apud FREUD: 2010, página 95).

Enfrentar monstros é superar medos. É enfrentar a esfinge e deixá-la muda. Segundo

Lutz Müller as ―figuras amedrontadoras da fantasia humana‖ (demônios, diabos, bruxas,

divindades más, figuras horrorosas e monstros) causam medos e sensações de perigo à

personalidade humana. Os medos representados em todos os tempos e em todas as culturas

são arquetípicos, ―são experiências universais básicas que determinam a vivência e o

comportamento do indivíduo, tanto no presente como no futuro‖ (1997, p. 93).

Se no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma realidade

diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é também um

mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de confundir certezas, pois

não se trata mais de outros povos, outras línguas, outros costumes. O outro hoje é

próximo e familiar, mas não necessariamente é nosso conhecido (GUSMÃO: 1999,

página 44-45).

A monstruosidade (ou o monstro) é a metáfora que usamos para referir o mal

transposto para o reino estético, das sensibilidades e emoções. Os homens precisam de

monstros para se tornarem mais humanos, para pensar sua própria humanidade. Pedimos aos

monstros que nos inquietem, que nos provoquem vertigens, que abalem nossas certezas (GIL,

2006). Amamos os monstros não porque tenham se tornado bons, mas justamente por causa

da feiúra que nunca perderam. ―Da Perfeição da Vida. Por que prender a vida em conceitos e

normas? O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer... Tudo, afinal, são formas. E não

degraus do Ser!‖ 75

. Se o monstro se reconhece em toda sua horripilância existencial e

mesmo assim é extremamente bom, nós humanos temos que os admirar e tentar sermos

amigos de seres diferentes.

George Romero, diretor de A noite dos mortos vivos e outros filmes de terror, em

uma declaração de poética, enquanto se detém sobre a tocante ternura de

Frankenstein, King Kong ou Godzilla, recorda que seus zumbis têm a pele rugosa e

putrefaciante, dentes e unhas negras, mas são indivíduos com paixões e exigências

como as nossas. E acrescenta: ―Nos meus filmes sobre zumbis, os mortos que

voltam à vida representam uma espécie de revolução, uma reviravolta radical num

mundo que muitos dos personagens humanos não conseguem entender, preferindo

marcar os mortos vivos como o Inimigo, quando na realidade eles são nós. Utilizo

o sangue em toda sua horrenda magnificência para que o público entenda que meus

filmes são antes uma crônica sociopolítica dos tempos do que (...) aventuras com

molho de terror‖ (ECO: 2007, página 422).

75

QUINTANA, Mário. Pensador. INFO. Disponível em: < http://www.pensador.info/p/feio_e_belo/1/>. Acesso

em: 20 nov. 2009.

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O cinema é destinado a contar histórias, por ser uma arte narrativa, usada para

―mostrar um objeto de forma que ele seja reconhecido, é um ato de ostentação que implica

que se quer dizer algo a respeito desse objeto‖ (AUMONT: 1995, página 90).

Como consequência da intimidade por aí constituída, os monstros são a sinestesia em

nós, simultaneamente a tranquilidade e a inquietude, a amizade e a angústia, a solidão, a

compaixão, o sofrimento. Afinal, nada mais assusta ao público, já anestesiado, após a

avalanche visual que fez com que os monstros deixassem de provocar medo.

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CAMPBELL, Joseph. Para viver os mitos. Tradução Anita Moraes. São Paulo: Cultrix, 2006.

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Notas psicanalíticas sobre o Fantasma, de Murnau

Amadeu de Oliveira Weinmann76

Resumo

A partir do filme Fantasma, de F. W. Murnau, o artigo propõe uma reflexão sobre a pregnância do

tema do duplo na literatura romântica do século XIX, no cinema alemão do início do século XX e na

própria psicanálise freudiana. Operando com conceitos elaborados por Freud em O estranho, este

trabalho sugere que o duplo consiste no avesso do sujeito racional iluminista, isto é, em um sinistro

porta-voz de seu desamparo constitutivo.

Palavras-chave: psicanálise, cinema, duplo, expressionismo, racionalismo.

Psychoanalytic notes on Phantom, by Murnau

Abstract

From the film ―Phantom‖, by F.W. Murnau, the article proposes a reflection upon the pregnancy of the

theme of the Double in the romantic literature of the 19th century, in the German cinema of the early

20th century and in Freudian psychoanalysis. Operating with concepts elaborated by Freud in his essay

―The Uncanny‖, this paper suggests that the double consists on the reverse of the Enlightenment‘s

rational subject, i. e., on a sinister spokesperson of its constitutive helplessness.

Keywords: psychoanalysis, cinema, double, expressionism, rationalism.

Introdução

O filme Fantasma, lançado em 1922 por F. W. Murnau, e inspirado no romance

homônimo de Gerhart Hauptmann, também publicado em 1922, apresenta estranhas

ressonâncias com a teoria psicanalítica. Nele, o problema do duplo – trabalhado com maestria

por Freud em O estranho77

, de 1919 – é explorado em todo seu potencial disruptivo. Isso não

consiste exatamente em uma novidade, pois tal tema tem raízes profundas na literatura

romântica do século XIX e encontra-se presente em outros filmes do expressionismo alemão.

De fato, é precisamente essa recorrência o que intriga. Não há de ser por casualidade que

76

Professor do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia/UFRGS. E-mail:

[email protected]. 77

Embora utilize a versão da Amorrortu, que denomina Lo ominoso a esse trabalho de Freud, uso o título O

estranho, pois é o consagrado no Brasil pela Imago. Entretanto, ao longo do texto traduzo unheimlich / ominoso

por sinistro.

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Freud toma um conto fantástico de E. T. A. Hoffmann – O homem de areia, de 1815 – como

ponto de partida para suas reflexões. O duplo está no zeitgeist – o espírito do tempo.

A partir dos conceitos elaborados por Freud em O estranho, este artigo procura

compreender a pregnância da temática do duplo no cenário cultural em que florescem o

romantismo, o cinema expressionista e a própria psicanálise. A hipótese assumida é de que ela

corresponde à cisão do sujeito delineado pelo racionalismo iluminista, decorrente da perda de

seu suporte ontológico transcendente: a morte de Deus. Dito de outra forma, o duplo consiste

no sinistro porta-voz do desamparo constitutivo do homem das Luzes.

O problema do duplo no Fantasma, de Murnau

Lorenz Lubota (Alfred Abel) é um modesto servidor público, que sonha em ser poeta.

Um dia, a caminho do trabalho e perdido em devaneios, é atropelado pela carruagem da bela e

rica Veronika Harlan (Lya de Putti). Lorenz transtorna-se. Esquece Marie Starke (Lil

Dagover), que o ama em silêncio, negligencia seu emprego e descuida de sua sofrida mãe

(Frieda Richard). Obcecado por Veronika e iludido com a ideia de que será um grande poeta,

Lorenz pede dinheiro emprestado à sua tia Schwabe (Grete Berger), que é agiota, a fim de

vestir-se melhor e, assim, impressionar sua amada. No entanto, seus esforços no sentido de

tornar a ver Veronika fracassam. Incitado por Wigottschinski (Anton Edthofer), o

inescrupuloso amante de Schwabe, a usufruir do dinheiro da tia, Lorenz encontra Melitta (Lya

de Putti), uma sósia perfeita de Veronika. A partir desse momento, o protagonista entrega-se

de corpo e alma a proporcionar ao duplo de sua amada todo o luxo que o dinheiro de sua tia

pode comprar. Descoberta sua fraude, necessitando de mais recursos e dominado pela paixão,

Lorenz alia-se a Wigottschinski em um roubo, que culmina no assassinato de Schwabe.

A exposição dos efeitos perturbadores – para não dizer sinistros – do encontro com o

duplo é um dos temas recorrentes no cinema alemão do início do século XX. Em 1913, O

outro, de Max Mack, trata da angústia de um homem que, após um acidente, desenvolve uma

dupla personalidade (CÁNEPA, 2008). Nesse mesmo ano, Stelian Rye dirige O estudante de

Praga, filme com roteiro do escritor de contos de horror Hanns Heinz Ewers, inspirado em

Fausto, de Goethe, A singular história de Peter Schlemihl, de Adelbert von Chamisso, A

imagem perdida, de E. T. A. Hoffmann, A noite de dezembro, de Alfred de Musset, William

Wilson, de Edgar Allan Poe, O duplo, de Dostoiévski, O Horla, de Guy de Maupassant, e O

retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, dentre outras obras literárias que tematizam o

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fenômeno do doppelgänger (MÜLLER, 2008)78

. É curioso observar que Otto Rank, em seu

trabalho O duplo, de 1914 – importante fonte de O estranho, de Freud –, toma como ponto de

partida para suas reflexões essa história de Ewers e debruça-se sobre uma farta produção

literária (especialmente de cunho romântico), mitológica e folclórica, que tem na problemática

do duplo seu foco principal (MÜLLER, 2008; SANTOS, 2009).

Em O estudante de Praga79

, Balduin (Conrad Veidt) – um jovem ambicioso, mas

pobre – em um momento de desalento encontra Scapinelli (Werner Krauss), um homem mais

velho, que promete ajudá-lo. Com seus poderes demoníacos, Scapinelli cria a oportunidade de

Balduin salvar a condessa Margaret (Agnes Esterhazy) e sussurra no seu ouvido: ―lá vai a sua

rica herdeira‖. Atormentado por não possuir recursos financeiros para cortejar Margaret, que

está comprometida com o Barão Waldis-Schwarzenberg (Ferdinand von Alten), o

protagonista recebe a visita de seu Mefistófeles, que lhe propõe um pacto: em troca de um

objeto qualquer de seu quarto, Scapinelli oferece seiscentas mil peças de ouro. Entusiasmado,

o jovem aceita a proposta, mas se surpreende com o objeto reivindicado: sua imagem no

espelho. Agora rico, o rapaz não mede esforços para conquistar a condessa. No entanto, seu

duplo está decidido a atrapalhar seus planos. Desafiado pelo barão, Balduin, considerado o

melhor espadachim de Praga, promete não matar o rival, mas seu outro eu antecipa-se e

assassina Waldis-Schwarzenberg. Enlouquecido, Balduin atira em sua imagem. Porém, é seu

peito que sangra.

No mais importante filme do expressionismo alemão – O gabinete do Dr. Caligari

(1920), de Robert Wiene –, o problema do duplo também se coloca, ainda que de um modo

mais sutil. O Dr. Caligari (Werner Krauss) solicita autorização para expor o seu espetáculo na

feira anual de uma pequena cidade alemã. Seu assistente Cesare (Conrad Veidt) é um

sonâmbulo que, sob hipnose, adivinha o futuro. Entretanto, suas previsões são funestas e logo

surge a suspeita de que o próprio Cesare encarrega-se de cumpri-las. Intrigado, Francis

(Friedrich Feher) descobre que o Dr. Caligari é diretor de um hospital psiquiátrico e que

pesquisa o sonambulismo. Assombrado diante do projeto macabro do doutor, Francis acusa-o

de usar Cesare como seu duplo, isto é, de valer-se de sua susceptibilidade para realizar seus

impulsos assassinos. No entanto, o final do filme é ainda mais surpreendente. Francis, que

78

De acordo com Santos (2009), o termo dopellgänger – que, literalmente, significa aquele que caminha do lado,

companheiro de estrada – é cunhado em 1796 por Jean-Paul Richter, no contexto de nascimento do romantismo

alemão. 79

Neste artigo, baseio-me na versão de 1926 desse filme, dirigida por Henrik Galeen, pois no Brasil não há cópia

em DVD da versão original. Para uma análise desta, ver Müller (2008).

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encarna a crítica racional dos abusos do poder, também tem seu duplo: ele, que é o narrador

da história, é um louco internado no manicômio dirigido pelo Dr. Caligari.

Nesse sentido, Fantasma é um dentre outros filmes com temática fantástica, dotados

de uma atmosfera sombria e aos quais o fenômeno do duplo confere um aspecto sinistro, que

pululam no cinema alemão das décadas de 1910 e 1920 (CÁNEPA, 2008)80

. No entanto,

impressiona o modo como o duplo opera nesse filme de Murnau. Se Lorenz é o homem mais

correto do mundo, o único em quem Schwabe confia, sua irmã Melanie (Aud Egede Nissen) é

a desgraça da família, pois se prostitui. Enquanto Lorenz é um filho sem pai, Marie é uma

filha sem mãe. A mãe de Lorenz trabalhou como uma mula a vida inteira, mas é pobre e

infeliz. Em contrapartida, tia Schwabe é rica e poderosa, graças à impiedosa exploração dos

que necessitam de seu dinheiro. Se, por um lado, Veronika só é vista por Lorenz – e pelos

espectadores – em uma única cena, pois tem um pai que a preserva, por outro, Melitta é

oferecida por sua mãe a Lorenz – e pelo diretor a nós.

Nessa trama, a atriz Lya de Putti encarna um dos mais típicos fantasmas da psicologia

masculina: o da cisão em a inacessível e a fácil, imagem simétrica e invertida uma da outra,

duas faces da mesma mulher. Dito de outra forma, Veronika consiste em uma personagem

recorrente no cinema: a da mulher que desaparece. De acordo com o filósofo Slavoj Zizec

(2010), tal temática alude à mulher total – A mulher –, aquela que seria capaz de suprir a falta

em um homem. Na perspectiva lacaniana, essa mulher não existe, ou seja, dela não há registro

simbólico. O encontro com ela só pode ser alucinatório – e Lorenz Lubota é o tempo todo

atormentado por imagens oníricas, nas quais persegue a carruagem que conduz sua amada. E

aqui temos aquela que talvez seja a mais importante manifestação do duplo no Fantasma, de

Murnau. Lorenz mostra-se cindido entre a imagem de si construída em conformidade com o

superego materno – a de um homem honesto – e o que acaba se tornando, a fim de conquistar

a mulher com quem supostamente a relação sexual seria possível: um canalha como

Wigottschinski.

Por fim, o fenômeno do duplo expressa-se nesse filme ainda de outro modo, não

vinculado a um personagem. Sua história trágica dobra-se em uma moldura melodramática.

Na abertura, o escritor e dramaturgo Gerhart Hauptmann, prêmio Nobel de literatura em 1912

– do qual o protagonista é um espectro ridiculamente esmaecido –, aparece segurando um

80

Como observa Müller (2008), não é adequado definir, retrospectivamente, os filmes do período imperial

alemão – como a versão original de O estudante de Praga – como precursores do expressionismo, pois eles

possuem uma lógica própria. Em seu contexto, são denominados filmes de arte (kunstfilm), pois consistem em

filmes de autor (autorenfime), isto é, escritos por autores famosos, como H. H. Ewers.

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livro. Ato contínuo, vemos Lorenz e sua esposa Marie em uma casa de campo. Lorenz queixa-

se de sua vida e Marie entrega-lhe um caderno, presente de seu pai, para que seu marido

escreva a história de seus sofrimentos. E este é o prólogo de Fantasma. No epílogo, Marie e

seu pai esperam Lorenz na saída da prisão e dirigem-se a uma casa de campo, em uma cena

que antecede imediatamente a do prólogo. Lorenz, personagem inteiramente dominado por

uma mater dolorosa, encontra em seu sogro um suporte para sua masculinidade precária, que

o amor de Marie não é suficiente para dissimular.

O duplo: um outro estranhamente familiar

Neste artigo, o texto O estranho, de Freud, exerce uma dupla função. Por um lado,

oferece conceitos para pensar a questão do duplo. Por outro, é uma das obras que têm no tema

do duplo um objeto primordial. Neste último sentido, ela tem de ser analisada como

pertencente ao mesmo solo cultural do Fantasma, de Murnau – o que será realizado na

próxima seção. Na presente seção, são os conceitos criados nesse fundamental trabalho

freudiano o que interessa descrever.

Em O estranho, Freud interroga-se acerca das condições em que algo é percebido

como sinistro. A partir de uma análise etimológica, o autor mostra que a palavra alemã

unheimlich tem como oposto heimlich: familiar, doméstico, íntimo. Nessa perspectiva,

sinistro seria o não familiar. Porém, nem todo o desconhecido é terrorífico. Ademais, heimlich

também possui outros sentidos: algo oculto, clandestino, secreto, isto é, escondido de olhares

estranhos, subtraído do conhecimento alheio. Por sua vez, unheimlich também significa

dissimulado, suspeito, tenebroso, espectral. Nas palavras de Schelling (apud FREUD, 1984, p.

224): ―denomina-se unheimlich a tudo o que, estando destinado a permanecer em segredo,

oculto, vem à luz‖. Assim, no largo espectro de sentidos da palavra heimlich há um que

coincide com unheimlich. O sinistro mantém estranhos vínculos com o familiar.

Em sua análise de O homem de areia, de Hoffmann, Freud procura elucidar esse

enigma. Desde o seu ponto de vista, o caráter sinistro desse conto fantástico decorre de algo

extremamente familiar: a angústia de castração do menino, simbolizada no temor de que lhe

sejam arrancados os olhos. Nesse sentido, o homem de areia não é outro senão o temido duplo

do pai benevolente da infância. No entanto, a análise etimológica mencionada acima requer

que essa questão seja posta em outros termos. Mais precisamente, o que há de unheimlich

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nessa obra é o fato de, por meio dela, vir à luz, ainda que de um modo deformado, algo que

teria que permanecer oculto: o desejo incestuoso.

O duplo, de Otto Rank, é outra importante fonte para a reflexão freudiana. Freud

(1984, p. 235) sintetiza assim a tese de Rank: ―[...] o duplo foi, em sua origem, uma segurança

contra o sepultamento do eu, ‗uma enérgica denegação do poder da morte‘ [...], e é provável

que a alma ‗imortal‘ tenha sido o primeiro duplo do corpo‖. De acordo com o criador da

psicanálise, tal concepção vincula-se ao narcisismo primordial. Porém, ―[...] com a superação

[ontogenética e filogenética] dessa fase, muda o signo do duplo: de um assegurador da

sobrevivência do eu, passa a ser um sinistro anunciador da morte‖ (id., p. 235). Dito de outra

forma, o caráter sinistro do duplo reside em que, por meio dele, algo que estava destinado a

permanecer secreto – o temor do aniquilamento do eu, o qual consiste na contrapartida de sua

onipotência – devém consciente.

Freud refere-se a outros fenômenos frequentemente percebidos como sinistros: a

insistente repetição de determinados eventos, que não podem ser atribuídos à casualidade, a

imediata realização de desejos enunciados, o cumprimento de certos pressentimentos, a

ocorrência de um ataque epilético, a inesperada visão de um cadáver, dentre outros. E sugere

que tais episódios suscitam uma atitude supersticiosa, mesmo naqueles cujo juízo crítico as

repudia. Em outras palavras, o psicanalista propõe que algo do sistema animista de

pensamento habita o sujeito moderno e que sempre que uma representação dessa ordem

irrompe na consciência seu efeito é um estranhamento radical. A partir dessas distintas

análises, Freud extrai uma conclusão: ―[...] o sinistro é o outrora doméstico, o familiar de

antigamente. Nesse sentido, o prefixo ‗un‘, da palavra unheimlich, é a marca do

recalcamento‖ (id., p. 244).

O duplo: o avesso da racionalidade positivista do século XIX

Evidentemente, o tema do duplo não é objeto de interesse apenas da literatura

romântica, do cinema expressionista e da psicanálise. Ao longo da história da cultura

ocidental, tal problemática também aparece nos discursos religiosos e filosóficos, assim como

nos mitos, no folclore, na pintura e na música. Em Um périplo pelo território duplo, Adilson

Santos faz uma excelente revisão do assunto. Na literatura ocidental, esse tema remonta à

Antiguidade Clássica e consiste em um modo de assinalar a oposição de contrários. Porém,

até a Renascença o duplo está ligado a uma concepção unitária do sujeito. Os personagens –

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gêmeos ou sósias – são idênticos, mas têm identidade própria. A partir do século XVII, inicia-

se um processo de progressivo abandono dessa concepção e de formação de uma tendência de

representação do heterogêneo: o alter ego, um outro eu. No entanto, é especialmente no

século XIX que o duplo passa a indicar, incisivamente, a cisão do sujeito e temas tradicionais

da psiquiatria – como o sonambulismo, a hipnose e a histeria – somam-se aos do sujeito que

vendeu sua alma, ou perdeu sua imagem no espelho (ou sombra, reflexo na água, etc.) ou,

ainda, se tornou prisioneiro de sua representação em um retrato.

É nesse solo que floresce a teoria psicanalítica. Em Viena e as origens da psicanálise,

Mezan procura delinear o laço existente entre as elaborações conceituais freudianas e a

cultura de seu tempo. De acordo com esse psicanalista, Freud teve uma sólida formação

clássica, isto é, conhecia muito bem a literatura germânica dos séculos XVIII e XIX, lia

voluptuosamente Shakespeare e outros autores ingleses e estudou por vários anos o grego e o

latim. Ademais, possuía um vasto conhecimento da Bíblia, decorrente do respeito à tradição

judaica vigente em sua casa. Ao ingressar na Universidade de Viena, também se interessou

pela filosofia e frequentou cursos com Franz Brentano. Todavia, Mezan (1996, p. 89)

assinala: ―[...] a influência intelectual mais decisiva sobre ele foi a exercida por seu professor

de fisiologia, Ernst Brücke‖. E, juntamente com Helmholtz e Du-Bois Reymond, Brücke

encarnava a mais poderosa tendência em filosofia das ciências do século XIX: o positivismo,

que pretendia impor às ciências humanas os métodos das ciências naturais.

A princípio, essa afirmação surpreende, pois, no que concerne ao nascimento da

psicanálise, é frequente atribuir-lhe raízes no romantismo alemão e laços de solidariedade

com as vanguardas artísticas e intelectuais da Belle Époque. Ainda de acordo com Mezan, os

movimentos culturais que irrompem no cenário europeu a partir de 1890 (época em que

aparecem os primeiros textos psicanalíticos) costumam ser designados irracionalistas ou anti-

intelectualistas. No entanto, o autor sugere que seu traço comum é uma atitude de revolta

contra o positivismo, entendido como uma visão de mundo (weltanschauung). Em filosofia

das ciências, isso implica retomar o problema do sujeito no que há para além da razão e da

medida. Nas artes, ―trata-se da dissolução paulatina dos códigos expressivos herdados da

tradição renascentista, barroca e clássica [grifos do autor]‖ (id., p. 93). Na pintura, a

fotografia torna prescindível a figuração realista e, a partir do impressionismo, a perspectiva

tende a ser abandonada em prol de uma deformação criativa. Na literatura, a ênfase desloca-se

da descrição naturalista dos personagens e da sociedade para as inovações estilísticas. Na

música, a escala tonal cede espaço para o dodecafonismo. É a representação objetiva da

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realidade – noção que enlaça o positivismo, em filosofia das ciências, e o realismo, nas artes –

o que é posto em questão.

Nessa luta de titãs, Freud ocupa um lugar muito singular. Por um lado, ―[...] era

efetivamente um positivista, e seu projeto era o de introduzir as concepções e os métodos da

ciência no território da alma, até então reservado aos poetas, romancistas e filósofos‖ (id., p.

98). Isso fica evidente em conceitos como os de forças psíquicas, resistência, investimento

energético das representações, dentre outros que parecem terem sido tomados da física. Por

outro, foi reconhecido pelas vanguardas da Belle Époque – e será incensado pelas vanguardas

dos anos 192081

– como um dos seus, por ter lançado luz sobre esse duplo do sujeito da razão

positiva: o inconsciente. Mezan define Freud como um pesquisador racionalista e materialista,

cujo pensamento se curva diante das determinações de seu objeto. Mais precisamente, a

análise racional da não razão conduz o instaurador do discurso psicanalítico à literatura: da

Bíblia à tragédia grega, de Shakespeare ao romantismo alemão do século XIX.

Porém, o parentesco do trabalho de Freud com o das vanguardas de seu tempo não se

reduz às suas elaborações conceituais. É sobretudo por meio de sua técnica – a regra da livre

associação e sua contrapartida, a atenção flutuante do analista – que a psicanálise promove a

dissolução paulatina dos códigos expressivos vigentes. Nas palavras de Mezan: ―o convite

para associar implica a ruptura dos vínculos lógicos e o silenciamento da censura moral por

parte do paciente [...]‖ (id., p. 96). Dito de outro modo, é especialmente por meio de seu

dispositivo clínico que a invenção freudiana possibilita ao duplo do sujeito da razão

positivista expressar-se em sua linguagem estranhamente familiar.

A partir dessas formulações, é possível expor, ainda que preliminarmente, a hipótese

deste trabalho. Se o tema do duplo aparece com insistente recorrência na literatura romântica

do século XIX e no cinema alemão do início do século XX, e se consiste em um motivo para

a reflexão psicanalítica, é porque concerne ao que há de recalcado no contexto cultural em

que tal problemática se constitui, ou, mais precisamente, a algo que, estando destinado a

permanecer encoberto, subitamente vem à luz. Em outras palavras, a persistente tematização

do duplo alude ao avesso da racionalidade positivista e consiste no sinistro anúncio da morte

81

Sobre a relação de Freud com tais movimentos, Sousa e Endo (2009, p. 75) escrevem: ―em julho de 1939, Dalí

esteve na casa de Freud junto com Stefan Zweig. Freud já tinha sido uma espécie de guia espiritual do

movimento surrealista e era admirado por André Breton. Nunca deu a devida importância à interlocução com

Dalí. Alguns dias depois escreveu ao amigo Zweig suas impressões sobre o jovem artista espanhol: ‗até agora,

parece-me, vi-me tentado a considerar os surrealistas, que aparentemente me escolheram como seu santo

padroeiro, como loucos completos (digamos a 95%, como para o álcool absoluto). O jovem espanhol, com seus

cândidos olhos de fanático e seu inegável domínio técnico, incitou-me a reconsiderar essa opinião‘‖.

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de tal weltanschauung. No entanto, ainda é preciso mostrar como isso opera no Fantasma, de

Murnau, em um registro que não o do roteiro, privilegiado nas análises até aqui realizadas por

este artigo. E isso implica tecer alguns comentários acerca da estética expressionista.

Expressionismo: o duplo da racionalidade técnica do II Reich

Em 1911, o crítico de arte Herwath Walden, editor da revista Der sturm (A

tempestade), cunha o termo expressionismo, a fim de assinalar o contraste entre a pintura

impressionista e as obras de dois grupos de pintores: Die brücke (A ponte), surgido em

Dresden, em 1905, e Der blaue reiter (O cavaleiro azul), formado em Munique, em 1911. Na

perspectiva de Walden, enquanto o impressionismo visa captar os efeitos da luz sobre objetos

visíveis, o expressionismo ocupa-se do que há de imperceptível e profundo na alma humana

(CÁNEPA, 2008). Em termos técnicos, as obras de pintores como Kandisnky e Paul Klee

caracterizam-se pela distorção das linhas, com ênfase na criação de formas alongadas, pelo

uso de cores não naturais – por vezes extáticas, por vezes lúgubres –, pela recuperação do

valor expressivo do preto e branco, pelo empastamento espesso, pelas pinceladas vigorosas,

pela utilização de técnicas de xilogravura e pelo repúdio à imitação da natureza. Mediante

esses procedimentos, os expressionistas pretendem reacender a força vital da arte, tornada

anêmica pela sociedade industrial (McGINITY, 2011).

No entanto, o expressionismo não se restringe à pintura. Na literatura, poetas e

romancistas operam uma desconstrução da sintaxe e procuram criar atmosferas emocionais

densas, quando não catastróficas. Na música, as composições atonais de Schöenberg ilustram

sua ruptura com os códigos estéticos. Na dança, Isadora Duncan e Rudolf von Laban libertam

os movimentos espontâneos do corpo. No teatro, dramaturgos, como Gerhart Hauptmann, e

diretores, como Max Reinhardt, procuram expressar os aspectos obscuros – por vezes

demoníacos – da psique dos personagens, através de cenários fantásticos, efeitos de

iluminação e maquiagem carregada. Na raiz de todas essas tendências, encontra-se o

princípio, avesso ao positivismo, de que a subjetividade é a realidade crucial. Formulado pelo

movimento Sturm und drang (Tempestade e ímpeto), no final do século XVIII, tal princípio

permeia o romantismo, atravessa a filosofia nietzschiana e desemboca no pensamento

freudiano, antes de florescer no expressionismo (CÁNEPA, 2008).

No cinema, o marco inaugural desse movimento é O gabinete do Dr. Caligari. Seu

aspecto sinistro decorre de vários fatores, além do roteiro. Os cenários, dotados de pouca

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136

profundidade, mostram ruelas tortuosas e casas inclinadas, o que confere ao filme seu

característico aspecto claustrofóbico e sombrio, reforçado por uma iluminação titubeante, pela

maquiagem pesada e pela grande carga dramática da interpretação dos atores. Na primeira

metade dos anos 1920, muitos filmes assumem essa orientação estética. De acordo com

Cánepa (2008), é possível enlaçá-los, a posteriori, em torno de algumas estratégias comuns

no que concerne à composição, à temática e à estrutura narrativa.

No cinema expressionista – na medida em que tal pretensão totalizante é admissível –,

a composição do plano (cenário, decoração, iluminação, figurino, maquiagem, organização da

cena, fotografia, etc.) tende a ser mais importante do que a articulação entre os planos ou os

movimentos de câmera, o que faz com que seus filmes assemelhem-se a uma sucessão de

quadros expressionistas. Por outro lado, no que diz respeito à temática sua fonte é sobretudo a

literatura romântica, com suas histórias fantásticas de demônios, vampiros e monstros, que

aludem a tiranos insaciáveis. Por fim, no que tange à estrutura narrativa o fascínio desse

gênero decorre de seu caráter oblíquo, que não suprime ambiguidades. Nesse sentido, os

intertítulos – integrados à forma visual do filme – são utilizados com parcimônia e não são

explicativos. Ademais, a referência frequente ao espaço fora do campo visual do espectador,

por meio de olhares, sem que se faça o contracampo, contribui para conferir um efeito de

abertura para o imprevisível. E por conta da ênfase na composição do plano, a narrativa

procede de um modo descontínuo, isto é, mediante elipses espaço-temporais, o que também

coopera para a criação de seu tom enigmático.

Em Expressionismo cinematográfico, arquitetura e cidade, Benfati e Santos Jr.

assinalam o paradoxo de um grande país industrial – a Alemanha – ser tão voltado, em suas

distintas modalidades de criação artística, para seu passado medieval. De acordo com os

autores, tal tendência não pode ser atribuída, exclusivamente, à derrota na I Guerra Mundial,

pois lhe antecede. No entanto, Benfati e Santos Jr. (2006) observam que o florescimento do

cinema expressionista coincide com o caos social do início da República de Weimar e

sugerem que essa filmografia expressa uma recusa da vida urbana, identificada com a

barbárie, não com a civilização. Nas palavras dos autores:

O período de luzes é, em sua aparência, colocado entre parêntesis e o universo

ficcional retorna não apenas à natureza em contraposição à cidade, mas a uma

temática voltada para a reagrarização e a submissão a temores primitivos, a

dominação do instinto sobre a razão (id., p. 68).

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137

Essa tendência regressiva tem na construção dos cenários dos filmes expressionistas

uma de suas mais importantes manifestações. É o retorno ao estilo gótico medieval o que

pretendem seus arquitetos. Nesse sentido, o espaço não é linear, mas deformado: as ruas são

pequenas e tortuosas; as casas são escuras e, frequentemente, inclinadas; e escadarias,

corredores e pátios internos conferem a essas películas uma sensação de ambiente confinado e

ameaçador. Ademais, o modo como esses cenários são fotografados, com fortes contrastes

entre áreas iluminadas e sombrias (chiaroscuros), tende a realçar o relevo e a exagerar ou

recortar os contornos, acentuando seu aspecto fantasmagórico. No limite, é a expressão não

racional dos estados de alma, mediante recursos visuais, o que almeja o cinema

expressionista. No Fantasma, de Murnau, a vertigem de Lorenz Lubota, enquanto dança com

Melitta em um café, exprime-se por meio de um cenário giratório. E, em um momento de

angústia, o protagonista vê-se perseguido por prédios de estilo gótico.

Retomando o paradoxo apontado por Benfati e Santos Jr. – o de uma nação altamente

industrializada, que se volta para seu passado medieval –, parece-me que ele não pode ser

atribuído à derrota na I Guerra Mundial ou à crise social dos primeiros anos da República de

Weimar, mas aos fatores que conduziram a essas catástrofes. Dito de outro modo, o

expressionismo consiste no avesso da racionalidade técnica, que permeia o processo de

modernização autoritária do II Reich. Nessa perspectiva, o Dr. Caligari é um duplo do

comandante da unificação germânica – Otto von Bismarck –, que mesmeriza as massas

alemãs e as incorpora em seu projeto imperialista. No entanto, o expressionismo não faz uma

crítica racional dos abusos do poder, de inspiração iluminista. Tanto no que tange a seus

aspectos formais, quanto no que concerne a suas temáticas ele não visa ao esclarecimento.

Sua proposta estética é a de expor, em uma linguagem estranhamente familiar ao povo alemão

– a do estilo gótico –, o que os líderes da Alemanha industrializada pretendem manter oculto:

seus sinistros poderes.

Especificamente no que concerne ao Fantasma, é preciso salientar suas diferenças em

relação a O gabinete do Dr. Caligari. Se neste trata-se de expressar os horrores decorrentes da

onipotência paterna, naquele trata-se de exprimir o pesadelo em que consiste a inoperância do

pai. Se o filme de Robert Wiene alude ao fundador do II Reich, é possível que o de F. W.

Murnau refira-se à vulnerabilidade da República de Weimar. Porém, tanto sobre um, quanto

sobre o outro paira o espectro da tirania. Nesse sentido, é altamente significativo que o

Fantasma, de Murnau, inicie com Gerhart Hauptmann, o autor da obra em que se baseia o

filme. Se novas catástrofes anunciam-se, é crucial que sejam enunciadas.

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Considerações finais

No Fantasma, de Murnau, o tema do duplo prolifera em muitas direções. Por um lado,

há a dimensão mais evidente – e mais corriqueira – da sósia. Porém, há outras. Vários

personagens espelham-se uns aos outros: Lorenz e Melanie, Lorenz e Marie, Lorenz e

Wigottschinski, a mãe de Lorenz e a tia Schwabe, Veronika e Melitta, sob distintos pontos de

vista, consistem na imagem simétrica e invertida um do outro. Para além do universo

diegético, o duplo imiscui-se na própria narrativa: trata-se de uma história trágica – o amor de

Lorenz por Veronika, que o enlouquece –, enquadrada em uma moldura melodramática: o

amor de Marie por Lorenz, que o resgata. Ademais, a trama é invadida por um duplo – posto

que se trata de um personagem – do autor do livro adaptado pelo filme. A enigmática

presença desse personagem na abertura do Fantasma faz pensar que ele, por sua vez, tem seu

próprio duplo: o Sr. Starke (Karl Etlinger), pai de Marie e encadernador, que aposta na

carreira literária de Lorenz e, ao final, oferece-lhe um caderno para que ali registre suas dores.

Por fim, ao longo do filme assistimos ao desdobramento de Lorenz em um outro de si mesmo.

Esta miríade de duplos perturba, produz inquietações. E, se olhamos o cenário cultural

adjacente, não paramos de nos assombrar. Tal problemática dissemina-se pelo cinema alemão

da época, é tomada como objeto pela reflexão psicanalítica e lança raízes profundas no

romantismo do século XIX. Inevitavelmente, interrogamo-nos: a que corresponde essa

proliferação discursiva? Ao longo deste artigo, procuro esboçar algumas hipóteses. No

contexto cultural em que se circunscreve esse problema, ele alude à cisão do sujeito. Mais

precisamente, o duplo consiste no outro do sujeito que se constitui nas dobras do racionalismo

iluminista, em suas diversas vertentes: positivismo, em filosofia das ciências; realismo, nas

artes; razão técnica, nas indústrias; razão de Estado, em política. É a morte de Deus,

promovida pelo Iluminismo, que produz o desamparo do homem das Luzes e faz de seu duplo

– a não razão – um sinistro mensageiro da morte de tal sujeito.

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139

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113-117.

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A Partida, de Yojiro Takita, numa perspectiva psicanalítica do

corpo.

Bianca Scandelari82

Resumo

Propomos abordar pontos introdutórios sobre o corpo em psicanálise através da perspectiva

apresentada no filme A Partida, de Takita (2008). Neste sentido, a trama da história faz lembrar

nuances do que é possível chamar em psicanálise de lugar psíquico. Segundo a intersecção encontrada,

a vida que anima um corpo, que o constitui e o autoriza como vivente é ilustrada numa perspectiva

simbólica que une sentido e imagem.

Palavras-chave: vida; morte; corpo; psíquico; psicanálise.

Yojiro Takita’s Okuribito in a psychanalytic perspective of the body

Abstract

We propose to address introductory points on the body in psychoanalysis from the perspective

presented in the film Okuribito of Takita (2008). In this sense, the story line is reminiscent of the

nuances that you can call the psychic place in psychoanalysis. According to the intersection found, the

life that animates a body that is permitted and is shown as living in a symbolic perspective that unites

sense and image.

Keywords: life; death; body; psychic; psychoanalysis.

Longe de pressupor uma completa análise dos dois temas, e esgotar as possibilidades

de sua intersecção, a proposta deste artigo é antes abordar, de forma ilustrativa e introdutória,

algumas questões possíveis de serem comentadas sobre a significação de corpo na psicanálise

em virtude de alguns aspectos que o filme A Partida (2008), de Yojiro Takita, traz em sua

articulação interna de cenas.

O tema que primeiramente ―salta aos olhos‖ no decorrer inicial do filme é a relação

existente entre vida e morte. A morte, sem sombra de dúvida, apenas pode ser pensada a partir

da significação de vida, que é por si só um tema de difícil abordagem. É claramente absorvido

nos campos da Biologia e da Física, além de outras ciências que esperam extrair seu

significado através da análise minuciosa da matéria, seu funcionamento e dinâmica.

82

Psicanalista, doutoranda em Filosofia pela Unicamp.

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Mediante a discussão permanente entre as neurociências e a psicanálise, em virtude do

funcionamento do corpo ou sobre o que o anima, a suposta relação entre o que é físico e o

lugar do que é psíquico, propomos alguns comentários sobre trechos da obra inicial de Freud

– que trazem justamente a articulação sobre como funcionaria o corpo na histeria -,

complementando com passagens de textos de Lacan sobre a assunção de uma imagem na

formação do eu. Desta forma, seria possível relacionar algumas passagens da história do

personagem, Daigo Kobayashi - mobilizadas de forma direta e, ao mesmo tempo, leve, pela

abordagem um tanto cômica, - à questão da relação com o corpo, considerado como o que

encarna os significados de vida e morte.

Para começar a trazer a história de Daigo, faremos desde o início, do filme, não o de

sua vida. Filho único de um casal proprietário de um pequeno café da cidade de Yamagata, no

Japão, o personagem aparece em cenas de sua lembrança com o violoncelo em mãos, tocando

em frente aos pais. Estas cenas de sua memória se tornam importantes para a trama, pois

demonstram as reminiscências que Daigo tem da sua relação com o pai, cujo rosto teria sido

―apagado‖ de sua memória. Outra lembrança relacionada seria aquela da ―pedra-carta‖. O

personagem, ainda menino, faz uma troca de pedras com o pai que teria o propósito

subjacente de significar algo quase inominável, posto que os sentimentos que as pedras

buscam simbolizar, assim como qualquer outro, não caberiam em palavras. Como as palavras

ditas ou escritas não o exprimem por completo, não poderiam as pedras ―encarná-los‖?

Assim, o garoto ganha uma pedra grande e áspera que ilustraria a doação do sentimento em

dificuldades, e o pai recebe uma pequena pedra branca e lisa que denotaria o coração sereno

do menino.

Da relação com o pai e da infância do personagem temos somente essas passagens e a

declaração em que, aparentemente, pouco importa para Daigo se o pai é vivo ou morto.

Quando passamos à sua vida em Tóquio, as passagens também são escassas. Assistimos ao

momento em que, já adulto, o violoncelista vê sua chance de trabalho se esvair com a

dissolução da orquestra onde tocava, obrigando-o a traçar um novo rumo em sua vida.

Também podemos ver a cena em que ele conta à sua mulher sobre o ocorrido, chegando a

assumir o violoncelo como um ―peso morto‖ em muitos aspectos. Ainda em relação à última

passagem, temos a curiosa aparição do polvo que sua mulher traz para casa como um presente

para o jantar, mas que num assalto de preservação de vida, aparentemente se lança ao chão

movendo seus tentáculos. O jantar estava vivo, havia se tornado digno de toda consideração, o

que causa desespero no casal que resolve restituí-lo ao mar. Ao chegar o momento de

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salvamento, Daigo e a esposa percebem que o polvo já estava morto. Encerram-se aí as cenas

de Tóquio, dando a impressão da frustração perante aos projetos não realizados do emprego e

do salvamento, trazendo um aspecto da morte que parece antever o tema do andamento da

história de vida do personagem.

Ao retornar para Yamagata, o casal se instala na antiga casa em que Daigo viveu com

os pais, e, posteriormente, com sua solitária mãe, já falecida. Na busca de um emprego, ele

depara-se com a agência funerária NK, que desenvolve um ritual antigo e tradicional de

acondicionamento ou embelezamento de corpos, antes realizado pelas famílias das pessoas

falecidas. Possivelmente, em virtude da boa remuneração, ele aceita começar. A partir desse

momento experimenta uma passagem que transforma sua significação sobre os corpos com

que lida e sobre a morte, o que parece trazer algum sentido para sua história, uma expressão

para sua vida.

Uma perspectiva do corpo em Freud

A propósito desse contexto geral do filme, é possível introduzir alguns comentários

sobre o início do empreendimento de Freud, quando se debruçava sobre as significações que

produziam os sintomas na histeria. Para introduzir, notamos que esta neurose era definida a

partir de um desequilíbrio na dinâmica de excitações cerebrais e seu tratamento consistia

especialmente numa correção desses mecanismos anormais que tiveram lugar em determinado

momento de predisposição do paciente, tornando-se traumático e comprometendo sua saúde

física e psíquica desde então. A hipnose, com o uso da sugestão, também portava uma

definição semelhante a uma intervenção pedagógica que acabava por desconsiderar

importantes e possíveis conexões causais (sexualidade infantil, complexo de Édipo),

formuladas ao longo dos anos posteriores, em detrimento da gradual superação do acento no

método para a valorização da palavra do paciente.

De certa forma, quando a ―fala‖ da histérica foi tomando lugar no momento do

tratamento, percebemos uma relativização da concepção do corpo, que passa de objeto

tomado apenas em sua dinâmica fisiológica para outra que carrega, ―encarna‖ uma

significação. Ou seja, Freud percebia que o restabelecimento do equilíbrio e bem estar físico

dependia das palavras e sentimentos atrelados, e a via de escoamento ou alívio curativo

poderia portar um caráter de outra natureza.

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É o que denota o curioso, mas não incomum relato de Freud sobre a conversão

histérica como a simbolização de vivências aflitivas no corpo, no texto Estudos sobre a

Histeria, 1895. Ele ilustra o que a dificuldade do ―não poder dizer‖ representou para as

pacientes, restando apenas se contentar com a saída possível no correspondente disfuncional

do corpo:

E não é de toda forma verossímil que a inversão ―engolir algo‖, aplicado a um

insulto ao qual não se apresenta réplica, se deva de fato às sensações de inervação

que sobrevêm à garganta quando se nega o dizer, se impede a reação frente ao

ultraje? Todas essas sensações e inervações pertencem à ―expressão das emoções‖,

que, como nos ensinou Darwin |1872|, consiste em operações em sua origem

providas de sentido e de acordo com um fim; por mais que se encontrem hoje

debilitadas na maioria dos casos, a tal ponto que sua expressão linguística nos

pareça uma transferência figural, é bem provável que tudo isso tenha sido

entendido literalmente, e a histeria acerta quando restabelece para suas inervações

mais intensas o sentido original das palavras. E até pode ser incorreto dizer se cria

essas sensações mediante simbolização; talvez não tenha tomado o uso linguístico

como modelo, mas se alimenta junto com ele de uma fonte comum. (FREUD e

BREUER, 1893, p.193)

Este é o momento em que Freud se vê obrigado a formular uma explicação para a

conexão das significações da vida através da linguagem e suas marcas no corpo. Apesar de

encontrar correlatos nas sensações inervatórias da faringe, é curioso como o sintoma se molda

de forma a comunicar algo, mesmo que a vontade forte e resoluta o queira impedir. Este é um

exemplo de que o que não é falado, não sai pela palavra, fica no corpo, não como um

desequilíbrio qualquer, mas como um que chama a atenção, que ―quer dizer algo‖. Dessa

forma, é possível que se atribua um significado a um sintoma, ao corpo em sua dinâmica e até

a uma pedra.

Seria demasiado ousado pensar que o que dota o corpo, algo vivo e pulsante, de um

significado, pode dotar algo inanimado de sentimentos? Bem, sem forçar uma conclusão

sabemos que uma pedra não sente, mas não é necessário escrever ou ler nela para que ela

represente um sentimento. Assim, também um violoncelo pode pesar muito mais do que

sugere o peso de sua real matéria, sob vários aspectos. Igualmente, quando usamos a

expressão ―coração sereno‖ não queremos dizer que o órgão correspondente tenha essa

qualidade, assim como a ―cabeça‖ não pensa. Mas então, o que pensa? O que sente? Alguém?

De que é constituído esse alguém? Não obstante, assim como uma faringe não engole um

insulto, uma pedra pode portar um sentimento tão significativo que é possível afirmar que ela

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signifique apenas esse sentimento. Não cumpre mais sua função como pedra, é bem mais que

isso.

Assim um corpo é mais que um coração, uma faringe, um cérebro. Mesmo que sua

dinâmica fisiológica possa ser assumida por Freud naquele momento como objeto de

tratamento, o meio para que se interfira era o da palavra, mas não a qualquer. No texto de

1890, Tratamento Psíquico ou Anímico, o contexto em que a palavra é empregada e quem a

profere é analisado e sugerido como instrumento do tratamento. A fala não pode ser dita

apenas, mas tem que estar atrelada a uma significação não qualquer, também, como a que

sugere uma etimologia, por exemplo, mas uma que parte do paciente, que é imprevisível e

insuspeitada. Assim a cura dos pacientes fica subordinada à simpatia que o médico suscita.

O que mais interessava a Freud neste momento era a ―influência da vida anímica no

corporal‖, que correspondia à influência da sugestão fornecida pelo hipnotizador. Assim,

Freud nos diz que os efeitos da influência do ―médico que trata pela fala‖ causam: ―de um

lado, a obediência, mas de outro há um aumento da influência corporal de uma idéia. A

palavra, nesse caso, volta realmente a tornar-se magia‖. (FREUD, 1890, 126/127) Esta magia

corresponde ao poder do médico em desalojar os sintomas do corpo do paciente é comparado

ao poder de um curandeiro ou sacerdote. Apesar da já trabalhada desconexão da causalidade

da histeria com a localização anatômica, há um vínculo dos fenômenos histéricos com o

corpo, este que funcionaria a partir de então como um representante psíquico.

É certo que até esse momento da obra não estaria bem definido um conceito de

psíquico em Freud e sua relação com o corpo estava trabalhada pela via neurofisiológica, o

que não impede, porém, de levantar questões interessantes sobre como a histeria toma o corpo

e modifica seu modo de funcionamento.

Voltemos agora, à trama do filme. O acondicionamento de corpos parece ser definido

de forma direta e sucinta como uma limpeza e embelezamento para seu velório. Ainda, para

que seja escondida sua característica de morte, de putrefação. Lembramos o horror que causa

a Daigo o confrontamento com o corpo de uma senhora há duas semanas falecida e a reação

que o toma ao ver no jantar, tão carinhosamente preparado por sua mulher, o corpo de uma

galinha para ser comida crua. É interessante notar que esta seria encarada como uma iguaria

ao paladar se o acontecimento prévio não a tivesse dotado de um significado enojante.

Aparentemente, a cabeça da galinha parecia até possuir um semblante que encara nosso

personagem.

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Mas devemos lembrar que não se trata, nesse ritual, somente do que poderia se

considerar como sua utilidade, mas de um significado. De acordo com as palavras do mestre

de Daigo nesta experiência, a limpeza serviria também para tirar a fadiga, a dor e os desejos

deste mundo e representa o primeiro banho de um novo nascimento, assim como o ritual de

vestir é para preservar a dignidade do morto.

É possível observar que, com a significação dada ao corpo, sua função muda

drasticamente de objeto a ser preservado e dignificado, para um objeto de consumo. No caso,

a metáfora de corpo como comida aparece em várias cenas do filme, começando com a do

polvo que restitui seu lugar de merecedor da vida, seguido pela galinha e seu semblante

perturbador. Há também os salmões que prendem a atenção de Daigo em seu esforço em

direção à morte, para voltarem ao lugar onde nasceram. Não obstante, os corpos são vistos

como seu único meio de vida, seja porque é preciso comer o de ―outros‖ para sobreviver, seja

porque ―os mortos são seu ganha pão‖.

De qualquer forma, um corpo fica restrito ao sentido que leva, e é disso que parece se

tratar o trabalho de Daigo que, em outras palavras, é definido no filme como ―fazer reviver

um corpo frio e dar a ele a beleza eterna‖. Notemos que aqui a aparência do corpo também

pode ser relacionada a um sentido próprio que faz com que a despedida dos familiares fique

mais humana e sentida como mais verdadeira. Assim, o pai de Tomeo só reconhece o filho

após a preparação, bem como a mãe de Miyuki não reconhece a filha nem após o ritual. Fica

claro, em outras passagens, que o ritual possibilita como que o último reencontro com a

pessoa querida que ―revive para se despedir‖.

Ainda em relação ao que sugere o embelezamento do corpo como forma de revivê-lo,

e da aparência que o constitui e o identifica em meio a outros, em seguida, traremos

comentários sobre nuances da sua concepção para Lacan que justificam e ilustram o devir de

sentido através de uma imagem constituinte.

Uma perspectiva do corpo em Lacan

A propósito da aparência, da imagem do corpo que ganha um sentido bem ilustrado no

filme, traremos alguns comentários sucintos sobre a constituição do corpo e sua relação com a

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matriz do eu83

tal como foi abordado em algumas passagens do seminário I de Lacan.

Comecemos por abordar seu comentário da Traumdeutung, referente ao capítulo ―Psicologia

dos processos do sonho‖ (LACAN, 1953/1954, VII) em que Freud elabora o esquema no qual

insere o inconsciente, sua relação com as lembranças e a figuração do sonho como imagem.

Sendo todos esses aspectos possíveis de relacionar com nosso tema, mesmo assim devemos

escolher apenas aquele que oferece a ideia de um ―lugar psíquico‖, (LACAN, 1953/1954,

p.92) que figura como o campo da realidade psíquica, do que se passaria entre a percepção e a

consciência motora do eu.

No texto, Freud traz o exemplo de um microscópio ou de um aparelho fotográfico para

representar o instrumento que serve às produções psíquicas, para afastar-se logo da noção de

pertencer a uma localização anatômica. De acordo com sua comparação, este lugar psíquico

corresponderia a um ponto onde se forma a imagem que não corresponderia em si a nenhuma

parte material do aparelho. Justifica que essa aproximação, mesmo que imperfeita, serve para

fazer compreender o modo de funcionamento do psiquismo.

Lacan tomará a questão da óptica como fundadora de todo o conhecimento mais

fundamental relacionado à geometria e à mecânica. Neste sentido menciona sua base

matemática, pois para que haja uma óptica seria preciso corresponder um ponto do espaço

real, a um ponto do espaço imaginário sendo que os espaços se confundem, pois a dimensão

simbólica estaria permeando a manifestação de qualquer fenômeno. Ou seja, os fenômenos

mais reais que nos são apresentados pela experiência estão engajados pela subjetividade.

Assim:

Quando vocês vêem um arco-íris, vêem algo de inteiramente subjetivo. Vocês o

vêem a uma certa distância que se desenha na paisagem. Ele não está lá. É um

fenômeno subjetivo. E, entretanto, graças a um aparelho fotográfico, vocês o

registram de modo inteiramente objetivo. Então o que é isso? Não sabemos mais

muito bem, não é, onde está o subjetivo, onde está o objetivo. Ou não seria que

temos o hábito de colocar no nosso compreendedorzinho uma distinção muito

sumária entre o objetivo e o subjetivo? (LACAN, 1953-54, p. 93)

Mais à frente menciona sua construção intitulada como ―estádio do espelho‖ que se

refere ao processo de maturação fisiológica que permite ao sujeito, num momento de

prematuridade física, integrar suas funções motoras e ganhar um domínio do corpo. De

acordo com Lacan, em seu seminário, a imagem vista do total do corpo humano fornece um

83

Este eu é figurado no texto entre colchetes [eu] para distingui-lo como ―sujeito do inconsciente‖. Ver em

Escritos (1998) ―O estádio do espelho como formador da função do eu: tal como nos é revelada na experiência

psicanalítica‖ (1949).

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147

domínio que se antecipa à formação motora. Essa condição dará o tom de sua relação com o

próprio corpo, com o outro e com tudo o que vivencia. Assim: ―É aí que a imagem do corpo

dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é e o que não é do eu.‖. (LACAN,

1953-54, p.96) E vai mais além:

Quer dizer que, na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal

como ela resulta disso, tudo depende da situação do sujeito. E a situação do sujeito

– vocês devem sabê-lo desde que lhes repito – é essencialmente caracterizada por

seu lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no mundo da palavra.

(LACAN, 1953-54, p.97)

Se voltarmos agora ao filme, podemos começar a compreender como as

transformações na vida de Daigo se guiaram. Desde o polvo, que com o mesmo corpo muda

de lugar na subjetividade do casal e assim passa a ocupar instantaneamente uma dignidade,

até o corpo morto que passa a ser dignificado quase como vivo através do preparo de sua

imagem. Da mesma forma, o preconceito de Mikha se transforma de um sentimento de

vergonha para o de orgulho.

Assim como Lacan chega a mencionar que no campo de nossa relação com a imagem

não somos apenas um olho, entendendo todo o aparato anatômico necessário que forma a

visão, também poderíamos pensar as cenas da bela moça que tinha um pênis. Tomeo,

aparentemente, figura como uma delicada menina, que se vestia de forma feminina e era

tomada como tal a não ser pelo importante detalhe anatômico. Aí se coloca justamente a

questão da relação com o corpo, sugerindo que o ―ser‖ nem sempre se cola aos contornos

físicos. Para complementar este ponto de vista:

Há aí uma relação específica do homem com seu próprio corpo, que se manifesta

igualmente na generalidade de uma série de práticas sociais – desde os ritos da

tatuagem, da incisão e da circuncisão, nas sociedades primitivas, até aquilo que

poderíamos chamar de arbitrariedade procustiana da moda na medida em que ela

desmente, nas sociedades avançadas, o respeito às formas naturais do corpo

humano, cuja ideia é tardia na cultura. (LACAN, 1998, 107-108)

Esta seria a dimensão simbólica por trás da imagem e que parece animar a anatomia

em sua dinâmica de feixes de fibra cerebral, coração, faringe e músculos trazendo vida ao ser,

não importando, nesse caso, tratar-se de uma pedra, um animal ou um corpo morto. Sem

desconsiderar a diferença existente entre a dinâmica de vida que pulsa e a matéria inerte, o

filme traz a perspectiva de nos encontrarmos com outra instância da vida psíquica que por não

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se prender somente a dinâmicas anatômicas confere novas formas de concepção de um corpo

e o modifica, assim como Freud percebeu em relação à histeria.

Para concluir, sem restringir o assunto a estes comentários introdutórios, é possível

perceber algo em comum nas ideias de Freud, Lacan e Takita sobre o que dá vida a um corpo,

ou seja, o que o constitui como um ser em sua dimensão simbólica de existência. Assim,

como na histeria as palavras ―ganham corpo‖ e fazem sofrer, também a relação com este

corpo o mortifica ou o revive através de sua imagem. A diferença entre vida e morte parece

residir então em algo mais sutil e inefável, numa forma de se ver, numa perspectiva da

imagem e a significação que doa sua importância.

Neste sentido, podemos compreender verdadeiramente a história de Daigo com o pai,

julgado como péssimo e esquecido, mas que teria permanecido constantemente presente em

sua vida através do violoncelo e da sua música predileta, tocada em vários momentos da

trama. Entendemos melhor agora qual o sentido que o violoncelo ―encarna‖, assim como a

pedra se transmuta em carta. De fato, o filho só distingue a imagem do pai a partir do

reconhecimento da pedra que cai de sua mão no momento em que prepara o corpo dele. O pai

só é restituído em sua imagem no momento de sua morte, mas de modo que ele possa existir

de forma mais clara e permanentemente na lembrança. De resto, já na altura da cena final, não

é preciso muito imaginação para saber o que a imagem do que seria apenas um homem

oferecendo uma pedra ao ventre de sua mulher, possa significar.

O lugar psíquico pode ser bem ilustrado então, sem inconveniente, num filme de

Yojiro Takita, em algum lugar entre a percepção e a consciência de quem o vê, num ponto

imaginário não correspondente a algum componente material e/ou corporal mesmo que se

apoie em seu aparato. Ou ainda, numa palavra que afeta o olhar, numa pedra que porta uma

significação tão sublime que pode marcar o tanto o fim como o começo de uma vida.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1886-1899) Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos em vida de

Freud. Obras completas – 2ª ed. Amorrortu, 2010.

LACAN, Jacques. Escritos. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1998.

LACAN, Jacques. Seminário I: Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Jorge Zahar. Rio de Janeiro,

1986.

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A Professora de Piano: Notas Perversas

Raya Angel Zonana

Resumo

O filme A Professora de Piano (Henecke, 2001), é tomado como um texto imagético, que a partir de

uma ―escuta psicanalítica‖, torna-se palco para uma visão da perversão.

Palavras-Chave: Perversão, psicanálise, cinema

The Piano Teacher: Perverse Notes

Abstract

The Piano Teacher (Hanecke, 2001) is taken as a text in images that, departing from a "psychoanalytic

listening", becomes the stage for a vision of perversion.

Keywords: Perversion, psychoanalysis, cinema.

Buscando alguma inspiração para pensar o filme A Professora de Piano (La Pianiste

de Michel Haneke, 2001), encontro em André Green (1971) um pensamento que me estimula.

Ao falar sobre a análise que o psicanalista pode fazer de um texto literário, de como a

psicanálise se encontra com a literatura, esse autor nos diz que o psicanalista não lê o texto,

ele o ―escuta‖ através de sua escuta psicanalítica. Para isso, fala de uma leitura flutuante que

perpassa as palavras e detém-se nos desvãos. Explica que esta não é uma leitura negligente,

pelo contrário, é uma leitura que provoca o aparecimento de idéias e afetos. Idéias que se

constituem enigmáticas, acompanhadas pelo fascínio da comoção que o texto provoca.

Levado então por este fascínio, o analista-leitor-intérprete reage ao texto através da associação

de idéias, pela qual naturalmente é tomado, como a uma produção inconsciente, como à sua

própria produção inconsciente. Transforma-se assim, segundo Green, no analisado do texto.

Versão modificada de trabalho apresentado em reunião científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de

São Paulo (SBPSP) em 31 de Maio de 2007

Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, medica psiquiatra Faculdade de Medicina

USP

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Neste caso, o texto é imagético, e as imagens são poderosas, implicando o psicanalista

na história. As sensações escapam da tela e invadem o olhar. E no caso da Professora de

Piano, o universo da sexualidade e da perversão se impõe aos sentidos.

Encontrei nas idéias de Green algo que senti vendo e revendo o filme. De início,

assisti-o para retomá-lo e deixar vir à tona as lembranças que ele deixara em mim, quando o

vi pela primeira vez, há alguns anos atrás. E assim como da primeira vez, repetiu-se a

comoção, o choque e fascínio que as imagens me provocaram. Cabe aqui dizer algo sobre o

termo fascínio. Fascinar é atrair de maneira irresistível, encantar (enfeitiçar), alucinar,

deslumbrar (tirar o lume, a luz), dominar, hipnotizar, ofuscar, pasmar, subjugar, surpreender.

Estes são alguns dos sinônimos de fascinar, e lemos em Olgária Matos (1997)84

que há um

denominador comum nesses termos: a iminência de um perigo que se encontra na

ambiguidade do sentido da palavra. Todos esses termos levam à idéia de orientação e ao

mesmo tempo de descaminho. O fascínio provoca a perda de um rumo conhecido, a perda de

referências estáveis, e nos propõe uma instabilidade, um estranhamento. As imagens de um

filme facilmente são associadas às de um sonho. E assim como no sonho, tramado pelo

inconsciente, as imagens no cinema podem e fazem coincidir os contrários, expondo a

ambiguidade que transparece no humano, e aproximando sentimentos de intimidade e

estranhamento. Presa deste estranho encantamento, tomo este texto imagético, produção do

humano e que desencadeou em mim sensações que, pelo impacto, me movem a associar

alguns pensamentos que exponho agora ao leitor.

O filme

O filme tem seu cenário em Viena, Austria. A sociedade vienense transborda

musicalidade. Lembro aqui de Viena no final do século XIX, momento em que esta cidade era

um dos principais centros culturais da Europa, vivendo uma efervescência criativa em várias

áreas. O movimento que ocorre em Viena nesta época é de uma quebra dos padrões estéticos

que vêm na esteira de uma sociedade que se percebe em desintegração com o fim do Império

austro-húngaro. A Viena fin du siècle é também o berço da Psicanálise. Freud, ao descortinar

o inconsciente, descentraliza o Homem da racionalidade e o coloca à mercê do desejo, do

estranho que o habita e em torno do qual, esse homem irá constituir sua identidade, agora

plena de dúvidas e instabilidade. Mais tarde, Freud descreve como, a partir do Id - morada das

84

Revista Ide da SBPSP – n° 30 – 1977, p. 81.

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pulsões, o ―espaço psíquico‖ mais primitivo do ser humano -, a criatividade, a possível

sublimação destas pulsões, se tornará ciência, arte, que são, para Freud, as mais elevadas

criações do humano. Das pulsões, do mais primitivo, da sexualidade, de Eros mesclado a

Thanatos é que surge a expressão mais sublime do Homem. Em uma cena do filme, a pianista

cita Adorno falando da angústia de Schummann, que, já próximo à loucura, tem a percepção

desta e continua criando, compondo, ainda que pressinta a perda da razão. ―Ainda sabe o que

significa a perda de si mesmo, antes de ser abandonado‖. Ela fala do crepúsculo da mente, da

loucura. É esta ligação entre a loucura e a arte, entre a dor e a arte que desponta como pano de

fundo do filme.

As mudanças políticas ocorridas no final do século XIX no chamado Velho Mundo,

desembocam na Primeira Grande Guerra e numa Europa onde a morte e a depressão levam a

um enfraquecimento do papel do Pai, fato que culmina com a subida ao poder de figuras

representativas do Grande Pai, perverso, despótico, como Hitler - nascido na Áustria -, que

toma o mundo como um joguete para seu próprio narcisismo, como vemos na bela e terrível

metáfora de Charlie Chaplin, no filme O Grande Ditador (1940). É nessa Europa, devastada

pelas guerras e reconstruída dos escombros restantes, que se instala, já em nossos dias, século

XXI, a modernidade dos Shoppings Centers ao lado de edifícios antigos e de prédios art

noveau, onde caminham pareados a liberdade sexual, o desejo de um consumo insaciável, da

busca do gozo e do puro prazer (marcas da pós-modernidade), e a repressão sexual da tradição

burguesa, onde o pop e rock convivem com recitais de música erudita promovidos por

famílias com restos aristocráticos. O filme ―La Pianiste‖ propõe um olhar para esse tema, pela

voz de Klemmer, jovem pianista que, num recital, pensava tocar Schöemberg85

, ―pois os erros

passariam despercebidos‖, mas, após uma conversa com a professora, sobre doença e loucura,

decide tocar um ―scherzo‖ (brincadeira, em italiano) de Schubert. Há a dualidade do

harmônico, da sonoridade de um compositor do romantismo, que convive junto ao

fragmentado, aos sons de uma música contemporânea, incômoda.

Temas incômodos, contrastantes, que expõem feridas vivas da sociedade

contemporânea, principalmente de uma Europa angustiada com o novo, com as diferenças que

85

Schöemberg foi o compositor que rompeu definitivamente com a estética musical vigente no final do século

XIX, acelerando um processo de erosão da antiga ordem na música. Chamou de emancipação da dissonância, a

rejeição do sistema harmônico diatônico, e ao longo do século XX, cria a música dodecafônica. ( Schorske,C.E.

– Viena Fin de Siècle – Companhia das Letras - 1988 SP)

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insistem, são a matéria de Haneke86

, cineasta premiado, mas de difícil aceitação por sua

estética agressiva.

A primeira cena do filme mostra uma mulher de cerca de 40 anos, com uma expressão

distante em um rosto de traços suaves, delicados, que, ao chegar em casa, é recebida pela mãe

idosa, rosto enrugado, severo, que censura a filha pelo atraso. Diz saber que o último aluno

saiu da aula há três horas. O que teria feito neste intervalo? Em seguida, arrancando a bolsa

das mãos da filha, abre-a e encontra um vestido e o talão de cheques que examina

ansiosamente. Segue-se uma discussão entre as duas. O vestido, novo, é rasgado e a mãe tem

os cabelos puxados e arrancados pela filha descontrolada. O corte de cena é feito através de

um close numa tela de televisão diante da qual a mãe queixosa choraminga e diz que uma

filha que bate na mãe deveria ter as mãos decepadas. O que seria para uma pianista ter as

mãos decepadas, senão a perda de seu instrumento de trabalho, de sua identidade? A filha

responde em tom áspero, agressivo, que aos poucos dá lugar à culpa, desculpas, e a uma

reconciliação em meio a lágrimas. A mãe, já mais calma diz ―somos assim mesmo, é o

temperamento da família. Comenta que a filha jamais poderia usar um vestido chamativo, ―da

moda‖, cuja fugacidade faria com que ficasse rapidamente ultrapassado. A filha responde

num tom calmo, que é uma roupa clássica, semelhante a um vestido que a mãe tinha tido na

juventude. A fugacidade do moderno, desta era líquida do objeto descartável em contrapartida

ao que seria o clássico e supostamente duradouro, entra em cena, não só como problemática

da pós-modernidade, mas também como ideia da relação entre mãe e filha que deve se manter

eternizada, com laços indissolúveis, sem cortes que venham do novo, do diferente.

À noite, após escovar os dentes numa cena trivial, mãe e filha deitam-se e dormem. Na

mesma cama. Não há privacidade ou espaço próprio. Tudo é comum às duas mulheres

fusionadas. Nestas primeiras cenas, já podemos perceber as nuances desta relação tão

delicada, tão intensa e tão impregnada de amor e ódio que ocorre entre mãe e filha.

A destruição do vestido novo, assim como os cabelos arrancados da mãe durante a

briga, fazem notar que o ódio talvez ultrapasse o sujeito filha ou o sujeito mãe, e se estenda

pelo feminino e seus emblemas: cabelos, vestidos, adornos, véus que velam (mal) o que se

teme ver: a falta.

86

Entre os filmes mais conhecidos deste diretor, estão Fita Branca, premiado em Cannes em 2009, e Caché

(2005). A professora de Piano recebeu em 2001, em Cannes, o prémio do Júri como melhor filme.

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Uma cela

Na cena seguinte, mãe e filha entram no elevador de um edifício do qual fecham

rapidamente a porta, impedindo que um jovem homem também entre. O elevador, com uma

porta pantográfica vazada, permite que mãe e filha possam ver e ser vistas pelo homem que

sobe as escadas. A cena é paradigmática e sintetiza numa bela imagem a relação das duas

mulheres com o mundo exterior. Elas estão ―enjauladas‖, juntas e solitárias no elevador. O

homem sobe as escadas correndo, sozinho, ―por fora‖. A entrada do homem no mesmo

espaço, nesta ―cela‖ que elas ocupam, é impossível.

A professora de piano faz um recital na casa de uma família burguesa, em meio a um

jantar, assistida por uma pequena audiência. Próxima aos 40 anos, Erika não chegou a ser uma

concertista. É somente uma professora de piano. Assim que acaba o concerto, a mãe se

apressa a levar um abrigo para a filha.

De que uma mãe abriga seus filhos? Certamente dos perigos do mundo. Tanto de um

mundo externo, como de um perigoso e violento mundo pulsional interno. Neste mundo

pulsante, insistente, a mãe seria um refúgio sombreado, um espaço que procura amenizar a

falta de representações do infante, - este que ainda não tem fala. A criança gestada e sonhada

pela mãe, se constitui, ela própria, em uma sombra, uma sombra falada (AULAGNIER,

1979). Assim a mãe, ainda precedendo o nascimento da criança, supõe e fantasia seu filho

criando esta sombra imaginária que ela projeta sobre o corpo do infante no nascimento. Já

neste primeiro instante há uma imposição do olhar materno para que seu filho se molde a esta

sombra por ela expressa. É a mãe que sabe do corpo de sua criança. A voz da mãe se dirige a

este corpo, apaziguando-o, mas também, excitando-o. Constrói-o de maneira a que ele

confirme a identidade pré-estabelecida em fantasia. Aí se dão as primeiras grandes alegrias e

os primeiros desapontamentos. Escapam forças pulsionais que não conseguem ser

―entendidas‖ pela mãe, que falha em sua tarefa de eclipsar87

o calor do mundo interno, e sente

que o corpo de sua criança, embora dela dependente, é já autônomo e escapa ao modelo da

sombra falada. O sujeito se constitui, e constitui-se também o sujeito mãe, assim como se

constrói essa primeira e paradigmática relação, nas margens da qual, por caminhos ora

sombreados ora abrasadores, seguirão todas as outras relações da vida deste novo e precário

ser.

87

Armando Ferrari, psicanalista italiano, entende como uma função da mãe, a possibilidade de eclipsar para seu

bebê o facho de intensa luminosidade que as pulsões impõem à criança, nesse momento ainda sem condições de

mediá-las, representá-las.

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A mãe, ao ―falar‖ o infante, toma o lugar de porta-voz. E, nas brincadeiras que faz ao

limpá-lo, nos arrulhos amorosos que com ele troca ao amamentá-lo, nas cantigas com as quais

o faz adormecer, ―ela comenta, prediz e acalenta‖ 88

, podemos dizer, ela representa, todas as

suas manifestações, e o insere na cultura ao enunciar os ditames de uma ordem externa, à qual

ela também está submetida. Este é um passo necessário e fundante do psiquismo da criança.

Esse passo não se dá somente com leveza e graça, pois, tudo que a mãe oferece em sua fala,

com ternura ou severidade, como recompensa ou punição, se dirige àquela sombra sonhada,

falada e imposta àquele corpo que se supõe por ela coberto. É o ideário materno, os objetos

por ela libidinizados que vão ―formatar‖ o infante. Há aí uma interpretação materna que já

está matizada pelo princípio da realidade, pela cultura que envolve a dupla, e que colore o

espaço psíquico da criança que ainda vive no nível do princípio do prazer. Essa é uma

violência necessária imposta pela cultura. No entanto, pode haver um excesso. E é nesse

excesso, traumático, que se faz a loucura, ou, para usarmos os termos de Erika, a professora

de piano, é aí que se inicia, ainda na aurora da mente da criança, já, o crepúsculo dessa mente,

da qual se espera que pense, mas cujo pensamento se teme como fonte de mudanças, de perda

do controle.

O pensamento é o espaço do segredo, da individualidade, do que pode ser ocultado, e,

portanto, o espaço da diferenciação. Para uma mãe excessiva, intrusiva, o pensar da criança é

temido como aquilo que provoca trincas nesta relação tão firmemente articulada. É o motor da

mudança. Quando a mãe de Erika lhe fala de como deve cuidar de seu trabalho, de como deve

manter Schubert como seu, de como ninguém deve superá-la (ou superar a dupla, talvez, já

que o sucesso da filha é o sucesso da mãe), Erika lhe diz que não é ela, mãe, que terá ―como

julgar meu campo musical‖. Esse é o espaço no qual a mãe insiste em entrar e Erika, a duras

penas, insiste em impedi-la, pois percebe que a outra face seria o enlouquecimento.

Erika, em um diálogo com o jovem pianista que por ela se apaixona, Klemmer, conta

que Schubert morre com problemas mentais, assim como Schummann, outro de seus

compositores preferidos. A loucura é uma vivência que ela julga conhecer, já que, revela, seu

pai havia ficado por muitos anos num hospício onde havia falecido. Erika diz saber o que é o

crepúsculo de uma mente. Penso que é isto que o filme nos faz ver. Erika passa de um suposto

controle de seus sentimentos, de uma aparente frieza que a defende da dor, para um estado de

88

AULAGNIER, P. A violência da Interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1979,

(p.106).

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descontrole, de sujeição a suas pulsões e, sem conseguir manter o domínio de seus desejos

destrutivos, acaba por destruir a si própria.

Um outro

A mãe de Erika perturba-se com o interesse que o jovem Walter Klemmer demonstra

por sua filha. O que poderá vir a mudar entre as duas, esse homem, esse outro tão diferente?

Só há espaço nesta ―célula‖, para um pai louco, morto, que não dita a lei. Mas o piano pode

ser este outro. Ao exercer seu ofício, Erika cria espaço para o segredo e individuação.

Schubert pode ser o homem que, pela insanidade, remete-a ao pai. Paradoxalmente, é na

loucura de Schubert que Erika encontra um pai que poderia operar uma ruptura com a mãe. E

na ambivalência entre o amor e o ódio, para estas duas mulheres, o ódio supera o amor. Como

lemos em Freud (1930), o outro e a necessidade que dele temos, só pode ser motivo de ódio.

A trágica professora de piano exercita esse sentimento de ódio, absorvido com o leite

materno da identificação, com todos os seus alunos. Observa e aponta insistentemente suas

falhas, destituindo de valor seus esforços. A pulsão de morte transborda num superego cruel,

impositivo. A perversão ou desvio, neste caso, aparece na criação de uma equivalência entre

ensinar e subjugar. Ataca invejosamente seus alunos pela liberdade que eles tem de buscar o

prazer e de viver sua sexualidade, como ocorre com um aluno adolescente.89

Mas, é

especialmente má com Shober, menina feiosa que tem talento e, como ela própria, afinidade

com Schubert. Tenta prejudicá-la, destruí-la. Mas, se ao vê-la, vê a si mesma, a quem então

Erika destrói? E a destruição se faz na forma como instrumenta sua eroticidade. Eros e

Thanatos convivem, e em sua fusão e desfusão vão delineando a sexualidade perversa de

Erika. Ela não pode crescer. Esta é a ordem estabelecida para que nada mude na história que

se tece entre ela e sua mãe.

Vemos Erika entrando num moderno shopping, em uma loja de artigos pornográficos.

Só há homens. Ela aguarda para entrar numa cabine onde ao assistir um filme pornô, retira do

cesto de lixo lenços de papel usados, talvez ainda úmidos de esperma e os cheira. Goza ou

não? Se o faz, é com o cheiro90

do gozo masculino. Em outro momento, diz à mãe que irá

ensaiar na casa de colegas até tarde e pede a ela que não ligue para lá, pois não é mais criança.

89

Podemos pensar também no acesso à sexualidade que, em nossa cultura, ainda é mais permitido ao homem. O

filme alude a esta questão e Erika ―fareja‖ o gozo masculino. 90

Freud, em vários textos reafirma a ligação do olfato com a sexualidade. O Homem, ao passar para a posição

ereta, desvaloriza o olfato, priorizando a visão. O olfato, entretanto, permanece ligado à sexualidade primitiva.

Freud nos lembra que as crianças gostam do cheiro de suas secreções, assim como para os adultos elas são

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Então, Erika vai a um drive-in e, em meio à escuridão, excita-se vendo e ouvindo casais que

fazem sexo dentro dos carros. Aí, dá vazão à sua excitação urinando ao lado dos carros, como

uma pequena menina que, de seu quarto, ao ouvir ruídos do sexo dos pais, diante da cena

primária, urina na cama.

Antes do jantar, no banheiro de sua casa, retira da bolsa uma gilete, e corta-se,

aparentemente no clitóris. Após limpar a gilete e guardá-la cuidadosamente na bolsa, penteia-

se e vai jantar com sua mãe. A dor marca e demarca o corpo. Se não há um outro cuja

presença exponha limites, a dor do corte pode fazê-lo.

Qual seria o gozo dessa mutilação, dessa dor? Lembro-me de Marie Bonaparte que se

submeteu à cirurgia de retirada do clitóris com o intuito de ter acesso ao gozo vaginal, que

seria, supostamente, o verdadeiro gozo feminino. O gozo do vazio, da falta. Lembro ainda da

existência de culturas, nas quais, logo após o nascimento, retira-se o clitóris das meninas, para

impedir o prazer sexual. No entanto, a cena não é tão explícita, e deixa que o espectador

imagine... Talvez o que Erika faça seja um corte no hímen. Tentar sair da sexualidade infantil

e tornar-se mulher, entrar no mundo da sexualidade adulta? Mas Freud (1917) nos mostra que

para que isso ocorra é necessário que o ritual do rompimento do hímen seja executado por um

outro91

que, ao romper este invólucro simbólico do corpo feminino, lhe traz a idéia de vazio,

falta e, consequentemente, da alteridade. Essa é a dificuldade de Erika, deixar-se penetrar,

permitir a intimidade.

No encontro com Walter, no banheiro, ordena-lhe que não a toque, ela é que irá tocá-

lo, o que faz de forma mecânica e com certa agressividade, chegando a machucá-lo.

Masturba-o e o observa impassível, impõe e comanda o gozo dele. Não goza.

Intimidade e dor

O filme expõe contrastes, alternâncias entre cenas que propõem ao espectador certa

beleza, algum calor de sentimentos e cenas incomodas que retiram quem o assiste do conforto

da poltrona, tornando-o voyeur de uma sexualidade opressiva, subjugante. O espectador é

invadido, e é também colocado na posição de um invasor da cena. A banalidade com que

Erika se corta, assiste a filmes pornográficos, sem expressar prazer ou dor, sem sequer mudar

sua expressão, impacta. Assim é na perversão. O controle em relação ao objeto deve ser total.

91

Em Tabu da Virgindade, Freud mostra como em certas culturas, o rompimento do hímen é executado

ritualisticamente por uma outra mulher, ou por um homem mais velho, e não pelo marido. Porém, há sempre um

outro que ao romper o hímen, introduz a mulher no mundo da sexualidade, assim chamada, adulta, ou genital.

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Não se pode sair do script. É como se a perversão, o fetiche, fossem sempre muito ―justos‖,

apertados demais para tamponar a angústia que surge caso a falta se faça notar. A fantasia

incestuosa é vivida diretamente, não simbolizada, como na cena em que Erika busca com a

mãe a relação sexual que não se permite com mais ninguém. Tudo deve ser medido com

cuidado para que não haja escapes. É assim o pedido que Erika faz a Walter numa minuciosa

carta onde descreve todos os movimentos que devem ser seguidos na ―atividade‖ sexual da

dupla. Assim procedendo, o que Erika evita é exatamente que haja uma dupla. A perversão

transforma o outro em ―algo‖, com o qual se goza. O objeto tem uma opacidade na medida

em que é uma extensão do próprio corpo. Não é possível o contato, se não há outro. No início

do filme, Erika caminha num movimentado Shopping Center e, em meio à multidão, um

desconhecido esbarra em seu ombro. Erika limpa insistentemente o ombro, o local do

―perigoso‖ contato.

Walter tenta seduzi-la, quer abraçá-la, tocá-la, conversar com ela. Conversar talvez

seja uma das maneiras mais claras de viver a alteridade. Num diálogo explicita-se a

diversidade do pensamento, a diferença do que se tem de mais íntimo. Erika não consente

nessa aproximação. É através dos instrumentos que guarda debaixo da cama (como uma

menininha que esconde seus tesouros da mãe) que se aproxima. As cordas para amarrá-la,

subjugando-a, são concretizações da prisão que vive com sua mãe, e com ela própria. Quando

Walter sai de sua casa, após satisfazer as fantasias sado-masoquistas de Erika, machucando-a,

é na cama com a mãe que Erika se consola. Na relação incestuosa a professora de piano não é

mais do que uma pequena menina curiosa com a sexualidade da mãe, – ―vi os pelos do seu

sexo‖ 92

lhe diz - cujo único desejo é ser para sempre a menina da mamãe.

Com a carta na qual ordena os atos que Walter deve realizar para ―amá-la‖, ela, busca

deter o poder da relação impedindo intimidade e conhecimento. Exerce sua ―função‖ de

professora perversa. No entanto, à medida que ele se nega a fazer esse jogo, é ele que passa a

ter o domínio. Erika se depara com alguém que não a obedece, que efetivamente a submete e

de quem necessita. A partir desse ponto vemos a degradação emocional de Erika. Seu

crepúsculo.

Percebemos também que Walter acaba preso nas tramas da perversão. Após tentar

desvencilhar-se, cede e deixa emergir seus aspectos perversos. Lê com horror a carta, mas

termina por atuá-los, até prazerosamente com Erika. Invade sua casa, possui-a à força, (como

92

Também os pêlos femininos tornam-se um fetiche, através do qual, a visão da mãe como não possuidora do

pênis é ―recusada‖.

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Erika exigia na carta). Age assim, após perceber-se ―louco, masturbando-me embaixo de sua

janela, você é louca e quer me enlouquecer‖. Também ele perde, por alguns instantes, a sua

autonomia, recuperada logo a seguir. Em vários momentos do filme, Walter triunfa sobre

Erika, como ocorre nesta cena. Logo após a prova de admissão para o conservatório diz,

arrogante, que sua apresentação foi brilhante. Após um encontro sexual com Erika no

banheiro asséptico do conservatório, corre e pula pelo corredor atapetado de vermelho, em

claro contraste entre uma sexualidade contida e outra esfuziante, e na última cena, entra no

teatro rindo e desprezando Erika. Há no personagem um tom de arrogância e poder desde o

primeiro encontro com a professora. Walter se constitui num homem que não se dobra às

negativas da professora. Pelo contrário, invade seus espaços, a sala de aula, sua casa, a cabine

do banheiro. Faz o que a mãe dela sempre fez, e assim reedita uma dupla sado - masoquista93

.

Esse cenário, onde se origina?

Freud (1919) vai seguindo passo a passo uma fantasia infantil e aporta na idéia de que

ao fantasiar que apanha de seu pai94

nas nádegas, a criança serve a dois senhores. Nesta

fantasia masturbatória, o desejo edípico da criança, ser tocada pelo pai, se realiza ao mesmo

tempo em que é punida por esse desejo. Os dois senhores? Eros e Thanatos imbricados e

satisfeitos na mesma fantasia. Assim também, em ―O Problema Econômico do Masoquismo‖,

texto de 1924, Freud entende que a culpa ―inconsciente‖ pelos desejos edípicos seria punida

com torturas infligidas ao sujeito que, no entanto, retiraria delas, um enorme prazer.

Sentir os odores do gozo masculino, provocá-lo, ou impedi-lo, no outro, e manter-se

observadora, colocar-se subjugada, maltratada pelo homem, determinando o gozo deste, e não

gozando, imputar-se dores e mutilações são as formas de sexualidade que Erika se permite.

Afasta-se da mãe e mantém-se unida a ela, no manter sob controle o gozar do outro. Não há

consideração pelo objeto, e sim despersonalização, desubjetivação, como maneira de evitar a

intimidade e dependência ameaçadoras.

Eliane R. de Moraes (in Sade, 1991), nos conta como os libertinos de Sade rejeitam

todo tipo de relações que impliquem dependência entre indivíduos: sentimentos de

compaixão, fidelidade, solidariedade, levam à escravização. As virtudes são para os fracos,

merecendo o amor, signo da falta, marca da carência, nada mais que desprezo. E, citando

93

O filme é baseado em uma novela da escritora austríaca Elfriede Jelinek, com aspectos autobiográficos. Na

versão escrita, o personagem de Walter tem alguns elementos que o ligam ao nazismo, o que nos remete a um

outro filme que trata dessa mesma questão: ―O Porteiro da Noite‖. (Liliana Cavanni) 94

O nome Walter, aproxima-se da palavra Vater, que em alemão significa pai.

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Dolmancé, personagem sadeano: ―E cada um de nós não é para si mesmo o mundo inteiro, o

centro do Universo?‖.

Freud (1905) expõe a sexualidade humana como desviante, pois, fundada nas pulsões

de auto-conservação, na necessidade, dela se desvia em busca do prazer. É um texto

revolucionário num início do século XX: ―... sob a influência da sedução, as crianças podem

tornar-se perversas polimorfas e podem ser levadas a todas as espécies possíveis de

irregularidades sexuais. Isto mostra que uma aptidão para elas existe inata na disposição das

crianças.‖ Freud continua e conclui que ―... esta mesma disposição para as perversões de toda

a espécie é uma característica humana geral e fundamental‖. A maneira como esta

sexualidade é instrumentada na busca do prazer, e o investimento no objeto, a partir do

interjogo entre Eros e Thanatos, é determinante.

Cem anos depois de Freud, Michael Parsons (2002) descortina, através de alguns

autores, parte do panorama que pode nos ajudar na difícil aproximação à perversão e à Erika.

Mc.Dougall (1986), aponta que a idéia de perversão somente pode ser referida a

relacionamentos nos quais, como propõe Stoller (1985), há uma despersonalização do objeto,

uma tentativa de desumanizar o outro para evitar a intimidade. Khan (1974) fala da perversão

como o maior esforço em busca de uma intimidade, ao mesmo tempo que é uma defesa frente

a ela.95

Na perversão o objeto é uma extensão sem limites do próprio corpo, usada como

suporte para a descarga da pulsão. Erika goza no corpo de Walter. Olha para o pênis ereto

deste e o impede de se tocar. O pênis é dela.

Para Green, o objeto revela a pulsão exatamente como um revelador químico faz em

uma película de filme fotográfico. Objeto este que vai sendo impresso e para sempre marcado,

desde a ―fotografia‖ tirada no momento do emblemático primeiro encontro com o seio

materno, modulado com o som da voz da mãe e colorido pelo seu olhar. E assim, qual detalhe

desta cena será para sempre guardado e passará a ser o ―disparador‖ para o aparecimento, na

memória, daquele primeiro retrato, será sempre um mistério que se repetirá a cada novo

encontro na busca eterna deste primeiro objeto. Essa é também a maneira como se constitui o

fetiche, ―detalhe significativo‖ que ativará a sexualidade e que ficará para sempre colada

sobre o primitivo objeto de desejo, criando para o sujeito um cenário que o despiste da visão

da incompletude do objeto.

95

Os trabalhos de Mc Dougall, Stoller e Khan aqui referidos, estão citados no texto de Michael Parsons de 2002.

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Nos jogos perversos, na verdade, não há jogo. Há um controle da situação, sem

entrega, sem espaço para a fantasia, que é o verdadeiro motor de um jogo sexual. Imagino se

para essa professora de piano existe essa possibilidade, se em algum momento a fantasia pode

acontecer. Vemos que o que é capaz de provocar uma mudança de expressão, alguma

comoção em Erika é a música, apesar de tentar conter-se, controlar-se para que seus

sentimentos não lhe escapem. Nos movimentos musicais ela pode ver nuances. Observa com

cuidado as variações e intensidades dos tons e ritmos das peças musicais. Ela diz para Walter

durante uma aula: ―Schubert vai do grito ao sussuro.‖ Será que Schummann e Schubert

fariam, em seu mundo pulsional a sombra que sua mãe não pode fazer? Poderiam, através da

música, nuançar um mundo de sentimentos onde a alteridade se fizesse presente? Seria

possível criar um outro cenário?

Na Realidade de um Cenário

Se o cenário criado é a morte, a dor, a submissão, onde e como esse cenário foi

apreendido como fonte de prazer?

A resposta a essa pergunta não está no filme. Talvez essa seja uma pergunta para a

qual não haja resposta e, como psicanalistas, possamos somente tecer hipóteses, pois a

verdadeira estória fica sempre submersa naquele espaço onde a palavra não habita. Para não

nos perdermos ao caminhar pelo labirinto de idéias, o fio de Ariadne que tomamos como guia

é sempre a clínica. A teoria para Freud surgiu de sua observação às pacientes que o

procuravam para curar suas dores.

Não cabe aqui, pelo cuidado e respeito ao segredo96

do paciente, expor uma situação

clínica. Um filme é um tema no qual o psicanalista pode apoiar sua escuta para evocar sua

experiência viva com as pessoas de cujo sofrimento se aproxima e busca compreender. Entre

o cinema e o divã há uma ferida viva que não termina quando as luzes da sala se acendem. No

entanto, na sensibilidade da cena de um filme, muitas vezes, encontra-se um tênue fio que

reflete a dor que deveras se sente97

.

Num processo de análise, as cenas se repetem e as cenas mudam.

96

Segredo aqui, tomado não somente como sigilo medico, mas também com a ideia de intimidade, de

individualidade e identidade com o qual esta palavra é usada por Aulagnier, já citada anteriormente neste

trabalho. 97

Referência ao poema Autopsicografia de Fernando Pessoa, do qual transcrevo o trecho a seguir: O poeta é um

fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.

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Erika submerge tomada como refém da mãe que também não suporta as diferenças, a

passagem do tempo, a própria feminilidade e uma ausência paterna que, ao não fazer o corte

entre mãe e filha, não permite que Erika se destaque.

O incesto, onde não há o corte e a individuação, cria a cena perversa. Um genitor

narcísico engloba o filho, não como um outro, mas sentindo-o como uma extensão de si

mesmo.

No artigo Incesto: o corpo roubado, (TESONE, 2005), lemos ―O desejo de um não é

compatível com o desejo do outro. Em sua ‗utopia totalizante‘, o pai (mãe) incestuoso (a)

vivencia-se como o dono do tempo e o dono da morte‖.

Lembramos também Ferenczi (1932), sobre a confusão de línguas entre adulto e

criança, situação na qual a criança entende como ternura e jogo lúdico, a sexualidade que o

adulto lhe impõe, e que assim se inscreve como traumática.

Mas o filme, em sua polissemia, como toda obra de arte, abre várias vertentes para o

imaginário. Deixa brechas para que, assim como nos diz Green, possamos ―dar ouvidos‖ à

nossa escuta particular. Este foi nosso exercício neste trabalho. A psicanálise abre o campo

para outras escutas, com outras teorias, para observarmos outros ângulos de cada história.

E por fim...

A cena, no caso de Erika, não muda. Walter poderia apontar para um outro caminho.

O final do filme, no entanto, nos mostra essa impossibilidade. Ela repete a cena traumática,

atuando-a, ora na posição passiva, ora como aquela que submete Walter obrigando-o a

obedecê-la.

Nessa repetição não se promove a simbolização. A cena incestuosa impede. A pulsão

de morte domina o palco, como no ―deslizamento‖ de Erika, que se lança com o olhar perdido

sobre a branca e vazia pista de gelo, após um frustrado encontro, que poderia ter sido

amoroso.

No dramático liede de Schubert tocado no filme, está sintetizado este pungente final.

Erika apunhala - se no peito98

e sangra pelas ruas de Viena, enquanto na sala de concertos, a

música prossegue. Na letra do liede, a indiferença diante da tragédia, mantém o contraste com

o qual Haneke pontua todo o filme:

98

Esta cena ocorre de forma muito semelhante, também em um filme mais recente ―Cisne Negro‖, dirigido por

Darren Aronofsky, de 2011, cuja temática é a mesma de ―A Professora de Piano‖.

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Os cães latem, sacodem as correntes As pessoas dormem em suas camas.

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SBPSP.

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Raquel e o Duplo ou — Programa Moderno de Produção das

Garotas de um Diário

Alessandro Zir99

PPGICH/UFSC

GIFHC-ILEA/UFRGS

Resumo

Ensaio sobre o filme Bruna Surfistinha (2011), cotejado com o livro que lhe teria servido de

inspiração. Parte-se da ideia do sexo como simulacro sedutor a serviço de um programa ascético de

escrita. Tal programa dá origem ao fenômeno Bruna Surfistinha, como duplo subjetivo, efetivado no

livro e até certo ponto desmascarado no filme. Conclui-se com um desvelamento da escrita pela

imagem, suja, opaca, que não se mostra (nem no filme) — fundo irredutível, negativo, de onde a

história se projeta.

Palavras-chave: escrita, tecnologia, imagem, simulacro, duplo

Raquel and the Double or — Modern Production Program of the Girls of a Diary

Abstract

Essay about the movie Bruna Surfistinha (2011), in view of the book that inspires it. We begin with

the idea of sex as a seductive simulacrum fostering an ascetic writing program. This program is what

generates the phenomenon Bruna Surfistinha as a subjective double, actualized in the book, and (to a

certain extent) unmasked by the movie. In the end writing is uncovered by a mucky, opaque image, a

negative which is not shown (even in the movie): the irreducible background from which the story is

projected.

Keywords: writing, technology, image, simulacrum, double

99 Alessandro Zir é doutor pelo Interdisciplinary PhD Program da Dalhousie University (Halifax, Canada). Tem

publicações no Brasil, Canadá, Chile, Portugal e Estados Unidos, incluindo um livro, capítulos de livros, artigos,

crítica literária e de cinema, traduções e ficção. Membro do GIFHC (Grupo Interdisciplinar em Filosofia e

História das Ciências), do ILEA (Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS), tem

apresentado trabalhos em simpósios internacionais em instituições como o Max-Planck-Institut für

Wissenschaftsgeschichte (Berlim, Alemanha), a Norwegian University for Science and Tecnology (NTNU,

Trondheim, Noruega), e a Universidade Católica Portuguesa (Braga, Portugal). Está vinculado também ao

Programa de Pós-Granduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, onde realiza pesquisa de pós-

doutorado. E-mail: [email protected] Curriculo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7023315469948047

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O sexo como o menos importante

Já na contracapa do livro, o caso é assim apresentado ao leitor: ―Em O doce veneno do

escorpião, você vai conhecer detalhes inéditos da menina de classe média alta que trocou os

finais de semana com a família na praia para se prostituir aos 17 anos. Ela revela, pela

primeira vez, histórias de amor, dor, vida e muito sexo‖ (SURFISTINHA, 2011).

Apesar de o sexo ser o elemento mais enfatizado, o que arremata a série, ele não é o

foco exclusivo. Trata-se antes de um imperativo, que pode ser tanto uma ideia fixa como uma

estratégia de marketing, e é também, antes de qualquer coisa, na própria banalidade

esclarecida com que se apresenta, um simulacro sedutor. Um fundo falso. Porque o sexo,

como o auge daquilo que é prometido, na verdade não apenas não é a característica essencial

do fenômeno Bruna Surfistinha, mas não é sequer um elemento importante da sua

constituição. Está muito longe de ser uma finalidade, aquilo a que se almeja. É um mero

instrumento, através do qual, outra coisa se constitui.

E de fato, enquanto fenômeno de venda (e não apenas no Brasil), é possível que o

livro funcione como recurso masturbatório. Basta passar os olhos por uma ou outra passagem,

de tamanho menor que um parágrafo, para se alcançar um efeito estimulante, que, no entanto,

uma leitura mais detida da obra como um todo, inevitavelmente satura. Com relação aos

leitores sôfregos, Bruna Surfistinha antes de ser faturada, fatura, tornando-se livre não para

fazer programas, mas para se dedicar ao programa de se escrever. Ela os instrumentaliza

tanto quanto o próprio sexo, e é isso mesmo que dá origem, no final das contas, aos livros, ao

filme, a Bruna ela mesma. Não se trata de exploração comercial, mas de sacrifício ascético em

nome do poder produtivo da escrita e outras tecnologias narrativas de inscrição. Uma escrita

que, para além de discursos moralizadores, ainda se vincula à raiz moderna do sexo enquanto

simulacro de uma potência geradora de discursos — do sexo como máscara daquilo que, no

século dezenove, se institui como volonté de savoir (FOUCAULT, 1976).

É assim que, já nas primeiras páginas de O doce veneno do escorpião, descreve-se

também o decorrer, num único dia, de cinco programas de Bruna. Aparentemente, o que fora

prometido é disponibilizado da forma mais generosa. Bruna e seus parceiros gozam duas, até

três vezes por programa, a cada parágrafo. O estilo é fluido, sem que falte espaço para

metáforas de um erotismo de tipo mais elaborado: ―sinto a barba [dele] por fazer, enquanto

com minhas mãos entre suas pernas sinto o mundo virar pedra‖ (SURFISTINHA, 2011: 6). E

nesse estilo, a narradora aparece inoculada de uma malícia contra si mesma que, apesar da

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brutalidade, é sinal de inteligência: ―o que pode ser excitante para muitas garotas como eu, na

efervescência dos vinte anos, para mim é rotina‖ (SURFISTINHA, 2011: 10). Ou seja,

comprovando o que aqui sugeríamos, não é que o sexo não importe — ele importa, mas como

aquilo que possibilita, antes de qualquer coisa, um trabalho. Um trabalho esquizo que é o

programa de produção, de criação (literária, tecnológica) de si mesma e de um duplo: ―bem, é

uma longa história. A minha, pessoal, e a de Bruna. Sim, somos duas‖ (SURFISTINHA,

2011: 11). O je fêlé (DELEUZE, 1968: 118) aqui se esquiva na própria singeleza do dito,

resultado do seu trabalho.

Um trabalho que, numa formulação só aparentemente paradoxal, a narradora diz

―escolhi por não ter outra escolha‖ (SURFISTINHA, 2011: 11). Quer dizer, o duplo é aquilo

que se escolhe (uma identidade mais próxima de um ideal, Bruna), partindo de um contexto

que não se escolheu (aquilo que se sente que se é, por contingência, Raquel). Mas é

interessante reparar que a própria Raquel é também criada (individualizada) nesse percurso. E

o filme, naquilo que ele tem de mais fiel à essência da narrativa em que se inspira (pouco

importando discrepâncias de conteúdo), faz com que a garota se desdobre (individualize,

ganhe corpo) outra vez: na constituição de Raquel e Bruna por Deborah Secco, duplos da

atriz. Que idade ela tem? Bem mais do que a personagem. Empenho esquizo de interpretação,

que não pode senão implicar numa aproximação mínima do nódulo obscuro do je fêlé.

Raquel, Bruna e Débora, todas elas, quem sabe, simulacros de outra imagem mais recuada,

irredutível e opaca: uma velha puta da Augusta. Seja lá como for, o filme todo, independente

do roteiro bem amarrado, vale, principalmente, pelo processo simultâneo de ocultamento e

criação desses personagens, dessas máscaras irredutíveis e intercambiáveis: enquanto

tecnologia audiovisual de inscrição, sua especificidade é ser parasitário do trabalho do ator

(da atriz) — em última instância teatral, mas de um teatro essencialmente moderno, de tipo

filosófico, que visa à individuação (FOUCAULT, 2001).

Raquel

Nesse processo de elaboração, Raquel é ―a menina‖, a parte que não foi escolhida

(como deixa claro o título do segundo capítulo do livro). E isso não contradiz o fato de ter

sido adotada, porque o que importa como escolha, nesse processo de produção programática,

é só o que o próprio sujeito determina (para si mesmo). E Raquel, enquanto menina escolhida

por uma família que se sente, em todo o seu estranhamento, como um outro, é, antes de mais

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nada, uma condição contingente da qual o sujeito (ela mesma), a mulher adulta e

autoconsciente, num imperativo moderno, tem de se emancipar. Quer dizer, Raquel vai ser

constituída ela também como algo que, através de uma escolha deliberada, abarca e, por fim,

até mesmo suplanta (ou ameaça suplantar) o seu contexto contingente — a ela vai ser dada

uma história, a história do que ela era e por quê. A história de como ela se transformou em

Bruna (aquela que, mais do que adota, escolhe a si mesma, numa transparência consciente).

Pior que o sexo, o natural aqui, o familiar (a família, os pais, a irmã) é o ponto

execrável de onde se parte, e não a meta que se quer atingir. É a matéria amorfa sobre a qual

se vai trabalhar, labutar, a fim de transformá-la em alguma outra coisa que o sujeito possa

dizer totalmente sua, porque ele mesmo elaborou. E isso, na medida em que Bruna Surfistinha

é um ícone para muitas garotas como ela, e nem tão como ela, independe completamente da

adoção. Repetindo o clichê sociológico e psicanalítico que não deixa de ser verdade, na

metrópole moderna, uma boa dose de estranhamento com relação à família é sentida por todos

os jovens. Quer dizer, o processo de subjetivação dessas pessoas, isto é, de sua

autoconstituição enquanto indivíduos, depende de fatores que são na sua maior parte externos

à esfera familiar, e que muitas vezes até mesmo a desautorizam: a ―turma‖, ―revistas de

menina‖, televisão, internet etc. O sujeito se produz através de uma desfamiliarização e até

mesmo de uma desnaturalização, as quais encontram apoio em diferentes tecnologias de

inscrição.

E a infância passa a ser não aquilo que se teve, mas o que possivelmente se vai ter.

Enquanto fenômeno de espontaneidade natural, ela precisa ser radicalmente negada, e a sua

essência lúdica é assumida apenas enquanto promessa futura, sob o preço de estar atrelada à

autoconsciência do sujeito que se determina. O olhar da narradora sobre o seu passado chega

ao mais absoluto distanciamento. A história de Raquel (antes do nascimento de Bruna) é

fixada no eixo inexorável de uma transformação da ―meiga filha mimada‖ para a ―adolescente

sem freio, mentirosa‖ (SURFISTINHA, 2011: 15). Não que, na narração dessa infância, não

haja passagens que escorreguem para espaços de afetividade genuína e sonho. Assim como há

momentos de dificuldade (o entendimento da questão da adoção, por exemplo), há outros de

extravasamento (quando se mudam para a chácara e o pai constrói uma tabela de basquete no

quintal). Mas o impulso mais premente dessa narrativa é o de uma apropriação paulatina de

todos esses ―deslizes‖. Cada lembrança do passado termina numa reflexão que o resgata e

projeta no futuro: ―não discordo do método [que meus pais] usaram, pois talvez não

conhecessem outro. Com meus filhos, no entanto, acho que farei diferente quando a hora

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chegar‖ (SURFISTINHA, 2011: 30). Mesmo o espaço de indeterminação, que vem de uma

generosidade genuína de não querer prejulgar (a atitude dos pais), é um espaço que se limita à

não-interferência na capacidade de autodeterminação dos outros (e de si). É a folga necessária

para a realização da utopia intersubjetiva de que todos (sem contingência, sem família, sem

natureza) se autodeterminem, e aquele que melhor se autodeterminar nesse sentido será, no

passado, no presente, e no futuro, o mais bem realizado, sucedido. Na verdade, talvez, nada

mais que a transparência fugaz de um espelho (tela vazia em que algo se projeta), onde uma

dada possibilidade de controle, autocontrole, e poder se autorreflete ad infinitum como

sedução (BAUDRILLARD, 1977).

Bruna

Bruna nasce no intervalo de uma tarde, e ela já nasce adulta (nascer é o termo utilizado pela

narradora do livro). Nasce uma mulher totalmente emancipada, mais aos moldes de um réptil

do que de um mamífero. Qualquer hesitação que pudesse haver ainda no primeiro programa,

que se inicia ―meia hora‖ depois que Raquel troca a casa dos pais pela casa da cafetina

Larissa, vai ser inequivocamente suprimida ao longo dos próximos cinco que imediatamente

se seguem (SURFISTINHA, 2011: 14). Na medida em que os seis programas decorrem a

narradora adquire a segurança de que nunca mais voltará para casa e nunca mais vai rever os

pais. Ela torna-se o duplo de si mesma, ou Bruna, a esquizo (aquela capaz de nos contar tudo,

num diário, sobre ela própria, e sobre Raquel).

No momento em que essa certeza é escrita, passaram-se já três anos. Mais do que

nascer rapidamente, Bruna nasce quase que como uma abolição de qualquer noção ―natural‖

de passagem do tempo, ou duração. Os três anos são como que um instante quase imediato de

estiramento daquela tarde em que tudo começou (ou se rompeu). Já estavam contidos nela, e,

além disso, sem dúvida, pela transformação que nela se desencadeou, poderiam ser dito não

apenas três, mas tranquilamente trinta — a idade (dissimulada) da atriz? E não haverá volta ao

passado, à família, à chácara (natureza), senão através do crivo reflexivo da mulher que se

escreve, interpreta a si mesma e ao seu duplo. É Bruna quem, escrevendo, dá a Raquel uma

verdadeira existência, mas se afastando dela, num movimento de negação da sua

contingência, daquilo que ela poderia ter de meramente fortuito ou afoito. Processo que, no na

tela, é desmascarado, mas conduzido ao clímax, pelo virtuosismo interpretativo de Deborah

Secco. No que diz respeito ao livro, e mesmo ao filme, o programa de produção das garotas

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de um diário é eminentemente moderno, e só tem algo de pós-moderno ou de arcaico

enquanto efeito de uma força que não é causa, quer dizer, que apenas se insinua, não pode ser

assumida como objeto por nenhum sujeito, e inevitavelmente escapa das suas próprias

intenções (KLOSSOWSKI, 1969: 35, 39-87, 316-18). É em sentido semelhante que

movimentos como a desconstrução não apenas não são programáticos, mas só podem se

―efetivar‖ no que há de mais precário.

Ao contrário, é extremamente efetiva (construtiva, moderna) a forma como Bruna age

com os meninos inexperientes do colégio Dante Alighieri, que vão em bando até a casa da

cafetina Larissa. O que nesses ―moleques de 12, 13 ou 14 anos‖ pode haver de idiossincrático,

estranho, aquilo que desafia o entendimento comum é, no espaço do prostíbulo, resgatado a

fim de ser preparado e colocado em discurso, efetivado. A inexperiência dos meninos é

trabalhada pela ―professora‖, que os faz sair dela, sair desse espaço opaco, inalcançável do

outro, sair do seu reduto, e alcançar um ―fim‖ comum, intersubjetivo (atestado pela

consciência de si mesmo e do outro): ―que estranho‖, diz Bruna, ―eu... inexperiente... na cama

com alguém ainda mais inexperiente! Mas acabava sendo natural. Nessa idade, os meninos

são meio afoitos. No começo, foi estranho, difícil até. Mas eu me acostumei. E descobri como

fazer eles relaxarem e irem até o fim‖ — alcançar a meta intencional (SURFISTINHA, 2011:

31-32).

Como Raquel, Bruna de certa forma também é escolhida, porque ela é a preferida pela

maioria dos clientes que vão à casa de Larissa. Mas há uma diferença colossal aqui, porque,

enquanto Bruna, ela é escolhida não numa situação de total contingência (como a adoção de

Raquel), ela é escolhida tendo já previamente se autodeterminado e escolhido a si mesma. É a

escolha de uma outra escolha, em que a autoconsciência de mim e do outro se encontram

numa confirmação identitária. Ela agora pode se identificar na escolha do outro e vice-versa.

Os elementos de surpresa, as opacidades, foram todos eles domesticados.

É pelos mesmos motivos que a experiência com as drogas se revela paradoxal. A

droga, até certo ponto, potencializa o processo moderno, atomístico, de autoprodução

subjetiva a partir do vácuo, longe da família. Mas, a partir daí, ela também se configura num

risco, por causa da possibilidade de dependência que, como retorno do reprimido, em última

instância, arrebataria o sujeito dele mesmo. Bruna tem disso uma consciência muito clara:

―sabia que se não desse uma virada na minha história, ia me perder total, sem objetivo, só

trepando o dia todo para cheirar e fumar tudo depois do expediente. Enfim: a imagem da puta

sem esperança, que vira bagaça e acaba sozinha fazendo ponto numa calçada ou pendurada

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numa janela de um casarão velho‖ (SURFISTINHA, 2011: 47). E essa imagem que, junto

com a droga, precisa ser exorcizada é a da velha puta tradicional e arcaica (talvez não

exatamente pós-moderna, mas certamente amoderna), aquela da Rua Augusta, contemplada

de longe por Raquel na companhia dos pais (quando Raquel não sabia ainda quem era, e que

no filme, foi totalmente obliterada, o mais genuíno off-screen) (SURFISTINHA, 2011: 22).

A puta da Augusta

Não estaria aí, nessa imagem em off-screen a ser eternamente esconjurada, impossível

de mostrar, o motivo inconfessável de todo imperativo de escrita? É que Raquel, antes de ser

Raquel, e emergir criada, com seu duplo, por diferentes tecnologias de inscrição, talvez

tivesse experimentado, em algum momento, como poucos, a fascinação que existe na

possibilidade de se deixar simplesmente levar (por uma força, um impulso, em suma, uma

imagem). Aquilo que desfaz a escrita como programa (moderno), e que desconstrói o sujeito

em sua individualidade arraigada, em sua unidade corporal bem delimitada (organizada com

vistas à função reprodutora). O exemplo mais eloquente nesse sentido, que constitui a

passagem mais pungente tanto do filme quanto do livro é o encontro fatídico, literalmente

proibido e inimaginável, dela com um colega por quem ―morria de tesão‖ (SURFISTINHA,

2011: 49). Ainda sem consciência, Raquel era aqui conduzida por aquilo que é a essência

mesma da pulsão, ligada à possibilidade de perdição ―perversa‖ do sujeito que a ela se

entrega. Perdição que é de uma ordem intensiva, e extrapola a efetivação da meta subjetiva de

obtenção de prazer como resultado. Essa experiência, no filme, tem um preço, social, que não

é propriamente o da perdição efetiva: ao deixar se manipular pelo garoto, ela acaba rejeitada e

marginalizada. E depois do trauma, a escrita, a internet, o filme emergem como tecnologias

capazes de reprogramar o desejo (em termos de sexo). Mas quanto mais ela os atrela (o desejo

e as tecnologias, através do sexo, fundo falso, potência criadora de discursos) à

autoconsciência, mais ela os trai. O livro, um diário de produção de um duplo, vende

enquanto objeto de passar os olhos. Simulacro sedutor através do qual a narradora, a garota,

inteligente, se vinga do garoto e de todos nós. É aí que o filme talvez, e só o filme, ―resgate‖

sua imagem (mas naquilo tudo que nele apenas se entrevê e fica nele obliterado, enquanto off-

screen).

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Referências Bibliográficas

BAUDRILLARD, J. Oublier Foucault. Paris: Galilée, 1977

DELEUZE, G. Difference et Repetition. Paris: PUF, 1968, p. 118

FOUCAULT, M. ―Theatrum Philosophicum‖. In Dits et Écrits. Vol. 1. 1954-1975. Manchecourt:

Gallimard, 2001

FOUCAULT, M. La voloté de savoir. Paris : Gallimard, 1976

KLOSSOWSKI, P. Nietzsche et le cercle vicieux. Paris: Mercure de France, 1969

SURFISTINHA, B. O Doce Veneno do Escorpião. O diário de uma garota de programa. São Paulo:

Panda Books, 2011

Referências Filmográficas

BALDINI, Marcos. Bruna Surfistinha. Brasil: Damasco Filmes, 2011.

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O Teremin e a Psicanálise no Cinema Norte-americano

F ab r i z io D i S arn o100

R e s u m o

O instrumento musical Teremin se popularizou na trilha sonora cinematográfica a partir dos filmes

Lady in the Dark e Quando Fala o Coração, lançados em meados da década de 1940. Com narrativas

baseadas nos efeitos da psicanálise, estes filmes iniciais associaram o som do instrumento ao

inconsciente humano, estabelecendo as bases para as principais convenções audiovisuais de associação

do timbre com elementos estranhos presentes nas narrativas cinematográficas.

P a l a v r a s - c h a v e : T e r e mi n , C i n e ma N o r t e - a me r i c a n o , T r i l h a S o n o r a ,

P s i c a n á l i s e , M ú s i c a .

T h e T h e r e m i n a n d t h e P s y c h o a n a l y s i s o n Am e r i c a n C i n e m a

A b s t r a c t

Teremin became popular after being one of the instruments that composed the soundtracks of the

movies Lady in the Dark and Spellbound, released in the 1940‘s. Having a story based on

psychoanalytic effects, the sound of this instrument was associated to the human unconsciousness,

establishing bases to the main audiovisuals conventions that associate its sound to strange elements

present in narratives of American cinema.

K e y w o r d s : T h e r e mi n , A me r i c a n C i n e ma , S o u n d t r a c k , P s y c h o a n a l ys i s , M u s i c .

Dois filmes lançados na metade da década de 1940 foram responsáveis pela

popularização do som do Teremin no cinema norte-americano. Com narrativas que

exploravam os efeitos da psicanálise, os filmes Lady in the Dark (Mitchell Leisen, 1944) e

Quando Fala o Coração (Spellbound, Alfred Hitchcok, 1945) estabeleceram a associação do

som do instrumento com o inconsciente humano, ligação que se tornou uma convenção

explorada até os dias atuais. A abordagem escolhida por esta dupla de filmes iniciais foi

evidenciar o surpreendente controle melódico que o Teremin possuía, em uma época em que

100

Fabrizio Di Sarno: Vinculação institucional com o Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio

(CEUNSP). Formado em Composição e Regência pela FAAM. Mestre em Comunicação Audiovisual pela

Universidade Anhembi Morumbi. Professor das disciplinas Comunicação Audiovisual, Som I, Som II, Som III,

Elementos da Linguagem Musical, Teorias do Contemporâneo I, Teorias do Contemporâneo II, Música I,

Música II, Produção Sonora Publicitária, Cultura Musical e Trilha Sonora do CEUNSP. Compositor de trilhas

sonoras para marcas como: Natura, Governo Federal, Guaraná Antártica, Laboratórios Fleury, Justiça Federal,

Caixa Econômica Federal, Banco Bradesco, Revista Playboy, Editora Abril etc. Como tecladista, já gravou e

tocou com bandas como: Angra, Paul di Anno, Shaman, Bittencourt Project, Karma, Edu Ardanuy etc.

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os demais meios de produção de timbres eletrônicos podiam apenas gerar alturas sem controle

linear. O estranhamento gerado no público por esta característica foi utilizado em associação

com o inconsciente humano, um elemento que era visto como estranho apesar da sua

consolidação conceitual no imaginário popular.

Antes do desenvolvimento dos sintetizadores analógicos ocorrido durante os anos 60,

os compositores de trilha sonora contavam com poucas opções para inserir timbres eletrônicos

na banda sonora dos filmes.

Primeiramente, havia a opção de produzir modificações na própria película do filme,

como fazia, já na década de 1940, o canadense Norman McLaren, cineasta que utilizava uma

caneta para introduzir rabiscos de diferentes formatos na banda sonora de seus curta-

metragens101

. O formato destes rabiscos definia o resultado sonoro. Por exemplo, uma série de

pequenos triângulos muito próximos entre si produzia um som agudo e estridente. Pontos

mais arredondados e distantes entre si produziam um som mais grave e assim por diante. Este

tipo de som se tornou característico do trabalho de Norman McLaren e pode ser ouvido em

filmes como Dots (1940), Neighbours (1952) etc.

No decorrer dos anos 50, outra opção de timbre eletrônico já tinha se tornado comum

na trilha sonora cinematográfica: os osciladores. Estes aparatos eletrônicos produziam ondas

sonoras senoidais que podiam variar em volume e freqüência. Contudo, não havia um

controle preciso de freqüências, o que impedia, na prática, a execução de seqüências lineares

de som, um requisito necessário para a execução de melodias. O filme O Planeta Proibido

(Forbidden Planet, Fred M. Wilcox, 1956), foi o primeiro com trilha musical exclusivamente

feita com timbres eletrônicos. O casal de especialistas em áudio Louis Barron (1920-1989) e

Bebe Barron (1926-2008), construíram uma série de novos osciladores exclusivamente para o

filme. O diretor Fred M. Wilcox (1907-1964) gostou tanto da novidade que decidiu utiliza-los

no filme inteiro excluindo todos os outros tipos de som da trilha musical do filme. O resultado

final agradou ao público da época, desacostumado com os sons eletrônicos no cinema.

Algumas cenas mais importantes, como a decolagem da nave espacial que leva os

protagonistas, receberam inclusive aplausos do público durante a exibição, evidenciando a

habilidade dos sonoplastas na utilização dos osciladores como produtores de efeitos sonoros.

Entretanto, a falta de controle melódico dos osciladores trouxe à tona a falta de uma espécie

de condução emotiva, cuja responsabilidade se deve a trilha musical extra-diegética, tornando

101

O método pode ser visto na página: http://www.youtube.com/watch?v=Q0vgZv_JWfM)-Consultada em

04/04/2012.

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o sucesso parcial do filme como o resultado de uma experiência específica, destinada a

emergir apenas no contexto particular em que este tipo de efeito sonoro ainda tinha o caráter

de novidade.

É oportuno lembrar que, na década de 1950, a música erudita ocidental passava por

um turbulento período em que novos timbres e situações musicais eram buscados a todo custo

na tentativa de driblar o problema do esgotamento de possibilidades criativas. Com efeito, os

novos gravadores de fita magnética passaram a ser utilizados para a obtenção de novos

recursos estéticos.

Nenhum outro desenvolvimento do período posterior a 1950 atraiu tantas atenções

ou trouxe ao mundo um tão grande potencial de importantes mutações estruturais

como a utilização dos sons eletronicamente produzidos ou manipulados. Este

domínio começou a ser explorado com a Musique Concrète do início dos anos 50

(GROUT/PALISCA, 2001, p. 745).

De fato, antes dos anos 60, de todas as possibilidades de se obter timbres eletrônicos

na trilha sonora cinematográfica, apenas uma oferecia um razoável controle melódico: o

Teremin.

Este instrumento musical foi criado pelo russo Léon Theremin (1896-1993), por volta

de 1917, época em que ele estudava em um instituto de tecnologia. No documentário

Theremin: An Eletronic Odyssay (Steven M. Martin, 1994), Clara Rockmore (1911-1998),

uma ex-aluna de Léon Theremin, considerada uma das melhores tereministas de todos os

tempos, conta que em uma conversa perguntou o que levou o russo a criar o instrumento. O

inventor respondeu que ficou curioso ao escutar o barulho proveniente do rádio durante as

mudanças de estação. Léon Theremin percebeu, corretamente, que aquele som agudo

característico não era proveniente de nenhuma estação de rádio específica, mas sim, do

próprio aparelho. Trabalhando, então, com um processo chamado Heteródino, que trabalha

com dois osciladores eletrônicos, ele passou a ganhar controle sobre este som criando o

primeiro instrumento musical eletrônico da história.

Ansioso em promover a eletrificação do país, e a demonstrar a tecnologia soviética ao

mundo, o governo promoveu uma série de demonstrações do novo instrumento pela Europa.

Nestas demonstrações, Léon Theremin deixava o público desnorteado diante da característica

principal do instrumento: o fato de que o executante não encosta no instrumento durante a

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prática musical. Esta idiossincrasia se deve ao fato de que a execução melódica no Teremin

trabalha com a aproximação de qualquer material condutor de eletricidade (como no caso da

mão humana). O instrumento possui duas antenas, uma vertical e uma horizontal. Quanto

mais próxima se encontra a mão do músico da antena vertical, mais agudo é o som (antena

que trabalha com variação de freqüências102

). Quanto mais próxima está a outra mão da

antena horizontal, menos intenso é o som, chegando ao volume zero se a mão estiver próxima

o suficiente (antena que trabalha com variação de intensidade103

).

Contudo, a característica que se tornou o seu maior trunfo, acabou também se

tornando o principal motivo pelo qual o instrumento continua amplamente desconhecido nos

dias atuais. Com efeito, a falta de referência física durante a execução musical torna a tarefa

de dominar a técnica de execução melódica do instrumento bastante árdua. A imprecisão no

campo elétrico do Teremin muda constantemente as notas de posição impedindo o executante

de trabalhar com a memória muscular, utilizada durante o processo de aprendizado dos

instrumentos convencionais. Este fato resultou no fracasso inicial de vendas e no conseqüente

número reduzido de executantes. Com poucos adeptos não houve interesse na produção de

métodos didáticos. Com poucos métodos didáticos e executantes não houve interesse na

produção de peças exclusivas para Teremin por parte dos grandes compositores do século

XX. O resultado desta bola de neve é o repertório limitado e o ostracismo atual do

instrumento.

Apesar da falta de sucesso no campo da música, a combinação da capacidade de

controle melódico com as características timbrísticas eletrônicas relegaram ao instrumento um

papel de destaque no cinema norte-americano. Este sucesso cinematográfico, contudo,

também foi abafado nos anos 60 devido ao surgimento de um instrumento mais versátil.

O sintetizador é um instrumento musical capaz de produzir timbres por meios

puramente eletrônicos, e os processos de síntese variam conforme a tecnologia

empregada em seus circuitos. A qualidade sonora e a capacidade de recursos

dependem do projeto de engenharia e dos componentes empregados (RATTON,

2005, p. 17).

O novo concorrente deixou o Teremin para trás devido ao fato de que não possuía a

102

Medida em hertz. 103

Medida em decibéis.

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desvantagem da ―execução no vácuo‖. Contudo, o instrumento russo já havia triunfado, pelo

menos no cinema, por cerca de quinze anos.

A estréia do Teremin no cinema aconteceu no filme russo Odna (Grigori Kozintsev,

Leonid Trauberg, 1931), sob a responsabilidade do consagrado compositor Dmitri

Shostakovich (1906-1975). Entretanto, a ansiedade dos produtores russos em lançar

rapidamente um filme sonoro, mostrando que a sua tecnologia cinematográfica estava em pé

de igualdade com a da Europa ocidental, resultou em um retumbante desastre. A qualidade

péssima do áudio prejudicou bastante o trabalho de composição causando a ira de

Shostakovich. O músico afirmou logo após a estréia do filme que havia trabalhado à toa.

No inicio da década de 1930, Léon Theremin se mudou para os Estados Unidos, aonde

montou um laboratório com a ajuda de patrocinadores passando a trabalhar na divulgação do

Teremin e em novos inventos eletrônicos. Neste período, o inventor recebeu diversos colegas

inventores e alunos, assinando um contrato com a RCA em que licenciou o Teremin para a

produção em massa.

Com a divulgação do instrumento ocorrendo em solo nacional, o Teremin passou a ser

utilizado pelo cinema. Porém, nos dois filmes iniciais, King Kong (Ernest B. Schoedsack,

Merian C. Cooper, 1933) e A Noiva de Frankestein (Bride of Frankestein, James Whale,

1935), o som do instrumento ficou tão apagado que se tornou praticamente inaudível aos

ouvidos do público. Não causa surpresa, portanto, o fato de que os filmes da década seguinte

apareçam como os primeiros a conter o timbre na maioria dos sites especializados.

O inicio da participação do Teremin, da maneira como conhecemos hoje em dia no

cinema, se deu mesmo em dois filmes da década de 1940 que tratam do tema da psicanálise.

Os filmes Lady in the Dark104

(Mitchell Leisen), de 1944 e Quando Fala o Coração

(Spellbound, Alfred Hitchcok), de 1945, possuem narrativas com o mesmo tipo de conflito:

uma personagem principal que apresenta conflitos com o próprio inconsciente passando a

freqüentar sessões de psicanálise. Nos dois casos, a psicanálise foi abordada como a única

opção de cura para o conflito interno, esteja o paciente disposto ou não a realizar o

tratamento. Outra semelhança evidente é o papel narrativo do som do Teremin, sempre

associado às situações em que o inconsciente se rebelava contra o consciente da personagem.

Apesar das inegáveis semelhanças, o sucesso da inserção do som do Teremin na trilha

musical dos dois filmes foi muito diverso. O enorme sucesso da trilha sonora de Quando Fala

o Coração, realizada pelo compositor húngaro Micklós Rósza (1907-1995), recebeu o Óscar

104

Lançado em Portugal com o nome ―A Mulher que Não Sabia Amar‖.

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de melhor trilha sonora e praticamente configurou as convenções pelas quais o Teremin

passou a ser conhecido no cinema. O filme se tornou um marco da estratégia mais usual de

inserção do instrumento na trilha musical, a configuração de um leitmotiv a ser executados

pelo Teremin em solo. Já em Lady in the Dark, uma adaptação para cinema de um musical da

Broadway, o Teremin foi utilizado de maneira discreta, normalmente dobrado com outros

instrumentos melódicos, acompanhado por uma orquestração numerosa ou reverberado

intensamente. O volume do instrumento no filme tem pouca intensidade, mas é reconhecível,

diferente do que acontece na dupla de filmes da década de 1930.

Nestes dois filmes, lançados na década de 1940, pode-se observar com clareza que o

conceito freudiano de inconsciente já estava consolidado no imaginário popular. Contudo, a

maioria das pessoas ainda não possuía uma idéia clara do que o termo representava, restando

apenas o consenso de que se tratava de um espaço incontrolável presente na mente humana.

As palavras de Sigmund Freud (1856-1939) na década de 1930 reforçam a visão que a própria

psicanálise possuía a respeito:

À parte do novo nome, não esperem que eu lhes diga muita coisa nova acerca do

Id. Ele é a parte obscura e inacessível de nossa personalidade; o pouco que dele

sabemos descobrimos no estudo do trabalho do sonho e da formação do sintoma

neurótico, e a maior parte disso é de caráter negativo, pode ser descrita apenas em

contraposição ao Eu. Aproximamo-nos do Id com analogias, chamamo-lo um caos,

um caldeirão cheio de excitações fervilhantes. Nós o representamos como sendo

aberto em direção ao somático na extremidade, ali acolhendo as necessidades dos

instintos, que nele acham expressão psíquica, mas não sabemos dizer em qual

substrato. A partir dos instintos ele se enche de energia, mas não tem organização,

não introduz uma vontade geral, apenas o esforço de satisfazer as necessidades do

instinto observando o princípio do prazer (FREUD, 2010, p. 215).

Muitas vezes, apesar do interesse geral no tema, os especialistas forneciam

explicações curtas que aumentavam ainda mais as dúvidas do público leigo sobre o Id:

―Investimentos instintuais que exigem descarga, isso é tudo que há no Id, acreditamos nós

(FREUD, 2010, p. 216)‖.

Muitas características expostas por Freud colocaram definitivamente o inconsciente

humano no rol dos elementos mais estranhos e incompreendidos da década de 1940, entre

elas, a atemporalidade.

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(...) e também constatamos, surpresos, uma exceção à tese filosófica de que tempo

e espaço são formas necessárias de nossos atos psíquicos. Nada se acha que

corresponda à idéia de tempo, não há reconhecimento de um transcurso temporal e,

o que é muito notável e aguarda consideração no pensamento filosófico, não há

alteração do evento psíquico pelo transcurso do tempo. (FREUD, 2010, p. 216).

Não causa surpresa, portanto, que o início da adoção do som do Teremin tenha

acontecido, durante a década de 1940, em dois filmes quase contemporâneos sobre a

psicanálise. O pouco contato que o público da época tinha com os timbres eletrônicos no

cinema era fornecido por fontes sem controle melódico, como a trilha sonora de ―O Planeta

Proibido‖, causadora de grande impacto. A sensação auditiva fornecida por um timbre

eletrônico produzindo uma melodia produziu um impacto de estranheza tão grande que só

poderia estar associado com um elemento tão estranho como o Id. De um lado, algo

incontrolável (timbres eletrônicos) utilizado sob o surpreendente controle humano. De outro,

um elemento surpreendentemente incontrolável presente no reino do absoluto controle

individual, a mente humana.

A diferença crucial entre Lady in the Dark e Quando Fala o Coração é que, no

primeiro, Liza Elliott (Ginger Rogers, 1911-1995) esconde neste espaço estranho a mulher

que realmente deseja ser (feminina, glamourosa, desejável), mas que não tem coragem para

assumir, enquanto John Ballantyne (Gregory Peck, 1916-2003), personagem de ―Quando Fala

o Coração‖, esconde no inconsciente a sua verdadeira personalidade, já que um trauma

recente o fez assumir a personalidade de seu antigo analista assassinado.

Nos dois casos, o papel da psicanálise é resgatar do espaço inconsciente um

determinado momento crucial na geração deste conflito de personalidade. Um fato gerador

traumático que fez Liza Elliott mudar drasticamente de personalidade contrariando os seus

próprios desejos instintivos. Analogamente, um fato ainda mais aterrorizante provocou a

amnésia de John Ballantyne, desequilibrando totalmente o seu processo de construção do self-

autobiográfico.

Nesta época, tornou-se claro que o papel da psicanálise era justamente este, ou seja,

sua popularidade, assim como a sua eficácia, dependia inteiramente da consolidação do

próprio conceito de inconsciente no imaginário popular. Do mesmo modo, era preciso que a

característica atemporal do Id fosse plenamente aceita, sendo que o papel fundamental da

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psicanálise seria o de resgatar os elementos presentes neste espaço atemporal, trazendo-os

para o espaço-tempo comum na mente consciente.

Desejos que nunca foram além do Id, mas também impressões que pela repressão

afundaram no Id, são virtualmente imortais, comportam-se, após décadas, como se

tivessem acabado de surgir. Podem ser reconhecidos como passado, desvalorizados

e privados de seu investimento de energia somente quando se tornam conscientes

mediante o trabalho analítico, e é nisso que se baseia, em medida nada pequena, o

efeito terapêutico do tratamento analítico (FREUD, 2010, p. 216).

Evidentemente, este objetivo último da psicanálise só poderia ser alcançado no final

dos filmes, pois ao emergir o que estava latente, resolveria de vez o conflito principal das

personagens. Dessa forma, no decorrer das narrativas, era preciso encontrar algum elemento

estético que configurasse o conflito, mantendo vivo o mistério sobre o fato gerador até o

momento da resolução final. Este se tornou, portanto, o papel do som do Teremin.

Apesar de estabelecer as bases para os filmes seguintes, este papel não se torna tão

claro em Lady in the Dark. O leitmotiv melódico presente no filme diz respeito

especificamente ao fato gerador do conflito, mas este não é executado exclusivamente pelo

Teremin. Como se trata de um trecho de uma música que Liza Elliott cantaria para o seu pai

na noite do fato gerador, muitas vezes ele é cantado pela própria personagem à capela. A

melodia simplesmente aparece na sua mente consciente sem que ela saiba de onde vem e

porque se sente tão perturbada por ela.

Neste sentido, a principal inovação de Quando Fala o Coração é a criação e um

leitmotiv a ser executado exclusivamente pelo Teremin nos momentos de conflito ligados ao

fato gerador. Nestes momentos, a intensidade do conflito consiste em uma acoplagem entre

imagem e som, representado visualmente por uma série de listras pretas sobre um fundo

branco. Toda vez que John Ballantyne se depara com tal imagem, seu inconsciente dispara a

tensão provocada pelo fato gerador, provocando sintomas psicofísicos como tonturas, quedas

de pressão e desmaios. O estranhamento gerado por estes episódios é reforçado pelo aspecto

atonal do leitmotiv melódico, cujas frases cromáticas contrastam com a harmonia tonal em

estilo romântico presente na música sinfônica do restante do filme. Torna-se claro o objetivo

de Micklós Rósza em introduzir o timbre do Teremin de maneira marcante a um público

totalmente desacostumado a ouvir melodias executadas com timbres eletrônicos.

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O elemento estranho associado ao som do Teremin, nestes dois filmes, não é a

psicanálise em si, mas o inconsciente humano. Pode-se abordar, através das escolhas

audiovisuais, o pensamento da época em relação a estes dois elementos. O inconsciente,

apesar de plenamente consolidado conceitualmente no ocidente, era visto com estranhamento,

justificando a sua associação com o som estranho do Teremin durante os filmes. Já a

psicanálise, apesar de abordada de forma esteriotipada, é vista de maneira positiva, cabendo a

ela o papel de herói, o elemento que desata os nós presentes nos conflitos narrativos.

A visão da técnica psicanalítica é praticamente a mesma nas duas produções. Entre os

elementos presentes nas sessões figura a interpretação dos sonhos como forma de reconhecer

as ideias presentes no Id. Neste processo, ocorre a ampla interpretação de elementos

simbólicos como olhos gigantes, assassinos sem rosto e um vestido de gala azul como o

principal elemento configurador do desejo oculto de Liza Elliott. Durante as cenas, elementos

visuais reforçam a atmosfera surrealista do ambiente onírico. Com este intuito, Hitchcock

contratou o mestre do surrealismo Salvador Dalí (1904-1989) para desenhar os cenários

durante a cena principal de sonho de John Ballantyne. Nas duas produções, torna-se evidente

o pensamento da psicanálise sobre a importância e a validade do sonho como forma de

comunicação.

Fizemos o pressuposto, adotamos o postulado – bem arbitrariamente, devemos

admitir – de que também esse sonho incompreensível teria de ser um ato psíquico

inteiramente válido, de sentido e valor plenos, que podemos usar como qualquer

outra comunicação na análise. Somente o resultado da tentativa pode mostrar se

estamos certos. Se conseguirmos transformar o sonho numa expressão valiosa

desse tipo, teremos a perspectiva de aprender algo novo, de obter comunicações de

um tipo que para nós, de outra forma, continuaria inacessível (FREUD, 2010, p.

129).

Neste sentido, o papel do analista é o de conhecer o sonho manifesto como uma

espécie de porta de entrada para algo maior, encontrando nele pistas sobre elementos perdidos

no oceano do Id.

Então podemos enunciar nossas duas tarefas da seguinte forma: temos que

transformar o sonho manifesto no sonho latente e indicar como, na psique do

sonhador, este último tornou-se aquele (FREUD, 2010, p. 130).

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Freud descreve recorrentemente em sua obra a técnica pela qual o analista deve

proceder em relação à interpretação dos sonhos do paciente:

Então o paciente relatou um sonho e devemos interpretá-lo. Ouvimos calmamente,

sem ativar nossa reflexão. Que fazer em seguida? Resolver nos ocupar o mínimo

possível do que acabamos de ouvir, do sonho manifesto. Sem dúvida, este sonho

manifesto exibe todo tipo de característica que não é totalmente indiferente para

nós. (...) não pensem que desdenhamos essa infinita diversidade do sonho

manifesto, depois retornaremos a ela e encontraremos muita coisa útil para a

interpretação, mas agora vamos ignorá-la e tomar a via principal que leva à

interpretação (FREUD, 2010, p. 130/131).

Nos dois filmes, esta técnica é obedecida com precisão, tanto no que se refere ao papel

do analista como ao papel do paciente.

Ou seja, pedimos ao sonhador que também se liberte da impressão do sonho

manifesto, que tire a sua atenção do conjunto e a dirija para os elementos do

conteúdo do sonho, e nos comunique o que lhe ocorre a respeito de cada um desses

elementos, um após o outro, que associações lhe vêm quando os examina

separadamente (FREUD, 2010, p. 131).

A ligação latente entre a interpretação do sonho e o timbre do Teremin se dá, mais

uma vez, no campo do controle. Pode-se imaginar que a interpretação de um sonho é uma

tentativa árdua de controlar o incontrolável, de encontrar algum valor de ordem para algo que

aparenta ser um bizarro conjunto de elementos desconexos. A melhor maneira de se traduzir

esta perspectiva em uma linguagem musical era, sem dúvida, introduzir um timbre eletrônico

que possuía, surpreendentemente, controle melódico.

Não há dúvidas que conseguimos, mediante a nossa técnica, algo que é substituído

pelo valor do sonho, mas não exibe as estranhas peculiaridades do sonho, sua

bizarria, sua confusão (FREUD, 2010, p. 133).

Outro elemento importante nesta visão da psicanálise, presente nos dois filmes, é a

hipnose. O interesse do público pela técnica aumentou bastante em meados da década de

1940, em grande parte devido ao trabalho dos próprios psicanalistas.

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Notadamente depois da II Guerra Mundial, vem se verificando um revigoramento

no interesse pela técnica, pelo estudo e pela aplicação hipnótica. Essa redescoberta,

ou volta triunfal da hipnose, assinalada entre outras coisas por diversas publicações

importantes, notadamente na Europa e nos Estados Unidos, é largamente devida à

psicanálise (WEISSMANN, 1958, p. 9).

A estranha e assustadora perspectiva de que o incontrolável Id poderia ser controlado

por um agente externo aumentava a nebulosidade sobre o tema. Dessa forma, aproveitando o

interesse crescente do público, as décadas de 1930 e 1940 assistiram ao surgimento de uma

série de publicações pseudocientíficas que abordaram o tema de maneira estereotipada,

encobrindo por vezes o trabalho sério dos psicanalistas e do próprio Freud, que havia

renegado a hipnose em um primeiro momento. Na época, apresentações de caráter duvidoso

expunham a técnica com charlatanismo, apresentando-a como um poder ilimitado do

hipnotizador sobre o hipnotizado. A gigantesca dúvida sobre o tema fomentada na primeira

metade do século XX gera confusões até os dias de hoje, geralmente devido ao

desconhecimento sobre um aspecto fundamental da técnica hipnótica:

Ao menos enquanto dura o transe, êle, ―sujet‖, é considerado escravo de uma

vontade mais forte do que a sua. Na realidade, o ―sujet‖ sucumbe à sua própria

vontade, que se confunde ou entra em choque com a idéia ou a imaginação do

hipnotista. Assim, a monotonia, que é um dos fatôres técnicos mais decisivos na

indução hipnótica, para produzir efeito, tem de basear-se na reciprocidade. (...) Não

percamos de mente que tôda (sic) sugestão é, em última análise, largamente auto-

sugestão, toda hipnose, em última análise, largamente auto-hipnose, e todo mêdo,

no fundo, mêdo de si mesmo. Contràriamente ao que ensinam os livros populares, a

fé inabalável no hipnotismo e a vontade forte não constituem os atributos

fundamentais e diretos do hipnotizador, mas, sim, do ―sujet‖ (WEISSMANN,

1958, p. 27).

Apesar do tratamento sério que a hipnose recebeu nos dois filmes iniciais, não

demorou muito para surgir citações cômicas ou duvidosas sobre o tema. Em 1947, foi lançada

a comédia musical Road to Rio (Norman Z. McLeod), que contava com a atuação dos dois

atores-cantores Bob Hope (1903-2003) e Bing Crosby (1903-1977). A personagem brasileira

Lucia Maria de Andrade (Dorothy Lamour, 1914-1996), desejada pela dupla de cantores,

sofre com as investidas de sua tia, a vilã Catherine Veil (Gale Sodergaard, 1899-1985). O

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desejo dela é que Lucia Maria se case com o seu sobrinho favorito, facilitando o acesso da

vilã à herança da moça. Para garantir a concretização do casamento, ela hipnotiza Lucia Maria

todas as noites. Durante estas sessões estereotipadas, Catherine utiliza um objeto pendular

sendo balançado em frente aos olhos de Lucia Maria. Ela profere um discurso monótono

enquanto os olhos da moça se fixam no objeto pendular. A fala pausada e sem inflexões e o

objeto pendular se tornaram duas convenções recorrentes da hipnose estereotipada do cinema.

Contudo, neste filme, outro elemento foi acrescentado neste contexto: o timbre do Teremin.

As melodias tremulantes produzidas no decorrer das cenas se colocam na fronteira entre a

trilha musical e o Sound Design, configurando o ―som da hipnose‖ durante o filme, tornando-

se uma convenção sonora cinematográfica a partir deste filme inicial.

Não há qualquer técnica particular especial utilizada pelo hipnotizador, visto que, no

final do filme, os próprios heróis são capazes de hipnotizar os seus perseguidores utilizando

apenas o movimento pendular de um grande relógio e o ―discurso monótono do

hipnotizador‖. As primeiras sessões possuem uma atmosfera mais sinistra, mas a hipnose e

seus elementos vão se tornando mais cômicos no decorrer da narrativa. De maneira

surpreendente, o som do Teremin acompanha este movimento em direção à comicidade, no

que pode ser considerado como um dos primeiros momentos humorísticos com a participação

do instrumento no cinema.

Mais uma vez, o Teremin é visto da mesma maneira. Seu papel narrativo está ligado

ao controle, ou a falta dele. No filme, pela primeira vez, o som do instrumento está

diretamente ligado a uma forma de controle externo da mente humana, um elemento que,

antes do surgimento e consolidação do conceito de inconsciente, era considerado como

impossível de ser controlado externamente. O mais subjetivo de todos os elementos

constituintes do ser humano, agora podia ser controlado, se não no mundo real, pelo menos na

narrativa cinematográfica.

Da mesma forma, o Teremin podia ser considerado, pelo menos nesta época de seu

uso no cinema, como um rompimento da última fronteira. O controle melódico sobre o timbre

eletrônico. Uma maneira de se criar sequências lineares de diferentes frequências com

expressividade humana, diferente das gravações produzidas pelas manipulações de sons

gravados em fita ou dos antigos osciladores.

No cinema norte-americano do final da década de 1940 e no início da década de 1950,

o som do Teremin continuou a configurar sonoramente o inconsciente e a sua principal

característica intrínseca, a falta de controle humano sobre a própria mente. Alguns destes

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filmes possuem sessões de psicanálise como Lets live a Little105

(Richard Wallace, 1948). A

hipnose também continuou a utilizar o som do Teremin como podemos observar no filme The

5.000 fingers of Dr. T (Roy Rowland, 1953), filme cuja narrativa se passa quase inteiramente

dentro de um sonho, outro elemento comumente associado ao som do Teremin devido à sua

capacidade de dar voz ao inconsciente humano.

Na década de 1950, sob o período Macartista, o cinema norte-americano utilizou uma

segunda linha de associação do Teremin, iniciada no filme The Spiral Staircase106

(Robert

Siodmak, 1945), produzido no mesmo ano de Quando Fala o Coração. Esta linha trabalha

associando o som do Teremin com o vilão externo, encarnado normalmente em um assassino,

um extraterrestre ou um monstro. Contudo, da mesma forma como ocorre na linha que

trabalha com o inconsciente, o som do instrumento busca ressaltar nestes elementos a

estranheza, a característica que marcou o timbre do Teremin até que este não se tornasse mais

estranho devido ao seu constante uso no cinema norte-americano.

Depois de uma década recheada de filmes com a inserção do instrumento, o timbre

desapareceu do cinema norte-americano nos anos 60. Contudo, neste período de grande

pausa, o som do Teremin se manteve vivo graças ao grande número de reprises dos filmes dos

anos 50 na televisão e dos novos desenhos animados que o utilizavam devido à sua associação

com o estranho, nesta época, já consolidada no imaginário popular.

Após o documentário Theremin: An Eletronic Odyssay, de 1994, o cinema norte-

americano resgatou o som do Teremin, passando a utilizá-lo em diversas narrativas que

envolviam elementos estranhos como monstros, extraterrestres e disco-voadores. A

associação com a loucura e o misterioso Id, iniciada com os filmes da década de 1940 que

tratavam do tema da psicanálise continua viva, evidenciada em filmes como Bartleby

(Jonathan Parker, 2001) e O Operário (The Machnist, 2004).

Nos dias de hoje, o som do Teremin se tornou uma convenção sonora explorada ao

extremo em diversos tipos de produção audiovisual. Seu papel, nestas produções, está

diretamente ligado à sua associação com os elementos estranhos presentes nas narrativas.

Extraterrestres, monstros, disco-voadores, naves espaciais etc., são elementos muito comuns

neste contexto. Porém, o timbre também representa elementos intangíveis, com destaque

especial para o inconsciente humano e suas consequências narrativas. Loucura, hipnose,

sonhos, alucinações e experiências psicodélicas são alguns destes elementos. Esta linha de

105

Lançado em Portugal com o nome ―Vivamos um Pouco‖. 106

Lançado em Portugal com o nome ―A Escada de Caracol‖.

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associação se iniciou com os filmes da década de 1940 que tratavam sobre os efeitos da

psicanálise, responsáveis pela popularização do Teremin na época. Estas convenções estão

principalmente ligadas ao fato de que o Teremin é um som capaz de controlar as ondas

sonoras eletrônicas, em uma época que isso parecia ser impossível. Desta forma, a escolha do

timbre se tornou uma forma muito eficaz de representar o esforço, por parte da psicanálise, de

dar forma ao inconsciente humano (ou pelo menos traduzi-lo em uma linguagem

reconhecível), visto como um espaço incontrolável da mente humana.

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RUA – ISSN: 1983-3725

Dossiê #12 – Cinema e Psicanálise

Maio de 2012

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A Revista Universitária do Audiovisual é um projeto de Extensão do Departamento de

Artes e Comunicação e é coordenada por alunos e professores do curso de Imagem e

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