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Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016| p. 66-84.
Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema: Zabriskie point (1970) Amazônico
Carlos Vinícius Silva Santos*
Resumo: O presente artigo examina a representação do movimento estudantil nos Estados Unidos realizado no filme “Zabriskie Point” (dir.: Michelangelo Antonioni – 1970). Na conjuntura de contestação política e de questionamentos sociais característica do final da década de 1960 a juventude dos Estados Unidos figurou como um ator relevante, participando ativamente das transformações em curso naquela sociedade. O movimento pelos direitos civis, a contracultura, a oposição à Guerra do Vietnã, os novos movimentos políticos, todos contavam com a preponderância dos jovens. Desta maneira, o cinema do período volta-se a eles para interpretar os acontecimentos do momento. Assim, busca-se observar a forma como o cinema interagiu com essa parcela da população, construindo um arquétipo da juventude do período, privilegiando-se a análise do título citado. Palavras-chave: Juventude; Anos 1960; Cinema; Representação. Abstract: This article examines the characterization of United States student movement in the movie “Zabriskie Point” (dir.: Michelangelo Antonioni – 1970). In the conjuncture of political dispute and social controversy, the main feature of 1960’s, the American youth was a relevant actor, joined the transformations that happened. The civil rights movement, the counterculture, the opposition of Vietnan War, the new political movements, all of them counts upon juvenile preponderance. Thus, cinema considered youth to interpret the events of the period. Therefore, this work analyses the cinema interaction with juvenile in the selected movie. Keywords: Youth; 1960’s; Cinema; Characterization.
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INTRODUÇÃO
A década de 1960 demarca um período no qual os Estados Unidos da América
vivenciaram profundas e intensas transformações. Fortalecida pela prosperidade atingida no
pós-Segunda Guerra Mundial a nação se depara, nos anos em questão, com um turbilhão de
acontecimentos que vieram a abalar muitos de seus fundamentos. Assim, o cotidiano
modifica-se em meio às demandas sociais e aos acontecimentos políticos, internos e externos,
constituindo-se uma época singular na história recente do país, com significativos
desdobramentos ao longo das décadas seguintes e consequências fazendo-se presentes na
atualidade.
A primeira metade dos anos 1960 consiste no período de maior prosperidade
vivenciado pelos Estados Unidos. Observada em perspectiva, a afluência torna-se ainda mais
clara se comparada aos anos de 1930 e iniciais da década de 1940, quando os efeitos da crise
estabelecida em 1929 e os anos de beligerância durante a Segunda Guerra Mundial
impuseram a escassez sobre a população. Se os anos do pós-guerra marcam já uma
substancial retomada da prosperidade econômica, nos anos 1960 a abundância propicia uma
atmosfera de otimismo na qual a nova geração pôde acreditar na possibilidade de realização
de seus desejos e anseios. Segundo David Farber, “muitos acreditavam que as velhas regras
da escassez e os valores tradicionais da economia e da gratificação retardada não mais
operavam.” 1
Assim, a onda de confiança que se estabelece permite à geração dos baby boomers2
buscar uma sociedade mais progressista. De acordo com James Patterson, instaura-se um
contexto de grandes expectativas promovido, em ampla medida, pela afluência dos anos 1960:
Pessoalmente poupados da Depressão ou da Segunda Guerra Mundial, os boomers amadureceram em um mundo muito diferente das gerações anteriores, mais desprivilegiadas. [..] Muitos acreditaram que eles tinham o conhecimento e os recursos para criar uma sociedade mais avançada e progressista, como nenhuma antes na história da humanidade. [...] Sua certeza em “poder-fazer” estimulou grandes expectativas sobre a capacidade
* Doutorando junto ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/IH/UFRJ). Pesquisa financiada pela CAPES. E-mail: [email protected]. 1 FARBER, David. The Sixties: from memory to history. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1994. p.01. Todas as traduções do autor. 2 Parcela da população nascida nos anos posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial e que, desta forma, foram poupados dos revezes econômicos das décadas anteriores, tendo crescido em meio à prosperidade das décadas de 1950 e 1960. Os jovens que impulsionariam parte significativa dos movimentos dos anos 1960 e 1970 eram partícipes deste grupo social.
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do governo em solucionar os problemas sociais. [...] O governo, muitos grupos argumentavam, deveria agir para garantir seus “direitos”.3
Todd Gitlin, por sua vez, afirma que as transformações operadas não podem ser
explicadas através de um único fator, como o desenvolvimento econômico, porém como um
produto da estrutura social e da conjuntura internacional do período. Para o autor
[A ascensão dos jovens americanos] foi parcialmente um produto da estrutura social – deveria haver uma massa crítica de estudantes e excedente econômico suficiente para apoiá-los – mas ainda, o surgimento foi realizado pelos vívidos elementos de um contexto histórico único, sob as asas do Zeitgeist4.5
Durante o período em questão, diversos interesses entraram em choque. Momento de
questionamentos e desobediência civil, as políticas do Estado não atendiam as exigências
básicas de parcelas representativas da sociedade. A diversificação cultural percebida é, em
parte, resultado da afirmação de grupos em busca de liberdade e espaço de fala. Marcada pela
afluência, a década propicia o avanço do consumo da classe média branca, sobretudo, que é
apontado como prejudicial aos valores e ao espírito original do povo americano. Assim,
enquanto alguns usufruem do conforto propiciado pelo maior acesso aos bens de consumo,
outros se tornam críticos ao materialismo resultante, opondo-se à organização política da
nação. O protagonismo da parcela juvenil da sociedade americana nesse processo tornou-se
uma das características da década.
Desta forma, examina-se o título “Zabriskie Point” (Michelangelo Antonioni – 1970)
objetivando-se analisar a representação da juventude americana realizada na obra. Para além
da localização das forças sociais e políticas envolvidas no processo e de sua presença na
produção fílmica selecionada, almeja-se considerar a importância representacional do cinema
enquanto meio produtor de significados, veiculando as demandas das diversas vozes em
atuação naquela sociedade. Observar-se-á o cinema enquanto um produto cultural que, em
contato com outros produtos e meios, dá vazão às tensões do momento colaborando para a
construção identitária dos atores sociais.
CINEMA E REPRESENTAÇÃO
3 PATTERSON, James. Grand Expectations – The United States 1945 – 1974. New York: Oxford University Press, 1996. pp. 451-452. 4 Zeitgeist, em tradução livre, espírito do tempo, é um termo alemão que se refere ao conjunto de características que compõem uma determinada época. Entende-se o conceito, por conseguinte, em relação à atmosfera política, econômica e, sobretudo, social e cultural representativa de um período histórico. 5 GITLIN, Todd. The Sixties - Years of Hope, Days of Rage. New York: Bantam Book, 1987. p.13.
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Diante das muitas possibilidades de trabalho historiográfico com fontes
cinematográficas, considera-se aqui o cinema como veículo de representação social, bem
como sua capacidade de colocar em movimento tendências presentes numa dada sociedade,
figurando como agente de construções representacionais. Segundo José D’Assunção Barros,
versando sobre a relação cinema-história e o uso do cinema pelos historiadores:
A partir de uma fonte fílmica, e a partir da análise dos discursos e práticas cinematográficas relacionados aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX e da contemporaneidade. De igual maneira (...) os historiadores políticos e culturais podem examinar os diversos usos, recepções e apropriações dos discursos, práticas e obras cinematográficas.6
Desta maneira, o cinema se apresenta enquanto fonte singular para o estudo das
representações por permitir o acesso a determinados constructos operados nos e através dos
filmes. Ainda segundo Barros:
Para além do fato mais evidente de que o cinema – enquanto ‘forma de expressão cultural’ especificamente contemporânea – fornece fontes extraordinariamente significativas para os estudos históricos sobre a própria época em que foi e está sendo produzido, uma outra relação fulcral entre História e Cinema pode aparecer através da dimensão deste último como ‘representação’. O Cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas também um ‘meio de representação’. Através de um filme representa-se algo, seja uma realidade percebida e interpretada, seja um mundo imaginário livremente criado pelos autores de um filme.7
Paralelamente à Barros, porém compartilhando preocupações metodológicas,
Michèle Lagny realiza algumas observações quanto à utilização do cinema no trabalho do
historiador, tecendo reflexões referentes às aproximações entre a linguagem cinematográfica e
a escrita historiográfica. Para Lagny, apesar de o cinema ser pensado enquanto um produto
comercializável e, em geral, não almejar o estatuto de documento histórico, assume esta
função uma vez que conserva vestígios do tempo e do lugar no qual cada produção é
realizada. Afirma a autora que as imagens cinematográficas evidenciam muito mais sobre a
percepção que se tem da realidade do que sobre a realidade propriamente dita. Assim, a
utilização de fontes fílmicas seria notadamente profícua no que se refere às reflexões
concernentes à noção de representação, possibilitando a análise privilegiada do imaginário
social, bem como da noção de identidade cultural. Tratando da representação fílmica, salienta:
6 BARROS, José D’Assunção. “Cinema e história: entre expressões e representações”. In: NÓVOA, Jorge; BARROS, José D’Assunção. Cinema-História – teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 43. 7 Ibid., p. 43-44.
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O cinema, de ficção em particular, parece muito produtivo para refletir a noção de
representação. Muito frequentemente é no mínimo conservador, na medida em que
as imagens se alimentam menos das inovações que dos modelos de longa duração.
(...) Porém, e como sintoma de nostalgias, os filmes podem também ser portadores
de desejos novos e às vezes contrariados.8
Ainda refletindo sobre a capacidade do cinema em permitir o acesso do observador
competente ao processo de constituição da representação social operada, salienta Lagny:
Se suas imagens não dizem grande coisa sobre a realidade dos fatos, elas testemunham, entretanto, sobre a percepção que dela temos, ou que queremos ou podemos lhes dar, em um momento preciso, datado e localizado.9
O cinema, assim, figura como uma construção que, ao invés de documentar a
realidade, mais efetivamente transmite representações que constroem realidade através das
inúmeras possibilidades de consumo disponíveis aos grupos sociais.
A JUVENTUDE DE “ZABRISKIE POINT”
O filme narra os acontecimentos vividos por um casal de jovens universitários
americanos, Mark (Mark Frechette) e Daria (Daria Halprin)10. Mark caracteriza-se pelo
inconformismo, sendo contrário à realidade política e social, porém não se sentindo
representado pela retórica do movimento estudantil radical. Após participar de uma
manifestação no campus da universidade, é acusado da morte de um policial e foge roubando
um pequeno avião e partindo de Los Angeles para o Deserto de Mojave. Daria, alheia aos
movimentos políticos estudantis, consegue um trabalho como secretária do executivo Lee
Allen (Rod Taylor), proprietário de uma construtora e que pretende realizar um grande
empreendimento imobiliário no deserto, denominado Sunnydunes. Com o objetivo de
encontrar seu chefe para uma reunião em Phoenix, Daria atravessa de carro o deserto, onde
acaba por conhecer Mark. Desse contato surge uma intensa, apesar de efêmera, aproximação
entre os jovens.11
8 LAGNY, Michèle. “O cinema como fonte de história”. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador, São Paulo: EDUFBA/Editora UNESP, 2009. p. 105. 9 Ibid., p.102. 10 Os protagonistas mantiveram seus nomes reais nas personagens que interpretaram. 11 Para uma análise tomada a tomada do filme, conferir http://idyllopuspress.com/idyllopus/film/z_toc.htm. Acesso em: 16 jun. 2016.
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Quando dirige “Zabriskie Point”12, Michelangelo Antonioni já contava com o
reconhecimento internacional de seu trabalho, sendo um diretor experiente com mais de duas
décadas de trabalho no campo cinematográfico. Avesso aos modelos narrativos
tradicionalmente utilizados13, suas obras desafiam os parâmetros convencionais do cinema,
propondo maneiras originais de desenvolvimento dos enredos. Opondo-se ao cinema de ação,
oferece grande atenção à construção estética do filme, explorando as varias possibilidades de
expressão oferecidas pela linguagem cinematográfica. Desta maneira, seu cinema torna-se
contemplativo e reflexivo, em detrimento à trama e às personagens. Trata-se de um cinema da
sensação, ou do sentimento, da atmosfera, onde proliferam os signos tanto imagéticos quanto
textuais, escritos ou falados.
O filme de Antonioni retrata alguns momentos na vida de dois jovens americanos
objetivando refletir sobre a juventude daquela nação no contexto dos anos finais da década de
1960. Dada a concepção própria do diretor a respeito daquilo em que consiste o cinema,
“Zabriskie Point” não lida diretamente com a conjuntura política do momento, porém dialoga
com ela, fazendo referências mais ou menos explícitas. Em entrevista oferecida ainda durante
as filmagens, Antonioni esclarece algumas de suas motivações e dos caminhos escolhidos na
realização da obra. É interessante atentar para os comentários quanto às suas impressões sobre
o cinema, a função das personagens e a natureza de seu filme. Segundo ele, tratando da
motivação da produção:
“(...) Talvez o filme seja apenas uma disposição de espírito, ou uma afirmação sobre um estilo de vida. Talvez não exista trama, na forma como se usa a palavra. (...) Em algum grau, eu estou fazendo um filme sobre a juventude na America, tomando dois jovens americanos e fazendo um filme sobre eles”14.
Ainda sobre as personagens, afirma:
“O que acontece com eles no filme não é importante. Eu poderia tê-los feito fazer uma coisa ou outra coisa. As pessoas pensam que os eventos no filme são sobre o que o filme é. Isso não é verdade. (...) O filme é sobre as personagens, sobre mudanças que acontecem dentro delas. As experiências
12 Apesar de dirigido por um realizador italiano, “Zabriskie Point” é o segundo de três longas-metragens distribuídos pela Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) e produzidos em língua inglesa. Além disso, foi rodado nos Estados Unidos, lidando com temas caros àquela sociedade. Desta forma, insere-se no contexto americano de forma relevante. Os outros dois títulos são “Blowup – depois daquele beijo” (Blowup – 1966) e “Profissão: repórter” (The passenger – 1975). 13 Refiro-me aos modelos narrativos utilizados por algumas escolas artísticas de cinema, sobretudo pelo cinema clássico hollywoodiano, nos quais se observa a preponderância do desenvolvimento linear da trama. 14 Entrevista a Roger Ebert, 19 de junho de 1969. <Disponível em: http://www.michelangeloantonioni.info/2013/08/22/interview-with-michelangelo-antonioni-by-roger-ebert-june-19-1969/>. Acesso em: 16 jun.2016.
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que elas têm no desenrolar do filme são simplesmente coisas que ‘acabam acontecendo’ às personagens, as quais não iniciam nem acabam com o filme”15.
Quanto à inserção de “Zabriskie Point” no ambiente político do momento de
produção, Antonioni defende que seus filmes são políticos, porém não sobre política. Informa:
“Eles são políticos em sua abordagem; são feitos de um ponto de vista definitivo. E devem ser
políticos no efeito que têm sobre as pessoas”16. O diretor sublinha a importância que a
convenção democrática em Chicago teve sobre ele, semanas antes de iniciar as gravações do
filme em questão. Em suas palavras
“O que vi lá – o comportamento da polícia, o espírito dos jovens – me impressionou mais profundamente do que qualquer outra coisa que eu tenha visto na América. Em algum grau, “Zabriskie Point” é influenciado pelo o que aconteceu nas ruas de Chicago. Não diretamente, você entende. O filme não é sobre Chicago. Porém minhas ideias sobre os jovens americanos foram formuladas pelo o que aconteceu em Chicago, e isso de alguma forma deve estar expresso no filme.”17
Antonioni aborda mais diretamente o contexto político logo na cena de abertura da
película. Na cena em questão, ocorre uma reunião estudantil onde se debate o que constitui
um revolucionário e como os estudantes presentes devem atuar para se tornarem agentes
revolucionários. Um casal de jovens negros possui proeminência na cena, fazendo afirmações
contundentes nas quais argumentam que o protagonismo da revolução pertence à população
negra, devido à violência da qual essa parcela da população foi historicamente vítima.
Segundo a fala do ativista negro: “um radical branco é uma mistura de lenga-lenga com papo
furado”18.
A reunião, que acontece em uma sala da universidade, é composta majoritariamente
por estudantes brancos os quais, apesar das discordâncias pontuais, apoiam os ativistas
negros. As colocações são compostas por elementos que caracterizam estereotipicamente a
retórica do movimento estudantil de esquerda: citações à Lenin, Fidel Castro, ao Livro
Vermelho de Mao Tsé-Tung, greves e oposição ao recrutamento militar no auge da Guerra do
Vietnã. Debatem-se estratégias de enfrentamento às forças policiais, além de formas de
15 Ibid. 16 Entrevista a Roger Ebert, 19 de junho de 1969. <Disponível em: http://www.michelangeloantonioni.info/2013/08/22/interview-with-michelangelo-antonioni-by-roger-ebert-june-19-1969/>. Acesso em: 16 jun. 2016. 17 Ibid. 18 03 min29s.
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ocupação total dos campi universitários. Diante da especificidade da reunião, notadamente
mais teórica que prática, Mark se retira “para não morrer de tédio”19.
As considerações proferidas por Antonioni na entrevista anteriormente citada, porém,
tornam interessante um exame menos imediato da cena. Enquanto os créditos iniciais se
desenrolam, a abertura do filme é construída através de cortes rápidos, com tomadas em
close-up, por vezes fora de foco e movimentos de câmera laterais. Essas imagens são
acompanhadas por uma banda sonora onde trilhas distintas são sobrepostas, permitindo ouvir-
se uma batida compassada semelhante aos batimentos cardíacos, alguns instrumentos
musicais e falas desconexas que dão a impressão de mudanças repentinas de estações de
rádio. Quando o título do filme surge na tela, vemos o close de um rosto em perfil
aparentando pertencer ao protagonista.
Fotograma 1 - A reunião estudantil que compõe a primeira cena do filme, representação da juventude universitária de fins da década de 1960. Primeiro plano de conjunto, a tomada refere-se ao ângulo de visão da militante negra que ocupa posição de protagonista na cena. A plateia é composta, sobretudo, por jovens brancos de classe média.
Alguns minutos da projeção se passam até que uma tomada de plano de conjunto
permita ao espectador ter uma noção espacial do cenário, captando o que está acontecendo e
quantas pessoas estão participando. Assim, tanto os créditos quanto o desenvolvimento da
cena na qual os ativistas debatem são marcados pela confusão, pela falta de clareza do que
está ocorrendo. Apesar da oposição entre brancos e negros quanto àquilo que constitui um
revolucionário, os atritos raciais não parecem ser o motivo da cena. Antonioni não pretende se
ocupar de questões pontuais. Qual seria, então, a motivação dessa abertura?
19 Alusão à fala de Mark em 7min29s: “Eu estou disposto a morrer também. Mas não de tédio.”
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Buscando uma representação da juventude americana do período, conforme
salientado pelo próprio cineasta, a cena presume a falta de objetividade daqueles jovens que, a
despeito da insatisfação com a sociedade da qual fazem parte e de objetivarem transformar
sua realidade, não contam com um plano efetivo de ação que os permita canalizar toda a
energia que possuem. A ironia de Mark explicita esse aspecto. Desta maneira, a cena também
tem como função a apresentação do protagonista através de seu principal traço de
personalidade. Mark é inconformado, não apenas no que concerne aos valores tradicionais
presentes na sociedade, mas, além disso, aos parâmetros de luta propostos pelas organizações
políticas juvenis. A primeira fala a emitir, de que aceitaria morrer pelo movimento, dá conta
da tendência suicida que irá exibir em outras passagens da narrativa. Ademais, na cena em
que os militantes negros realizam o ato que planejaram na reunião, ocupando o prédio da
biblioteca da universidade, a tomada de câmera do salão de leitura exibe uma placa com o
aviso “a sala de leitura é para aqueles que querem estudar.” Evidencia-se, assim, a ineficiência
do movimento político radical juvenil.
Fotograma 2 - O salão de leitura da biblioteca da universidade ocupada pelos militantes negros. Com o chão coberto pelo o que parece ser panfletos políticos, a placa afirma a correta função do espaço.
O uso simbólico de outdoors e murais possui, igualmente, função política na
produção do realizador italiano. É através da profusão de slogans e fachadas de instalações
comerciais / industriais que Antonioni explora o âmbito do consumo na sociedade dos Estados
Unidos. Utilizando-se de outdoors, uma peça eminentemente publicitária, o consumismo e a
desvirtuação de valores caros à nação são destacados, sendo inúmeros os anúncios referindo-
se a bancos e instituições financeiras. Em “Zabriskie Point”, os sinais do consumo consomem
a tela. Além disso, em uma citação mais específica, a crítica à uniformidade típica do mercado
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de consumo fica expressa no mural onde se veem porcos, todos iguais, esperando por serem
alimentados. Literalmente, virando-se a esquina é o abate que os aguarda.
O consumismo é, ainda, explorado na publicidade do empreendimento imobiliário
Sunnydunes. Nesse, que é avaliado pelos executivos da companhia, manequins ocupam os
lugares de atores em um ambiente residencial artificialmente construído, que visa simular um
lar do futuro subúrbio a ser erguido no deserto. As personagens da família nuclear
representada, que esteticamente se assemelham aos traços das bonecas infantis Barbie,
aproveitam o alegado conforto da vida no Death Valley. A casa com piscina privativa, jardim
e cozinha repleta de eletrodomésticos é considerada motivo suficiente para as famílias
abandonarem os problemas típicos de cidade grande de Los Angeles e se estabelecerem no
Deserto de Mojave, localizado nas proximidades. Atrelado ao consumismo, os valores
tradicionais da família nuclear heterossexual, da posição do homem como chefe da casa e da
submissão da mulher compõem o quadro. Enquanto o homem caça leões da montanha, uma
referência aos ativistas negros do Partido dos Panteras Negras, e rega o jardim numa sutil
conotação sexual, a mulher trabalha na cozinha para alimentar marido e filho. Nesse
momento, o corte para a face da única executiva mulher que assiste ao comercial sublinha o
papel feminino ainda culturalmente prevalecente.
Para além das críticas, os outdoors adéquam-se como suportes para a veiculação de
informações e referências. Segundo Antonioni, ao pintar murais e se utilizar de outdoors ele
tem por objetivo realizar uma compressão, ou seja, transmitir mais dados em um menor
número de tomadas. Assim, em “Zabriskie Point”, muito da complexidade da linguagem
imagética, recheada de detalhes, encontra-se nessas estruturas publicitárias. Isso é percebido
nas tomadas onde os outdoors emitem mensagens diretamente para as personagens. Por
exemplo, quando Daria para no deserto com o intuito de verificar um mapa, um outdoor de
um banco apresenta uma possibilidade de vida tradicional, através da segurança financeira,
enquanto a placa de trânsito sobreposta ao anúncio imperativamente lhe ordena que pare.
Ainda mais expressivamente, dois anúncios parecem dialogar com Mark quando ele
tem a ideia de roubar o avião. Primeiramente, na tomada em que o protagonista observa a
aeronave que se aproxima para aterrissar, seu campo visual é cruzado por um outdoor no qual
existe apenas a imagem de quatro pessoas em close-up, que o olham diretamente. Logo em
seguida, em outro anúncio sobre Nova York, vê-se a cabeça da estátua da Liberdade com a
presença de três personagens, homem, mulher e criança, aparentando formarem uma família,
todos vestidos de vermelho. De dentro da cabeça da estátua, os três sorriem e observam Mark
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ao lado da mensagem “vamos escapar disso tudo.” Assim, enquanto o primeiro anúncio
demanda uma reflexão sobre o ato que o rapaz está pensando em cometer, o segundo o
incentiva a cometê-lo, aparentando representarem suas instâncias psíquicas, ego e id.
Fotogramas 3 e 4 – Os outdoors enviam mensagens diretamente a Mark quando tem a ideia de roubar um avião para fugir. Em ambas as tomadas os objetos publicitários ocupam o espaço central do take, tendo ora postes, ora Mark como obstáculo visual.
Significativo que quando Mark e Daria encontram-se frente a frente no deserto exista
no campo onde o avião foi aterrissado dois velhos outdoors vazios. O estado de degradação
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das estruturas denota que as mesmas não são utilizadas para seu fim original há muito tempo.
Essa ausência talvez demarque a passagem, no deserto, não para a falta de linguagem, porém
para a transposição a outra forma de linguagem, mais sutil, natural. Completa o sentido de
passagem o fato de os referidos outdoors aparecerem na tela enquadrados atrás do automóvel
de Daria, que simplesmente passa por eles sem sequer tomar conhecimento daqueles objetos.
Assim, os outdoors e sua relação com a publicidade, com o meio urbano, ficam “para trás”.
De qualquer modo, o velho homem que reside no casebre próximo de onde Mark aterrissou
aparenta ser um pintor de murais ou outdoors, ajudando os jovens a transformarem o avião
em um pássaro pré-histórico, nas palavras de Mark.
Fotograma 5 – Na cena em que Daria vai se encontrar diretamente com Mark pela primeira vez, veem-se dois outdoors vazios e envelhecidos no plano de fundo, em contraponto ao carro guiado pela jovem, em primeiro plano. A tomada é registrada em tom minimalista, com poucos elementos. Valoriza-se, desse modo, a aridez do ambiente.
Após aproximarem-se física e psicologicamente, no lugar denominado Zabriskie
Point, Mark e Daria retornam ao avião. Talvez em consequência à experiência que tiveram,
decidem transformar a aeronave em um outdoor, utilizando-a como um suporte para
divulgarem seus valores e impressões sobre a sociedade americana. O avião é assim dividido
entre os “artistas”, cabendo o lado esquerdo a Daria, o direito a Mark e a frente ao velho
pintor. Daria representa um fósforo em chamas junto da calda, seguido das palavras “no war”
e de uma bomba dentro da qual se seguem os pronomes “she, he, it”, tudo envolto em grama.
Mark constrói sua pintura tendo como imagem principal os órgãos reprodutores masculinos,
figurando dentro destes o cifrão e as palavras “suck bucks”. Lê-se “no words” e um discreto
agradecimento ao dono da aeronave em “thankx”, além de pés de maconha. Na frente, uma
cara negra animalesca lembra uma pantera extrovertida, com a língua à mostra. A
transmutação conclui-se no teto da aeronave, onde se ostenta um enorme par de seios
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seguidos do algarismo “1”. Exibindo características femininas e masculinas, o algarismo
traduz a unicidade do ser criado.
Desta forma, nesse pássaro pré-histórico ressurgido, o casal exprime os princípios da
juventude do período. Entretanto, quando é avistado nas proximidades do aeroporto, a
mensagem não é compreendida, sendo a linguagem classificada como despropositada. Na
cidade, o manifesto vindo do deserto perde o sentido. Finalmente, enquanto os policiais
aguardam no aeroporto pelo retorno de Mark, uma propaganda dos cigarros Marlboro mostra
um cavalo selvagem sendo domado.
Fotograma 6 – A aeronave, agora transmutada em um suporte que veicula as mensagens dos jovens, sendo preparada para a viagem de retorno de Mark.
A trama de “Zabriskie Point” desenrola-se em duas locações principais, a cidade de
Los Angeles e o Deserto de Mojave, distante daquela cidade apenas poucas horas. O título da
produção é emprestado da denominação de um acidente geográfico existente no norte desse
deserto, mais especificamente na região do Vale da Morte. A primeira impressão é de que se
opera, pelo uso dessas duas locações, e pela ruptura causada pela fuga de Mark pelo roubo do
avião, uma relação de oposição entre cidade e deserto. O primeiro terço da projeção
desenvolve-se na cidade, onde as personagens são apresentadas, a manifestação estudantil
ocorre e Mark decide fugir. A partir desse ponto, o espectador é levado ao deserto pelas asas
de Lilly 7, o avião tomado pelo protagonista. O segundo terço do filme pertence quase que
exclusivamente ao casal, sendo encerrado pelo retorno de Mark para Los Angeles,
ambicionando devolver Lilly 7, agora transformada em um pássaro pré-histórico. Com sua
morte frívola, inicia-se o terço final no qual Daria, desolada com o fim trágico do jovem que
conhecera breve, porém intensamente, chega a seu destino e, refletindo sobre suas escolhas,
decide partir, sem explicações ou despedidas. A cidade figura, deste modo, como o lugar do
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descaminho, da exploração e da morte, enquanto que o deserto, permitindo uma conjunção do
homem com a natureza, ainda que árida, possibilita a busca de uma verdade interior, de
autoconhecimento, da vida.
Essa dicotomia subverte a relação esperada. Usualmente, o deserto representa a perda
– pessoal, do caminho, da vida – sendo a cidade o lugar de segurança, a civilização. O Vale da
Morte, onde Zabriskie Point localiza-se, constitui-se como a região mais seca e quente da
América do Norte, oferecendo condições de vida bastante adversas. Suas características fazem
com que a área figure em inúmeras narrativas históricas, por vezes míticas, integrantes do
imaginário folclórico dos EUA. Entretanto, sob a ótica de Antonioni20, o deserto torna-se o
lugar onde a presença corruptora do homem ainda não se estabeleceu. Um espaço onde o nada
prevalece, porém não ameaçador, o deserto permite a conciliação com a natureza, já
impossível em Los Angeles, de forma que os jovens possam buscar seus caminhos
distanciando-se dos valores sociais estabelecidos os quais já não lhes oferecem esteio.
Sunnydunes representa, portanto, um perigoso prenúncio, a domesticação do deserto pelo
homem.
Sob outra perspectiva, a aridez física de Zabriskie Point pode refletir o vazio
existencial dos protagonistas, em busca de um caminho que parece lhes escapar. Assim, a
experiência vivida no Vale da Morte acaba sendo reveladora para Daria, que reavalia sua
vida, possibilitando um recomeço. Quanto a Mark, resoluto, mantém o plano de voltar à
cidade, onde encontra seu desfecho. Para ele, o deserto funciona como fuga momentânea,
apenas, uma vez que mesmo diante do convite de Daria para acompanhá-la, decide retornar à
Los Angeles.
20 O deserto está presente em outras realizações do diretor, como instância física ou psicológica, podendo-se citar “Deserto Rosso: o dilema de uma vida” (Red Desert, 1964) e “Profissão: repórter” (The Passenger, 1975).
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Fotograma 7 – O local denominado Zabriskie Point, no Deserto de Mojave.
Desde o início da projeção o caráter autodestrutivo de Mark é claramente
apresentado, afirmando aceitar morrer pelo movimento já em sua primeira fala. Ao volante de
sua velha caminhonete, atravessa o sinal vermelho em um cruzamento, quase causando uma
colisão com outros dois veículos. Em seu quarto nota-se uma bandeira dos Estados Unidos
toda em vermelho, como que ensanguentada. Não perde a oportunidade de gratuitamente
ofender policiais e, apesar de não ter sido detido em uma das manifestações, acaba
ocasionando a própria prisão por assumir uma postura desafiadora na delegacia. Por fim,
compra armas e vai armado à manifestação no campus, a qual ele já sabia estar fora de
controle com confrontos violentos entre estudantes e forças policiais. Sua oposição a qualquer
indício de autoridade fica evidente inclusive em pequenos gestos, como optar por estacionar
sua caminhonete diante de uma placa proibindo o estacionamento, ou no inexplicável ato de
quase alvejar um policial que pede os documentos a Daria. A determinação em devolver a
aeronave no mesmo lugar onde a roubou sela sua tendência, desta vez suicida. Antes da
decolagem afirmara a Daria que queria correr riscos. Se, no início, se recusa a lutar diante das
regras do movimento estudantil, acaba se tornando um efetivo ativista, assumindo os maiores
perigos.
Daria não demonstra nada da instabilidade presente nos atos de Mark. Logo na cena
em que é introduzida à história, a jovem é caracterizada como integrante da voga
contracultural, em suas roupas, hábitos e maneirismos. O fato de ter deixado o livro no terraço
do edifício, onde foi comer, preferindo ler ao invés de dividir a refeição com os demais
funcionários no refeitório, demonstra sua individualidade. Importante notar que a cena vem
logo em sequência ao comportamento de Mark na reunião ter sido tachado de “individualismo
burguês”, como se uma característica encerrasse necessariamente a outra. Sublinha-se, na
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moça, um individualismo nada burguês. Daria não é militante, sequer se preocupa com os
debates dos ativistas. Apesar de se afastar dos valores tradicionais presentes naquela
sociedade, não é politicamente radical. Prova isso sua provável aproximação amorosa com
Lee21, mandatário do empreendimento do qual se tornou secretária. Lee, por sua vez, não se
reduz às características unidimensionais de um capitalista, membro da classe economicamente
privilegiada e partidário de valores conservadores. A maneira como se encanta com as
qualidades da jovem, aproximando-se dela, relativiza a gravidade da personagem.
Apesar de reconhecer que suas necessidades não são atendidas dentro dos parâmetros
sociais vigentes, Daria não enseja realizar qualquer ato visando colaborar para a mudança da
realidade social existente. Ao invés disso, parte para o deserto em busca de engrandecimento
espiritual, apesar do pretexto de ir à Phoenix. O carro que dirige, um modelo velho e
emprestado, demonstra sua falta de apego material. No filme de Antonioni essa personagem
parece representar o sentimento de ansiedade presente na juventude do período que, porém,
não consegue identificar a origem de sua inquietação. É graças ao encontro inesperado com
Mark que ela alcança meios para vislumbrar seus possíveis caminhos pessoais. A morte do
rapaz, do qual sequer conheceu o nome, funciona como um ponto de inflexão para a jovem,
que já possuía a disposição íntima para a transformação. Expressivo, portanto, o fato de suas
últimas palavras na película serem as de despedida do inusitado piloto, uma vez que após a
fatídica notícia da morte de Mark, ouvida no rádio do carro, ela não interage verbalmente com
mais ninguém.
O filme conclui-se na grande explosão da mansão onde Lee se reúne com os
possíveis financistas de seu empreendimento imobiliário. O colapso do imóvel é imaginado
por Daria, como forma de extravasar tanto a dor pela morte de Mark quanto a decepção com
os parâmetros do dinheiro, poder e ganância, evidenciados a ela nos hábitos e negócios da alta
classe. A demolição, repetida incessantes vezes em ângulos de câmera variados, aos poucos se
desenvolve para a explosão de símbolos do consumo, com a destruição de cabides repletos de
roupas, dos objetos ao redor da piscina e de uma geladeira; da mídia, com a detonação de uma
TV na tela da qual se vê um apresentador de telejornal; e da educação, com a aniquilação de
estantes de livros.
21 Não existe citação direta desse fato no enredo, porém pode-se subentender que tal aproximação ocorre.
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Conforme os destroços da casa e dos objetos voam pelos ares em câmera super lenta,
a música “Come in Number 51, Your Time is Up”22, da banda de rock Pink Floyd, compõe a
banda sonora, sendo o som das explosões reproduzido apenas no início da cena. A música em
questão, desprovida de letra, inicia-se suavemente, com o compasso sendo gentilmente
marcado pelos pratos de condução da bateria para, após alguns minutos, expressar-se um forte
sentimento de desespero e agonia, com a ruidosa entrada das guitarras e pleno uso da bateria.
A música, portanto, explode da mesma forma que os objetos em cena, a qual consiste na
crítica final da película aos padrões sociais e culturais aos quais a juventude que se pretende
representar se opunha. Entretanto, restabelece-se a esperança no sorriso final da protagonista,
e no avermelhado pôr do sol, por sinal presente ao longo da projeção em alguns dos outdoors.
CONCLUSÃO
“Zabriskie Point” consiste em uma produção de um diretor italiano realizador de
obras dentro dos parâmetros característicos do cinema moderno, tendo sido rodado e
produzido nos Estados Unidos. Sua temática, voltada para a efervescência cultural do fim da
década de 1960, relaciona-o com o novo cinema em execução nos EUA.
A tipificação da juventude presente no filme prioriza o jovem em oposição aos
valores dominantes naquela sociedade. Assim, a parcela juvenil dos Estados Unidos de finais
da década de 1960 é definida pela inquietação; pela busca por maior grau de liberdade
política, e principalmente, cultural; pela defesa de princípios e valores divergentes daqueles
advogados pela geração de seus pais; pela aversão à autoridade; pelo anticonsumismo, em
suma, pela recusa em se integrar socialmente através dos parâmetros tradicionalmente
vigentes. O comportamento e, por vezes, a vestimenta, exteriorizam seu posicionamento
ideológico. Não há espaço, na película, para a juventude vinculada aos padrões dominantes.
Pelo contrário, é a objeção a esses padrões que funciona como o mote fundamental do enredo.
Desta forma, a exposição dos acontecimentos e dos movimentos políticos obedece às
especificidades da representação construída. A busca por direitos e liberdade é reduzida à
retórica de estudantes universitários que se julgam revolucionários, porém que não possuem
meios efetivos de alcançar seus objetivos, os quais não parecem evidentes. Quanto aos
22 GILMORE, David et all. Come in Number 51, Your Time is Up. Intérprete: Pink Floyd. In: Zabriskie Point
Soundtrack. ____: MGM, 1970. Lançada pela banda originalmente sob o título “Careful With That Axe,
Eugene”, no lado B do single de 1968, e adaptada para o filme de Antonioni.
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protagonistas, se Mark possui o ímpeto para a ação, não sabe como agir. Já Daria, precisa
amadurecer espiritualmente para consolidar seu distanciamento aos valores dominantes.
De linguagem cinematográfica elaborada, explorando com presteza as possibilidades
comunicativas oferecidas pelo cinema para transmitir sua mensagem, o filme, entretanto,
erige uma representação da juventude americana parcial e artificial. A opção por selecionar
um casal de jovens para figurar como representantes de toda a juventude do país
invariavelmente ocasiona essa parcialidade. Além disso, e apesar de veicular cenas
documentais de manifestações estudantis, a ambientação dos movimentos políticos
universitários desconsidera a pluralidade dos mesmos. Assim, a ausência de abordagens
diretas dos acontecimentos sublinha os limites da realização, mesmo sendo baseada em um
posicionamento mais progressista.
Portanto, “Zabriskie Point” possui o mérito de voltar-se a alguns dos principais
pontos em debate na sociedade dos Estados Unidos, no final dos anos 1960. Lançando luz
sobre o jovem, o filme colabora para a percepção dos anseios que nutriam a atmosfera de
contestação que caracterizava o momento. Todavia, as representações efetuadas não
possibilitaram uma abordagem profunda das forças concorrentes naquele contexto, talvez por
não ter sido possível ultrapassar limites impostos tanto pelo modo de produção vigente na
grande indústria do cinema, quanto pela heterogeneidade das demandas presentes naquela
sociedade.
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Recebido em: 01/11/2016
Aprovado em: 05/05/2017