Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

19
Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016| p. 66-84. Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema: Zabriskie point (1970) Amazônico Carlos Vinícius Silva Santos* Resumo: O presente artigo examina a representação do movimento estudantil nos Estados Unidos realizado no filme “Zabriskie Point” (dir.: Michelangelo Antonioni – 1970). Na conjuntura de contestação política e de questionamentos sociais característica do final da década de 1960 a juventude dos Estados Unidos figurou como um ator relevante, participando ativamente das transformações em curso naquela sociedade. O movimento pelos direitos civis, a contracultura, a oposição à Guerra do Vietnã, os novos movimentos políticos, todos contavam com a preponderância dos jovens. Desta maneira, o cinema do período volta-se a eles para interpretar os acontecimentos do momento. Assim, busca-se observar a forma como o cinema interagiu com essa parcela da população, construindo um arquétipo da juventude do período, privilegiando-se a análise do título citado. Palavras-chave: Juventude; Anos 1960; Cinema; Representação. Abstract: This article examines the characterization of United States student movement in the movie “Zabriskie Point” (dir.: Michelangelo Antonioni – 1970). In the conjuncture of political dispute and social controversy, the main feature of 1960’s, the American youth was a relevant actor, joined the transformations that happened. The civil rights movement, the counterculture, the opposition of Vietnan War, the new political movements, all of them counts upon juvenile preponderance. Thus, cinema considered youth to interpret the events of the period. Therefore, this work analyses the cinema interaction with juvenile in the selected movie. Keywords: Youth; 1960’s; Cinema; Characterization.

Transcript of Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Page 1: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016| p. 66-84.

Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema: Zabriskie point (1970) Amazônico

Carlos Vinícius Silva Santos*

Resumo: O presente artigo examina a representação do movimento estudantil nos Estados Unidos realizado no filme “Zabriskie Point” (dir.: Michelangelo Antonioni – 1970). Na conjuntura de contestação política e de questionamentos sociais característica do final da década de 1960 a juventude dos Estados Unidos figurou como um ator relevante, participando ativamente das transformações em curso naquela sociedade. O movimento pelos direitos civis, a contracultura, a oposição à Guerra do Vietnã, os novos movimentos políticos, todos contavam com a preponderância dos jovens. Desta maneira, o cinema do período volta-se a eles para interpretar os acontecimentos do momento. Assim, busca-se observar a forma como o cinema interagiu com essa parcela da população, construindo um arquétipo da juventude do período, privilegiando-se a análise do título citado. Palavras-chave: Juventude; Anos 1960; Cinema; Representação. Abstract: This article examines the characterization of United States student movement in the movie “Zabriskie Point” (dir.: Michelangelo Antonioni – 1970). In the conjuncture of political dispute and social controversy, the main feature of 1960’s, the American youth was a relevant actor, joined the transformations that happened. The civil rights movement, the counterculture, the opposition of Vietnan War, the new political movements, all of them counts upon juvenile preponderance. Thus, cinema considered youth to interpret the events of the period. Therefore, this work analyses the cinema interaction with juvenile in the selected movie. Keywords: Youth; 1960’s; Cinema; Characterization.

Page 2: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

67

INTRODUÇÃO

A década de 1960 demarca um período no qual os Estados Unidos da América

vivenciaram profundas e intensas transformações. Fortalecida pela prosperidade atingida no

pós-Segunda Guerra Mundial a nação se depara, nos anos em questão, com um turbilhão de

acontecimentos que vieram a abalar muitos de seus fundamentos. Assim, o cotidiano

modifica-se em meio às demandas sociais e aos acontecimentos políticos, internos e externos,

constituindo-se uma época singular na história recente do país, com significativos

desdobramentos ao longo das décadas seguintes e consequências fazendo-se presentes na

atualidade.

A primeira metade dos anos 1960 consiste no período de maior prosperidade

vivenciado pelos Estados Unidos. Observada em perspectiva, a afluência torna-se ainda mais

clara se comparada aos anos de 1930 e iniciais da década de 1940, quando os efeitos da crise

estabelecida em 1929 e os anos de beligerância durante a Segunda Guerra Mundial

impuseram a escassez sobre a população. Se os anos do pós-guerra marcam já uma

substancial retomada da prosperidade econômica, nos anos 1960 a abundância propicia uma

atmosfera de otimismo na qual a nova geração pôde acreditar na possibilidade de realização

de seus desejos e anseios. Segundo David Farber, “muitos acreditavam que as velhas regras

da escassez e os valores tradicionais da economia e da gratificação retardada não mais

operavam.” 1

Assim, a onda de confiança que se estabelece permite à geração dos baby boomers2

buscar uma sociedade mais progressista. De acordo com James Patterson, instaura-se um

contexto de grandes expectativas promovido, em ampla medida, pela afluência dos anos 1960:

Pessoalmente poupados da Depressão ou da Segunda Guerra Mundial, os boomers amadureceram em um mundo muito diferente das gerações anteriores, mais desprivilegiadas. [..] Muitos acreditaram que eles tinham o conhecimento e os recursos para criar uma sociedade mais avançada e progressista, como nenhuma antes na história da humanidade. [...] Sua certeza em “poder-fazer” estimulou grandes expectativas sobre a capacidade

* Doutorando junto ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/IH/UFRJ). Pesquisa financiada pela CAPES. E-mail: [email protected]. 1 FARBER, David. The Sixties: from memory to history. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1994. p.01. Todas as traduções do autor. 2 Parcela da população nascida nos anos posteriores ao fim da Segunda Guerra Mundial e que, desta forma, foram poupados dos revezes econômicos das décadas anteriores, tendo crescido em meio à prosperidade das décadas de 1950 e 1960. Os jovens que impulsionariam parte significativa dos movimentos dos anos 1960 e 1970 eram partícipes deste grupo social.

Page 3: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

68

do governo em solucionar os problemas sociais. [...] O governo, muitos grupos argumentavam, deveria agir para garantir seus “direitos”.3

Todd Gitlin, por sua vez, afirma que as transformações operadas não podem ser

explicadas através de um único fator, como o desenvolvimento econômico, porém como um

produto da estrutura social e da conjuntura internacional do período. Para o autor

[A ascensão dos jovens americanos] foi parcialmente um produto da estrutura social – deveria haver uma massa crítica de estudantes e excedente econômico suficiente para apoiá-los – mas ainda, o surgimento foi realizado pelos vívidos elementos de um contexto histórico único, sob as asas do Zeitgeist4.5

Durante o período em questão, diversos interesses entraram em choque. Momento de

questionamentos e desobediência civil, as políticas do Estado não atendiam as exigências

básicas de parcelas representativas da sociedade. A diversificação cultural percebida é, em

parte, resultado da afirmação de grupos em busca de liberdade e espaço de fala. Marcada pela

afluência, a década propicia o avanço do consumo da classe média branca, sobretudo, que é

apontado como prejudicial aos valores e ao espírito original do povo americano. Assim,

enquanto alguns usufruem do conforto propiciado pelo maior acesso aos bens de consumo,

outros se tornam críticos ao materialismo resultante, opondo-se à organização política da

nação. O protagonismo da parcela juvenil da sociedade americana nesse processo tornou-se

uma das características da década.

Desta forma, examina-se o título “Zabriskie Point” (Michelangelo Antonioni – 1970)

objetivando-se analisar a representação da juventude americana realizada na obra. Para além

da localização das forças sociais e políticas envolvidas no processo e de sua presença na

produção fílmica selecionada, almeja-se considerar a importância representacional do cinema

enquanto meio produtor de significados, veiculando as demandas das diversas vozes em

atuação naquela sociedade. Observar-se-á o cinema enquanto um produto cultural que, em

contato com outros produtos e meios, dá vazão às tensões do momento colaborando para a

construção identitária dos atores sociais.

CINEMA E REPRESENTAÇÃO

3 PATTERSON, James. Grand Expectations – The United States 1945 – 1974. New York: Oxford University Press, 1996. pp. 451-452. 4 Zeitgeist, em tradução livre, espírito do tempo, é um termo alemão que se refere ao conjunto de características que compõem uma determinada época. Entende-se o conceito, por conseguinte, em relação à atmosfera política, econômica e, sobretudo, social e cultural representativa de um período histórico. 5 GITLIN, Todd. The Sixties - Years of Hope, Days of Rage. New York: Bantam Book, 1987. p.13.

Page 4: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

69

Diante das muitas possibilidades de trabalho historiográfico com fontes

cinematográficas, considera-se aqui o cinema como veículo de representação social, bem

como sua capacidade de colocar em movimento tendências presentes numa dada sociedade,

figurando como agente de construções representacionais. Segundo José D’Assunção Barros,

versando sobre a relação cinema-história e o uso do cinema pelos historiadores:

A partir de uma fonte fílmica, e a partir da análise dos discursos e práticas cinematográficas relacionados aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX e da contemporaneidade. De igual maneira (...) os historiadores políticos e culturais podem examinar os diversos usos, recepções e apropriações dos discursos, práticas e obras cinematográficas.6

Desta maneira, o cinema se apresenta enquanto fonte singular para o estudo das

representações por permitir o acesso a determinados constructos operados nos e através dos

filmes. Ainda segundo Barros:

Para além do fato mais evidente de que o cinema – enquanto ‘forma de expressão cultural’ especificamente contemporânea – fornece fontes extraordinariamente significativas para os estudos históricos sobre a própria época em que foi e está sendo produzido, uma outra relação fulcral entre História e Cinema pode aparecer através da dimensão deste último como ‘representação’. O Cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas também um ‘meio de representação’. Através de um filme representa-se algo, seja uma realidade percebida e interpretada, seja um mundo imaginário livremente criado pelos autores de um filme.7

Paralelamente à Barros, porém compartilhando preocupações metodológicas,

Michèle Lagny realiza algumas observações quanto à utilização do cinema no trabalho do

historiador, tecendo reflexões referentes às aproximações entre a linguagem cinematográfica e

a escrita historiográfica. Para Lagny, apesar de o cinema ser pensado enquanto um produto

comercializável e, em geral, não almejar o estatuto de documento histórico, assume esta

função uma vez que conserva vestígios do tempo e do lugar no qual cada produção é

realizada. Afirma a autora que as imagens cinematográficas evidenciam muito mais sobre a

percepção que se tem da realidade do que sobre a realidade propriamente dita. Assim, a

utilização de fontes fílmicas seria notadamente profícua no que se refere às reflexões

concernentes à noção de representação, possibilitando a análise privilegiada do imaginário

social, bem como da noção de identidade cultural. Tratando da representação fílmica, salienta:

6 BARROS, José D’Assunção. “Cinema e história: entre expressões e representações”. In: NÓVOA, Jorge; BARROS, José D’Assunção. Cinema-História – teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 43. 7 Ibid., p. 43-44.

Page 5: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

70

O cinema, de ficção em particular, parece muito produtivo para refletir a noção de

representação. Muito frequentemente é no mínimo conservador, na medida em que

as imagens se alimentam menos das inovações que dos modelos de longa duração.

(...) Porém, e como sintoma de nostalgias, os filmes podem também ser portadores

de desejos novos e às vezes contrariados.8

Ainda refletindo sobre a capacidade do cinema em permitir o acesso do observador

competente ao processo de constituição da representação social operada, salienta Lagny:

Se suas imagens não dizem grande coisa sobre a realidade dos fatos, elas testemunham, entretanto, sobre a percepção que dela temos, ou que queremos ou podemos lhes dar, em um momento preciso, datado e localizado.9

O cinema, assim, figura como uma construção que, ao invés de documentar a

realidade, mais efetivamente transmite representações que constroem realidade através das

inúmeras possibilidades de consumo disponíveis aos grupos sociais.

A JUVENTUDE DE “ZABRISKIE POINT”

O filme narra os acontecimentos vividos por um casal de jovens universitários

americanos, Mark (Mark Frechette) e Daria (Daria Halprin)10. Mark caracteriza-se pelo

inconformismo, sendo contrário à realidade política e social, porém não se sentindo

representado pela retórica do movimento estudantil radical. Após participar de uma

manifestação no campus da universidade, é acusado da morte de um policial e foge roubando

um pequeno avião e partindo de Los Angeles para o Deserto de Mojave. Daria, alheia aos

movimentos políticos estudantis, consegue um trabalho como secretária do executivo Lee

Allen (Rod Taylor), proprietário de uma construtora e que pretende realizar um grande

empreendimento imobiliário no deserto, denominado Sunnydunes. Com o objetivo de

encontrar seu chefe para uma reunião em Phoenix, Daria atravessa de carro o deserto, onde

acaba por conhecer Mark. Desse contato surge uma intensa, apesar de efêmera, aproximação

entre os jovens.11

8 LAGNY, Michèle. “O cinema como fonte de história”. In: NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON, Kristian. Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador, São Paulo: EDUFBA/Editora UNESP, 2009. p. 105. 9 Ibid., p.102. 10 Os protagonistas mantiveram seus nomes reais nas personagens que interpretaram. 11 Para uma análise tomada a tomada do filme, conferir http://idyllopuspress.com/idyllopus/film/z_toc.htm. Acesso em: 16 jun. 2016.

Page 6: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

71

Quando dirige “Zabriskie Point”12, Michelangelo Antonioni já contava com o

reconhecimento internacional de seu trabalho, sendo um diretor experiente com mais de duas

décadas de trabalho no campo cinematográfico. Avesso aos modelos narrativos

tradicionalmente utilizados13, suas obras desafiam os parâmetros convencionais do cinema,

propondo maneiras originais de desenvolvimento dos enredos. Opondo-se ao cinema de ação,

oferece grande atenção à construção estética do filme, explorando as varias possibilidades de

expressão oferecidas pela linguagem cinematográfica. Desta maneira, seu cinema torna-se

contemplativo e reflexivo, em detrimento à trama e às personagens. Trata-se de um cinema da

sensação, ou do sentimento, da atmosfera, onde proliferam os signos tanto imagéticos quanto

textuais, escritos ou falados.

O filme de Antonioni retrata alguns momentos na vida de dois jovens americanos

objetivando refletir sobre a juventude daquela nação no contexto dos anos finais da década de

1960. Dada a concepção própria do diretor a respeito daquilo em que consiste o cinema,

“Zabriskie Point” não lida diretamente com a conjuntura política do momento, porém dialoga

com ela, fazendo referências mais ou menos explícitas. Em entrevista oferecida ainda durante

as filmagens, Antonioni esclarece algumas de suas motivações e dos caminhos escolhidos na

realização da obra. É interessante atentar para os comentários quanto às suas impressões sobre

o cinema, a função das personagens e a natureza de seu filme. Segundo ele, tratando da

motivação da produção:

“(...) Talvez o filme seja apenas uma disposição de espírito, ou uma afirmação sobre um estilo de vida. Talvez não exista trama, na forma como se usa a palavra. (...) Em algum grau, eu estou fazendo um filme sobre a juventude na America, tomando dois jovens americanos e fazendo um filme sobre eles”14.

Ainda sobre as personagens, afirma:

“O que acontece com eles no filme não é importante. Eu poderia tê-los feito fazer uma coisa ou outra coisa. As pessoas pensam que os eventos no filme são sobre o que o filme é. Isso não é verdade. (...) O filme é sobre as personagens, sobre mudanças que acontecem dentro delas. As experiências

12 Apesar de dirigido por um realizador italiano, “Zabriskie Point” é o segundo de três longas-metragens distribuídos pela Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) e produzidos em língua inglesa. Além disso, foi rodado nos Estados Unidos, lidando com temas caros àquela sociedade. Desta forma, insere-se no contexto americano de forma relevante. Os outros dois títulos são “Blowup – depois daquele beijo” (Blowup – 1966) e “Profissão: repórter” (The passenger – 1975). 13 Refiro-me aos modelos narrativos utilizados por algumas escolas artísticas de cinema, sobretudo pelo cinema clássico hollywoodiano, nos quais se observa a preponderância do desenvolvimento linear da trama. 14 Entrevista a Roger Ebert, 19 de junho de 1969. <Disponível em: http://www.michelangeloantonioni.info/2013/08/22/interview-with-michelangelo-antonioni-by-roger-ebert-june-19-1969/>. Acesso em: 16 jun.2016.

Page 7: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

72

que elas têm no desenrolar do filme são simplesmente coisas que ‘acabam acontecendo’ às personagens, as quais não iniciam nem acabam com o filme”15.

Quanto à inserção de “Zabriskie Point” no ambiente político do momento de

produção, Antonioni defende que seus filmes são políticos, porém não sobre política. Informa:

“Eles são políticos em sua abordagem; são feitos de um ponto de vista definitivo. E devem ser

políticos no efeito que têm sobre as pessoas”16. O diretor sublinha a importância que a

convenção democrática em Chicago teve sobre ele, semanas antes de iniciar as gravações do

filme em questão. Em suas palavras

“O que vi lá – o comportamento da polícia, o espírito dos jovens – me impressionou mais profundamente do que qualquer outra coisa que eu tenha visto na América. Em algum grau, “Zabriskie Point” é influenciado pelo o que aconteceu nas ruas de Chicago. Não diretamente, você entende. O filme não é sobre Chicago. Porém minhas ideias sobre os jovens americanos foram formuladas pelo o que aconteceu em Chicago, e isso de alguma forma deve estar expresso no filme.”17

Antonioni aborda mais diretamente o contexto político logo na cena de abertura da

película. Na cena em questão, ocorre uma reunião estudantil onde se debate o que constitui

um revolucionário e como os estudantes presentes devem atuar para se tornarem agentes

revolucionários. Um casal de jovens negros possui proeminência na cena, fazendo afirmações

contundentes nas quais argumentam que o protagonismo da revolução pertence à população

negra, devido à violência da qual essa parcela da população foi historicamente vítima.

Segundo a fala do ativista negro: “um radical branco é uma mistura de lenga-lenga com papo

furado”18.

A reunião, que acontece em uma sala da universidade, é composta majoritariamente

por estudantes brancos os quais, apesar das discordâncias pontuais, apoiam os ativistas

negros. As colocações são compostas por elementos que caracterizam estereotipicamente a

retórica do movimento estudantil de esquerda: citações à Lenin, Fidel Castro, ao Livro

Vermelho de Mao Tsé-Tung, greves e oposição ao recrutamento militar no auge da Guerra do

Vietnã. Debatem-se estratégias de enfrentamento às forças policiais, além de formas de

15 Ibid. 16 Entrevista a Roger Ebert, 19 de junho de 1969. <Disponível em: http://www.michelangeloantonioni.info/2013/08/22/interview-with-michelangelo-antonioni-by-roger-ebert-june-19-1969/>. Acesso em: 16 jun. 2016. 17 Ibid. 18 03 min29s.

Page 8: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

73

ocupação total dos campi universitários. Diante da especificidade da reunião, notadamente

mais teórica que prática, Mark se retira “para não morrer de tédio”19.

As considerações proferidas por Antonioni na entrevista anteriormente citada, porém,

tornam interessante um exame menos imediato da cena. Enquanto os créditos iniciais se

desenrolam, a abertura do filme é construída através de cortes rápidos, com tomadas em

close-up, por vezes fora de foco e movimentos de câmera laterais. Essas imagens são

acompanhadas por uma banda sonora onde trilhas distintas são sobrepostas, permitindo ouvir-

se uma batida compassada semelhante aos batimentos cardíacos, alguns instrumentos

musicais e falas desconexas que dão a impressão de mudanças repentinas de estações de

rádio. Quando o título do filme surge na tela, vemos o close de um rosto em perfil

aparentando pertencer ao protagonista.

Fotograma 1 - A reunião estudantil que compõe a primeira cena do filme, representação da juventude universitária de fins da década de 1960. Primeiro plano de conjunto, a tomada refere-se ao ângulo de visão da militante negra que ocupa posição de protagonista na cena. A plateia é composta, sobretudo, por jovens brancos de classe média.

Alguns minutos da projeção se passam até que uma tomada de plano de conjunto

permita ao espectador ter uma noção espacial do cenário, captando o que está acontecendo e

quantas pessoas estão participando. Assim, tanto os créditos quanto o desenvolvimento da

cena na qual os ativistas debatem são marcados pela confusão, pela falta de clareza do que

está ocorrendo. Apesar da oposição entre brancos e negros quanto àquilo que constitui um

revolucionário, os atritos raciais não parecem ser o motivo da cena. Antonioni não pretende se

ocupar de questões pontuais. Qual seria, então, a motivação dessa abertura?

19 Alusão à fala de Mark em 7min29s: “Eu estou disposto a morrer também. Mas não de tédio.”

Page 9: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

74

Buscando uma representação da juventude americana do período, conforme

salientado pelo próprio cineasta, a cena presume a falta de objetividade daqueles jovens que, a

despeito da insatisfação com a sociedade da qual fazem parte e de objetivarem transformar

sua realidade, não contam com um plano efetivo de ação que os permita canalizar toda a

energia que possuem. A ironia de Mark explicita esse aspecto. Desta maneira, a cena também

tem como função a apresentação do protagonista através de seu principal traço de

personalidade. Mark é inconformado, não apenas no que concerne aos valores tradicionais

presentes na sociedade, mas, além disso, aos parâmetros de luta propostos pelas organizações

políticas juvenis. A primeira fala a emitir, de que aceitaria morrer pelo movimento, dá conta

da tendência suicida que irá exibir em outras passagens da narrativa. Ademais, na cena em

que os militantes negros realizam o ato que planejaram na reunião, ocupando o prédio da

biblioteca da universidade, a tomada de câmera do salão de leitura exibe uma placa com o

aviso “a sala de leitura é para aqueles que querem estudar.” Evidencia-se, assim, a ineficiência

do movimento político radical juvenil.

Fotograma 2 - O salão de leitura da biblioteca da universidade ocupada pelos militantes negros. Com o chão coberto pelo o que parece ser panfletos políticos, a placa afirma a correta função do espaço.

O uso simbólico de outdoors e murais possui, igualmente, função política na

produção do realizador italiano. É através da profusão de slogans e fachadas de instalações

comerciais / industriais que Antonioni explora o âmbito do consumo na sociedade dos Estados

Unidos. Utilizando-se de outdoors, uma peça eminentemente publicitária, o consumismo e a

desvirtuação de valores caros à nação são destacados, sendo inúmeros os anúncios referindo-

se a bancos e instituições financeiras. Em “Zabriskie Point”, os sinais do consumo consomem

a tela. Além disso, em uma citação mais específica, a crítica à uniformidade típica do mercado

Page 10: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

75

de consumo fica expressa no mural onde se veem porcos, todos iguais, esperando por serem

alimentados. Literalmente, virando-se a esquina é o abate que os aguarda.

O consumismo é, ainda, explorado na publicidade do empreendimento imobiliário

Sunnydunes. Nesse, que é avaliado pelos executivos da companhia, manequins ocupam os

lugares de atores em um ambiente residencial artificialmente construído, que visa simular um

lar do futuro subúrbio a ser erguido no deserto. As personagens da família nuclear

representada, que esteticamente se assemelham aos traços das bonecas infantis Barbie,

aproveitam o alegado conforto da vida no Death Valley. A casa com piscina privativa, jardim

e cozinha repleta de eletrodomésticos é considerada motivo suficiente para as famílias

abandonarem os problemas típicos de cidade grande de Los Angeles e se estabelecerem no

Deserto de Mojave, localizado nas proximidades. Atrelado ao consumismo, os valores

tradicionais da família nuclear heterossexual, da posição do homem como chefe da casa e da

submissão da mulher compõem o quadro. Enquanto o homem caça leões da montanha, uma

referência aos ativistas negros do Partido dos Panteras Negras, e rega o jardim numa sutil

conotação sexual, a mulher trabalha na cozinha para alimentar marido e filho. Nesse

momento, o corte para a face da única executiva mulher que assiste ao comercial sublinha o

papel feminino ainda culturalmente prevalecente.

Para além das críticas, os outdoors adéquam-se como suportes para a veiculação de

informações e referências. Segundo Antonioni, ao pintar murais e se utilizar de outdoors ele

tem por objetivo realizar uma compressão, ou seja, transmitir mais dados em um menor

número de tomadas. Assim, em “Zabriskie Point”, muito da complexidade da linguagem

imagética, recheada de detalhes, encontra-se nessas estruturas publicitárias. Isso é percebido

nas tomadas onde os outdoors emitem mensagens diretamente para as personagens. Por

exemplo, quando Daria para no deserto com o intuito de verificar um mapa, um outdoor de

um banco apresenta uma possibilidade de vida tradicional, através da segurança financeira,

enquanto a placa de trânsito sobreposta ao anúncio imperativamente lhe ordena que pare.

Ainda mais expressivamente, dois anúncios parecem dialogar com Mark quando ele

tem a ideia de roubar o avião. Primeiramente, na tomada em que o protagonista observa a

aeronave que se aproxima para aterrissar, seu campo visual é cruzado por um outdoor no qual

existe apenas a imagem de quatro pessoas em close-up, que o olham diretamente. Logo em

seguida, em outro anúncio sobre Nova York, vê-se a cabeça da estátua da Liberdade com a

presença de três personagens, homem, mulher e criança, aparentando formarem uma família,

todos vestidos de vermelho. De dentro da cabeça da estátua, os três sorriem e observam Mark

Page 11: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

76

ao lado da mensagem “vamos escapar disso tudo.” Assim, enquanto o primeiro anúncio

demanda uma reflexão sobre o ato que o rapaz está pensando em cometer, o segundo o

incentiva a cometê-lo, aparentando representarem suas instâncias psíquicas, ego e id.

Fotogramas 3 e 4 – Os outdoors enviam mensagens diretamente a Mark quando tem a ideia de roubar um avião para fugir. Em ambas as tomadas os objetos publicitários ocupam o espaço central do take, tendo ora postes, ora Mark como obstáculo visual.

Significativo que quando Mark e Daria encontram-se frente a frente no deserto exista

no campo onde o avião foi aterrissado dois velhos outdoors vazios. O estado de degradação

Page 12: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

77

das estruturas denota que as mesmas não são utilizadas para seu fim original há muito tempo.

Essa ausência talvez demarque a passagem, no deserto, não para a falta de linguagem, porém

para a transposição a outra forma de linguagem, mais sutil, natural. Completa o sentido de

passagem o fato de os referidos outdoors aparecerem na tela enquadrados atrás do automóvel

de Daria, que simplesmente passa por eles sem sequer tomar conhecimento daqueles objetos.

Assim, os outdoors e sua relação com a publicidade, com o meio urbano, ficam “para trás”.

De qualquer modo, o velho homem que reside no casebre próximo de onde Mark aterrissou

aparenta ser um pintor de murais ou outdoors, ajudando os jovens a transformarem o avião

em um pássaro pré-histórico, nas palavras de Mark.

Fotograma 5 – Na cena em que Daria vai se encontrar diretamente com Mark pela primeira vez, veem-se dois outdoors vazios e envelhecidos no plano de fundo, em contraponto ao carro guiado pela jovem, em primeiro plano. A tomada é registrada em tom minimalista, com poucos elementos. Valoriza-se, desse modo, a aridez do ambiente.

Após aproximarem-se física e psicologicamente, no lugar denominado Zabriskie

Point, Mark e Daria retornam ao avião. Talvez em consequência à experiência que tiveram,

decidem transformar a aeronave em um outdoor, utilizando-a como um suporte para

divulgarem seus valores e impressões sobre a sociedade americana. O avião é assim dividido

entre os “artistas”, cabendo o lado esquerdo a Daria, o direito a Mark e a frente ao velho

pintor. Daria representa um fósforo em chamas junto da calda, seguido das palavras “no war”

e de uma bomba dentro da qual se seguem os pronomes “she, he, it”, tudo envolto em grama.

Mark constrói sua pintura tendo como imagem principal os órgãos reprodutores masculinos,

figurando dentro destes o cifrão e as palavras “suck bucks”. Lê-se “no words” e um discreto

agradecimento ao dono da aeronave em “thankx”, além de pés de maconha. Na frente, uma

cara negra animalesca lembra uma pantera extrovertida, com a língua à mostra. A

transmutação conclui-se no teto da aeronave, onde se ostenta um enorme par de seios

Page 13: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

78

seguidos do algarismo “1”. Exibindo características femininas e masculinas, o algarismo

traduz a unicidade do ser criado.

Desta forma, nesse pássaro pré-histórico ressurgido, o casal exprime os princípios da

juventude do período. Entretanto, quando é avistado nas proximidades do aeroporto, a

mensagem não é compreendida, sendo a linguagem classificada como despropositada. Na

cidade, o manifesto vindo do deserto perde o sentido. Finalmente, enquanto os policiais

aguardam no aeroporto pelo retorno de Mark, uma propaganda dos cigarros Marlboro mostra

um cavalo selvagem sendo domado.

Fotograma 6 – A aeronave, agora transmutada em um suporte que veicula as mensagens dos jovens, sendo preparada para a viagem de retorno de Mark.

A trama de “Zabriskie Point” desenrola-se em duas locações principais, a cidade de

Los Angeles e o Deserto de Mojave, distante daquela cidade apenas poucas horas. O título da

produção é emprestado da denominação de um acidente geográfico existente no norte desse

deserto, mais especificamente na região do Vale da Morte. A primeira impressão é de que se

opera, pelo uso dessas duas locações, e pela ruptura causada pela fuga de Mark pelo roubo do

avião, uma relação de oposição entre cidade e deserto. O primeiro terço da projeção

desenvolve-se na cidade, onde as personagens são apresentadas, a manifestação estudantil

ocorre e Mark decide fugir. A partir desse ponto, o espectador é levado ao deserto pelas asas

de Lilly 7, o avião tomado pelo protagonista. O segundo terço do filme pertence quase que

exclusivamente ao casal, sendo encerrado pelo retorno de Mark para Los Angeles,

ambicionando devolver Lilly 7, agora transformada em um pássaro pré-histórico. Com sua

morte frívola, inicia-se o terço final no qual Daria, desolada com o fim trágico do jovem que

conhecera breve, porém intensamente, chega a seu destino e, refletindo sobre suas escolhas,

decide partir, sem explicações ou despedidas. A cidade figura, deste modo, como o lugar do

Page 14: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

79

descaminho, da exploração e da morte, enquanto que o deserto, permitindo uma conjunção do

homem com a natureza, ainda que árida, possibilita a busca de uma verdade interior, de

autoconhecimento, da vida.

Essa dicotomia subverte a relação esperada. Usualmente, o deserto representa a perda

– pessoal, do caminho, da vida – sendo a cidade o lugar de segurança, a civilização. O Vale da

Morte, onde Zabriskie Point localiza-se, constitui-se como a região mais seca e quente da

América do Norte, oferecendo condições de vida bastante adversas. Suas características fazem

com que a área figure em inúmeras narrativas históricas, por vezes míticas, integrantes do

imaginário folclórico dos EUA. Entretanto, sob a ótica de Antonioni20, o deserto torna-se o

lugar onde a presença corruptora do homem ainda não se estabeleceu. Um espaço onde o nada

prevalece, porém não ameaçador, o deserto permite a conciliação com a natureza, já

impossível em Los Angeles, de forma que os jovens possam buscar seus caminhos

distanciando-se dos valores sociais estabelecidos os quais já não lhes oferecem esteio.

Sunnydunes representa, portanto, um perigoso prenúncio, a domesticação do deserto pelo

homem.

Sob outra perspectiva, a aridez física de Zabriskie Point pode refletir o vazio

existencial dos protagonistas, em busca de um caminho que parece lhes escapar. Assim, a

experiência vivida no Vale da Morte acaba sendo reveladora para Daria, que reavalia sua

vida, possibilitando um recomeço. Quanto a Mark, resoluto, mantém o plano de voltar à

cidade, onde encontra seu desfecho. Para ele, o deserto funciona como fuga momentânea,

apenas, uma vez que mesmo diante do convite de Daria para acompanhá-la, decide retornar à

Los Angeles.

20 O deserto está presente em outras realizações do diretor, como instância física ou psicológica, podendo-se citar “Deserto Rosso: o dilema de uma vida” (Red Desert, 1964) e “Profissão: repórter” (The Passenger, 1975).

Page 15: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

80

Fotograma 7 – O local denominado Zabriskie Point, no Deserto de Mojave.

Desde o início da projeção o caráter autodestrutivo de Mark é claramente

apresentado, afirmando aceitar morrer pelo movimento já em sua primeira fala. Ao volante de

sua velha caminhonete, atravessa o sinal vermelho em um cruzamento, quase causando uma

colisão com outros dois veículos. Em seu quarto nota-se uma bandeira dos Estados Unidos

toda em vermelho, como que ensanguentada. Não perde a oportunidade de gratuitamente

ofender policiais e, apesar de não ter sido detido em uma das manifestações, acaba

ocasionando a própria prisão por assumir uma postura desafiadora na delegacia. Por fim,

compra armas e vai armado à manifestação no campus, a qual ele já sabia estar fora de

controle com confrontos violentos entre estudantes e forças policiais. Sua oposição a qualquer

indício de autoridade fica evidente inclusive em pequenos gestos, como optar por estacionar

sua caminhonete diante de uma placa proibindo o estacionamento, ou no inexplicável ato de

quase alvejar um policial que pede os documentos a Daria. A determinação em devolver a

aeronave no mesmo lugar onde a roubou sela sua tendência, desta vez suicida. Antes da

decolagem afirmara a Daria que queria correr riscos. Se, no início, se recusa a lutar diante das

regras do movimento estudantil, acaba se tornando um efetivo ativista, assumindo os maiores

perigos.

Daria não demonstra nada da instabilidade presente nos atos de Mark. Logo na cena

em que é introduzida à história, a jovem é caracterizada como integrante da voga

contracultural, em suas roupas, hábitos e maneirismos. O fato de ter deixado o livro no terraço

do edifício, onde foi comer, preferindo ler ao invés de dividir a refeição com os demais

funcionários no refeitório, demonstra sua individualidade. Importante notar que a cena vem

logo em sequência ao comportamento de Mark na reunião ter sido tachado de “individualismo

burguês”, como se uma característica encerrasse necessariamente a outra. Sublinha-se, na

Page 16: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

81

moça, um individualismo nada burguês. Daria não é militante, sequer se preocupa com os

debates dos ativistas. Apesar de se afastar dos valores tradicionais presentes naquela

sociedade, não é politicamente radical. Prova isso sua provável aproximação amorosa com

Lee21, mandatário do empreendimento do qual se tornou secretária. Lee, por sua vez, não se

reduz às características unidimensionais de um capitalista, membro da classe economicamente

privilegiada e partidário de valores conservadores. A maneira como se encanta com as

qualidades da jovem, aproximando-se dela, relativiza a gravidade da personagem.

Apesar de reconhecer que suas necessidades não são atendidas dentro dos parâmetros

sociais vigentes, Daria não enseja realizar qualquer ato visando colaborar para a mudança da

realidade social existente. Ao invés disso, parte para o deserto em busca de engrandecimento

espiritual, apesar do pretexto de ir à Phoenix. O carro que dirige, um modelo velho e

emprestado, demonstra sua falta de apego material. No filme de Antonioni essa personagem

parece representar o sentimento de ansiedade presente na juventude do período que, porém,

não consegue identificar a origem de sua inquietação. É graças ao encontro inesperado com

Mark que ela alcança meios para vislumbrar seus possíveis caminhos pessoais. A morte do

rapaz, do qual sequer conheceu o nome, funciona como um ponto de inflexão para a jovem,

que já possuía a disposição íntima para a transformação. Expressivo, portanto, o fato de suas

últimas palavras na película serem as de despedida do inusitado piloto, uma vez que após a

fatídica notícia da morte de Mark, ouvida no rádio do carro, ela não interage verbalmente com

mais ninguém.

O filme conclui-se na grande explosão da mansão onde Lee se reúne com os

possíveis financistas de seu empreendimento imobiliário. O colapso do imóvel é imaginado

por Daria, como forma de extravasar tanto a dor pela morte de Mark quanto a decepção com

os parâmetros do dinheiro, poder e ganância, evidenciados a ela nos hábitos e negócios da alta

classe. A demolição, repetida incessantes vezes em ângulos de câmera variados, aos poucos se

desenvolve para a explosão de símbolos do consumo, com a destruição de cabides repletos de

roupas, dos objetos ao redor da piscina e de uma geladeira; da mídia, com a detonação de uma

TV na tela da qual se vê um apresentador de telejornal; e da educação, com a aniquilação de

estantes de livros.

21 Não existe citação direta desse fato no enredo, porém pode-se subentender que tal aproximação ocorre.

Page 17: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

82

Conforme os destroços da casa e dos objetos voam pelos ares em câmera super lenta,

a música “Come in Number 51, Your Time is Up”22, da banda de rock Pink Floyd, compõe a

banda sonora, sendo o som das explosões reproduzido apenas no início da cena. A música em

questão, desprovida de letra, inicia-se suavemente, com o compasso sendo gentilmente

marcado pelos pratos de condução da bateria para, após alguns minutos, expressar-se um forte

sentimento de desespero e agonia, com a ruidosa entrada das guitarras e pleno uso da bateria.

A música, portanto, explode da mesma forma que os objetos em cena, a qual consiste na

crítica final da película aos padrões sociais e culturais aos quais a juventude que se pretende

representar se opunha. Entretanto, restabelece-se a esperança no sorriso final da protagonista,

e no avermelhado pôr do sol, por sinal presente ao longo da projeção em alguns dos outdoors.

CONCLUSÃO

“Zabriskie Point” consiste em uma produção de um diretor italiano realizador de

obras dentro dos parâmetros característicos do cinema moderno, tendo sido rodado e

produzido nos Estados Unidos. Sua temática, voltada para a efervescência cultural do fim da

década de 1960, relaciona-o com o novo cinema em execução nos EUA.

A tipificação da juventude presente no filme prioriza o jovem em oposição aos

valores dominantes naquela sociedade. Assim, a parcela juvenil dos Estados Unidos de finais

da década de 1960 é definida pela inquietação; pela busca por maior grau de liberdade

política, e principalmente, cultural; pela defesa de princípios e valores divergentes daqueles

advogados pela geração de seus pais; pela aversão à autoridade; pelo anticonsumismo, em

suma, pela recusa em se integrar socialmente através dos parâmetros tradicionalmente

vigentes. O comportamento e, por vezes, a vestimenta, exteriorizam seu posicionamento

ideológico. Não há espaço, na película, para a juventude vinculada aos padrões dominantes.

Pelo contrário, é a objeção a esses padrões que funciona como o mote fundamental do enredo.

Desta forma, a exposição dos acontecimentos e dos movimentos políticos obedece às

especificidades da representação construída. A busca por direitos e liberdade é reduzida à

retórica de estudantes universitários que se julgam revolucionários, porém que não possuem

meios efetivos de alcançar seus objetivos, os quais não parecem evidentes. Quanto aos

22 GILMORE, David et all. Come in Number 51, Your Time is Up. Intérprete: Pink Floyd. In: Zabriskie Point

Soundtrack. ____: MGM, 1970. Lançada pela banda originalmente sob o título “Careful With That Axe,

Eugene”, no lado B do single de 1968, e adaptada para o filme de Antonioni.

Page 18: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

83

protagonistas, se Mark possui o ímpeto para a ação, não sabe como agir. Já Daria, precisa

amadurecer espiritualmente para consolidar seu distanciamento aos valores dominantes.

De linguagem cinematográfica elaborada, explorando com presteza as possibilidades

comunicativas oferecidas pelo cinema para transmitir sua mensagem, o filme, entretanto,

erige uma representação da juventude americana parcial e artificial. A opção por selecionar

um casal de jovens para figurar como representantes de toda a juventude do país

invariavelmente ocasiona essa parcialidade. Além disso, e apesar de veicular cenas

documentais de manifestações estudantis, a ambientação dos movimentos políticos

universitários desconsidera a pluralidade dos mesmos. Assim, a ausência de abordagens

diretas dos acontecimentos sublinha os limites da realização, mesmo sendo baseada em um

posicionamento mais progressista.

Portanto, “Zabriskie Point” possui o mérito de voltar-se a alguns dos principais

pontos em debate na sociedade dos Estados Unidos, no final dos anos 1960. Lançando luz

sobre o jovem, o filme colabora para a percepção dos anseios que nutriam a atmosfera de

contestação que caracterizava o momento. Todavia, as representações efetuadas não

possibilitaram uma abordagem profunda das forças concorrentes naquele contexto, talvez por

não ter sido possível ultrapassar limites impostos tanto pelo modo de produção vigente na

grande indústria do cinema, quanto pela heterogeneidade das demandas presentes naquela

sociedade.

REFERÊNCIAS

BAILEY, Beth ; FARBER, david. The Columbia guide to American in the 1960’s. New

York : Columbia University Press, 2001.

BALIO, Tino. (org.). The American Film Industry. Wisconsin: The University of Wisconsin

Press, 1976.

BARROS, José D’Assunção. “Cinema e história: entre expressões e representações”. In:

NÓVOA, Jorge; BARROS, José D’Assunção. Cinema-História – teoria e representações

sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

Page 19: Revista Movimento Estudantil Americano Tempo no cinema ...

Revista Tempo Amazônico

Revista Tempo Amazônico - ISSN 2357-7274| V. 3 | N.2 | jan-jun de 2016 | p.66-84.

84

COHEN, Lizabeth. A Consumers’ Republic – The Politics of Mass Consumption in Postwar

America. New York: Vintage, 2003.

DIGGINS, John Patrick. The Proud Decade: America in War and in Peace. New York: W.

W. Norton & Company, 1989.

DIVINE, Robert A. Et alii. América: Passado e Presente. Rio de Janeiro: Nórdica, 1992.

FARBER, David. Chicago ’68. Chicago: The University of Chicago Press, 1988.

_____. The Sixties: From Memory to History. North Carolina: University of North Carolina

Press, 1994.

GAIR, Christopher. The American Counterculture. Edinburgh: Edinburgh University Press,

2007.

GITLIN, Todd. The Sixties – Years of Hope, Days of Rage. New York: Bantam Book, 1987.

LAGNY, Michèle. “O Cinema como Fonte de História”. In: NOVOA, J.; FRESSATO, S.;

FEIGELSON, K. Cinematógrafo – Um olhar sobre a História. Salvador, São Paulo:

EDUFBA/Editora UNESP, 2009.

QUART, Leonard; AUSTER, Albert. American Film and Society Since 45. 4ª Ed. Santa

Barbara: Praeger, 2011.

_______. “Hollywood Dreaming: Postwar American Film”. In: HENDIN, Josephine G.

(Org.). A Concise Companion to Postwar American Literature and Culture. Oxford:

Blackwell, 2004.

ROSS, Steven J. Movies and American Society. Padstow: Blackwell Publishing, 2002.

SULKUNEN, Pekka. The Satured Society – Governing Risk and Lifestyles in Consumer

Culture. London: Sage Publications Ltd., 2009.

VANOYE, F; GOLIOT-LÉTÉ. A. Ensaio Sobre a Análise Fílmica. Trad. Marina

Appenzeller. Campinas, São Paulo: Papirus, 2012.

Recebido em: 01/11/2016

Aprovado em: 05/05/2017