RECURSO DE HABEAS CORPUS N.O 805 - RS. · êstes autos de Recurso de Habeas Corpus n.o 805, do...
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Conservo, pois, o mesmo critério da sentença para a fixação das penas.
Aplico-as no mínimo, sem aumento, porque a agravante e a atenuante se compensam - mas cumulativamente, nos têrmos do artigo 51 do C.P .. Delas, aliás, decorre, necessàriamente, a perda da função pública e a interdição de direito para exercê-la (C.P. artigos 67, I, 68, I e 69, I, a).
Conheço, pois, do recurso e lhe dou provimento em parte, para elevar a pena do réu a 4 anos de reclusão e multa de NCr$ 6,00,
condenando-o ainda à pena acessória de perda da função pública e interdição para seu exercício pelo prazo de 5 anos.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por unanimidade, deu-se provimento para elevar a pena de reclusão para 4 anos. Os Srs. Mins. Esdras Gueiros, Henoch Reis e Cunha Mello votaram com o Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Djalma da Cunha Mello.
RECURSO DE HABEAS CORPUS N.O 805 - RS.
Relator - O Ex.mo Sr. Min. Cunha Vasconcellos Recorrentes - Juízo da Comarca de Pôrto Alegre e Justiça
Pública Paciente - Alejandro Elian Nemes Recorrido - O mesmo
Acórdão
Configurando-se, ainda que em tese, o crime de descaminho, não é requisito essencial para legitimar a prisão em flagrante que o agente seja detido dentro da zona fiscal.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Recurso de Habeas Corpus n.o 805, do Estado do Rio Grande do Sul, em que são partes as acima indicadas:
Acorda o Tribunal Federal de Recursos, em Sessão Plena, por voto de desempate, em dar provimento ao recurso, tudo conforme consta das notas taquigráficas pre-
cedentes, que ficam fazendo parte integrante do presente. Custas de lei.
Brasília, 5 de março de 1963.Sampaio Costa, Presidente; Henrique d' Avi/a, Relator designado p/o Acórdão.
Relatório O Sr. Min. Cunha Vasconcellos:
- Trata-se de ordem de habeas
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corpus impetrado perante o Juízo de Direito da 6.a Vara Criminal de Pôrto Alegre em favor de Alejandro Elian Nemes, prêso na Penitenciária à disposição do Delegado da Divisão de Ordem Política e Social como incurso no crime do art. 334 do Código Penal (contrabando).
O Juiz concedeu a ordem e recorreu de ofício.
O Tribunal Federal de Recursos, em Sessão Plena, por acórdão unânime, não conheceu do recurso.
Da decisão, a União manifestou o Recurso Extraordinário de fls. 139 e seguintes,. e o Colendo Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, deu provimento ao recurso, na conformidade das notas taquigráficas de fls. 152 a 167 -para que êste Tribunal julgue o recurso de ofício como entender de direito.
É o relatório.
Voto (Vencido)
o Sr. Min. Cunha Vasconcellos: - Sr. Presidente, a sentença concessiva do habeas corpus é do seguinte teor: "impetram os Drs. Jaime Neumann e Jaques Nocchi ordem de habeas corpus em favor de Alejandro Elian Nemes, romeno, comerciante desta praça e aqui residente, devido estar, ao que alegam, prêso sem justa causa, à disposição da Delegacia de Ordem Política e Social, a pretexto de incurso no crime do art. 334 do Código Penal. E dizem que isso se verificou, depois de, com aparato e belicosidade, se ter vasculhado o estabelecimento do paciente, sito na Avenida Protásio Alves número 2.512, e de, abusivamente, apreendido tôda a mercadoria ali
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encontrada, a título de contrabando. Afirmam, também, e provam ser o mesmo negociante registrado na Junta Comercial, com comércio "por grosso e a varejo de confecções, artigos para senhoras e mais o que vier a convir, correlato ao seu ramo de negócio".
Invocam, mais, o disposto na Lei n.O 2.145, de 29-12-53, cujo art. 6.°, § 3.°, não considera crime de contrabando, a mercadoria sujeita à licença de importação, chegada ao País sem observância daquele requisito, acrescentando só se concretizar o delito, no ato do trânsito, dentro da zona fiscal (N ova Consolidação das Leis Alfandegárias, art. 632) com burla do fisco, de artigos vindos do exterior ou a êle endereçados.
Aduzem, ainda, incompetir à autoridade policial a interferência na matéria, máxime desacompanhada de fiscal ou agente aduaneiro e já se achando a mercadoria dentro da casa do comerciante. Não pode, assim, prevalecer o flagrante, eis que o indiciado não foi encontrado em nenhuma das situações previstas no art. 302 do C.P.P .. Foi o auto lavrado fora de oportunidade, tratando-se, conseqüentemente, de medida arbitrária, sujeitando-se o paciente a constrangimento ilegal, que se deve cessar.
Instrui a inicial o comprovante do registro feito na Junta Comercial, retro citado. Admite, a seguir, o depósito das chaves do estabelecimento comercial do suplicado.
Prestou, tempestivamente, informações a autoridade dita coatora, enviando ofício explicativo em tôrno à providência malsinada, e remetendo, junto, cópias do auto
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do flagrante e do têrmo de apreen.são. Verifica-se, do primeiro, haver o comissário Ari Prates da Rocha, "de ordem superior", procedido a sindicâncias no local de comércio do paciente, devido a "sérias suspeitas" ligadas à sua atividade, de que possuiria material contrabandeado naquele recinto. Após longas buscas, que demandaram horas, localizou-se uma parede falsa, no porão, espécie de porta secreta, e, aberta a mesma, depararam os agentes e testemunhas presentes com farta cópia de mercadorias de procedência estrangeira, como rádios portáteis, relógios, bôlsas, malas e roupas em confecção. Segundo o condutor, estaria, dêsse modo, caracterizado "o típico delito de contrabando" já porque o conduzido, "desde o comêço da visita, usara de manhas para obstaculizar os trabalhos visados, desejando apenas apresentar superficialmente sua casa comercial, ocultando aquêle esconderijo e mantendo os agentes em engano, figura esta que, por sua natureza, indica a existência de fraude". Tais fatos estão reborados pelo testemunho colhido no auto de flagrante, achando-se o produto da apreensão relacionado no auto que se segue.
Tudo bem examinado. No concernente à pre1iminar,
tenho que não só à autoridade aduaneira incumbe prevenir e coatar a ação dos contrabandistas, eis que se trata de ato lesivo à Administração e prejudicial ao País. De conseguinte, prescinde a investigação da responsabilidade do autor de contrabando ou de descaminho, de processo administrativo, desde que os elementos apurados, inclusive pela polícia, possibilitem
aquela verificação, em processo contraditório judicial.
Irrelevante se apresenta, por outro lado, o apêlo in casu, ao disposto no art. 6.°, § 3.°, da Lei 2.145, aludida, dado que se reporta ela, evidentemente, à mercadoria surpreendida ainda na zona portuária.
Data venia da orientação jurisprudencial de não constituir, nem ao menos em tese, crime de contrabando ou de descaminho, quando feita a apreensão fora da zona fiscal, entendo poder, também, o delito se verificar, se efetuada a diligência fora das barreiras alfandegárias.
Neste caso, porém, parEI que possa ter lugar o flagrante, será mister a inequivocidade do ato incriminado, não bastando a mera suspeita do exator ou da polícia, ou simples indícios da autoria. Sem a fundada certeza da infração, caberá, apenas, a abertura de inquérito, mesmo pela polícia com a assistência da autoridade fiscal, ou aduaneira
A hipótese figurada retrata um possível crime de descaminho. Os elementos em que se esteiou a polícia, para flagrar o paciente, não são, contudo, de molde a autorizar a sentença da prisão, pôsto se basearam exclusivamente em presunções. Certo que o prêso deu margem a suspeitas, pelo modo com que se houve e pela dubiedade de suas respostas (disse até que "achava" que as mercadorias tinham origem legal), mas, daí, a considerá-lo como contrabandista, para justificar sua detenção, é lançar longe demais a barra. Em tais têrmos, considerando estar êle sofrendo, de fato, constrangimento ilegal, de vez que não há justa
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causa para a sua prisão, concedo a ordem impetrada, com assento nos arts. 647 e 648, l, do C.P.C., determinando a imediata soltura de Alejandro Elian Nemes, o qual responderá em liberdade o processo que o M.P. lhe irá instaurar. Junte-se cópia desta ao inquérito já recebido. Expeça-se o competente mandado de excarceramento.
Na conformidade do art. 574, do C.P.C., recorro de ofício da presente para o Egrégio Tribunal Federal de Recursos."
O caso, como se vê, é idêntico a um outro que foi decidido neste Tribunal e com grande repercussão nesta cidade, o do gerente do Hotel Brasília, em cujo estabelecimento foram encontradas várias garrafas de uísque sem a devida nota de procedência.
A simples posse de objeto vindo de fora sem comprovação da entrada legal não constitui, nem autoriza, a presunção de crime de contrabando por quem o possui. O que se pune é o descaminho, mas para isso é preciso que seja apurada a responsabilidade individual, é preciso que se prove quem fêz passar a coisa pelas barreiras alfandegárias enganando o fisco. E como nada disso foi apurado acho que o Dl'. Juiz concedeu muito bem a ordem e confirmo a sua sentença.
Voto
o Sr. Min. Henrique d'Avila: - Data venia, dou provimento ao recurso para cassar a ordem.
Para mim ficou perfeitamente caracterizado em tese o delito de descaminho. A mercadoria de procedência estrangeira foi encontrada e apreendida em poder de um
comerciante, sem a documentação comprobatória de sua entradareguIar no País. Havia, portanto, justa causa para o procedimento criminal.
Voto
o Sr. Min. Djalma da Cunha Mello: - Também dou provimento. A apreensão de mercadoria estrangeira revestiu-se de legalidade. Sua quantidade indicava destinação comercial e o suposto importador, ou adquirente, não lhe soube explicar e documentar a entrada regular no País.
O Sr. M in. Cunha Vasconcellos: - Prova para se fixar a hipótese como contrabando fiscal e não o penal.
O Sr. Min. Djalma da Cunha Mello: - Meu voto é dando provimento, data venia.
Voto
O Sr. Min. Godoy Ilha: -Também, data venia do Relator, acompanho o voto do Min. Djalma da Cunha Mello. Além dos argumentos já acentuados, S1'. Presidente, há a circunstância de que essa mercadoria se encontrava na posse do paciente, o que induz a convicção de que êle próprio não ignorava a procedência ilegítima da mesma. Assim, dou provimento para cassar a ordem.
Voto
O Sr. Min. Oscar Saraiva: -Acompanho o voto do Min. Henrique d'Ávila. O paciente afirma não haver justa causa para a pri-
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são e estar-se-ia assim prejulgando o próprio procedimento criminal.
Voto
o Sr. Min. Amarílio Benjamin: - Data venia, dou provimento para ~a~sar o habeas corpus. Tenho justificaçã..l conhecida no sentido de que a prisão em flagrante pode se dar em caso de contrabando, haja vista no caso a que se referiu o Min. Relator, do gerente do Brasília Palace, no qual fiquei vencido.
Voto (Vencido)
o Sr. Min Aguiar Dias: - Sr. Presidente, o impetrante pede o habeas corpus com fundamento em falta de justa causa, e os fatos se terão passado da seguinte maneira: houve uma apreensão de mercadoria estrangeira em seu estabelecimento comercial, sem que o paciente pudesse apresentar os comprovantes da entrada do produto no país. Não dou o habeas corpus com fundamento em ausência de justa causa, porque a causa invocada para sua prisão é legítima - seria a infração de dispositivo que define como descaminho a entrada no País de mercadoria sem o pagamento dos respectivos direitos - mas, dou por outro fundamento. É que, sem me situar, quer no extremo do Relator, quer no extremo dos demais votos, entendo que é perfeitamente possível enquadrar no crime de descaminho ou de contrabando quem tenha mercadoria estrangeira em seu poder sem os devidos comprovantes. Todavia, êste não é caso de flagrante e aí é que está
a diferença; êle foi prêso como se fôsse em flagrante, se êle fôsse surpreendido no ato de transpor a linha aduaneira sem o pagamento do impôsto, aí sim, é que haveria o flagrante do descaminho. Éle poderia ser surpreendido depois, com a mercadoria resultante do descaminho, mas isso deve ser objeto de inquérito e não de prisão em flagrante. De modo que, no caso, sua prisão não reveste as formalidades legais; faltam ao flagrante os requisitos que compõem uma prisão em flagrante, isto é, a prisão no trânsito pela Alfândega sem o pagamento dos direitos. É possível que êle venha a ser condenado por contrabando, admito, mas em inquérito regular.
Concedo o habeas corpus, ressalvada a instalação de inquérito para apuração do crime de contrabando.
Voto (Vencido-reconsideração)
o Sr. Min. Oscar Saraiva: -Desejo reconsiderar-me, Sr. Presidente. Posta a questão nos têrmos em que o fêz o Sr. Min. Aguiar Dias, também como Sua Excelência assim entendo. Aliás, teria êsse sido o meu entendimento anterior se me fôsse dado ouvir a opinião tão bem exposta pelo Min. Aguiar Dias. ..f\.companho S. Ex.a porque, na realidade, entendo que não se poderia conceder habeas corpus pela razão invocada da justa causa. Haveria uma justa causa para o processo, mas as circunstâncias não justificam o flagrante. Éste se materializa com o fato de ser colhido o acusado no ato do transporte, da introdução da mercadoria, e não apenas pelo fato de sua posse.
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Voto (Desempate)
o Sr. M in. Sampaio Costa (Presidente): - Há empate na votação e passo a dar o meu voto de desempate. Tenho para mim que deve ser dado provimento ao recurso. Duas correntes se formaram no sentido oposto: uma, que concede o habeas corpus, sob o fundamento do flagrante não estar caracterizado e outra, pelo fundamento de estar caracterizado o crime. Mas, os que negam a caracterização perfeita do flagrante reconhecem a possibilidade e a existência do descaminho.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por voto de desempate deram provimento ao recurso os Srs. Mins. Djalma da Cunha Mello, Godoy Ilha, Amarílio Benjamin e Presidente, desempatando, votaram com o Sr. Min. Henrique d'Ãvila; e os Srs. Mins. Cândido Lôbo, Oscar Saraiva, depois de haver reconsiderado seu voto, e Aguiar Dias acompanharam o Sr. Min. Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Sampaio Costa.
HABEAS CORPUS N,O 1.357 - DF.
Relator - O Ex.mo Sr. Min. Hugo Auler (Henrique d'Ãvila) Paciente - Aristides Bertuol Impetrantes - João Pedro da Conceição e outros
Acórdão
Processo de falsificação ou alteração de documento. Não prescinde da apresentação, da exibição, do documento inidôneo, de perícia no atinente.
Vistos, relatados e discuti.dos êstes autos de Habeas Corpus, n.O 1.357, do Distrito Federal, em que são partes as acima indicadas:
Acorda o Tribunal Federal de Recursos, em Sessão Plena, por maioria de votos, em conceder a ordem, na forma do relatório e notas taquigráficas de fls. retro, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Custas de lei.
Brasília, 2 de agôsto de 1965. - Godoy Ilha, Presidente; Djalma da Cunha Mello, Relator designado.
Relatório
o Sr. Min. Hugo Auler: - Sr. Presidente. Trata-se na espécie, de uma ordem de habeas corpus impetrada contra o ato do Meritíssimo Doutor Juiz de Direito da
Comarca de Bento Gonçalves, no Estado do Rio Grande do Sul, através do qual a citada autoridade judiciária houve por bem receber a denúncia oferecida pelo Ministério Público contra Aristides Bertuol, que teria incorrido na prática do crime previsto no artigo 301 do Código Penal. Conforme se infere da leitura da petição inicial e das peças que a instruíram liminarmente, o paciente, quando no exercício do cargo de Prefeito da Cidade de Bento Gonçalves, naquele Estado, teria fornecido um atestado de que a "Sociedade Beneficente Maria Tereza Goulart" era mantenedora do "Hospital-Maternidade Professôra Vânia Medeiros Mincarone", com sede à rua dos Andradas, n.O 1.727, em Pôr to Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul, e de que as obras do referido nosocômio se encontravam em plena execução. Todavia, segundo ficou averiguado em inquérito polícial-militar, a "Sociedade Beneficente Maria Tereza Goulart" não era, nem nunca fôra mantenedora do "Hospital-Maternidade Professôra Vânia Medeiros Mincarone", cujas obras não foram iniciadas até a presente data, mesmo porque nem sequer ainda havia sido adquirido o terreno para a respectiva construção. Todavia, em sua petição inicial, o paciente alega que jamais fornecera atestado para aquêle fim, procurando provar a sua alegação com uma certidão negativa extraída do Arquivo dos Atestados e Certidões da Prefeitura de Bento Gonçalves, no período compreendido entre 1.0 de janeiro de 1960 e 31 de dezembro de 1963; e porque também não consta dos autos do inquérito policial-militar
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o malsinado documento ideolàgicamente falso, o que constituiria o corpo de delito de que trata o art. 158 de Código de Processo Penal, não haveria justa causa para que fôsse denunciado como incurso no art. 301 do Código Penal.
Prestando informações, o Meretíssimo Doutor Juiz de Direito da Comarca de Bento Gonçalves afirmou que, em verdade, o paciente havia sido pelo órgão do Ministério Público denunciado como incurso no art. 301 do Código Penal em face do fato ilícito relatado na petição inicial, tendo o libelo sido recebido a 15 de abril de 1963. E adiantou que, realmente, não constava dos autos o atestado falso, mas que a prova testemunhal afirmava ter Aristides Bertuol, quando Prefeito da Cidade de Bento Gonçalves, fornecido atestado de que existia o referido hospital, em virtude do qual havia o representante dessa inexistente instituição recebido, através do Ministério da Saúde, subvenções no valor de NCr$ 20.000,00 e de ......... . NCr$ 35.000,00, pagos pelo Banco do Brasil por ordem daquela Secretaria de Estado.
É o relatório.
Voto (Vencido)
o Sr. Min. Hugo Auler: - Sr. Presidente. O presente writ of habeas corpus revela apenas um dos ângulos de uma série de ilícitos penais que deram causa à instauração de inquérito policial-militar, no Estado do Rio Grande do Sul, logo após a Revolução de 31 de março de 1964, destinado a apurar o desvio irregular de dinheiros
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públicos em benefício de socieda. des que, em verdade, não existiam a não ser, aparentemente, por fôrça de documentos, ideologicamente falsos, de existência e de funcionamento, e que se processava através do sistema de concessão de subvencões do Govêrno Federal. É q'ue, na espécie, apenas um dos denunciados pelo Ministério Público, dentre outros mais que também estão respondendo à mesma ação penal, o antigo Prefeito da Cidade de Bento Gonçalves, no Estado do Rio Grande do Sul, denunciado como incurso no art. 302 do Códig Penal, impetrou o presente habeas corpus para que seja excluído da denúncia sob o fundamento de não existir nos autos o corpo de delito do crime de fornecimento de atestado ideologicamente falso, que lhe é imputado, como seja êsse documento e com o qual o representante do "Hospital-Maternidade Professôra Vânia Medeiros Mincarone", entidade inexistente, teria recebido aquelas subvenções em processos que tramitaram no Ministério da Saúde, alegando que não se há de ter por provado o crime em comento se atendida não foi a norma contida no art. 158 do Código de Processo Penal.
Ora, como seja de sabença trivial, o art. 301 do Código Penal incrimina o falso ideológico ou intelectual que desnatura a substância do ato sem que ocorra qualquer contrafação ou alteração. Essa espécie de falsum importa na formação de um ato autêntico e, portanto, que não sofreu falsificação material, mas que, substancialmente, não representa a verdade constante de sua apar mte apresentação. Daí a distinção do
crime de que trata o § 1.0 do artigo 301 do Código Penal porque, neste ilícito, há uma contrafaçãq uma alteração da substância do ato, praticado por terceiro em atestado ou certidão que, em sua origem, se revestia de perfeição. Na hipótese do art. 301 do Código Penal, o sujeito ativo do crime é quem fornece o atestado ou a certidão; na hipótese do § 1.0 da mesma norma legal, é terceiro que, na posse do atestado ou da certidão, falsifica-os, total ou parcialmente, ou altera o seu teor.
Dessarte, logo se está a ver que na hipótese do § 1.0 do art. 301, do Código Penal, o crime deixa vestígio e porque se trate de falsidade documental é indispensável o exame grafotécnico destinado a apurar a falsificação; já, ao contrário, na hipótese do art. 301 caput da citada legislação, pôsto que o crime também deixa vestígio, não se impõe o exame do corpo de delito que poderá ser suprido pela prova testemunhal, a menos que a defesa alegue tratar-se de falsidade documental.
Não resta a menor dúvida que se a infração deixar vestígios será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado, segundo o art. 158 do CÓ· digo de Processo Penal. Todavia, o legislador pátrio, prevendo a possibilidade de o crime não deixar vestígios, ou do desaparecimento dêles por não serem permanentes ou porque hajam sido ocultados os desfeitos, houve por bem suprir a falta do corpo de delito pela prova testemunhal da infração penal, consoante o disposto no art. 167 do citado diploma legal. Como já dizia João Monteiro, no
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antigo direito pátrio, se é certo que se deve envidar todos os esforços para descobrir os vestígios sôbre a pessoa ou coisa em que incidiu a ação criminosa, não se pode admitir que a ausência de tais vestígios venha implicar no desconhecimen· to de culpabilidade do agente se se pode demonstrar a prática do crime e quem seja o seu autor através de prova testemunhal.
E foi justamente por essa razão que, ao tratar das nulidades, o legislador afirmou que ocorreria nulidade à falta do corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, ressalvado o disposto no art. 167 do Código de Processo Penal, como se verifica do art. 564, In, alínea b, do mesmo diploma legal.
In casu, a denúncia não foi instruída com o documento, através do qual o paciente teria atestado falsamente a existência do "Hos. pital-Maternidade Professôra Vâ· nia Medeiros Mincarone", e com o qual esta inexistente instituição logrou obter subvenções do Govêrno Federal. Mas a falta de prova material em prática de crime previsto no art. 301 do Código Penal, que teria sido praticado pelo Prefeito de Bento Gonçalves, no Estado do Rio Grande do Sul, está suprida pela prova testemunhal constante dos autos da competente ação penal.
Dir-se-á que a certidão de fls. 4 da Prefeitura Municipal de Bento Gonçalves, estaria a provar a inexistência do atestado por isso que não figura o respectivo fornecimento do registro do arquivo de atestado e certidões. Mas não se pode, por outro lado, afirmar que a falta de registro de tal documento ideologicamente falso
possa constituir uma prova de sua inexistência, por isso que poderia ter o paciente fornecido graciosamente o atestado sem fazê-lo passar pelo arquivo de atestados e certidões da Prefeitura Municipal daquela Cidade do Estado do Rio Grande do Sul.
Ademais, cabe ponderar que o atestado em comento deverá estar constando dos processos de subvenção existente no Ministério da Saúde. E nessas condições, para que o paciente pudesse, desde logo, ser excluído da denúncia, necessário seria que trouxesse para o ventre dêste writ of habe'as corpus uma certidão daquela Secretaria de Estado, provando que teria independido de qualquer atestado fornecido pelo paciente a concessão de tais subvenções a uma inexistente instituição hospitalar. Mas, desgraçadamente, esta prova não foi carreada para os presentes autos, sendo de salientar que o ilustre advogado acabou de afirmar da tribuna que lhe foi impossível obter tal prova, tanto no Ministério da Saúde, como na Comissão de Inquérito Policial-Militar.
Não vejo, pois, razão para que se exclua liminarmente o paciente da ação penal, tanto mais quanto a prova material do fornecimento do atestado ideologicamente falso, a corroborar a prova testemunhal, poderá surgir no contraditório judicial que se envolve na própria instrução criminal, e que, por sua natureza, constitui matéria de alta indagação que escapa ao âmbito do habeas corpus.
Por todos êsses fundamentos hei por bem denegar como denego o presente writ of habeas corpus.
Voto
o Sr. M in. Oscar Saraiva: -Sr. Presidente, como bem salientou o Sr. Min. Djalma da Cunha Mello, fala-se num documento e antes que o mesmo apareça, já se afirma que é falso. Assim, não é possível que a Justiça Pública venha a Juízo sem apresentar tal documento, ou então sem fazer uma prova prévia da sua existência. Fora disso, a peça fundamental do processo criminal, que é o interrogatório, estaria frustrada e obstada, porque o réu, quando é indagado sôbre o crime, não poderá responder porque o fato que constituira o crime não está ao alcance de seu exame. O advogado ressalvou, com tôda cautela, que o habeas corpus é dado nas condições e nos têrmos em que está o processo, sem prejuízo de que o Ministério Público volte com a necessana prova. Aceitar, porém, um processo por falsidade, sem a existência de recibo, dado por falso, será abrir precedente tão perigoso quanto atentatório à ordem jurídica, o que importaria em inverter o princípio constitucional, democrático e universal, de que todo cidadão se presume inocente, até prova de seu crime. Nós inverteríamos tal presunção e proclamaríamos o contrário.
Por tais razões, estou de acôrdo com o Sr. Min. Djalma da Cunha Mello.
Voto
o Sr. Min. Amarílio Benjamin: - Concedo a ordem. Entendo que no presente caso o atestado argüido de falso deveria ser apresentado com a denúncia, salvo se
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o Ministério Público, ao apresentar a peça fundamental do processo, fizesse menção a extravio e protestasse pela aplicação do artigo 168 do Código de Processo, no sentido de assegurar o corpo de delito indireto ou a reconstituição do documento. Ressalvo, igualmente, a instauração da ação penal regular com apresentação do documento, se o mesmo fôr encontrado.
Voto
o Sr. Min. Armando Rollemberg: - Também concedo a ordem. Acentuo que o atestado, mesmo não estando por cópia no arquivo da Prefeitura de Bento Gonçalves, deveria estar, pelo seu original, no processo que transitou pelo Ministério da Saúde e assim, teria sido possível obtê-lo para instruir a ação.
Voto (Vencido)
o Sr. Min. Antônio Neder: O paciente é acusado de haver cometido o crime definido no artigo 301 do C.P., isto é, o crime de atestar ou certificar falsamente, em razão de função pública, fato ou circunstância que habilite al;guém a obter cargo público, isenção de ônus ou de serviço de caráter público, Ou qualquer outra vantagem.
O fato imputado ao paciente na denúncia é êste: "Aristides Bertuol, quando no exercício do cargo de Prefeito desta cidade, "atestou" que a Sociedade Beneficente Maria Tereza Goulart era mantenedora do Hospital-Maternidade Profa Vânia Medeiros Mincarone, com sede em Pôrto Alegre, à rua
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dos Andradas, n.o 1.727, e que as obras do referido hospital encontravam-se em pleno funcionamento. Acontece que a Sociedade Beneficente Maria Tereza Goulart não é e nem foi mantenedora do Hospital-Maternidade prof.a Vânia Medeiros Mincarone, cujas obras não foram, até esta data, iniciadas, e nem sequer o terreno foi adquirido. O requerimento, os documentos, bem como o "atestado", acima referidos, feitos por solicitação e orientação de Paulo Mincarone, são todos falsos quanto a seu conteúdo, mas possibilitaram à Sociedade Beneficente Prof.a Vânia Medeiros Mincarone, fundada em 10-12-1963, já em 24 do mesmo mês e ano, a receber, do Ministério da Saúde, através do Banco do Brasil S. A. um auxílio no valor de NCr$ 20.000,00, e mais tarde, em 4 de fevereiro de 1964, mais NCr$ 35.000,00, do mesmo Ministério, através do Banco do Brasil, Agência de Pôrto Alegre". (sic)
Alega o paciente que não assinou o atestado a que se refere a denúncia, e que no processo não se juntou êsse atestado, nem meSmo por cópia ou certidão, o que prova a sua inexistência.
Alega, outrossim, que, faltando no processo o atestado, falta-lhe o exame de corpo de delito, indispensável nas infrações que deixam vestígios, não podendo supri-lo a confissao do acusado, como expressa o art. 158 do C.P.P., donde ser nulo o processo, nos têrmos do art. 564, IH, b, do mesmo Código.
Vê-se do exposto que a controvérsia suscitada agora decorre de no processo não se haver feito a juntada do atestado que é tido por ideologicamente falso.
Essa omissão será suficientemente idônea para se conceder o habeas corpus?
Entendo que não. Do trecho da denúncia acima
transcrito se vê que o atestado serviu para se obter, no Ministério da Saúde, auxílio em dinheiro, na importância de ........... . NCr$ 50.000,00, para sociedades beneficentes.
É evidente, pois, que êsse atestado deve encontrar-se no Ministério da Saúde, no processo administrativo em que se tratou da concessão do auxílio.
Se não se encontra êsse documento no processo criminal a que responde o paciente, é porque as autoridades que o instauraram não foram diligentes no sentido de obtê-lo.
Disso, contudo, não se pode concluir que êle não exista, nem, tampouco, que êle não possa, amanhã ou depois, ir para êsse processo.
Note-se que, aO ensejo da instrução criminal, o juiz processante poderá determinar a sua juntada nos autos da ação penal, por cópia ou certidão.
Doutro lado, o crime do art. 301 do C.P. constitui modalidade do da falsidade ideológica, donde a certeza de que, nesse crime, o documento é genuíno ou imaterialmente verdadeiro, mas o seu conteúdo intelectual é que não exprime a verdade, donde a conclusão de que êsse conteúdo não pode ser objeto de verificação direta ou pericial, senão mediante prova ou elementos de convicção coligíveis "aliunde", como ensina Hungria.
Se no processo da ação penal o juiz encontrar elementos de convicção sôbre a falsidade ideológica
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contida no atestado, e, doutro lado, se êle obtiver cópia ou certidão do atestado no Ministério da Saúde, por certo terá êle os elementos estruturais do fato punível, habilitando-se a julgar o caso como lhe parecer justo.
Vê-se que a controvérsia não pode assentar-se na ausência de exame de corpo de delito, como alegou o nobre advogado impepetrante na petição inicial e repetiu na Tribuna.
É que não há como cogitar de exame de corpo de delito na falsidade ideológica.
Há que se cogitar, isto sim, do corpo de delito, que no caso, é o atestado expedido pelo paciente, atestado que por certo se encontra no Ministério da Saúde.
O conteúdo dêsse documento, se falso se ver as, o juiz poderá verificar por qualquer meio de prova, por quaisquer elementos de convicção.
Concluo, pois, que o Tribunal Federal de Recursos, ao aceitar a tese do advogado impetrante, está apreciando, em processo de habeas corpus, matéria de prova ainda não constituída, ainda não p)"oduzida, ou, mais precisamente, está admitindo que, em processo de habeas corpus, se constitua prova para o efeito de julgar do merecimento da acusação, o que é sabidamente inadmissível.
Nego a ordem, Sr. Presidente.
Voto
O Sr. Min. Márcio Ribeiro: Se fôsse verdadeira a classificação do crime, pretendida pelo Ministro Antônio Neder, seria o caso, então, de se anular a denúncia.
O Sr. Min. Antônio Neder: Mas o juiz pode retificá-la.
O Sr. Min. Márcio Ribeiro: Mas se um dos motivos do habeas corpus é a inépcia da denúncia, a necessidade de nova classificação é mais um argumento no sentido da nulidade do processo. Se a denúncia fôsse retificada, afinal, estaria prejudicada a defesa do réu.
Meu voto é o seguinte: nós só podemos cogitar do crime realmente denunciado. Se o crime é o do art. 301, é evidente que não se poderia presumir a certeza do crime sem a prova material. Pode-se substituir esta prova por testemunhos, nesse sentido o Código de Processo é claro, mas essa prova deveria ter sido completada antes da denúncia, como base para ela, que já pressupõe a existência do crime.
Até agora o descrito na denúncia não constitui crime.
O Sr. Min. Antônio Neder: -N a verdade o que está na denúncia não constitui o crime capitulado, mas constitui outro crime.
O Sr. Min. Márcio Ribeiro: -Foi o ponto de vista de V. Ex.a
noutro caso relatado hoje. Entretanto, como disse, a faculdade deixada ao juiz de impor nova classificação jurídica do fato não tolhe a apreciação da nulidade argüida desde logo.
O Sr. M in. Antônio N eder: O juiz, na sentença, não pode desclassificar o crime da denúncia?
O Sr. Min. Márcio Ribeiro: -Pode, no final do processo, restituindo o direito de defesa. Mas se a nulidade se constitui num dos fundamentos do habeas corpus, deve, a meu ver, ser apreciada desde logo, pois, do contrário, estariam os julgadores conscientemente sacrificando o direito de defesa do réu.
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o Sr. Min. Antônio Neder: -Se o juiz na instrução criminal provasse que o argumento era falso, mas desaparecido?
O Sr. Min. Márcio Ribeiro: -Penso que a denúncia no caso, deveria ou ser firmada no próprio documento acoimado de falso ou então em prova pré-constituída de que existiu. Nenhuma prova foi feita. A denúncia portanto não deveria ter sido recebida.
Concedo a ordem, para anular o processo desde a peça inicial, com relação ao paciente.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por maioria de votos, concedeu-se a ordem, vencidos os Srs. Mins. Relator e Antônio Neder. Os Srs. Mins. Oscar Saraiva, Amarílio Benjamin, Armando Rollemberg e Márcio Ribeiro votaram com o Sr. Min. Djalma da Cunha Mello. Não compareceu, por se encontrar licenciado, o Sr. Min. Cunha Vasconcellos. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Godoy Ilha.
HABEAS CORPUS N.O 1.369 - PRo
Relator - O Ex.mo Sr. Min. Oscar Saraiva Paciente - Moussa Nade Impetrantes - Nélson F. Lins d'Albuquerque e Wilson de
França
Acórdão
Habeas corpus que se concede por falta de justa causa para o processo criminal, eis que não configurada a prática de estelionato, pela inocorrência de prejuízo alheio que caracterizaria o ilícito penal.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Habeas Corpus número 1.369, do Estado do Paraná, em que são partes as acima indicadas:
Acorda o Tribunal Federal de Recursos, em Sessão Plena, por voto de desempate, em conceder a ordem, na forma das notas taquigráficas precedentes, que ficam integrando o presente julgado. Custas de lei.
Brasília, 9 de agôsto de 1965. - Godoy Ilha, Presidente; Oscar Sat"aiva, Relator.
Relatório
O Sr. Min. Oscar Saraiva: O Dr. Promotor Público denunciou ao Dr. Juiz da 3.a Vara Criminal de Curitiba, Estado do Paraná, vários acusados, entre êles o paciente, em favor do qual é impe-
trada esta ordem de habeas corpus, como incurso no art. 171, combinado com o art. 25 do Código Penal, e aplicando-se aos denunciados Moussa Nacle (que é o paciente) e Elias Nacle, ora Deputado Federal, o disposto no art. 51, § 2.°, do Código referido.
E os fatos delituosos teriam consistido na prática de manobras destinadas a proporcionar aos denunciados a obtenção de financiamentos pelo I.A.A., e teriam ensejado seu locupletamento em prejuízo dessa autarquia federal.
A impetração foi dirigida ao Conselho Superior da Magistratura do Estado do Paraná.
A fls. 20, prestou informações o Dr. Juiz, juntando, a estas, cópia do despacho de recebimento da denúncia, cujo teor consta dos autos a fls. 7/9.
Por Acórdão a fls. 29 o Egrégio Conselho a que fôra a ordem dirigida deu-se por incompetente e declarou a competência originária dêste Tribunal Federal de Recursos.
Presentes os autos a êste Tribunal, êste é o relatório.
Voto
o Sr. Min. Oscar Saraiva: -O crime de estelionato se acha caracterizado no art. 171 do Código Penal. Ora, entre os atos que integram o ilícito penal, está o prejuízo alheio, e no caso, estaria o prejuízo da autarquia. Não obstente, na hipótese êsse prejuízo não ocorreu; os empréstimos que originaram a denúncia, e que teriam sido o resultado de manobras fraudulentas, foram liquidados antes da denúncia, que é datada de 29 de dezembro de 1964. Assim é que
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em relação a Moussa Nacle, o paciente, consta de fls. 10 cópia autêntica do seguinte ofício do I.A.A.: (lê).
E consta ainda, a fls. 12, o recibo, datado de 5 de outubro de 1964, nos têrmos seguintes: (lê).
Face a êsses fatos, anteriores à denúncia, esta já não mais poderia ter sido oferecida, e os atos que originaram os empréstimos liquidados sem qualquer p~ejuízo para o I.A.A., poderiam assumir as características de ilícitos administrativos, sujeitando os respectivos autores às sanções próprias a essa esfera, mas perderam seu aspecto penal, por dêles não haver resultado, para o Instituto, o prejuízo patrimonial que seria exigível para originá-lo.
Pelo exposto, defiro o pedido e concedo a ordem.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Depois dos votos dos Srs. Mins. Relator e Armando Rollemberg, concedendo a ordem, pediu vista o Sr. Min. Antônio Neder, aguardando os Srs. Mins. Márcio Ribeiro, Hugo Auler e Djalma da Cunha Mello. Não compareceram os Srs. Mins. Cunha Vasconcellos, por achar-se em férias e Amarílio Benjamin, por encontrar-se licenciado. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Godoy Ilha.
Voto
O Sr. Min. Antônio Neder: -Verifico dêstes autos que o paciente de nome Moussa Nade, que é comerciante em Curitiba, e um seu irmão, que é hoje o Deputado Federal Elias Nacle, ter-se-iam
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conluiado com Waldemar Colombini, Delegado-Regional do Instituto do Açúcar e do Álcool no Paraná, e Mário Lôbo de Medeiros, fiscal agroindustrial dessa autarquia no mesmo Estado, para que ao primeiro dêles fôsse concedido empréstimo de dinheiro pelo mencionado Instituto, representado na pessoa do acusado Waldemar Colombini (seu Delegado-Regional), para, dêsse modo, custear os trabalhos rurais da lavoura de cana-de-açúcar da propriedade do paciente, situada no Município de Morretes, daquele Estado. Dêste conluio, qual se informa neste processo, o paciente, que não é agricultor, ou, mais precisamente, que não é plantador de cana, obteve o empréstimo como se tal fôsse, causando, assim, prejuízo à autarquia, tanto porque esta só faz empréstimo dessa espécie a quem seja plantador de cana, quanto porque o paciente não cumpriu as obrigações do contrato de abertura do crédito que firmou com o Instituto do Açúcar e do Álcool.
Nos autos se informa, ainda, que o sucesso dêsse negócio teria advindo de influência que exercera, sôbre Waldemar Colombini e Mário Lôbo de Medeiros, um irmão do paciente, Elias Naele (hoje Deputado Federal), que exerceu, de maio de 1956 a dezembro de 1958 (o contrato é de maio de 1958) as funções de Delegado do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio na Comissão Executiva do Instituto do Açúcar e do Álcool.
Nas fls. 14 e 15 encontra-se cópia fotográfica do contrato de abertura de crédito firmado pelo Instituto, na pessoa de Colombini, o paciente Moussa N aele, o re-
presentante da sociedade interveniente e duas testemunhas.
Nas fls. 16/17 se informa que no Instituto do Açúcar e do Álcool foi instaurado inquérito administrativo no qual o Deputado Elias Nacle figura como indiciado, inquérito êsse que, a requerimento seu, teria sido arquivado em outubro de 1963.
Informa-se, doutro lado, que Waldemar Colombini e Mário Lôbo de Medeiros, ambos funcionários do já mencionado Instituto, são hoje falecidos, o que justifica a não inclusão de seus nomes na denúncia que instaurou a ação penal que ensejou esta outra de habeas corpus.
Verifica-se dos autos, doutro lado, que o contrato de abertura de crédito firmado pela autarquia e pelo paciente é de 2 de maio de 1958, e, mais, o paciente, que é o creditado, se obrigou a liquidar a dívida exatamente a 30 de abril de 1959, isto é, ao cabo de um ano.
N a fI. 11 se lê uma carta escrita em papel timbrado do Instituto, assinatura ilegível, na qual se dá a notícia de que a obrigação resultante do mencionado contrato foi liquidada a 6 de junho de 1963.
Todos êsses informes encontram-se nos autos: na petição de habeas corpus, na cópia da denúncia e em documentos oferecidos pelos Drs. advogados impetrantes.
De tudo que me é dado verificar dos parcos elementos que leio neste processo, estou em que o conluio de Moussa Nacle, o paciente, com Waldemar Colombini e Mário Lôbo de Medeiros, funcionários do Instituto, e a execução dêsse conluio, por meio da
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qual o paciente se aproveitou de dinheiro público, constitui ou o crime de peculato mediante apropriação indébita, definido no artigo 312, caput, do c.P., ou o crime de peculato-furto, definido no § 1.0, dêsse art. 312 do C.P ..
É difícil precisar o detalhe da classificação, neste ensejo, porque estou formando meu juízo com os poucos elementos que se contêm em processo de habeas corpus. Não tenho o processo da ação penal; e as informações do MM. Dr. Juiz são muito lacônicas, como sempre ocorre.
Como quer que seja, uma leitura, mesmo desprevenida da petição do habeas corpus, da cópia da denúncia e dos poucos documentos que os impetrantes trouxeram para êstes autos me convencem de que, no caso, o crime praticado pelo paciente e outros não é o de estelionato, como expressa a denúncia, mas o de peculato, ou na sua forma de apropriação indébita (C.P., art. 312, caput), ou na sua forma de furto (C.P., art. 312, § 1.0).
Com efeito, assim é porque, se Waldemar Colombini, funcionário do Instituto, sob influência do Deputado Elias Nacle, aquiesceu em fazer o empréstimo de dinheiro, em nome da autarquia, a quem não tinha direito a êsse empréstimo, de duas uma: ou Colombini desviou o dinheiro público em proveito alheio, como prevê o art. 312 do C.P., ou Co 10mb in i concorreu para a subtração do dinheiro em proveito alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporcionava sua qualidade de funcionário, como prevê o § 1.0, do mencionado artigo 312 do C.P ..
Dir-se-á que o paciente Moussa N acle não é funcionário públi-
co, e, portanto, não pode ser havido por agente criminoso de peculato. A essa objeção é de se replicar que, no caso, como ensina a doutrina mais conspícua, a qualidade de funcionário, embora de caráter pessoal, é elementar do crime e, portanto, comunicável, o que vale dizer: todos os partícipes, ainda mesmo os extranei, respondem pelo título de peculato (Hungria), como decorre, aliás, do art. 26 do C.P., que expressa: "Não se comunicam as circunstâncias de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime".
Assim sendo, dado que Colombini, funcionário da autarquia, conluiou-se com Moussa Nacle para conceder-lhe empréstimo de dinheiro a que não tinha direito, evidente é a conclusão de que a qualidade pessoal do funcionário Colombini comunicou-se a Moussa Nacle para o efeito de indicar quais os autores ou co-autores do crime.
Do exposto, concluo que o crime praticado pelo paciente é o de peculato, crime de prisão preventiva obrigatória, razão pela qual denego a ordem.
Dir-se-á que o paciente, ou alguém por sua pessoa, pagou a dívida, e que isso modifica o aspecto criminal do fato.
A propósito, eu me permito lembrar à Casa que êste ponto tem pertinência com o momento consumativo do crime. Quando se consuma o crime de peculato? É sabido que o momento de consumação dêsse crime é o momento em que se verifica a apropriação ou distração da coisa.
No momento em que se verifica o dano patrimonial, no lugar em
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que se verifica êsse dano, aí, nesse momento, se consuma o crime.
É o que ensina a doutrina mais moderna, dominada de espírito científico.
Vejamos, a propósito, o que ensina o mestre Hungria, sempre festejado (Com., Vol. IX, pág. 345) :
"O peculato não é mais que a apropriação indébita trasladada para o quadro dos crimes contra a administração pública, porque praticado contra o patrimônio desta ou confiado à sua guarda e responsabilidade, e por funcionário seu, com infidelidade ao cargo público (cujo exato desempenho afeta diretamente ao interêsse do Estado e, portanto, da coletividade). É êle incriminado separadamente da apropriação indébita comum, para mais severo tratamento penal, não somente porque seja uma violação do dever funcional, senão também, substancialmente, porque lesa o interêsse patrimonial do Estado. Com a apropriação ou malversação do dinheiro, valor ou outro bem móvel pertencente ao Estado ou sob a guarda dêste é que se realiza a violação do d~ver funcional. Uma e outra são como corpo e alma, como esmeralda e côr verde, como fel e amargor. Sem êsses dois elementos, que se conjugam incidivelmente não pode haver o summatum opus do peculato. O momento consumativo é, aqui, a efetiva apropriação sine jure do dinheiro, valor ou outra coisa móvel, e nesse momento está necessàriamente inserto o dano patrimonial, isto é, o desapossamento ou perda do poder de disponibilidade do Estado (ou outra entidade de direito público) relativamente ao bem de que se trate, servindo-se
dêle o agente como se fôsse o dono. Ainda no caso de simples desvio (como, por exemplo, a retirada do dinheiro do Estado, para emprestar, transitoriamente, a outrem), não deixa de haver efetivo e concreto dano patrimonial. Na própria "malversação", em que o dinheiro ou coisa não pertença ao Estado, mas está sob sua guarda e responsabilidade, a obrigação legal que decorre para êste, de restituir ao proprietário a pecúnia ou o valor da coisa, já é autêntico dano patrimonial. Não tenho dúvida, portanto, em repetir o que já disse de outra feita: peculato consumado sem dano efetivo é tão absurdo quanto dizer-se que pode haver fumaça sem fogo, ou sombra sem corpo que a projete, ou telhado sem paredes ou esteios de sustentação".
Por êsses fundamentos, denego a ordem.
Voto (Explicação)
o Sr. Min. Oscar Saraiva: Como o meu voto foi proferido em Sessão anterior, embora já não o tenha mais em mãos, reporto-me à memória, para salientar fatos ligeiros, já agora reafirmada a minha convicção pelo exame detido feito pelo Sr. Min. Neder. Devo dizer que meu entendimento sôbre a matéria é mais simples do que o de S. Ex.a e talvez mais direto. Busquei ver o fato de que se acusava o denunciado. ftste foi denunciado pelo crime do art. 171 do Código Penal, por estelionato. De sorte que o que teríamos a considerar, não seria uma revisão in pejus da denúncia por estelionato, para transformá-la, por via indireta e através dos falecidos
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funcionários do Instituto do Açúcar e do Álcool, em peculato. Mas deveriam, como o fêz considerar o caso como oferecido e como está sendo processado no Juízo Criminal de Curitiba. O acusado foi processado por estelionato que se caracterizaria pelas fraudes que teria praticado para obter êsse empréstimo. Em que pese a autoridade do Sr. Min. Neder, e do nosso eminente Prof. Min. Nélson Hungria, tenho em que neste caso, por mais esforços mentais que fizéssemos, jamais poderíamos classificar como peculato um caso típico de estelionato.
Nélson Hungria se refere ao peculato-furto e peculato-apropriação indébita. Neste, transfere o delinqüente para si a coisa da propriedade do Estado. No peculato-furto há a subtração da coisa. Mas nem o furto nem apropriação indébita houve. O que houve foi um empréstimo, ato de rotineira natureza administrativa. Um empréstimo, é verdade, obtido por forma tortuosa. Mas a consideração dessas formas tortuosas que originariam outros delitos está prejudicada, porque a ação penal se extinguiu com a morte de seus responsáveis. E o que remanesce, em relação ao impetrante, é o estelionato que êle teria praticado, quer dizer as manobras fraudulentas. Mas como antes da denúncia o acusado pagou ambos os empréstimos, a meu ver desapareceu a figura delituosa, porque o que caracteriza o estelionato é o prejuízo, e êste não ocorreu, restando apenas figuras de irregularidades administrativas. O acusado pagou e não podia, sequer, ser denunciado. Daí, data venia do Min. Neder, mantenho o meu voto.
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o Sr. Min. Antônio Neder: O eminente Min. Oscar Saraiva discordou do meu ponto de vista, alegando que, no caso, se configurou efetivamente o estelionato e não o peculato. Data venia, entendo que o crime é realmente de peculato. Entretanto, para raciocinar de acôrdo com a tese de S. Ex.a, declaro que mesmo no caso de ser crime de estelionato êste se consumou. O Min. Oscar Saraiva me perdôe, mas o crime se consumou, infração ao art. 171 do Código Penal. O prejuízo alheio, no caso, não ficou desfeito pelo fato de êle haver pago. Desde o momento em que o dinheiro saiu do Tesouro Público para quem não devia, neste momento, consumouse o delito e verificou-se o prejuízo, ainda que o dinheiro, posteriormente, tivesse voltado ao Tesouro Público. Mas o Tesouro Público não pode ficar desfalcado de um níquel sequer, de maneira indevida e contra a lei. Um minuto sequer que o dinheiro saia dos Cofres Públicos, de maneira ilegal e ilegítima, e vá às mãos de quem não tem o direito de recebê-lo, está consumado o prejuízo.
O Sr. M in. Oscar Saraiva: -Nestes casos, estou de acôrdo com o Promotor. Ora, V. Ex.a neste habeas corpus, quer fazer o contrário, quer agravar a posição do impetrante - e a conclusão de v. Ex.a é esta: mandar que o Promotor retifique sua denúncia a fim de incriminar o paciente por peculato.
O Sr. Min. Antônio Neder: -Não posso mandar fazer isso. Apenas discordo do Promotor quanto à classificação. ~le poderá aceitar ou não. Isto é cousa que o Juiz vai decidir, no mérito. Estou ape-
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.. nas apreciando o habeas corpus e, como entendo que o crime é de peculato e a prisão preventiva é obrigatória, denego a ordem. Mas, para raciocinar, admitamos que seja crime de estelionato. Entendo que o pagamento feito posteriormente não desfigura o crime de estelionato. Continua consumado e, conseqüentemente, a ação penal subsiste. Por êsses motivos e com essas observações, entendo que o habeas corpus não pode ser concedido.
Voto
o Sr. Min. Hugo Auler: - Sr. Presidente. Trata-se, na espécie, de habeas corpus impetrado com arrimo no art. 548, inciso I, do Código de Processo Penal, visto como o paciente alega nas razões da impetração o fato de não existir justa causa para que seja, como o foi realmente, denunciado como incurso no art. 171 do Código Penal.
Ora, o libelo se arrimou no fato ilicitamente penal como seja o de ter o paciente alegado falsamente a condição de produtor de cana-de-açúcar e com o que se beneficiou dos favores de que tratam os arts. 1.0 e 2.° do Estatuto da Lavoura Cana vieira (Decretolei n.O 3.855, de 21 de dezembro de 1941). Para êsse fim, teria obtido a participação de Waldemar Colombini, Diretor-Regional do Instituto do Açúcar e do Alcool, em Curitiba, no Estado do Paraná, e de Mário Lôbo de Medeiros, Fiscal Agroindustrial da mesma autarquia estatal, e com o que conseguiu desviar, em proveito próprio, dinheiros públicos com deter-
minada destinação, como sejam os que se destinam a empréstimos concedidos aos produtores de canade-açúcar por fôrça do citado diploma legal. Portanto, a rigor, o crime em comento estaria definido no art. 312 do Código Penal. Todavia, o Ministério Público, afastando aquela participação, denunciou o paciente pela prática do crime de obtenção, para si ou para outrem, de vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou man. tendo alguém em êrro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, previsto no artigo 171 do mesmo diploma legal.
Dir-se-á, todavia, que não houve prejuízo, por isso que, levantado o empréstimo, foi êle, posteriormente, saldado junto ao Instituto do Açúcar e do Alcool. Não é verdade. Em matéria de estelionato ou de peculato, o prejuízo alheio se verifica no momento da consumação do ilícito penal; desde que os dinheiros foram desviados ilicitamente da pessoa física ou da pessoa jurídica de direito privado ou de direito público interno, caracterizado está qualquer um daqueles delitos pois o que a lei penal incrimina é a fraude através da qual se opera a captação de quaisquer valôres de patrimônio alheio. Dessarte, a liquidação posterior do empréstimo não tem capacidade para apagar a infração penal. Em primeiro lugar porque o prejuízo real já se verificara desde o momento em que o levantamento do empréstimo foi obtido através de captação ilicitamente penal; em segundo lugar porque o desvio se operou quando o paciente, através de fraude penal, alegando falsamente a qualidade de produtor de cana-de-açúcar, obte-
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ve o empréstimo que somente poderia ser destinado a fins que por êle não poderiam ser atendidos, sim que não tinha a condição prevista em lei para a respectiva concessão.
Mas a verdade é que, na espécie, não se tratou de prejuízo potencial mas, em verdade, de um dano real. Com efeito, o contrato foi celebrado pelo paciente com o Instituto do Açúcar e do Álcool, a 2 de maio de 1958, não tendo sido saldado na época devida o mútuo em comento. Posteriormente, o paciente resolveu transferir tal dívida para a Usina de Morretes que, não obstante haver protestado contra a concessão ilegal, houve por bem saudá-la no mês de março de 1963. Nestas condições, logo se está a ver que o retardamento no implemento daquela obrigação a importar na desvalorização do poder aquisitivo da moeda naci0nal, veio importar em um prejuízo patrimonial para aquela autarquia federal.
Por tôdas essas razões é que reconheço a justa causa para a ação penal, tanto mais quanto em Direito Penal domina o princípio de que o fato consumado não se apaga nunca mais - faetum infectus fieri.
Todavia, afasto da sedes materae a questão referente à nova definição do fato a carrear outra classificação penal. Não é o habeas corpus meio idôneo para agravar a situação do paciente que responde por um crime cuja quantidade da pena, tomada in abstraetu, é menor, não obstante o mesmo grau de gravidade. Tanto somente poderá ser objeto no curso da instrução criminal e na oportunidade da aplicação da norma con-
sagrada no art. 384 do Código Penal. Se ficar provado que o Delegado-Regional e o Fiscal Agroindustrial do Instituto do Açúcar e do Álcool, ao invés de terem sido iloqueados em sua boa-fé pela manobra fraudulenta do paciente, dela participaram para que fôssem desviados dinheiros públicos da citada autarquia estatal, nesta hipótese, o crime deverá ser classificado para o art. 312, ex vi do art. 327 e parágrafo único, do Código Penal.
E pouco importa que já tenham falecido aquêles servidores autárquicos, equiparados aos funcionários públicos para o efeito de responderem pelos crimes previstos no Capítulo I, do Título XI, do Código Penal. Domina a matéria o princípio da comunicabilidade das condições pessoais, quando elementares do crime, segundo a norma consagrada no art. 26 do citado diploma legal. Na co-autoria, a comunicação das condições pessoais se opera no momento da consumação do ilícito penal, não mais se afastando do terceiro que, em virtude de não possuir as condições pessoais para cometer determinado crime, por elas foi contaminado em virtude do seu ato de participação na conformidade do art. 25 do Código Penal. O princípio clássico - mors omnia solvit -se restringe aos que tiveram extinta a punibilidade por efeito do inciso I, do art. 108, do Código Penal, não se estendendo aOs partícipes que sobreviveram à consumação do crime que não mais poderá ter outra definição por ter ocorrido a morte dos que, tendo dêle participado, por suas condições pessoais, causaram instantâ-
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neamente uma determinada classificação penal.
Por todos êsses fundamentos hei por bem denegar como denego o presente writ oi habeas COI pus.
Voto
O Sr. Min. Djalma da Cunha Mello: - Também denego.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Prosseguindo-se no julgamento, a decisão foi a seguinte: Depois dos votos dos Srs. Mins. Antônio Neder, Hugo Auler e Djalma da Cunha Mello denegando a ordem, pediu vista o Sr. Min. Márcio Ribeiro. O Sr. Min. Hugo Auler encontra-se em substituição ao Sr. Min. Henrique d'Ávila. Não compareceram os Srs. Mins. Cunha Vasconcellos, por achar-se em férias e Amarílio Benjamin, por encontrar-se licenciado. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Godoy Ilha.
Voto O Sr. Min. Márcio Ribeiro:
Mais uma vez concordo com a opinião do eminente Min. Oscar Saraiva.
Em teoria, o pagamento não poderia suprimir o crime já praticado, que é, segundo a denúncia, estelionato.
Acontece, porém, que êsse pagamento, o longo período decorrido desde a época em que se sacaram os empréstimos (1958) e a própria natureza dêste, são elementos constantes dos autos e que trazem as mais sérias dúvidas não só sôbre a autoria como sobretudo sôbre a existência de qualquer crime.
Pelo menos estelionato verificase, à primeira vista, que o'paciente
não cometeu, como ficou demonstrado no brilhante voto do eminente Min. Neder.
Não se pode colhêr nas malhas do estelionato a realização de um contrato, celebrado com o I.A.A., em que a vítima seria essa autarquia que tinha a obrigação e aliás, dispõe de pessoal próprio e de todos os demais elementos para verificar, desde logo, as condições necessárias ao empréstimo. Nada, aliás, contém a denúncia para caracterização do induzimento em êrro, do artifício idôneo que o paciente teria empregado para enganar a vítima.
Pelo Estatuto da Lavoura Canavieira qualquer dúvida ou reclamação derivada do contrato deveria ser previamente submetida, na esfera administrativa, à decisão das Comissões de Conciliação, com recurso para a Comissão Executiva e só depois disto seria lícito que qualquer das partes ingressasse na justiça ordinária (Lei n.o 3.855, de 1941, art. 109).
Sem aludir de modo algum aos meios pelos quais, a despeito de tôdas essas dificuldades, teria sido possível aos denunciados iludir a Administração do Instituto, o Dl'. Promotor Público realmente não descreveu ou caracterizou o crime do art. 171 do Código Penal.
Também quanto ao crime de peculato a denúncia é totalmente omissa: não descreve nem a atuação dos autores principais, ao que parece hoje falecidos, nem sobretudo a participação que, em peculato alheio, poderia ter tido o paciente.
Ora, como o habeas corpus se baseia não só na ausência de justa causa como na inépcia da denúncia, a nulidade ex radice do pro-
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cesso judicial não pode deixar de ser imediatamente reconhecida.
A possibilidade de retificação do processo, por aditamento da denúncia - a faculdade conferida ao Juiz pelo art. 384, parágrafo único, do Código de Processo Penal - não tem o condão de fazer desaparecer o vício já existente (art. 564, n.o 111, letra a) e alegado na via própria do habeas corpus (art. 648, n.o VI).
Demais aguardar a retificação da denúncia, no final do processo, seria, no caso, ofender o art. 141, § 25, da Constituição Federal, pela supressão do direito de defesa do paciente.
Concedo, pois, a ordem.
Voto
o Sr. Min. Godoy Ilha: - Está empatada a votação. O Srs. Mins. Oscar Saraiva, Armando Rollemberg e Márcio Ribeiro concederam a ordem; negaram-na os Srs. Mins. Antônio Neder, Hugo Auler e Djalma da Cunha Mello.
Peço vista do processo para proferir o voto de desempate.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Prosseguindo-se no julgamento, a decisão foi a seguinte: Depois do voto do Sr. Min. Márcio Ribeiro concedendo a ordem, o julgamento ficou empatado, porque os Srs. Mins. Relator, Armando Rollemberg e Márcio Ribeiro concederam a ordem e os Srs. Mins. Antônio Neder, Hugo Auler e Djalma da Cunha Mello denegaram-na. O Sr. Min. Presidente pediu vista dos autos, a fim de proferir o voto de desempate.
O Sr. Min. Hugo Auler encontrase em substituição ao Sr. Min. Henrique d'Ávila. Não compareceu o Sr. Min. Cunha Vasconcellos, por se encontrar licenciado. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Godoy Ilha.
Voto (Desempate)
O Sr. Min. Godoy Ilha: - Induvidoso que o crime de estelionato imputado ao paciente não resume os extremos de figura delituosa prevista no art. 171 do Código Penal, como o capitulou a denúncia.
Alegou-se, para tal, que o denunciado, invocando sua falsa qualidade de plantador de cana, obtivera um empréstimo do Instituto do Açúcar e do Álcool, através da sua Delegacia-Regional de Curitiba, com o que causara vultoso prejuízo àquela autarquia, o que teria ocorrido nos idos de 1957 e 1958.
A tôda a evidência que isso não caracteriza o estelionato que, na definição legal, consiste em obter alguém vantagem ilícita em prejuízo alheio, mediante emprêgo de artifício, ardil ou qualquer meio fraudulento, circunstâncias que não foram articuladas na denúncia.
De resto, como acentuou o voto do Sr. Min. Márcio Ribeiro, tinha a autarquia elementos à sua mão para verificar, desde logo, o implemento das condições necessárias à realização do empréstimo.
O fato, quando muito, poderia revestir a fraude civil, com o vício do contrato, pois como mostram os mais abalizados penalistas (onde apareça uma impostura fácil de ser reconhecida, há fraude civil e não criminal), como ensina Impalomeni.
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No contrato mútuo celebrado com o Instituto, conforme se vê do instrumento de fls. 14, sequer declarou o paciente a sua condição de plantador de cana, e pactuado o empréstimo com a interveniência da Usina Malucelli (a que sucedeu a Usina Morretes), que se obrigou a reter as importâncias correspondentes à entrega de canas para o reembôlso ao Instituto da quantia mutuada, circunstância que esclarece a verdadeira destinação do empréstimo e se os mutuários não eram antes, plantadores de cana, adquiriram essa condição ao firmarem o contrato, com a obrigação de entregarem o produto à usina, para o efeito da retenção do seu respectivo valor.
Por outro lado, a ausência do prejuízo econômico do Instituto, desfiguraria a imputação do estelionato, como sustentou o voto do eminente Relator. Em verdade, tratando-se de crime contra o patrimônio, o dano efetivo é condição inerente à criminalidade do ato.
Ora, verificou-se pelo documento de fls. 11, que o empréstimo contraído pelo paciente foi liquidado, ainda em data de 6 de junho de 1963, pela Usina Morretes, responsável pela retenção das quantias correspondentes aos fornecimentos, nos têrmos do contrato, e como arrendatária das terras, e a demora havida na solução do débito não é imputável ao paciente, mas à referida Usina Morretes, sendo relevante assinalar que a denúncia só foi oferecida em 29-12-1964.
Os votos divergentes entendem que o crime seria o de peculato, de que seria o paciente co-autor
mas, a tôda a evidência, manifesta a impossibilidade dessa desclassificação, eis que a denúncia ou não atribui êsse delito aos servidores da autarquia, de modo a estabelecer-se o nexo causal a caracterizar a co-participação do paciente.
Se responsabilidade criminal pudesse ser atribuída aos servidores do Instituto, o delito jamais seria o de peculato, mas o de prevaricaçãoprevisto no art. 319 da Lei Penal, o de praticarem ato de ofício contrariando expressa disposição de lei, desde que o agente visasse satisfazer interêsse ou sentimento pessoal, mas êsse delito, punido com a pena de detenção de três meses a um ano, já estaria prescrito.
Tudo indica que o inquérito, já mandado arquivar pelo Instituto, foi reaberto para colhêr em suas malhas, por motivos evidentemente políticos, o irmão do paciente, deputado federal pelo Paraná.
Desempato, concedendo a ordem, por falta de justa causa.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Prosseguindo-se no julgamento, a decisão foi a seguinte: Por voto de desempate, foi concedida a ordem, vencidos os Srs. Mins. Antônio N eder, Hugo Auler e Djalma da Cunha Mello. Os Srs. Mins. Armando Rollemberg, Márcio Ribeiro e Godoy Ilha (Presidente), desempatando, votaram com o Sr. Min. Relator. Não compareceram os Srs. Mins. Cunha Vasconcellos, por encontrar-se licenciado e Djalma da Cunha Mello por motivo justificado. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Godoy Ilha.
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HABEAS CORPUS N.o 1.391 SP.
Relator - O Ex.mo Sr. Min. Antônio Neder Paciente - Fábio Gomide Collet e Silva Impetrantes - Ewaldo Nogueira da Silva e Ângelo Pio Men
des Corrêa
Acórdão
Habeas corpus. Justa causa para a acusação. Arts. 41 e 43, I, do C.P.P .. Quando a fatispecie concreta se ajusta à fatispecie abstrata, não há como falar-se em denúncia inepta. Bastante é que, na denúncia, a descrição do fato autorize a suspeita de ser êle criminoso. Pedido negado.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Habeas Corpus nú· mero 1.391, do Estado de São Paulo, em que são partes as acima indicadas:
Acorda o Tribunal Federal de Recursos, em Sessão Plena, por unanimidade, em negar a ordem, na forma do relatório e notas taquigráficas precedentes, que ficam integrando o presente. Custas de lei.
Brasília, 23 de setembro de 1965. - Oscar Saraiva, Presidente; Antônio Neder, Relator.
Relatório
O Sr. Min. Antônio Neder: -Os advogados Ewaldo Nogueira da Silva e Ângelo Pio Mendes Cor· rêa requerem habeas corpus em favor de Fábio Gomide Collet e Silva.
Alegam, na inicial, o seguinte: "Os advogados Ewaldo Noguei
ra da Silva e Ângelo Pio Mendes Corrêa, brasileiros, casados, inscritos na O.A.B., secção de São Paulo, sob n.O' 3.027 e 8.404 com escritório nesta Capital à rua Senador Paulo Egídio, 72, 3.0 and.,
conj. 308 e rua Tabatinguera, 34, 11.0 and., respectivamente, estan· do em pleno uso e gôzo de seus direitos civis e políticos, com fundamento no art. 141, § 23, da Constituição Federal e arts. 647, 648 e seguintes, do Código de Processo Penal, vêm respeitosamente à presença de V. Ex.a, a fim de impetrarem uma ordem de habeas corpus preventivo em favor de Fábio Gomide Collet e Silva, brasi. leiro, casado, funcionário público federal, residente nesta Capital à rua Haverá, 81, que se encontra na iminência de sofrer constrangimento ilegal, em virtude de denúncia oferecida em processo cri· me contra o mesmo instaurado perante o Juízo da 31.a Vara Criminal, não fundada em justa causa, eis que está inteiramente divorciada dos elementos de convicção constantes do inquérito policial-militar, instaurado para determinar a existência de câmbio negro no comércio do trigo em São Paulo, pelos motivos de fato e de direito que passam a expor nas razões que, a seguir apresentam: . .. O paciente foi denunciado como incurso nas sanções do
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art. 316, combinado com o art. 51, § 2.°, ambos do Código Penal, por haver praticado os fatos que seguem (doc. n.o 2), "Fábio Gomide Collet e Silva, qualificado às fls. 2, que de setembro de 1962 a março de 1964 fôra responsável pelo S.T. (extinto), em datas não devidamente precisadas, porém no referido período, por três vêzes, exigiu do Sr. Antônio Francisco Rocha Ribeiro, para que as guias fôssem autorizadas, a importância de Cr$ 30.000 por guia, recebendo Fábio o total de Cr$ 90.000, sem o que Antônio F. Ribeiro ficaria sem a autorização para o recebimento da farinha". Nasceu a acusação de afirmativa feita pelo padeiro Antônio Francisco Rocha Ribeiro ao prestar declarações no referido inquérito policial-militar: "perguntado se no serviço de expansão do trigo foi necessário alguma vez dar alguma quantia para que as guias de pedidos de farinha de trigo fôssem autorizadas, respondeu que por três vêzes o Sr. Fábio Collet lhe exigiu Cr$ 30.000 para que as guias fôssem autorizadas, encontrando-se essas guias ainda em seu poder; perguntado o total das importâncias entregues ao Sr. Fábio Collet respondeu ser da ordem de Cr$ 90.000". Se verdadeira fôsse, a assertiva acima inserida, ao paciente não restaria outra alternativa senão ilidi-la no curso da ação penal. Todavia, a incriminação é produto de deplorável equívoco já que se dirigia a outra pessoa que não o paciente, conforme se verifica da acareação procedida entre as partes em tela: "Perguntado ao Sr. Antônio Francisco Rocha Ribeiro se alguma vez para a aquisição de farinha de trigo tinha fornecido quantia em di-
nheiro ao Sr. Fábio Gomide Collet e Silva, para que lhe fôsse confiado as guias competentes e necessárias ao recebimento dos moinhos de trigo do produto necessário, respondeu que procurado em sua Panificadora e Confeitaria Minister Ltda. pelo Sr. Gomes Cardim que lhe propôs o seguinte negócio: fornecer-lhe a quantia de ..... . Cr$ 30.000, para cada cem sacas de farinha de trigo e em troca deveria o interessado (Antônio Francisco Rocha Ribeiro) dirigir-se aO ex-Set (sito à rua Marconi, 131, 1. ° and.), onde deveria procurar o Sr. Fábio Gomide Collet e Silva para o fornecimento da guia necessária à aquisição da farinha de trigo; afirma a testemunha que: Aquiesceu na negociação fornecendo ao Sr. Gomes Cardim a quantia de Cr$ 90.000" destinada ao recebimento de guias correspondentes a 300 sacas de farinha de trigo. Chegando ao ex-Set procurou a testemunha o Sr. Fábio Collet e Silva que identifica como sendo o indiciado na presente acareação, solicitando as guias necessárias ao fornecimento das sacas de farinha de trigo estabelecidas no negócio com o Sr. Gomes Cardim. O indiciado Fábio Gomide C. e Silva lhe forneceu no momento uma guia de 100 sacas a serem recebidas no Moinho Progresso. Quanto às demais guias só veio a receber passados alguns dias, sendo as mesmas endereçadas aos Moinhos Selmi-Dei e Anaconda". E mais adiante: "Perguntado à testemunha se o Sr. Gomes Cardim quando lhe propôs o negócio falou também que o Sr. Fábio Collet e Silva dêle participava, respondeu que o Sr. Gomes Cardim lhe afir-
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mou apenas que conhecia o Sr. Fábio Gomide Collet e Silva, do qual obteria as guias necessárias ao fornecimento da farinha". Realizada a acareação entre Oscar Gomes Cardim e Antônio Francisco Rocha Ribeiro, êste afirmou: "Perguntado à testemunha se reconhece na pessoa do Sr. Oscar Gomes Cardim (indiciado) a pessoa que lhe procurou no estabelecimento onde trabalha, a fim de propor-lhe um negócio para a aquisição de guias no ex-Set, respondeu que efetivamente reconhece no Sr. Oscar Gomes Cardim a pessoa que lhe propôs o pagamento de Cr$ 30.000 em troca da obtenção no Set de 100 sacas de farinha; peguntando à testemunha se aceitara o negócio, respondeu que tinha aceito na base de semanalmente fornecer ao Sr. Oscar Gomes Cardim a quantia de .... Cr$ 30.000 em troca da obtenção 'de guias de farinha de trigo que somassem o montante de 100 sacas 'cada uma; perguntado à testemunha se após o estabelecimento do negócio foi cumprido o preestabelecido pelo Sr. Oscar Gomes Cardim, respondeu que recebeu apenas guias correspondentes a 100 sacas relativas aos Cr$ 30.000 fornecidas ao indiciado na primeira transação. Quanto às demais sacas, correspondentes a duas guias de 100 sacas cada uma, apesar de ter fornecido o dinheiro em moeda corrente ao Sr. Oscar Gomes Cardim, não as recebeu, nem tampouco recebeu de volta, pelo não cum-primento do negócio, os ....... . Cr$ 60.000 entregues ao indiciado". Detidamente analisada a situação criada pela testemunha Antônio Francisco Rocha Ribeiro, é forçoso concluir-se: a) que acusação
inicialmente formulada contra o paciente não passou de lamentável engano, já que o denunciante quis referir-se à pessoa de Oscar Gomes Cardim; b) que a circunstância mencionada no item acima, ficou plenamente comprovada nas acariações havidas entre o paciente e o acusador e entre êstes e Oscar Gomes Cardim; c) dos autos não consta qualquer alusão desabonadora à pessoa do paciente. Com a devida vênia, repita-se: dos autos não consta qualquer alusão desabonadora à conduta do paciente, não só em relação à acusação em foco - produto de um engano, como se demonstrou - como em relação a todos os atos que praticou no exercício de suas funções no extinto Serviço de Expansão do Trigo.
O Direito. - Quando o legislador fêz inserir nos arts. 41 e 43 do Cód. de Processo Penal os requisitos de denúncia e causas de rejeição, como é óbvio, pretendeu discipliná-la, a fim de serem coibidos os excessos. E ao discipliná-la, entre outras exigências, impôs que os fatos contidos na peça inaugural fôssem o espelho de tudo o que se apurou na fase preliminar. A propósito, não poderia passar despercebida a lição do eminente Frederico Marques: "É preciso que haja o fumus bonni juris para que a ação penal contenha condições de viabilidade. Do contrário, inepta se apresentará a denúncia, por faltar legítimo interêsse e, conseqüentemente, justa causa" (Elementos de Direito Processual Penal - voI. II, pág. 167, ed. "Forense", 1961). E em seguida: "O processo penal atinge o status dignitatis do acusado. Em vários casos, êsse sacrifício é exi-
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gido (como acontece sempre que o r. é absorvido) no interêsse do bem comum. Todavia, se nem o fumus bennis juris pode descobrir-se para alicerçar a peça acusatória, seria iníquo que o Juiz permanecesse impassível e, como simples autômato, fôsse recebendo a denúncia ou queixa" (Ob. cit., pág. 167). De outra parte a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, no mesmo diapasão, vem decidindo "Processo Crime - Denúncia - Inépcia - Acusado que não participou do crime - Imputação sem base no processo - Habeas Corpus concedido para trancamento dêste - Inteligência do art. 648, do Código de Processo Penal. - Para o recebimento da denúncia não basta que ela exponha o fato criminoso, com tôdas as suas circunstâncias e contenha a qualificação do acusado, a classificação do crime, e, quando necessário, o rol de testemunhas. É ainda necessário que ela tenha condições de viabilidade, isto é, que disponha de algum apoio em elementos de convicção. Do contrário, se apresenta inepta, por lhe faltar legítimo interêsse, e conseqüentemente, justa causa (Rev. Trib. 347/56). Justa causa - Inexistência - Infrações articuladas na denúncia sem um mínimo de prova nos elemen" tos do inquérito - Trancamento da ação penal - Concessão de Habeas Corpus - Inteligência do art. 43, I, do Código de Processo Penal. - Não basta a simples descrição de um crime em tese para o recebimento da denúncia. É sempre necessário, para se evitar o perigo das acusações absurdas, infundadas, que exista um comêço de prova, um indício razoável, um
mínimo de elementos indispensáveis, amparando a acusação, gerando fundadas suspeitas contra o denunciado" (Rev. Trib. 345/72). Conforme se verifica dos v. arestos - prolatados em Sessão das Egrégias Câmaras Conjuntas Criminais, por votação unânime -não há como negar a indispensabilidade de a denúncia vir acompanhada de um mínimo de elementos de convicção, para que possa subsistir. Entretanto, no caso dos autos, a denúncia defluiu de um engano devidamente comprovado e ante a total inexistência de elementos de prova, mesmo de natureza circunstancial, é ela, sem dúvida, uma peça inteiramente divorciada da realidade, ferindo destarte, além do direito e da jurisprudência, a dignidade do impetrante, apontado como autor de grave crime de concussão, e sem justa causa, como exuberantemente se demonstrou. Por todo o exposto, impõe-se data venia, a concessão da presente ordem para o efeito de ser, o paciente Fábio Gomide Collet e Silva, excluído da denúncia".
O MM. Dr. Juiz de Direito da 21.a Vara Criminal da Justiça de São Paulo (Capital) prestou aS informações seguintes:
"Com relação ao habeas corpus impetrado pelos Bels. Ewaldo N 0-
gueira da Silva e Angelo Pio Mendes Corrêa, que tomou o número 84.386, tenho a honra de informar que o paciente foi denunciado como incurso nas cominações do art. 316, c/c o art. 51, § 2.°, do Código Penal, conforme certidão que ora envio em anexo. Pretendem os impetrantes o trancamento da ação, sob fundamento da falta de justa causa. Para tan-
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to reportam-se à acareação levada a efeito entre um outro acusado, Oscar Gomide Cardim e o padeiro Antônio Francisco Rocha Ribeiro, ambos citados na inaugural de fls .. Com isto, entendem os ilustres Bels. que seu constituinte acha-se isento de qualquer responsabilidade, não tendo pois praticado o delito no qual enquadrado (crime de concussão). Antes de mais nada, deve-se salientar que se quer um julgamento de mérito, antes mesmo que tenha início o procedimento criminal contra o paciente. Em resumo: pretendem êles um pré-julgamento. Ê bem de ver que o momento é impróprio para uma apreciação de tal ordem, por isso que, em tese, há um fato delituoso, típico, a ser apurado, bastando que se diga que, sem embargo da acareação citada, Oscar Gomes Cardim, elemento estranho aos quadros do S.E.T., gozava de enorme prestígio junto ao ora paciente, chefe do serviço citado. Ê mister, s.m.j. que a persecutio criminis tenha seguimento para a devida apuração dos delitos mencionados em o requisitório oficial de fls., que em tese existem".
Os impetrantes dirigiram-se, de início, ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, pelo venerando acórdão da f!. 36, proclamou a competência desta Côrte para julgar o pedido e determinou a remessa dos autos para esta Casa.
Ê o relatório.
Voto
O Sr. Min. Antônio Neder: O paciente é acusado de autoria do crime de concussão, definido no art. 316 do C.P. nestes têrmos: "Exigir, para si ou para outrem,
direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão pela, vantagem indevida".
Trata-se de crime formal, que se consuma com o simples fato de o funcionário exigir a vantagem indevida.
Diz o M.P., na denúncia, que o paciente dirigiu o Serviço de Expansão do Trigo no período de setembro de 1962 a março de 1964, e que, por três vêzes, nesse período, exigiu de Antônio Francisco Rocha Ribeiro a importância de trinta mil cruzeiros para autorizá-10 a receber farinha, e, ainda, que o paciente recebeu a importância de noventa mil cruzeiros.
O documento da f!. 15 dá notícia de depoimento de Antônio Francisco Rocha Ribeiro, que confirmou o fato.
O documento da f!. 17 dá notícia de acareação feita entre êsse Antônio Francisco Rocha Ribeiro e o paciente Fábio Gomide Collet e Silva, na qual o primeiro confirma o fato, esclarecendo, apenas, que a exigência fôra feita indiretamente, isto é, por intermédio de Gomes Cardim, também denunciado.
O documento da f!. 19 por sua vez, contém a confirmação da mesma notícia.
Ê quanto basta à Justiça para concluir que, no caso, o pedido improcede.
A justa causa para a acusação emana configurada dêsses referidos documentos.
Os impetrantes pretendem que na instância do habeas corpus se constitua prova.
Ê sabido que isso não é permitido em nosso Direito Processual Penal.
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Não obstante, examinados os mencionados depoimentos e acareações, dêles se conclui que a fatispecie concreta bem se ajusta à fatispecie abstrata.
Para esta, bastante é o seguinte: a) a exigência; b) para si ou para outrem; c) direta ou indiretamente; d) ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela; e) de vantagem indevida.
No caso, os autos demonstram que o paciente, funcionário público, fêz a exigência a Antônio Francisco Rocha Ribeiro, e a fêz por intermédio de Gomes Cardim, e êste recebeu o dinheiro, constituindo isso, evidentemente, a indevida vantagem.
Para a denúncia é o necessário; é o bastante.
Os impetrantes pretendem data venia, confundir justa causa para a acusação e justa causa para a condenação.
Elas são, contudo, diferentes. A primeira tem sua sede jurí
dica no art. 41 do C.P.P. combinado com o art. 43, r, dêsse Código.
A segunda tem sua sede jurídica no art. 387 do C.P.P ..
A primeira assenta-se em um princípio básico: a descrição de um fato que autorize a suspeita de ser criminoso.
A segunda assenta-se em fato apurado e comprovado de maneira convincente, isto é, nunca duvidosa. .
No caso noticiado nestes autos está cabalmente demonstrado que a conduta do paciente é criminosa, merece havida por criminosa.
É quanto basta para a acusação. Nego, pois, a ordem.
Voto
o Sr. Min. Márcio Ribeiro: De acôrdo. Basta que se queira trancar a ação penal com base apenas numa acareação para se notar que a pretensão é excessiva, para um pedido de habeas corpus.
Denego a ordem.
Voto
o Sr. Min. Hugo Auler: - Sr. Presidente. Em face do relatório e do voto do Sr. Min. Relator, tive oportunidade de verificar que o fato descrito na denúncia e as provas coligidas no inquérito que serviu de suporte ao libelo, revelam si et in quantum haver o paciente praticado o crime previsto no art. 316 do Código Penal.
Dessarte, logo se está a ver que existe justa causa para a denúncia do paciente pela prática do ilícito penal em comento, visto como se não ignora que a imputa tio iuris para efeito do libelo pode fundar-se em presunções, ao contrário do que ocorre com a imputa tio iuris para efeito da sentença de mérito, que depende da produção de provas da existência do crime e de quem seja o seu autor, sem a qual não é possível um decreto judicial de conde~ nação.
Por êsses fundamentos, acompanho o Sr. Min. Relator, denegando, como denego, o presente writ of habeas corpus.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por unanimidade, negou-se a ordem. Os Srs. Mins. Márcio Ribeiro, Hugo Auler (Hen-
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rique d'Ávila), Djalma da Cunha Mello e Amarílio Benjamin votaram com o Sr. Min. Relator. Não compareceram, por motivo justificado, os Srs. Mins. Presidente
Godoy Ilha e Armando Rollemberg, e por achar-se licenciado, o Sr. Min. Cunha Vasconcellos. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Oscar Saraiva.
HABEAS CORPUS N.O 1.636 - SP.
Relator - O Ex.DlO Sr. Min. Armando Rollemberg Paciente - Domício Coimbra Impetrantes - Noé Azevêdo e outro
Acórdão
Transporte aéreo. Pratica crime quem altera prefixo identificador de avião. Habeas corpus denegado.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Habeas Corpus n.O 1.636, em que são partes as acima indicadas:
Acorda o Tribunal Federal de Recursos, em Sessão Plena, por maioria de votos, em denegar a ordem, na forma do relatório e notas taquigráficas precedentes, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Custas de lei.
Brasília, 18 de maio de 1967. - Goday Ilha, Presidente; Armando Rollemberg, Relator.
Relatório
o Sr. Min. Armando Rollemberg: - Noé Azevêdo e Henrique Valner, advogados inscritos na Ordem, Secção de São Paulo, requerem habeas corpus em favor de Domício Coimbra, residente na cidade de Presidente Prudente, que, alegam, está sendo processado, sem justa causa, perante o
Juízo da La Vara da referida Comarca de Presidente Prudente.
Conforme narra a inicial, o paciente foi denunciado como incurso nas penas do art. 306, parágrafo único, do Código Penal, por ter trocado, entre si, os prefixos de duas aeronaves que lhe pertenciam. Tal fato, que é negado pelo paciente, mesmo se verdadeiro, afirmam os requerentes, não constituiria crime e sim simples irregularidade que não ultrapassaria o campo administrativo, pois o Código Brasileiro do Ar, no seu art. 164, letra c, a pune com multa de 2 a 5 cruzeiros novos.
Em apoio a tal entendimento, invocam jurisprudência relativa a adulteração da plaqueta de chapa de licenciamento de automóvel e, ainda, a circunstância, comprovada em documento fornecido pela Diretoria da Aeronáutica Civil, de que a colocação de prefixos nos aviões é feita sob a responsabilidade do proprietário e sem paga-
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mento de qualquer taxa ou emolumento.
Assim, conclui, o fato de que é acusado o paciente, não constitui crime e, portanto, a denúncia deveria ter sido rejeitada. Recebida como foi, o processo importa em constrangimento ilegal passível de correção por via do habeas corpus.
Solicitadas informações, prestou-as a autoridade indicada como coatora nos seguintes têrmos:
"Tenho a honra de dirigir-me à Vossa Excelência, a fim de prestar as informações que me foram solicitadas e que deverão instruir a ordem de habeas corpus impetrada a favor de Domício Coimbra.
Efetivamente, o paciente Domício Coimbra responde, perante êste Juízo, a um processo criminal, em que se lhe imputa a prática de ato delituoso, que configuraria o crime previsto no art. 306, parágrafo único, do Cód. Penal.
A denúncia, oferecida em 7-6-966, foi recebida pelo MM. Juiz, na ocasião em exercício nesta Vara, por despacho datado de 7-7--966. Certamente, pareceu-lhe que, em tese, descrevia um delito. Posso assegurar a Vossa Excelência, por outro lado, que, a peça vestibular aludida, veio devidamente acompanhada de atentado "I.P.M", instaurado pelo Ministério da Aeronáutica, do qual constam efetivamente elementos indiciários suficientes para alicerçar o recebimento daquela. Para melhor verificação da circunstância de descrever ou não a pe;:a vestibular, um delito em tese (ainda que não aquêle nela definido), remeto, em anexo, certidão do inteiro teor, da mesma. Acredito que, dessa forma, o V. Tribunal Federal de Recursos estará melhormente apare-
lhado, para julgar a ordem de habeas corpus impetrada. São estas as informações que, mui respeitosamente, presto a Vossa Excelência, esperando haver, destarte, atendido ao telegrama recebido. Aproveito o ensejo, para apresentar a Vossa Excelência protestos de elevada admiração e profundo respeito".
É o relatório.
Voto
O Sr. Min. Armando Rollemberg: - O Código Brasileiro do Ar, Dec.-Iei 183, de 8 de junho de 1938, no seu título In, que cuidava de infrações e penalidades, estabelecia: "Art. 154 - Será punido com a pena de multa de dois contos de réis (2:000$000) a cinco contos de réis (5: 000$000), aquêle que: a) impedir ou dificultar o pronto reconhecimento de uma aeronave, quer alterando as suas marcas e sinais distintivos, quer prejudicando-lhe a visibilidade, excetuado o disposto no parágrafo único do art. 23. Art. 158 - As infrações contra a segurança dos meios de transporte, que constituem crimes previstos na legislação penal, serão punidas pelas leis respectivas. Art. 170 - As disposições dêste Código não prejudicarão as penalidades impostas por leis ou regulamentos de caráter militar, polícia fiscal, sanitária ou aduaneiro".
O exame de tais dispositivos deixa claro que o legislador considerou como crimes ligados à atividade aeronáutica tão-somente aquêles relativos à segurança de vôo e como tal definidos na lei penal.
Mais tarde, porém, o Código Penal, no seu art. 306, dispôs:
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"Falsificar, fabricando-o ou alterando-o, marca ou sinal empregado pelo poder público no contraste de metal precioso ou na fiscalização alfandegária, ou usar marca ou sinal dessa natureza, falsificado por outrem: Pena - reclusão de dois a seis anos, e multa de .... Cr$ 2.000,00 (dois mil cruzeiros) a Cr$ 10.000,00 (dez mil cruzeiros). Parágrafo {mico. Se a marca ou sinal falsif~cado é o que usa a autoridade pública para o fim de fiscalização sanitária, ou para autenticar ou encerrar determinados objetos, ou comprovar o cumprimento de formalidade legal. Pena - reclusão ou detenção, de um a três anos, e multa, de .... Cr$ 1.000,00 (mil cruzeiros) a Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros)".
Entendem os requerentes que tal disposição não trouxe qualquer modificação ao disposto no Código Brasileiro do Ar então vigente e que, assim, não atingiria a hipótese de alteração de prefixo identificador de avião que continuaria a constituir simples falta administrativa.
Não me convenci do acêrto de tal entendimento. De acôrdo com as regras contidas no citado Código, as aeronaves deviam ser obrigatoriamente matriculadas no Registro Aeronáutico Brasileiro, decorrendo de tal ato o reconhecimento da nacionalidade brasileira e devendo constar do respectivo registro os dados detalhados sôbre o aparelho. Além disso, concedida a matrícula, a aeronave passava a ser identificada por marca, composta por letras do alfabeto, fornecida pela Diretoria de Aeronáutica Civil e que devia ser aposta no aparelho para efeito de identi-
ficação dêste, isto é, para comprovar que se achava matriculado.
Ora, se o proprietário do avião resolve alterar o sinal distintivo que, de acôrdo com a matrícula, corresponde ao aparelho, está sem dúvida alterando marca usada pela autoridade pública para comprovação do cumprimento de formalidade legal. Contra tal conclusão não tem relevância o fato de nada ser pago pela matrícula e nem de a mesma poder ser pintada por qualquer pessoa designada pelo proprietário, pois aí se consente a êste tão-somente a execução material do ato de registro, mas jamais a alteração dos elementos do próprio registro.
Devo acrescentar que o nôvo Código Brasileiro do Ar, datado de 18 de novembro de 1966 e instituído pelo Decreto-lei n.o 32, ressalvou, de forma expressa no seu art. 154, as penalidades previstas em leis, que tenham atinência com a vida aeronáutica no país, e, portanto, o parágrafo único do art. 306 do Código Penal.
Tenho, assim, que o fato de que é acusado o paciente, se verdadeira, constitui crime e, por isso, denego a ordem.
Voto (Vencido)
o Sr. Min. Amarílio Benjamin: - Senhores Ministros, é a primeira vez que o nosso Tribunal examina a matéria, de modo que, não sendo o Relator do processo, o meu voto será produzido na base do pronunciamento do Sr. Min. Relator, como também da oração que proferiu o ilustre advogado impetrante. Devo dizer que, mal ouvia o relatório, em meu juízo foi-se formando idéia favorável à
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impetração. Por isso que, realmente, segundo entendi, o art. 306, no seu parágrafo único, de forma alguma poderia abranger o ato cometido pelo paciente. Após os esclarecimentos que hauri nos votos e na sustentação do habeas corpus, a convicção se formou naquele esboçado rumo de conceder o habeas corpus. Estou bem lembrado de que, de acôrdo com o relatório e o voto do Sr. Min. Relator os fatos consistem apenas nos seguintes detalhes: o paciente teria trocado o sinal de uma aeronave, isto é, usado numa aeronave sinal que pertencia a outra, ambas de sua propriedade.
A meu ver, porém, há que se respigar certa distinção ante a linguagem do Código e o que aconteceu. Pela linguagem do Código, a infração há de consistir numa falsificação. Na hipótese sub judice, falsificação não houve. Os dois sinais são verdadeiros. Admitindo-se-os como reais, apenas se trocou o sinal de uma aeronave por outro. Não me parece, portanto, que isso -constitua o fato previsto no art. 306 do Código Penal, parágrafo único, assim exposto: "Se a marca ou sinal falsificado é o que usa a autoridade pública para o fim de fiscalização sanitária, ou para autenticar ou encerrar determinados objetos, ou comprovar o cumprimento de formalidade legal".
Faço agora do processo uma primeira apreciação e, por isso mesmo, estou sujeito a correção de meus eminentes Colegas e minha própria, se tiver ainda oportunidade de reexaminar a matéria. Independentemente das razões até aqui expendidas, acho dificílimo enquadrar-se o acontecido no pa-
rágrafo umco do art. 306 do Código Penal, citado, sobretudo porque, em matéria penal, não é possível chegar-se à incriminação de alguém, por interpretação extensiva ou por analogia.
Ora, o fato, a ocorrência, não cabe aqui dentro. Pesei o caput do artigo e o seu parágrafo único, e não vejo meio da ajustá-los ao caso presente. O-ajustamento poder-se-ia dar somente estendendo-se a norma a um fato que não foi previsto. Em matéria penal, entretanto, como é reconhecido, tal extensão ou construção é proibida; é contrária às bases fundamentais do direito de punir.
Em face dos argumentos desenvolvidos, de improviso, nesta assentada, concedo a ordem, reconhecendo que o fato atribuído ao paciente pode importar em infração de caráter administrativo, mas nunca em ilícito penal, por falta absoluta de previsão da lei.
Voto
o Sr. Min. Djalma da Cunha M e110: - Depois de ouvir as considerações que o Sr. Min. Amarílio Benjamin acaba de fazer, atentei mais detidamente para certos pontos do relatório e me convenci de que a promotoria não podia denunciar o paciente, de que a promotoria não coligiu requisitos, elementos integrantes do crime previsto no Código Penal. O que irroga ao paciente não constitui crime. Ratifico-me. Também concedo o writ.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por maioria de votos, denegou-se a ordem, venci-
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dos os Srs. Mins. Amarílio Benjamin e Cunha Mello. Os Srs. Mins. Antônio N eder, Márcio Ribeiro, J. J. Moreira Rabello, Esdras Gueiros, Moacir Catunda, Henoch Reis
e Oscar Saraiva votaram com o Sr. Min. Relator. Não compareceu por motivo justificado o Sr. Min. Henrique d' A vila. Presidiu o jul
. gamento o Sr. Min. Godoy Ilha.
HABEAS CORPUS N.O 1.644 - MG.
Relator - O Ex.mo Sr. Min. Henrique d'Avila Paciente - Manoel Lima de Souza Impetrantes - José Carlos Abud e outro
Acórdão
Delito do art. 334, § 1.0, letras c e d, do Código Penal. Não remanescendo dúvidas fundadas quanto à origem alienígena das mercadorias apreendidas e improcedendo a argüição de que o delito fôra provocado, bem como os supostos vícios do flagrante e o pertinente à legitimidade da denúncia oferecida, não há porque trancar o procedimento criminal. Habeas corpus. Sua denegação.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Habeas Corpus número 1.644, do Estado de Minas Gerais, em que são partes as acima indicadas:
Acordam os Ministros que compõem o Tribunal Federal de Recursos, em Sessão Plena, por unanimidade de votos, em denegar a ordem, conforme consta das notas taquigráficas anexas, as quais, com o relatório, ficam fazendo parte integrante do presente julgado, apurado nos têrmos de fls. 26/29. Custas de lei.
Brasília, 24 de agôsto de 1967. Oscar Saraiva, Presidente;
Henrique d' Avila, Relator.
Relatório
O Sr. Min. Henrique d'Avila: - José Carlos Abud e Vivaldo
7 - 1281
Resende requerem a presente ordem de habeas corpus em favor do cidadão Manoel Lima de Souza.
O paciente, a 25 de março do corrente ano, no interior de seu apartamento, sito à Av. Augusto de Lima n.o 1.324, em Belo Horizonte, veio a ser prêso e autuado em flagrante pelo crime capitulado no art. 334, § 1.0, letras c e d, do Código Penal, e art. 5.0, da Lei n.O 4.729 e denunciado pela prática de descaminho consubstanciado nos dispositivos de lei acima apontados.
Sustentam os impetrantes, em primeiro lugar, que a denúncia não teria sido oferecida pelo Procurador Regional da República, dado que criada já se encontrava a Justiça Federal; mas sim pelo Promotor Público da Comarca. E, daí sua manifesta ilegitimidade.
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E, a seguir, denunciam vícios do flagrante, como sejam: o testemunho de policiais, o prévio preparo e guizamento dos fatos com o objetivo de induzir o paciente à· prática do delito. E, ainda, a imprestabilidade do exame pericial procedido nas mercadorias para sua caracterização como de procedência estrangeira.
1tsses, em apertada síntese, os fundamentos em que se estriba o pedido.
Solicitadas as informações de estilo, essas demoraram a ser ministradas e, afinal, após várias reiterações, o Dr. Juiz a quo prestou as seguintes: "resposta telegrama vg hoje recebido vg informo Vossência vg a fim instruir julgamento habeas corpus vg processo crime movido contra Manoel Lima de Souza vg redistribuído MM. Dr. Juiz Federal 2.a Vara face impedimento dêste Juízo instruir et julgar o feito pt Informo entretanto que processo crime em aprêço encontra-se fase cumprimento artigo quinhentos Código Processo Penal pt CDS SDS".
É o relatório.
Voto
o Sr. Min. Henrique d'Avila: - Não procedem as alegações dos impetrantes, a tôda a evidência. Em primeiro lugar, a denúncia só veio a ser oferecida pelo Dr. Promotor Público da Comarca, porque a Justiça Federal, embora criada, não se encontrava ainda em funcionamento. Portanto, aquela peça inicial do processo não se ressente de qualquer vício de origem.
No que toca ao flagrante, os defeitos apontados não se revestem
de qualquer relevância. Em primeiro lugar, afirma-se que um policial teria sido uma de suas duas testemunhas. Não há motivo válido para que se anule o flagrante sob tal fundamento.
Por outro lado, a prática da infração não foi provocada; basta para chegar a tal conclusão atentar para o fato de que as autoridades policiais agiam por fôrça de denúncia, segundo a qual era o paciente detentor de grande quantidade de mercadorias de procedência estrangeira, que estavam sendo vendidas. Em conseqüência, a Polícia compareceu ao apartamento e verificou que, de fato, o mesmo as vendia livremente, chegando a oferecê-las aos policiais, guardada a condição dêstes. Portanto, lícito não é acreditar haja sido o paciente induzido à prática do crime.
E no que concerne à caracterização da origem das mercadorias, existe nos autos prova inconcussa de que as mesmas são oriundas do Japão.
O sumário de culpa, conforme ficou acentuado na informação da autoridade coatora, já se encontra encermdo, dado que aos réus foi concedida vista dos autos para oferecerem alegações finais.
Assim sendo, falecem motivos para que se conceda a ordem. E, por isso, eu a denego.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por unanimidade de votos, denegou-se a ordem. Não tomou parte no julgamento o Sr. Min. Cunha Vasconcellos. Os Srs. Mins. Djalma da Cunha Mello,
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Godoy Ilha, Amarílio Benjamin, Armando Rollemberg, Antônio Neder, Márcio Ribeiro, J. J. Moreira Rabello, Esdras Gueiros, Moacir
Catunda e Henoch Reis votaram de acôrdo com o Sr. Min. Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Oscar Saraiva.
HABEAS CORPUS N.O 1.726 - DF.
Relator - O Ex.mo Sr. Min. Márcio Ribeiro Paciente - Hélio Fernandes Impetrantes - Antônio Evaristo. de Moraes Filho e outros
Acórdão
Preliminar: Somente quando chamado a pronunciar-se sôbre a argüição de inconstitucionalidade de um texto legal, tempestivamente argüido, o Presidente do Tribunal emite voto para completar quorum.
Mérito: Não se confunde a vigência de uma lei institucional, com o efeito residual do que nela disposto, no tempo. Pode, assim, o govêrno, fixar aos cassados domicílio determinado.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Habeas Corpus n.o 1.726, do Distrito Federal, em que são partes as acima indicadas:
Acordam os Ministros que compõem o Tribunal Pleno do Tribunal Federal de Recursos, por maioria, em denegar a ordem, na forma do relatório e notas ta quigráficas de fls. retro, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Custas de lei.
Brasília, 5 de setembro de 1967. Oscar Saraiva, Presidente; J. J. Moreira Rabello, Relator p/acórdão.
Relatório
O Sr. Min. Márcio Ribeiro: Os fatos são conhecidos e os motivos da impetração, bem como os
da sentença e do Ministro da Justiça, estão recapitulados em cópias remetidas aos eminentes julgadores.
Limito, pois, o relatório ao seguinte:
Pela Portaria n.o 197-B, de 20 de julho de 1967, o Ministro de Estado da Justiça, devido à publicação, pelo Jornal "Tribuna da Imprensa", de um artigo em que se injuriava a memória do Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, artigo, aliás, ratificado em outro posterior, impôs ao seu autor - jornalista Hélio Fernandes, cujos direitos políticos haviam sido, anteriormente, cassados - como domicílio obrigatório o Território de Fernando de Noronha, até ulterior deliberação e sob vigilância das autoridades
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federais, que viessem a ser indicadas, tudo nos têrmos da alínea c, item IV, do art. 16, do Ato Institucional n.o 2, de 27 de outubro de 1965, combinado com o art. 2.° do Ato Complementar n.o 1, da mesma data.
Submetida a aplicação dessa medida de segurança à apreciação do Juiz Federal competente, êste a manteve, determinando, entretanto, ao Ministro que fixasse o prazo de sua d1Jração, nos limites da lei, e promov,}sse a remoção do paciente para localidade conveniente, onde possa fixar residência e prover os meios de sua manutenção e de sua família, às suas próprias custas, sob vigilância da autoridade federal do lugar onde ficar, para que não possa permanecer, transitar ou voltar a residir na Guanabara, enquanto perdurar a medida.
Em ,conseqüência dessa sentença, que o Ministro acatou, uma nova Portaria (239-B) determinou a remoção cio jOlnalista do Território Federal de Fernando de Noronha para a cidade de Piraçununga, no Estado de São Paulo.
O apelado, a 18 de agôsto último, por intermédio dos advogados AJItônio Evaristo de Moraes Filho, Mário de Figueiredo e George Tavares, impetrou a êste Tribunal uma ordem de habeas corpus fundada na completa ausência de base legal da medida restritiva de sua liberdade de locomoção, por caduciciade dos Atos em que se baseara, evidentemente incompatíveis com a Nova Constituição Federal, sobretudo com os direitos e garantias individuais nela preservados.
As informações do Juiz, de fls. 46 a 49, e as do Ministro na Justiça, de fls. 71 a 121, refutam as teses do pedido de habeas corpus argumentando que, diante do art. 173, n. o lU, da Nova Constituição, os Atos Institucionais e Complementares conservaram eficácia remanescente que autorizava a imposição da medida de segurança ao paciente, sujeito, .como cassado, a um estatuto próprio. Segundo as informações, não teria havido sobreposição de poder constituinte aos Atos Institucionais, que haviam sido a sua fonte permissiva. A não ser que se fizesse ao legislador a injustiça de ignorar o fato da Revolução Democrática Brasileira de 31 de março de 1964, deve-se admitir: "que um ato fixado pelo Comando Supremo da Revolução ou pelo Govêrno Revolucionário, que o sucedeu, há de ser analisado dentro dos quadros jurídicos em que foi gerado, não só em sua origem, como quanto a seus efeitos. N em se alegue que os efeitos referidos no art. 16 do Ato Institucional n.O 2 não são contemplados na atual Constituição e que, conseqüentemente, não podem mais prevalecer. Esta interpretação carece de suporte jurídico, não foi o que desejou o poder revolucionário (Ato Institucional n.o 4, de 7 de dezembro de 1966) e nem o que fêz a Constituição (art. 173).
"Não se há, portanto, de discutir a compatibilidade ou não daqueles com a Constituição, porque esta os reconheceu e aprovou. As restrições constitucionais são permanentes e contemplam certas situações jurídicas, que ocor-
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rem sob sua vigilância. A dos Atos Institucionais e Complementares tem natureza diversa e só se aplica aos casos por êles regulados, aos indivíduos por êles atingidos. Não há, portanto, nenhuma incompatibilidade entre elas." 10 . 'Dal interpretação se impõe, não só pelos motivos expostos e, mais ainda, porque, consoante aquêles textos institucionais, a suspensão de direitos políticos, particularmente na hipótese -prevista no art. 15 do Ato Institucional n.o 2, decorreu da exigência de "preservar e consolidar a Revolução", o que seria falseado se a suspensão não continuasse cercada das providências essenciais previstas em seu art. 16. E o processo revolucionário ainda continua, pois os atos do poder revolucionário e suas normas não podem ser ignorados e a Lei Maior os acolheu e aprovou. E acolheu e aprovou para quê? Para nada? Isto seria fazer uma injuria ao leg';.slador e desconhecer um fato evidente: A Revolução Democrática Brasileira, de 31 de março de 1964. Aliás, como já salientamos, a nova Constituição teve, também, como objetos, institucionalizar os ideais e princípios da Revolução, assegurando a continuidade da obra revolucionária (consideranda do Ato Institucional n.o 4, de 7 de dezembro de 1966). E foi por isso que ela estabeleceu as prescrições constantes de seu art. 173. 11. Concluímos, assim, que aquêles que tiveram seus direitos políticos suspensos, .com fundamento no art. 10 e seu parágrafo único, do Ato Institucional n.o 1, de 9 de abril de 1964, e art. 15 do Ato Institucional n.o
2, de 27 de outubro de 1965, continuam sujeitos às restrições e medidas previstas no art. 16 dêste último Ato e no quanto se encontra, ainda, estabelecido nos Atos Complementares n.O 1, de 27 de outubro de 1965, n.o 3, de 3 de novembro de 1965 e n.o 10, de 4 de junho de 1966. São os efeitos transitórios da legislação revolucionária, acolhida pelo art. 173 da Constituição de 1967".
É o relatório.
Voto
o Sr. M in. Márcio Ribeiro: -A tese da caducidade do Ato Institucional, definidor da pena e, conseqüentemente, da ilegalidade da imposição, sobreleva as demais questões discutidas no processo.
A ponderável atenuação, constante da sentença, não retira o caso da área própria do habeas corpus, pois continua evidente a restrição à liberdade de ir e vir do paciente.
Nem a remessa do recurso ordinário a êste Tribund impede que, preliminar:nente, se tome .{'onhecimento do pedido.
Na pendência do recurso ordinário ou mesmo após o trânsito em julgado da sentença, o habeas corpus é o meio hábil para evitar o constrangimento, quando se verifica não ser crime o fato imputado ao condenado, ou quando não lhe é aplicável a pena de prisão (Pontes de Miranda, Teoria e Prática do Habeas Corpus, 148/149). A finalidade do remédio, como ensina Gentil Rangel, é fazer cessar de pronto, imediata-
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mente, todo constrangimento decorrente do ato ilegal, como pára-raio, broqueI, forma viva e augusta da eqüidade, na distribuição da justiça, repressiva (Rev. Eorense, voI. 33, pág. 287). Portanto, a pendência do recurso ordinário não restringe (R.T.J., voI. 36, pág. 663).
A nossa competência recursal, no .caso, não poderia ser posta em dúvida diante dos arts. 117, letra c e 151, § 4.°, da Constituição vigente.
Conheço, pois, do pedido. Volto ao mérito: Contrariando a tese da cadu
cidade, as informações ministeriais argumentam no sentido de que interromper os efeitos dos Atos Institucionais e Complementares seria frustrar os ideais da Revolução, que determinaram e deram forma à nova Constituição Brasileira.
E, acrescenta o ilustre informante, referindo-se àqueles Atos:
"Hieràrquicamente superiores e fonte geradora do poder constituinte, não poderia êste sobrepor-se àqueles. E não só não se sobrepôs, como acolheu, mediante aprovação, os atos e normas referidos no art. 173 da Constituição de 24 de janeiro".
Mas, após a decretação e promulgação dessa Constituição que, aliás, representa, por sua vez, a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução - o que se torna preciso examinar é se continuava ainda em vigor qualquer ato a ela contrário.
A incorporação de leis ao texto constitucional só pode ser admitida em virtude de dispositivo expresso da própria Constituição.
Por isto mesmo, na espécie, as divergências se sitQam na interpretação do art. 173.
A referência a êste artigo acautela a pressa de se pretender o reexame da extensão dos podêres outorgados ao Congresso Nacional como possibilidade de se concluir contra o texto da nova Carta.
Na verdade, em sã doutrina, ao Judiciário é vedado apreciar os antecedentes e concomitantes de sua promulgação.
Segundo Del Vecchio (Lezione di Filosofia deI Diritto, pág. 246): "O contrôle do Juiz deve, porém, limitar-se às garantias extrínsecas, formais. Não seria êle competente, por exemplo, para examinar os procedimentos internos da Câmara ou do Senado, a regularidade das votações, etc. (interna corporis). Contra a irregularidade intrínseca de funcio· namento dos órgãos legislativos não existe remédio judicial. É necessário restringir-se à correção dos próprios órgãos, e, como ultima ratio, ao tribunal da história, isto é, a sanção da consciência jurídica popular."
Em seguida, o mesmo autor fixa as circunstâncias em que a revolução, episàdicamente, pode substituir a ordem jurídica; neste sentido, pode-se falar ainda de um direito à revolução, como de um meio supremo, para reafirmar a ordem jurídica, quando os órgãos do poder público não são legitimamente constituídos ou contravenham às garantias das quais devem ser os guardiães. Tôda vez que os corpos legislativos sigam critérios substancialmente irregu-
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lares e incorretos em seu procedimento e as liberdades essenciais dos cidadãos sejam violadas ou postas em perigo, o direito natural pode sublevar-se ,contra o positivo e despedaçar-lhe o invólucro, criando, através da legalidade de hoje, a legalidade de amanhã."
Tendo passado por uma dessas transformações violentas que, todavia, na esfera jurídica, já se completou, não seria lógico ou mesmo desejável inverter os acontecimentos históricos, para fazer prevalecerem sôbre o nôvo Estatuto Fundamental da Nação as leis institucionais de emergência.
Como observa Pontes de Miranda: As revoluções populares e os golpes de Estado podem manter ou derrubar a Constituição: os efeit0'1 serão apenas o de se apagar, por um momento, a luz da juridicidade (Constituição de 1946, I, pág. 163).
Sôbre a revogação dos dispositivos legais e atos anteriores à Constituição convém transcrever a completa lição dêsse insigne constitucionalista, nos seus Comentários à Constituição de 1934 (VoI. 11, pág. 559).
É a seguinte: "1 - À Constituição têm de
amoldar-se as leis, assim as leis a serem feitas, as leis futuras, .como as leis já pl'omulgadas. Mas, a noção de constitucionalidade é juridicamente a partir do momento em que começa a ter vigor a Constituição; todo o material legislativo, que existe, considera-se revogado no que contraria os preceitos constitucionais. Porque a lei não tem sempre a vida ligada ao momento em que foi feita; a lei incide nos fatos à medida que
êles se dão. O ato administrativo ocorre em determinado instante, de uma vez, e opera os seus efeitos. A lei, não: a lei (que não se refere a um só caso) enquanto permanece vigente, continua, através dos tempos, a produzir os seus efeitos, que são os de sua incidência em cada caso, previsto pelas suas disposições. 2 - Se o ato do Govêrno provisório operou de uma vez por tôdas (v.g. demissão de funcionário) e teve os seus efeitos antes de 16 de julho de 1934, está aprovado. Se o ato do Govêrno provisório consiste em lei, regulamento, instruções, avisos ou qualquer delibera cão que seja suscetível de seqüência temporal de efeitos, de continuar a incidir sôbre fatos que aconteça~, a incidência dêles antes de 16 de julho de 1934, está aprovada. Depois disso, absolutamente não. Depende de valer, conforme o art. 187. 3 - Para que uma lei (na expressão "leis" do art. 187, compreendem-se quaisquer regras jurídicas, quaisquer fontes de direito) explícita ou impllcitamente contrarie disposições da Constituição, basta que não pudesse na vigência da Constituição ser feita. É isto o que significa ser ao longo do tempo desde o presente, isto é, só a partir de 16 de julho de 1934, a constitucionalidade a ser apurada nos atos legislativos. Quer relativamente à lei anterior à Constituição, quer relativamente à lei posterior a ela, não importa o tempo da feitura. Porque o Poder Legislativo pode fazer leis cujo conteúdo se choque com os preceitos constitucionais, o Presidente da República promulgá-las e, no
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entanto, serem inconstitucionais. O que se conta são os seus efeitos, a sua realizabilidade como norma ou conjunto de normas de direito, exatamente o que ocorre quanto às leis anteriores à Constituição. Todo o efeito que passe a linha temporalmente traçada pelo dia 16 de julho de 1934 não pode incidir nos fatos. 4 - As leis que continuam em vigor são tôdas as que existem e não são incompatíveis com a Constituição nova. Indusive as regras contidas na constituição anterior, pôsto que como simples leis."
Nos Comentários à Constituição de 1946 (VoI. IV, pág. 479) sintetizou: "Sempre que (a) a lei exauriu, antes de 18 de setembro de 1946, a sua eficácia não" há problema. Se (b) a lei não exauriu a sua eficácia, quer dizer, se continuou a incidir, o sistema constitucional nôvo, desde a promulgação da Constituição, a faz inconstitucional, por ser lei superior, ou a revoga, por ser também lei posterior. Na classe (b) , há subc1asse, que é a das leis que se referem a atos a "serem praticados" pelo "Poder Executivo". ~sses atos, no tempo em que a Constituição tem de incidir, somente se são compatíveis com a Constituição nova podem ser praticados. A cada gesto do Poder Executivo tem-se que perguntar: Obedeceu à Constituição de 1946
. o Poder Executivo?". A Constituição vigente - co
mo a de 1946 - não contém a superfetação de uma regra explícita sôbre a revogação dos dispositivos legais anteriores, o que, aliás, como observa João Barbalho, a propósito do art. 83 da
Constituição de 1891, valeria como simples aviso aos executores da lei fundamental.
Mesmo sem ela - acrescenta - ficaria revogada tôda a legislação avêssà aos princípios e preceitos da Constituição que é lei das leis, pelo simples fato da promulgação desta.
E pergunta: Como manter ainda em vigor o que a Constituição tem abolido? Em que repousaria a fôrça obrigatória das leis contrárias à lei suprema? Não era assim indispensável o art. 83. É o caso da revogação implícita das leis. Somente subsistem das leis anteriores aquelas disposições que não forem incompatíveis (nisi contrariae sint) com a lei nova.
Alterado o limite de tempo para 24 de janeiro de 1967, estas lições são perfeitamente aplicáveis à atual Constituição que, em tese, revogou tôda a legislação anterior constitucional, institucional, complementar ou ordinária que seja incompatível com seus dispositivos expressos.
Mesmo o art. 173, do Ato das Disposições Transitórias, não escapa à influência dos mesmos princípios.
Na espécie, o disposto no corpo dêsse artigo não teria, aliás, pertinência, porque o próprio Ato Complementar n.o 1, no seu art. 2.°, manda submeter a medida à apreciação do Juiz.
A regra do item IH, considerada como proposição independente, está, sem dúvida, sujeita às regras comuns de aferição de incompatibilidade com o permitido na Constituição, que lhe é posterior ..
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Ora, esta, quanto aos direitos e garantias individuais dos cidadãos, é tão liberal quanto as constituições brasileiras precedentes e, pelo crivo de seu art. 150 e parágrafos tem que ser analisada qualquer exceção aos princípios da liberdade ou asseguradores ou ga1rantidores da propriedade.
Volta-se, em suma, ao mesmo problema já elucidado por Pontes de Miranda e Barbalho, ao comentarem as Constituições anteriores e à idêntica conclusão, a saber: 1.°) as disposições legais anteriores, de quaisquer natureza, são inválidas se contrariam a nova Constituição; 2.°) os efeitos dessas disposições não incidem sôbre fato posterior a 24 de janeiro de 1967.
Os atos legislativos (por hipótese o decreto de suspensão de direitos políticos) expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares não exauriram a sua eficácia, mas não incidem após a Constituição, naquilo que a contrarie.
Na espécie, o fato é a lamentável publicação ocorrida a 19 de julho de 1967 e a penalidade imposta à medida de segurança do item IV, art. 16 dó Ato Institucional n.O 2, consistente em domicílio determinado.
Não se confunde, essa pena, com o exílio local (Cód. Penal, art. 88, § 2.°, n.o IH) - que consiste no afastamento de certo lugar (o do crime) - quando o que se impôs ao paciente foi a obrigação de morar em determinada localidade (Fernando de Noronha, depois Piraçununga), donde se vê que a imposição foi e,
ainda, agora, continua sendo mais grave do que aquêle exílio, no qual o condenado conserva o direito de ir e vir à sua vontade, independentemente de ordem superior, desde que observe a proibição de não ir ao único local que lhe foi proibido.
N a esteira de Carlos Maximiliano, em seus Comentários. à Constituição de 1946, pode-se dêsse confinamento dizer que não se confunde com o banimento, vetado pelo art .. 151, § 11, da Constituição, que "é o clássico, decretado por veredictum 'judicial e consistente em obrigar o condenado a sair do país; nem com o destêrro político, admitido em estado de sítio ou de guerra, para algum ponto do território nacional". Mas, é (nossa agora a conclusão) "semelhante à residência obrigatória, tão usada pelos romanos antigos e adotada pelo facismo italiano".
E basta que pena tã(o grave tenha sido imposta em conseqüência de processo sumário, sem plena garantia de defesa, para que se a considere nula, por manifesta incompatibilidade com os parágrafos 15 e 16 do art. 150 da nova Constituição, decretada e promulgada a 24 de janeiro último, e na atual emergência, ofende, claramente, também ao art. 154, § 2.°, do mesmo diploma, onde a pena ficou dependendo da declaração de estado de sítio.
A suspensão dos direitos políticos continua, porque a nova Constituição, art. 151, a permite.
Não assim a pena imposta, que ela manifestamente repele.
Como à nova ordem constitucional escapariam apenas "as si-
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tuações jurídicas definitivamente constituídas" seria ilegítimo, em tema de liberdades públicas, que é fundamental, admitir um estatuto para os "cassados" anteriores à Constituição e outro, diferente, para os posteriores.
O elenco dos direitos e garantias individuais - na Constituição de 1946, art. 141 e parágrafos e na Constituição de 1967, art. 150 e parágrafos - é quase o mesmo. E, se esta Constituição procurou garantir melhor a ordem pública em outros dispositivos especiais, notadamente os referentes ao estado de sítio, isto representa ,mais um argumento a favor da igualdade de todos os que sofreram a amputação de seus direitos políticos.
A atual Constituição, art. 151, §§ 1.0 e 2.°, continua fiel aos dois princípios cardiais das democracias: a liberdade e a igualdade.
O princípio do § 2.°, a meu ver, é o prevalente e impede os abusos que se têm cometido, em jurisprudência, na aplicação do outro.
A necessidade de uma norma geral que sobranceira a todos, governantes e governados, norteie as ações humanas, é a única salvaguarda da justiça e da liberdade.
Na espécie, a distinção entre cassados anteriores e posteriores a 24 de janeiro de 1967 ofenderia, de qualquer modo, aos dois parágrafos ao mesmo tempo.
Assim, por manifesta incompatibilidade com vários princípios consignados expressamente na nova Constituição, houve, a meu ver, a aplicação de pena restritiva da liberdade legalmente inexistente, porque o Ato Institucio-
nal e o Complementar, que a fundamentaram, estavam revogados e, a despeito do decreto de cassação, não podiam incidir sôbre fato posterior a 24 de janeiro de 1967.
Chegando a esta conclusão, seria desnecessário examinar os outros fundamentos da impetração ou os argumentos em contrário da ilustre informação ministerial e do Juiz.
Observo, porém, que mesmo em processo criminal regular, a lei excepcional só se aplica a fato ocorrido durante a sua vigência (Cód. Penal, art. 3.°).
E, ainda, que do crime do art. 33, item In, da Lei de Segurança Nacional (Dec. 314 de 13 de março de 1967) - incitar publicamente a animosidade entre as fôrças armadas ou entre estas ou as classes sociais ou as instituições civis - não há que cogitar, pois a êle não se referem, espedficamente, nem a portaria de imposição da pena, nem a sentença que a diminuiu. Nem seria possível como tal definir o fato.
Aliás, se julgasse configurado êsse crime, teria proposto ao Tribunal a preliminar de sua incompetência, ex vi do art. 45 da mesma lei.
Diante da impossibilidade jurídica de aplicação de uma pena restritiva da liberdade, constante apenas de dispositivo legal revogado pela Constituicão, não me parece possível atender às razões de Estado veementemente consignadas na portaria e, sobretudo, na informação do habeas corpus.
Uma deplorável manifestação de despeito e crua impiedade não conserva, não pode conservar, fôr-
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ça suficiente à subversão da ordem do País.
Se a segurança nacional esti~
vesse realmente ameaçada, se fato tão mesquinho tivesse acarretado uma crise de imprevisíveis conseqüências (informações às fls. 90), certamente o Govêrno teria feito uso dos podêres que a nova Constituição largamente lhe outorgou, notadamente o do seu Título lI, Capítulo V, relativo ao estado de sítio.
O Presidente Castello Branco exerceu a Suprema Magistratura da Nação com dignidade e isenção invulgares. Com completa desambição pessoal, concorreu, decisivamente, para que fôsse transposto o período discricionário, que atravessamos, e o País reingressasse na ordem jurídica constitucional.
Prêso, como Juiz, a êsse regiIPe:
Concedo a ordem.
Voto
o Sr. Min. ]. ]. Moreira Rabel-10: - É grave equívoco supor que a Constituição atual teve o dom de repor as coisas no estado anterior. Emergindo de uma revolução, ela reflete, naturalmente, o espírito inspirador dêsse movimento, presente em muitas de suas normas que o Juiz, ao interpretá-las, não pode ignorar.
Em primeiro lugar, a Constituição' não revoga lei nenhuma. As leis só são revogadas, umas pelas outras, e quando o caso, desde que fazendo expressa remis-
são à revogação pretendida. O que a Constituição faz, isto sim, no campo dos princípios normativos, é ab-rogar tàcitamente as leis, às testilhas com os seus mandamentos formais.
No caso em tela, há que distinguir, para exame do' problema, os direitos políticos dos direitos individuais de que cuida a Lei Maior.
A cassação implica, evidentemente, na perda dos primeiros: o cassado não pode votar, ser votado, tomar parte em atividades eleitorais, em suma, praticar qualquer atividade política. Mas pode, em obséquio à franquia constitucional, exercer todos os demais atos contidos na sua atividade individual, salvo aquela que, dizendo, porventura, com os motivos determinantes de sua cassação, mesmo com o advento da Constituição, não se emancipou da sanção residual contida no ato .cassa tório, ou seja, o domicílio determinado que a autoridade própria pode estabelecer com a única restrição de submeter o seu ato lastreado em investigação sumária, tal como o fêz, à apreciação do Juiz. Retirar ao Executivo essa prerrogativa que adere, ut lepra cuti, ao ato cassatório, equivaleria ao esvaziamento dos motivos que inspiraram à Revolução a medida excepcional, o que o Juiz não pode ignorar. Seria mesmo que aceitar a tese absurda de que a Revolução, com o advento da Carta Magna, que sabemos obra de inspiração sua, estabeleceu um bill de indenidade para todos aquêles que ela, por motivos que não vem a pêlo invocar, julgou seus inimigos.
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É preciso não confundir vigência de uma lei institucional, com o efeito residual do que nela disposto, no tempo. Isso, hoje, é matéria pacífica nos tratadistas estrangeiros. De resto, não vejo qualquer conflito entre os arts. 152, da atual Constituição e o art. 16, inciso IV, da alínea c, do Ato Institucional - a admitir-se a identidade repressiva - preventiva das duas matérias aí disciplinadas. É que uma, quando cogita da obrigação de residência em localidade determinada, no caso do estado de sítio, é a resultante de direito positivo transitório, aplicável a qualquer classe de cidadãos, independente de qualquer outra punição que lhes haja sido imposta, enquanto a outra é matéria constitucional permanente, e só aplicável aos cassados.
Ressalte-se que não cabe ao Judiciário, e muito menos pela via heróica do habeas corpus, entrar no mérito da medida, senão que, apenas, nos pressupostos formais do ato, perfeitamente atendidos, inclusive na parte em que o Juiz deferiu à autoridade administrativa, a fixação do tempo do domicílio determinado.
Denego, por conseqüência, a ordem, que só conseguiu robustecer a convicção que me fiz do acêrto e da altitude moral do despacho agredido, máxime depois das explicações prestadas pelo Dr. Juiz ao Ministro de Estado, quanto ao prazo de fixação do domicílio que sempre entendi, dentro da lei, matéria ao critério da autoridade e enquanto durarem os motivos determinantes da medida.
Voto
o Sr. Min. Esdras Gueiros: -Senhor Presidente: Declaro meu impedimento, pe
las seguintes razões: se se cogitasse, na apreciação do presente habeas corpus, apenas da Portaria do Senhor Ministro de Estado, não estaria eu impedido. Todavia, a apreciação do habeas corpus envolve o referendum judicial dado pelo Juiz Federal da 1.a Vara da Guanabara de quem sou parente, por cunhadio.
Trata-se, pois, de impedimento legal.
Voto
o Sr. Min, Moacir Catunda: -Senhor Presidente: Tanto a argumentação dos im
petrantes, co limando a convencer da ilegalidade da medida restritiva, imposta ao paciente, como a das autoridades coatoras, justificando a prática dos seus atos, gira em tôrno do alcance do comando jurídico do art. 173 da Constituição Federal de 24 de janeiro dêste ano, de aprovar os atos que especifica, nos seus diferentes itens, cuja leitura me dispenso de fazer para não cacetear o Egrégio Tribunal com a recitação de textos conhecidos de todos.
A aprovação dos atos alinhados no preceito constitucional transitório vai dito claramente, e com enumeração exaustiva, o que indica a escolha, pelo Constituinte de 1967, de orientação diversa da adotada, no pertinente, pelos Constituintes de 1890, 1891 e 1934.
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Com efeito, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, vinda à lume após a queda do Império, via Dec. 510, de 22-6-1890, no seu art. 80, reproduzido pela Constituição Federal de 24 de fevereiro de 1891, art. 83 - dispôs que continuam em vigor as leis do antigo regime, no que explícita ou implicitamente não fôr contrário ao sistema de Govêrno firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados.
Trata-se de princípio de direito intertemporal encontradiço nos tratadistas, que veio de cristalizar-se, com modificações, na regra do § 1.0, do art. 2.° da Lei de Introdução ao Código Civil, pela qual a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declara, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Já o Constituinte de 1934, certamente advertido da inconveniência da adoção de forma genérica, propiciadora de polêmicas, demandas e até perplexidades em matéria do conteúdo predominantemente político, escolheu uma forma rígida, dizendo, no art. 18 das Disposições Transitórias da Constituição de 16 de julho de 1934: "Ficam aprovados os atos do Govêrno Provisório, dos interventores federais nos Estados e mais delegados d~ mesmo Govêrno e excluídos de qualquer apreciação os mesmos atos e seus efeitos".
O Constituinte de 1967, aprovando, sem nenhuma restrição, os Atos Institucionais e Complementares, assim como os atos de natureza legislativa expedidos com base nos mesmos, foi mais explí-
cito e objetivo do que os anteriores, visto que realizou a consolidação da atividade legislativa baixada no interêsse da defesa da nova ordem política, concomitantemente com a dita, respeitante à consecução dos objetivos primaciais da Revolução.
Dentre os atos revolucionários julgados bons pelo constituinte e por êle aprovados, figura o Ato Complementar n.o 1, de 27 de outubro de 1965, que di~ciplina a aplicação das medidas de segurança previstas no item IV, do art. 16, do Ato Institucional número 2.
O legislador revolucionário instituiu ditas medidas de segurança por tê-las julgado imprescindíveis, necessárias à implantação de ordem política imposta pela Revolução de 31 de março de 1964.
O ato legislativo disciplinador da aplicação das punições políticas em causa implanta raízes na própria lógica da efetividade delas, as quais, sem a coação prevista no mesmo, resultariam vazias, inócuas, ridículas, o que de nenhum modo faz sentido com a linguagem do constituinte, de aprovar os atos.
Como admitir incompatibilidade entre o ato regulamentador da aplicação da medida restritiva do direito civil de escolher o domicílio, e preceitos gerais permanentes destinados à garantia da generalidade dos cidadãos, quando a Constituição, solenemente, com o pêso de sua autoridade, através preceito transitório, aprova o ato inflitor da punição, e, bem assim, a norma legal que serviu de esteio a êle?
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Entendo que a norma transitória, no pertinente, convive com os preceitos permanentes; a coexistência da norma permanente, com a transitória, se me afigura de solar, translúcida evidência.
Relativamente às pessoas que sofreram punições políticas com base nos Atos Institucionais, de duração autolimitada, tenho para mim que o ato legislativo regulamentador da sua aplicação continua vigindo, obrigando, incidindo, no interêsse da eficácia da medida primitiva, até que esta se tenha exaurido pelo decurso do tempo de sua duração ou por revolução, ditada pelo poder competente.
Denego a ordem, Sr. Presidente.
Voto
O Sr. Min. Henoch Reis: -Sr. Presidente, data venia do brilhante voto de S. Ex.a o Min. Relator, ao qual, nesta oportunidade, rendo minhas homenagens, pela sua cultura jurídica e pela sua acuidade em deslindar as questões que aqui nos chegam, data venia não lhe endosso o entendimento nesse particular e, por isto, adotando por inteiro o voto do eminente Min. J. J. Moreira RabeHo, denego a ordem.
Voto
O Sr. Min. Cunha Vasconcellos: - Senhor Presidente, estamos repetindo, neste momento, muito daquilo que nós outros, que envelhecemos nesta Casa, vimos passar, a propósito da Constituição de 1934! Também aquela Constituição gerou muitos debates no atinente.
Valia ou não valia, contra o texto nôvo, a aprovação dos atos praticados pelo Govêrno Provisório, em contrário às disposições dêsse próprio texto?
E o Judiciário não teve dúvidas em fazer prevalecer a regra e os motivos determinantes que o movimento consolidara, para que êsse movimento não caísse no vácuo, não se tornasse inócuo, como seria a conseqüência necessária, data venia do eminente Min. Relator, se pudesse ser acolhido neste momento, pelo Tribunal, o voto de S. Ex.a •
Eu me dispensaria, como me dispensarei, de longas considerações.
O Tribunal teve oportunidade (sem que minhas palavras importem em restringir, de forma alguma, o brilho, o esfôrço, do voto do eminente Min. Relator) de ouvir, nessa Sessão, um trabalho jurídico dos mais valiosos que aqui têm sido pronunciados a respeito da tese que é debate neste instante, e que foi motivo provocado pelo pedido de habeas corpus.
:ítste trabalho foi o que apresentou, nesta Casa, o Dr. Subprocurador-Geral da República.
Entendo que a argumentação de S. Ex.a foi cerrada, destruidora, demolidora e irrespondível!
S. Ex.a não usou palavras vãs nem falou aos ventos!
S. Ex.a falou ao juízo dos juristas! Argumentou cerrada mente e demonstrou a impossibilidade de se chegar a uma conclusão diferente daquela que a própria natureza dos fatos está a indicar.
Senhores, nós somos Juízes, não somos políticos! Mas nem por isso
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podemos fazer abstração dos motivos políticos determinantes das conseqüências ou, por outra, determinantes da orientação jurídica consagradora.
Nós sabemos das razões determinantes da Revolução de 64!
Nós, aqui em Brasília, sentíamos melhor do que em qualquer outra parte do Brasil, talvez muito próximo de nossa carne, as ameaças, ou o que de momento poderia surgir. E foi contra isso que se fêz a Revolução! Para evitar o recrudescimento da crise, fêz-se a Revolução.
Os militares fizeram a Revolução! Porque, dessa vez, foram os militares que tomaram as medidas, no sentido que êles entenderam mais acertado, para evitar que, pelo menos dentro de um futuro próximo, tivesse possibilidade de articulação o tenebroso movimento que se vinha preparando. Julgaram de bom alvitre adotar providências que se .consubstanciaram em regras jurídicas.
As revoluções têm os podêres que querem, desde que disponham de fôrça para fazê-los efetivos. É um princípio jurídico úniversal! Os militares brasileiros tiveram fôrças e fizeram a nova Constituição! Por que razão não vamos cumprir essa Constituição? Se não a cumprirmos, tudo que êles fizeram se perderá no vácuo!
Se a tese da sentença do provecto Dl'. Juiz Hamilton Leal pudesse prevalecer, a revolução teria cessado! O cassado estaria sem capacidade política passiva e ativa, quer dizer, não poderia votar nem ser forçosamente votado, mas poderia exercer amplamente sua
atividade política no País, poderia lançar candidaturas, escrever em jornais sôbre política, etc ..
O jurista não pode, absolutamente, ignorar a razão de ser da lei, principalmente se ela está tão próxima de nós outros.
Vamos ser verdadeiros! Vamos ser exatos! Os princípios liberais, os princípios de liberdade são de ser acolhidos e defendidos por nós!
Trata-se, no momento, de decidir um pedido de habeas corpus em face da lei e da razão que ditou essa lei. Essa razão foi nitidamente fixada pelo Sr. Min . J. J. Moreira Rabello. E o Sr. Subprocurador-Geral da República demonstrou que entender de outra maneira seria, data venia, uma incoerência.
Por isso, Sr. Presidente, dispenso-me de outros comentários e nego o habeas corpus.
Voto (Vencido)
O Sr. Min. Henrique d'Ávila: - S1'. Presidente, o Brasil, durante a Era Republicana, teve sua estrutura política e social abalada por duas revoluções verdadeiras e significativas: a de outubro de 1930 e a de 31 de março de 1964. De permeio, é certo, assistimos o deflagrar de alguns motins e pronunciamentos que não deixaram marcas, nem imprimiram modificações de relêvo no arcabouço institucional do País. E as duas bastante se assemelharam em seus propósitos e finalidades. A de 1930 trouxe-lhe inovações de alto porte. Criou um ambiente jurídico favorável às classes desvalidas da fortuna, com o advento da legislação trabalhista,:
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e procurou, dentro das possibilidades sociais restritas então vigorantes, promover o desenvolvimento econômico do País, retirando-o do marasmo e das influências nefastas do partidarismo estreito e do campanário que o infelicitava.
Elas se aparentam de tal maneira que quase se identificam na forma e no seu processo de evolução. Modificaram ambas as diretrizes constitucionais vigentes, para afeiçoá-las, por atos institucionais temporários e de exceção, aos princípios ideológicos daqueles movimentos insurrecionais.
O Govêrno Provisório de 1930 criou a sua Lei Orgânica, autolimitando os amplos e irrestritos podêres de que passou a gozar. E, o Govêrno Revolucionário de 1964 editou, por sua vez, os Atos Institucionais de n.08 1 e 2, modificativos da Constituição de 1946; mantendo-a, todavia, em tudo o mais em que aquêles não a inovaram. Em ambos os movimentos armados manifestou-se, como era natural, o alevantado propósito de expungir dos quadros políticos e funcionais os corruptos e os recalcitrantes à prática de métodos mais adequados e patrióticos de melhoria de nível moral e dos costumes políticos então reinantes.
Os atos institucionais e as leis de exceção, por sua natureza temporários, do Govêmo Provisório de 1930, se exauriram com o advento da Constituição de 1934. Em seu art. 18, das Disposições Transitórias, manteve esta, é certo, os etos do Govêrno Provisório e os considerou insusceptíveis de apreciação judicial. Essa
aprovação, todavia, sempre foi considerada como condizente com aquêles atos de índole executiva que produziram todos seus efeitos no decurso do interregno revolucionário de exceção. Os de natureza legislativa, porém, que se não integraram no elenco constitucional, .como é óbvio, restaram sem atuação e eficácia, quando inconjugáveis com os cânones constitucionais. Se o constituinte os considerasse indispensáveis à sobrevivência da ideologia revolucionária os teria por certo inserido no arcabouço da Constituição. E, ainda, cumpre acentuar, ademais, no caso, que o próprio Ato Institucional n.O 2, em seu art. 33, circunscreve sua vigência até 15 de março de 1967.
Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com a Carta Magna de 24 de janeiro de 1967. Foram mantidos os atos executivos e políticos do Govêrno, praticados em decorrência dos Atos Institucionais, e os legislativos atuantes no curso do período revolucionário, mas, quando dêstes atos resultarem efeitos e conseqüências futuras, inconciliáveis .com o texto permanente da Constituição vigente, não devem êles subsistir. Só podem prevalecer os que produziram efeitos imediatos como as suspensões de direitos políticos, tout coud, sujeitas apenas às restrições insertas na Constituição, demissões e transferências de funcionários e outros, cujos efeitos se fizeram sentir de pronto. Tudo o que restar da legislação revolucionária não incorporado à Constituição ou com ela incompatível, tornou-se inoperante, porque considerado como não
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essencial à consolidação do nôvo regime.
Se assim não fôsse, no caso, enfrentaríamos situação extremamente paradoxal: o de cassados sujeitos a disciplina distinta. Os que sofreram dita punição antes do advento da Constituição, ficariam sob o guante do confinamento; e, os atingidos posteriormente, livres dêste castigo. Lícito não é conceber estado de direito, digno dêsse predicamento, em que ao lado e paralelamente aos cânones constitucionais, operem leis extravagantes e excepcionais com êles incompatíveis.
Assim sendo, Sr. Presidente, data venia do eminente Sr. Min. J. J. Moreira Rabello e dos provectos Colegas que o acompanharam, dou meu apoio por inteiro ao voto do eminente Relator, que, para mim, constitui peça brilhante, inteiriça e irretorquível, como soem ser os pronunciamentos de S. Ex.a. Por isso, Sr. Presidente, não me resta senão conceder, por igual, a ordem.
Voto
O Sr. Min. Djalma da Cunha Mello: - O Exmo. Sr. Ministro da Justiça mudou domicílio ao jornalista Hélio Fernandes, submetendo-o, por sôbre, à vigilância da polícia do Exército.
Fê-lo por meio da Portaria n.O 197-B, de 20 de julho p.p., que
o MM. Juiz da 1.a Vara Federal da Guanabara manteve, vindo daí pedido de habeas corpus.
Precípuo, para decidi-lo, vistoriar o alicerce jurídico do emprêgo de medida e do referenda respectivo.
Secretário de Estado e Pretor procederam à base do disposto na
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parte geral e inciso IV do art. 16 do Ato Institucional n.o 2, de 27-10-65, e art. 2.° do Ato Complementar n.o 1, da mesma data.
Estando escrito no primeiro, isto é, no principal, art. 33, condicio· nando o segundo ou seja o acessório, que "o presente Ato Institucional vigora desde sua publicação até 15 de março de 1967". Colige-se, conclui-se, tem-se, inescureclvelmente, que os atos impugnados incorreram em antijuricidade, pôsto que fincados num ucasse que se autolimitara no tempo, que estava, em conseqüência, de ciclo percorrido, que meses antes fôra entregue e reentregue ao sepultureiro.
Inda aceitando, por aprêço a debates, que inexistente, no Institucional n.o 2, o transcrito artigo 33 ou algo parelho, tudo estaria na mesma temperatura morrediça, pois que Lei sobrevinda e de categoria suma, a Carta de 24 de janeiro último, vigente a .contar de 15 de março seguinte, teria varrido de curso, maquinalmente, a êsse institucional, por inconjugável, por incompatível com sua preceituação, que prevê e provê suspensão de direitos políticos sem dano aos direitos individuais de ir e vir, de escolher domicílio, de continuar a exercer profissão lícita, direitos que integram o rol daqueles sem os quais a vida humana não vale ser vivida.
Dir-se-á que o art. 173 da Carta autoriza compreensão contrária.
Nanja. Também se procurou carregar ao art. 18 da Constituição de 1934, aprovação, indiscriminada, de atos legislativos do Govêrno Provisório ...
Francisco Campos, mestre conspícuo de Ciências Políticas, prestam ente positivou que essa "enormidade" não poderia estar no pensamento do Constituinte, que isso importaria na "situação contraditória, absurda, monstruosa, caótica de têrmos em obrigatoriedade, neste País, a um só tempo, dois Direitos incompatíveis", o da própria Constituição e o de alguns dos Decretos do Govêrno Provisório, confirmados no seu vigor pela mesma, embora colidentes com seus princípios e com suas prescrições.
A continuidade do sistema jurídico se manteve, cessada tôda fôrça produtiva de efeitos nos atos legislativos não concordes com o nôvo Estatuto Básico.
Houve aprovação irrestrita de atos cujos efeitos já se houvessem produzido, o que só pode referir-se a atos perfeitos no passado, a atos consumados, a atos não destinados a continuar a reger para o futuro." (Francisco Campos, Direito Constitucional, voI. I, págs. 368/210). A exemplo do que fêz o art. 18 da Disposições Transitórias da Constituição de 1934, o art. 173 da Carta de 1967 votou -se aos fatti compiuti, deixando intangível o que consumado, feito, praticado, antes, ao tempo de império do Institucional n.o 2 e à sua medida.
Aprovou, excluiu de apreciação judicial, no concreto, a suspensão, decenal, de direitos políticos, com suas implicações, alinhadas nos três primeiros incisos do art. 16 do Institucional n.o 2, não, de nenhum modo, para aproveitamento futuro, as sanções do inciso IV dêsse mesmo artigo, inoperantes,
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letra morta, redigo, desde que terminado o prazo de vida que o próprio institucional se atribuir a naquele art. 33, imprestáveis, inconcessas, quando isso não fósse, por in.conciliáveis com a nova Ordem.
A expressão "aprovados" do art. 173 da Carta, torno a sublinhar, reacentuo, fala para faits accomplis, achevés en tout, como diria mestre Roubier, não engloba o que por fazer, que só se fará nos têrmos do grande comando jurídico, indivisível, advindo e de que êsse preceito faz parte.
Nem se pretenda que sem as penalidades do inciso IV aludido ficariam à impunidade transgressões tocantes aos outros. " Não: A lei eleitoral impede que brasileiro sob suspensão de direitos políticos vote ou seja sufragado, integralize quadro de partido político ou participe de suas atividades, constituindo crime previsto na mesma cassado tomar parte em comícios e atos de propaganda, mesmo em recintos fechados. E restrições idênticas obstam-lhe a presença, ativa, em eleições sindicais.
Os caps. li e IH do Tit. H da Carta ficaram, por fôrça do antedito art. 173 da mesma, si et in quantum incondizentes com os brasileiros a que a Revolução de Março de 1964 tirou por um decênio direitos políticos. Mas o Capítulo IV não. Seu art. 150, § 23, favoneado auspiciosa mente pelo que escrito no texto seguinte, no 151, franqueou a quem antes exercia o jornalismo político, de crítica dos atos de Govêrno, como profissão, continuar a exercê-10.
Possíveis ex.cessos - e isso se ajusta a cassados e não cassados - serão da conta dos aplicadores e executores da Lei de Segurança Nacional, da Lei de Imprensa, da Lei Eleitoral, da Lei Penal, da legislação que nos rege a conduta, que êste País não é terra sem lei. Não terão que ver com aquêle institucional, sob o qual o chão já há meses se abriu, escancarou e fechou.
Recordo, de passagem, aos que recomendam exegese e observância da Carta de 1967, sem prejuízo algum dos intuitos da Revolução de Março de 1964 e do direito positivo que surgiu no período de Govêrno discricionário que aí principiou e que teve tê rmo em 15 de março último, que isso depende exclusivamente da própria Carta, do que na mesma se contém.
Os podêres constituintes, venham das cidadanias por intermédio de eleições livres, de representação autêntica, de um rei ou de um ditador de qualquer tipo, são alterosos, anchos, jamais adictos, adstritos.
O intérprete, austero, de uma superlei, procura abelhudar-lhe o conteúdo, auscultar-lhe o sentido, adaptá-la às circunstâncias, fazê-la viver, assistido apenas pela doutrina acreditada e pela tradição, animado de propósito perfeccionista, atento às aspirações nacionais inobjetáveis, à perspectiva histórica, o que inclui ideais revolucionários, não inclui o fadário das revoluções.
As revoluções buscam legitimidade, os governos surgidos como corolário se autolimitam, se institucionalizam e tudo acaba numa
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constitucionalização, que arreda, que renega, todo direito positivo que a contrarie, que lhe amarfanhe a liderança plenária, de peanha, proeminente, da ordem jurí. dica do regime.
Nímio, numa superlei, texto revogatório do direito positivo antecedente que se lhe opuser.
Seria rareza e redundância, pois que lei dêsse tipo não partilha postulados.
Ao se tornar peremptória, impõe, soberanamente, seu conteúdo, pondo automàticamente em ignição todo direito positivo preexistente de sentido antagônico, detentora, que é, da competência primígena, que capitula, circunstancia, confere e confina as de· mais competências.
Concedo pelo exposto o writ e para que se restabeleça o statu quo ante do paciente, quanto a domicílio, residência.
Com o Relator. Voto
o Sr. Min. Godoy Ilha: - Sr. Presidente, não desejo alongar êste debate. As teses que se controvertem nesta causa são por demais conhecidas. Em que pese o magnífico e brilhantíssimo voto que proferiu o eminente Min. Relator, data venia, arrolo-me entre aquêles que denegaram a ordem. Invoco, como valiosos subsídios do meu voto, os jurídicos fundamentos da magnífica sentença de Primeira Instância do ilustrado titular da P Vara de Justiça Federal do Rio de Janeiro.
Voto
o Sr. Min .. Amarílio Benjamin: - Dada a relevância da matéria,
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achei por bem reduzir a escrito as observações em que estruturei o meu pronunciamento a respeito da controvérsia. Ê o que vou ler, com a tolerância dos meus eminentes Colegas uma vez que o que vou dizer não constituirá novidade, quer de um lado, quer de outro:
Requerem os advogados Antônio Evaristo de Moraes Filho, Mário de Figueiredo e George Tavares a presente ordem de habeas corpus em favor do jornalista Hélio Fernandes, alegando estar o mesmo sofrendo constrangimento em sua liberdade de locomoção, como conseqüência de domicílio determinado, impôsto pelo Sr. Ministro da Justiça e confirmado pelo Sr. Juiz Federal da 1.a Vara, no Estado da Guanabara.
Liga-se a matéria à aplicação dos Atos Institucionais do Poder Revolucionário e das normas que os desenvolveram e completaram, em face da Constituição em vigor a partir de 15 de março de 1967.
Os Atos Institucionais n.o 1 (art. 10) e n.o 2 (art. 15), autorizaram a suspensão dos direitos políticos por 10 anos. Tal penalilade foi aplicada ao paciente.
Prescrevia o Ato Institucional n.o 2, no art. 16: "Art. 16 -A suspensão de direitos políticos, com base neste Ato e no art. 10 e seu parágrafo único do Ato Institucional, de 9 de abril de 1964, além do disposto no art. 337 do Código Eleitoral e no art. 6.° da Lei Orgânica dos Partidos Políti. cos, acarreta simultâneamente:
I - a cessação de privilégio de fôro por prerrogativa de função;
11 - a suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
111 - a proibição de atividade ou manifestação sôbre assunto de natureza política;
IV - a aplicação, quando necessária à preservação da ordem política e social, das seguintes medidas de segurança:
a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar de
terminados lugares; c) domicílio determinado." O Ato Complementar n.o 1
disciplinou, assim, a imposlçao das medidas de segurança previstas: "Art. 2.° - As medidas de segurança previstas no item IV do art. 16 do Ato Institucional n.o 2 serão aplicadas pelo Ministro da Justiça, após investigação sumária pelo Chefe do Departamento Federal de Segurança PÚblica, e submetidas, dentro de 48 horas, à apreciação do Juiz Federal competente, observando-se, no que couber, o Código Penal e o Código de Processo Penal.
Parágrafo único - Da decisão, despacho ou sentença do Juiz sôbre a aplicação da medida de segurança ou sua execução caberá recurso em sentido estrito, sem efeito suspensivo, para o Tribunal Federal de Recursos."
Foi baseado nessas disposições que o Sr. Ministro da Justiça assentou a deliberação impugnada.
No exame da determinação ministerial, o primeiro confronto há de ser feito com a Carta Constitucional vigente. De fato, o Estatuto Básico, instituindo o nôvo regímen e a normalidade política, prescreveu no art. 173: "Art. 173 - Ficam aprovados e excluídos
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de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como:
I - pelo Govêrno Federal, .com base nos Atos Institucionais n.o 1, de 9 de abril de 1964; n.o 2, de 27 de outubro de 1965; n.o 3, de 5 de fevereiro de 1966; e n.o 4, de 6 de dezembro de 1966, e nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais;
lU - os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item 1."
Diante disso, não há dúvida, portanto, que a suspensão dos direitos políticos do paciente está de pé com as componentes in tegrativas, constantes dos itens I e UI do art. 16. Trata-se de ato praticado. Perfeito. Concluído. O que, no entanto, vem ao debate, em face do pedido, é a medida de segurança do domicílio determinado, constante do item IV, letra c, ou, mais precisamente, se o Ministro da Tustica. diante da Constituição, podia ainda utilizá-la.
O Dr. Juiz. homologando o eto ministerial, invocou o princípio da ultra-atividflde da lei. consignado no art. 3.0 do Código Penal: "Art. 3.° - A lei e~cencional ou temnorária. embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência".
Dêsse modo. entretanto, o preceito, à vista dos fatos a que se pretende acorrer, não estÁ hem compreendido. A ultra-atividade
prolonga a lei no tempo, mas se dirige a evento verificado em sua vigência. Na hipótese, não só a restrição, como o motivo que a provocou, são fatos novos. Segundo o Ato Institucional n.o 2, art. 16, a suspensão dos direitos políticos acarretava simultâneamente a cessação do privilégio do fôro, a suspensão do direito de voto nas eleições sindicais e a proibição de atividade ou manifestação sôbre assunto de natureza política, itens I a lU. As medidas de segurança, porém, ficaram na dependência da necessidade de preservação da ordem política e social, item IV. As primeiras restrições compõem a própria suspensão; já as segundas ou as medidas de segurança, podiam ser utilizadas ou não. Logo, auanto a estas, a regra da ultra-atividade não as resguarda. Também não lhes serve, pela mesma razão de desmerecimento, o art. 75 do Código Penal, que cuida de providência já imposta, em face de lei nova.
Não obstante, a ocorrência tem que ser examinada também em têrmos pràpriamente constitucionais.
A Con"titlJirão é a lei hásica do Estadn. S;rtnifica o in~trllmento de eauilíbrio das relações entre governantes e governados. É a lei suprema que a tudo e a todos submete. Fora do seu texto, ou .contra êle, nada pode prevalecer. É absolutamente incondicionada, no sentido de não depender de nenhuma fôrça estranha. Proclamada uma constituição, a constituição anterior e atos equivalentes deixam de existir. Todavia, é comum, nas mudanças de regímen, a ressalva
de atos praticados sob o sistema anterior, para o efeito de garantir-lhes a indiscutibilidade e a execução. Também, para que o Estado, sob a forma nova adotada, não fique no vazio e seja obrigado a construir tôda a administração, nos seus variados aspectos, o Direito consagrou o princípio da continuidade legislativa, que se traduz na permanência da legislação ordinária anterior, salvo no que contradiga ao nôvo Estatuto Fundamental.
No sistema específico do Brasil, com vistas à Revolução de Março, os chefes do movimento levaram a tal ponto a preocupação com o estado de direito e sistema legal, que, embora dispondo de ilimitados podêres de fato; não suprimiram a Constituição de 46; aditaram-na e emendaram-na; baixaram atos institucionais, porém, limitados no tempo; e, por fim, manifestaram, com o Ato Institucional n.o 4, o intransigente propósito de traduzir o pensamento da Revolução, a sua mensagem definitiva, numa carta constitucional, intento que se cumpriu, graças ao patriotismo e à sinceridadE' do Presidente Castello Branco, na Constituição de Março de 67. A partir daí, os ideais revolucionários não desapareceram, e é natural que estejam vivos, como sentimento e inspiração, mas passaram a ter .como instrumento de ação e de defesa a Carta Magna, que foi votada. As regras institucionais ou constitucionais editadas anteriormente terminaram o seu ciclo ou foram absorvidas pelo nôvo Estatuto; e os preceitos que compunham matéria de legislação ordinária
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subsistem, embora na conformidade do axioma da continuidade legislativa, isto é, no que se harmonizem com a nova ordem. De fato, a persistência absoluta daquelas regras e dêsses preceitos, impediriam o pretendido restabelecimento pleno da vida democrática e o funcionamento normal dos podêres do Estado, como foram reestruturados. Por isso mesmo, teve a nova Constituição o cuidado de garantir, por meio de indicação expressa, o que, da situação anterior, foi julgado indispensável. Daí provém o art. 173 das Disposições Gerais e Transitórias, que não destoou da orientação seguida em casos semelhantes, desde que se refere a atos praticados pelas fontes relacionadas do Poder Revolucionário. A inclusão no item In dos atos de natureza legislativa não significa perenidade, nem seria concebível tal pensamento. Fôra assim, o poder de legislar deixaria de ser livre e a lei não poderia atender à realidade, que é dinâmica, pela própria natureza. A previsão do item UI, dada a circunstância de o Poder da Revolução haver convivido com o Parlamento da Constituição de 46, homologa e reconhece, por .certo, para dissipar quaisquer dúvidas, a competência e autonomia do legislador revolucionário.
Como quer que seja, a Constituição de 67 teve a consciência do problema da suspensão dos direitos políticos e da limitação dos direitos e garantias individuais, enfrentando o assunto no seu texto permanente.
No art. 151 dispõe: "Art. 151 - Aquêle que abusar dos direitos
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individuais previstos nos parágrafos 8.°, 23, 27 e 28 do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na suspensão dêstes últimos direitos pelo prazo de dois a dez anos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da República, sem prejuízo da ação civil ou penal cabível, assegurada ao paciente a mais ampla defesa."
Vê-se, pelo dispositivo, que o abuso dos direitos individuais de liberdade do pensamento, livre exercício do trabalho, reunião e associação, e dos direitos políticos importa na suspensão dêsses últimos. A autoridade competente para estabelecê-la, porém, é o Supremo Tribunal Federal, sob representação do Procurador-Geral da República. Futuramente, o Pretório Excelso, com a lucidez que distingue os seus ilustres titulares, dará o conteúdo perfeito da suspensão dos direitos políticos, que decretar, se a lei não lhe tomar a dianteira. Mas, já agora, é certo que as medidas de segurança, admitidas no Ato Institucional n.o 2, art. 16, n.o IV, não foram autorizadas pela Constituição nem estão incluídas por fôrça de compreensão, como essenciais à efetividade da capitis deminutio.
Ê verdade que há menção a elas, em espécies determinadas, noutro capítulo, ao lado de providências de caráter diferente. Ê o que se vê no art. 152, auto rizativo do estado de sítio, que, entretanto, no momento, não se acha decretado. A qualquer sorte,
todavia, vale destacar os arts. 154 e 155, que demonstram, malgrado a crise que surja, a submissão das faculdades extraordinárias a requisitos de proteção contra o puro arbítrio. Pelo art. 154, o Congresso, durante a vigência do estado de sítio e mediante lei, poderá suspender as garantias constitucionais, sem prejuízo das sanções previstas no art. 151. Na conformidade do segundo dispositivo (art. 155), findo o estado de sítio, cessarão os seus efeitos. O contrôle jurisdicional, além disso, contra a sua aplicação irregular, está assegurado no art. 156.
A ligeira apreciação que se acaba de fazer também demonstra que a Constituição não deixa 'inerme o Govêrno em face de guerra ou perturbação da ordem ou de ameaça de sua irrupção. É mais pronta do que a Constituição de 1946. Ao contrário da anterior, concede primazia ao Presidente da República na decretação da situação emergencial - art. 152. Seja ,como fôr, o certo é que, independentemente de medida de segurança, quem esteja com os direitos políticos suspensos, continua subordinado à disciplina comum do homem em sociedade. Além das restrições próprias da situação, deve obediência às leis, implicando em processo a ofensa que cometa contra o seu statu e às disposições penais, ordinárias ou especiais. Pode sofrer prisão ou medidas de segurança pelas infrações que cometa, contanto que a disciplina judicial de cada hipótese seja obedecida. A exclusão da medida de segurança, por ato administrativo, no
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campo político, é recomendação do sentimento jurídico universal.
O sistema democrático possui também suas contingências. O Estado pode proclamar que o poder emana do povo e em seu nome é exercido; que os podêres são diferenciados e independentes, embora sinérgicos; que a dedaração de direitos e as garantias do cidadão constituem as bases primárias da sociedade; ou que o bem comum é a meta de tôda ação pública, mas estas diretrizes em têrmos abstratos, nada valem. Faz-se preciso praticá-las a cada minuto ou não existem. A democracia é cheia de sacrifícios, sobretudo porque o homem, para quem é talhada, é um ser vivo e está longe da bondade inata rousseauniana. No entanto, como é comprovadamente o melhor estilo de convivência, impõe que ,cada qual, suplantando ou reduzindo os impulsos de egoismo fundamental, cumpra com sinceridade a função que lhe caiba. Qualquer excesso do governante a perturba, do mesmo modo que da parte do cidadão, cujo direito se defronta com outro direito, de igual natureza, e circula dentro da lei. Não há democracia sem ânimo forte de realizá-la. A propósito das restrições que o indivíduo pode sofrer, a teoria francesa da liberdade serve de exemplo até na parte negativa, como demonstração valiosa do que se deve evitar.
Desde as Declarações de Direitos de 89, prepondera a idéia da segurança pessoal (sureté) , um estado subjetivo do gôzo das garantias fundamentais e da certeza de seu respeito. Não obstan-
te, do outro lado, se acham as ações judiciais de proteção à segurança geral e um conjunto de medidas enfeixadas sob o nome de poder de polícia, que a administraç~o emprega Hvremente em defesa de utilidades essenciais a todos.
N o mecanismo do poder de polícia, destaca-se, porém, uma técnica especial. Certas medidas sàmente se aplicam administrativamente em tempos de crise, e, ainda assim, por autorização de leis especiais. Por exemplo, a detenção, o internamento ou o domicílio vigiado. Em tempos normais, essas providências sàmente cabem em relação aos loucos, aos menores desajustados e às prostitutas. De mais próximo, tiveram curso durante a 2.a Guerra Mundial, o período de Vichy e a luta da Argélia. Em tese, devem ,cessar com o domínio das perturbações, que lhes deram causa. É o que está explicado em Georges Burdeau -Libertés Publiques - 1961 -hoje tão famoso como Leon Duguit, a cuja análise os excessos do poder de polícia estiveram presentes, da mesma forma - Droit Constitutionnel- tomo 2.°, 1911. Maurice Duverger, outro grande mestre dos nossos dias, atesta a excepcionalidade das restrições focalizadas, e toma partido contra elas (Droit Public, 1957).
Ora, se alhures é assim, malgrado as exceções, entre nós não há de ser pior. O Brasil desconhece, de modo absoluto, tais podêres à Administração Pública, em têrmos ordinários;
Pelo que estudamos e entendemos, medidas de segurança sàmente existem no estado de sítio
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e dentro do sistema judicial. Dessa forma, pela série de razões expostas, o ato impugnado não pode prevalecer.
O Sr. Ministro da Justiça, que é jurista esclarecido, mestre provecto e sincero servidor das instituições, há de compreender a divergência em que nos colocamos, cumprindo o árduo dever de decidir.
Concedemos, pois, o habeas corpus solicitado, a fim de que cesse imediatamente a determinação de domicílio, que foi imposta ao paciente.
Voto
O Sr. Min. Armando Rollemberg: - 1. O ato contra o qual se requer a ordem de habeas corpus, a Portaria do Sr. Ministro da Justiça que impôs domicílio determinado ao paciente, fundamentou-se na alínea c, do item IV, do art. 16 do Ato Institucional n.O 2, de 27 de outubro de 1965, combinada com o art. 2.° do Ato Complementar n.o 1, de igual data. Ainda com fundamento no art. 2.° do Ato Complementar número 1, foi a aplicação da medida de segurança submetida à apreciação do Juiz Federal da 1.a Vara do Estado da Guanabara, que a manteve.
O aspecto primacial a examinar, portanto, é a alegação feita pelos requerentes de que os dois diplomas legais citados já não vigiam à época em que foram aplicados, do que decorreria a ilegalidade quer do ato do Sr. Ministro da Justiça, quer da sentença que o aprovou.
2 . É indiscutível que o Ato Institucional n.O 2 já não tinha
eficácia a 20 de julho do .corrente ano, quando foi fixado domicílio determinado para o paciente, porque:
a) a respectiva vigência, como expresso no seu art. 33, terminara a 15 de março;
b) a Constituição de 1967 afastara, ao ser promulgada, tôdas as regras de natureza constitucional anteriores, e, portanto, as contidas nos Atos Institucionais, pois regulou por inteiro quer a organização do Estado, quer os direitos e garantias individuais;
c) mesmo que se recusasse procedência à assertiva anterior, ainda assim se teria que entender revogado o Ato Institucional n.O 2 na parte em que autorizou a determinação de domicílio aos atingidos pela suspensão de direitos políticos, pois a Constituição sàmente previu o uso de tal medida durante o estado de sítio (art. 152) e, portanto, é incompatível com ela a citada regra legal.
3 . De outro lado, se não estava em vigor a 20 de julho dêste ano o Ato Institucional n.o 2, não haveria como aplicar-se o artigo 2.° do Ato Complementar n.o 1, pois ali se contém tão-sàmente norma regulamentar do item IV do art. 16 do aludido Ato, e, por isso mesmo, regra inconciliável, também ela, com a Constituição, pelos motivos antes apontados.
Afirmou-se, em contrário a tal conclusão, que o Ato Complementar n.o 1 fôra preservado pelo artigo 173 da Constituição ao declarar aprovados e excluídos de apreciação judicial "os atos de natureza legislativa expedidos
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com base nos Atos Institucionais e Complementares" (inciso lII).
Tal afirmação é, com a devida vênia, de todo inaceitável.
A aprovação dada pela Constituição no seu art. 173 aos atos legislativos anteriores, quando êstes contenham normas com ela incompatíves, há de ser interpretada como dirigida à validação da aplicação anterior de tais atos e jamais como reconhecimento de que os mesmos continuariam com eficácia, pois isso importaria em admitir-se que ao lado da Constituição vigorariam regras constitucionais que lhe são contrárias.
Neste sentido é a lição de dois dos mais eminentes publicistas pátrios, Francisco Campos e Castro Nunes, ao analisarem o art. 18 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1934, onde se continha norma semelhante à inserida no art. 173 da atual Constituição.
Escreveu Francisco Campos: "Ora, a aprovação dos atos do Govêrno Provisório foi irrestrita, isto é, aprovados foram todos os seus atos, não somente os atos que poderiam ser considerados em face da nova Constituição como regulares ou perfeitos, como aquêles que não resistiriam a um confronto com as disposições constitucionais.
Não entrou, como se vê, na apreciação daqueles atos, para o efeito da sua aprovação, o critério da sua conformidade .com a nova Carta Constitucional, e não entrou, precisamente, porque se tratava de atos já consumados anteriormente à vigência da Constituição e, portanto, não podendo, à evidência, ser regulados ou re-
gidos por uma lei ainda inexistente. O art. 18 das Disposições Transitórias se refere ao passado, excluindo de qualquer apreciação em face das leis então em vigor ou de outras que viessem a ser promulgadas os atos cujos efeitos já se houvessem produzido, o que só pode referir-se a atos perfeitos no passado, a atos consumados, a atos não destinados a continuar a reger para o futuro, como é o caso dos decretos legislativos. ltstes, ao contrário, não poderiam ser aprovados irrestritamente, incondicionalmente, sem discriminação, cautelaf- e reservas, porque são atos cuj;a fôrça produtiva de efeitos não se esgotou no passado, continuando a manter a sua pretensão de enquanto não revogados, reger os casos ou as situações que emergirem para o futuro dentro da esfera do seu conteúdo material ou da compreensão dos seus preceitos.
Ora, neste caso, a aprovação indiscriminad8. de todos os atos legislativos do Govêrno Provisório envolveria, necessàriamente, não apenas a legislação conforme a nova Carta Constitucional como a que lhe fôsse contrária ou com ela incompatível, e como os decretos legislativos se destinam a ser aplicados para o futuro, claro é que os contrários à nova Constituição, vigente esta, continuariam a ser aplicados, do que resultaria a contraditória, absurda, monstruosa e caótica situação de, a um só tempo, vigorarem no país dois Direitos incompatíveis, constantes ambos de um mesmo instrumento legislativo - a Constituição de 16 de julho e os decretos do Govêrno Provisório a
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ela contrários e, entretanto, no seu próprio texto aprovados ou confirmados no seu vigor. Esta enormidade não poderia estar, evidentemente, no pensamento da Constituição Federal. Nem está, como se verá. O que o art. 18 das Disposições Transitórias aprovou não foi, com efeito, a legislação do Govêrno Provisório, senão os atos dêste Govêrno".
E Castro Nunes: "A Constituinte aprovou e podia aprovar os atos do Govêrno Provisório, mesmo os praticados em contrário à preceituação orgânica dos podêres discricionários, validando os que houvessem sido praticados ultra vires; mas o que não procede, é que tenha os mesmos efeitos a aprovação dos atos contrários à própria Constituição, cujos efeitos sejam com esta manifestamente incompatíveis.
Tratando dos atos legislativos, disse o Ministro Costa Manso: "O art. 18 da Constituição só aprovou os atos administrativos.
As leis figuram no art. 187, que dispõe: "Continuam em vigor, enquanto não revogadas as leis que, explícita ou implicitamente, não contrariem as disposições desta Constituição" (Mandado de Segurança n.o 53).
Do contrário Se teria de entender que os decretos do Govêrno Provisório gozam de maior imunidade do que as leis do regime constitucional. Teriam a fôrça de preceituações constitucionais, que o Poder Legislativo não poderia revogar, alterar ou modificar no exercício das suas atribuições normais" - (Arq. lud., voI. 36, pág.85).
4. É, assim, fora de dúvida, que o Ato Institucional n.O 2 e o Ato Complementar n.o 1 já não v1g1am na data em que foi decretado o domicílio forçado do paciente.
A tal constatação, aliás, não foge o Ex.mo Sr. Ministro da Justiça, que, entretanto, entende ser a aplicação da medida de segurança prevista na alínea c do item IV do art. 16 do Ato Institucional n.O 2 simples efeito da suspensão dos direitos políticos imposta ao paciente, e, como tal, aplicável mesmo após a revogação dos diplomas legislativos que a autorizavam.
Isso o que se depreende do trecho seguinte da fundamentação do ato impugnado: "Impõe-se assim, esta nítida distinção: - não se pode mais praticar atos com fundamentos nos Atos Institucionais, mas perduram os que foram praticados, na plenitude de seus efeitos, porque assim o quer a Constituição (art. 173), quando os aprovou e até os excluiu de apreciação judicial".
Do exame que fiz de tal tese frente ao disposto no art. 173 da Constituição e à regra da alínea c do ítem IV do art. 16 do Ato Institucional n.O 2, ficou-me a convicção de sua inteira improcedênCia.
Dispunha o art. 16 do Ato Institucional n.O 2: "A suspensão de direitos políticos com base neste Ato e no art. 10 e seu parágrafo único do Ato Institucional de 9 de abril de 1964, além do disposto no art. 337 do Código Eleitoral e no art. 6.° da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, acarreta sim ultâneamente:
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IV - a aplicação, quando necessária à preservação da ordem política e social, das seguintes medidas de segurança:
c) domicílio determinado." A regra lida, como se vê, não
teve como efeito a atribuição de domicílio determinado aos que tiveram suspensos os direitos políticos, e, sim, tornou-os passíveis da aplicação da citada medida de segurança. Para que tal se desse era necessário, como aliás ocorreu na hipótese que nos ocupa, a prática de ato por autoridade .competente, no caso o Ex.mo Sr. Ministro da Justiça, e se êsse ato não foi levado a efeito na vigência das regras legais que o autorizavam, não poderia vir a sê-10 depois. A decretação do domicílio determinado do paciente, portanto, não chegou a ser efeito regular da suspensão dos direitos políticos, porque não decretada quando o poderia ser. A argumentação da autoridade impetrada, com a devida vênia, sàmente seria procedente se a medida de segurança houvesse sido aplicada no dia 10 de março, por exemplo. O prazo de 60 dias seria então cumprido porque o domicílio determinado era efeito de ato baixado com apoio do Ato Institucional n.o 2, então em vigor. A partir do término da vigência dêste ato, porém, seria impossível aplicá-lo, sob a consideração de que a conseqüência importaria em efeito dêle.
Aceitar-se o contrário seria admitir-se a aplicação de regra revogada, porque contrária à Constitüição, na vigência desta, o que seria absurdo.
É elucidativo, a propósito, o que escreveu Pontes de Miranda ao comentar o art. 18 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1934: "A vedação de exame judicial que o art. 18 das Disposições Transitórias consagra em relação aos atos do Govêrno Provisório, não se estende àqueles atos legislativos que têm de incidir após a entrada em vigor da Constituição de 1934. O que fica aprovado é o que se realizou. O ato legislativo, que incidiu, ou o ato administrativo que se consumou, fica, em virtude do art. 18, isento de verificação judical, - mas só nas incidências que teve, ou naquilo em que se concretizou. Assim, se determinado preceito, constante de decreto do Govêrno Provisório, era inconstitucional (dentro do conceito de inconstitucionalidade que se adotou durante os quatro anos do Govêrno Provisório), e incidiu em ato anterior a 16 de julho de 1934, já se lhe não pode apurar a inconstitucionalidade, porque o aprovou a Constituição de 1934. Mas, se êsse preceito é inconstitucional perante a nova Constituição, não mais incide: a sua permanência depende da nova ordem jurídica, que o filtra, que exclui tudo aquilo que devendo aplicar-se ou realizar-se já no ambiente de 16 de julho de 1934, se chocaria com os princípios constitucionais vigentes."
Não é demais relembrar, além disso, lição de Francisco Campos, contida em trecho já .citado antes, onde se lê: "O art. 18 das Disposições Transitórias se refere ao passado, excluindo de qualquer
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apreciação em face das leis então em vigor ou de outras que viessem a ser promulgadas os atos cujos efeitos já se houvessem produzido, f) que só pode referir-se a atos perfeitos no passado, a atos consumados, a atos não destinados a continuar a reger para o futuro, como é o caso dos decretos legislativos".
5. Inaceitável também, com a devida vênia, é a aplicação, à hipótese, do art. 75 do Código Penal.
Reza a disposição citada: "As medidas de segurança re
gem-se pela lei vigente ao tempo da sentença, prevalecendo, entretanto, se diversa, a lei vigente ao tempo da execução".
Para que a invocação de tal norma fôsse pertinente seria necessário que a medida de segurança houvesse sido aplicada na vigência da lei que a autorizava, o que, já vimos, não ocorreu.
6. Afastados os argumentos propriamente jurídicos, cabe examinar a afirmativa de que o reconhecimento da impossibilidade de aplicação das medidas previstas no Ato Institucional n.o 2 importaria em frustração dos objetivos do Movimento de 31 de março de 1964.
A Constituição foi elaborada por iniciativa do Ex.mo Sr. Presidente da República, no exercício de podêres que lhe haviam sido conferidos pela Revolução, como declarado nos considerandos do Ato Institucional n.o 4, e incorporou em seu texto todos os dispositiVlos dos Atos Institucionais julgad08 úteis. Se não se incluiu entre êstes o art. 16 do Ato Institucional n.o 2 foi porque
entendeu-se desnecessárias, já então, as providências aí autorizadas. E, com o devido respeito às opiniões em contrário, realmente o eram. No período que precedeu à Constituição foi elaborada legislação que armou o Govêrno de instrumentos de ação, que lhe permitiam prescindir de outras medidas. De relação ao caso que nos ocupa, por exemplo, quando a imposição de domicílio determinado ao paciente, pelo prazo de 60 dias, resultou, como esclarecido pelo Ex.mo Sr. Ministro da Justiça, da publicação de artigo em que injuriara e difamara a memória do ex-Presidente da Repúb1i,ca, Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, prevê a Lei de Imprensa penas de 3 a 18 meses e 1 mês a 1 ano de detenção (art. 24 combinado com os arts. 21 e 22), portanto punição bem mais rigorosa.
7. Ainda um outro argumento há de ser considerado.
A Constituição vigente, no seu art. 151, previu a suspensão dos direitos políticos do cidadão que abusar da liberdade de pensamento, do livre exercício da profissão, do direito de reunião ou de liberdade de associação, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção. Não reeditou porém a regra do art. 16, inciso IV, letra c, do Ato Institucional n.o 2, isto é, não autorizou a apli.cação, ao mesmo, da medida de segurança do domicílio determinado, só o admitindo durante o estado de sítio.
Se aceitarmos que os que tiveram os seus direitos suspensos antes da promulgação da Constituição continuam sujeitos às medi-
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das de segurança previstas no Ato Institucional n.o 2, teremos que concluir que a dois cidadãos atingidos pela mesma providência em conseqüência da prática de atos semelhantes será dispensado tratamento diferente, o que é inaceitável no Estado de Direito.
8 . As considerações feitas levaram-me a concluir que embora haja sido profundamente lamentável a, atitude do paciente ao referir-se, da forma por que o fêz, à figura do ex-Presidente da República, quando êste acabara de ser vítima de terrível desastre, a medida aplicada pelo Ex.mo Sr. Ministro da Justiça não estava autorizada por lei em vigor, sendo, portanto, ilegal, e, por isso concedo a ordem nos têrmos do pedido.
Voto
o Sr. Min. Antônio Neder: -A Revolução de 31 de Março de 1964, no exercício do poder constituinte inerente nela, e no qual se investiu, editou vários atos de conteúdo jurídico-constitucional (no sentido material).
Um dêsses atos é o Ato Institucional n.o 2, de 1965.
O seu art. 15 outorgou ao Presidente da República a faculdade de suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de dez anos e de cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais.
O seu art. 16 dispôs sôbre a eficácia ipso iure da suspensão dos direitos políticos prevista no art. 15.
E o seu art. 30 autorizou o Presidente da República a editar os necessários atos complementares, donde o Ato Com ple-
mentar n.o 1, de 1965, que dispôs sôbre as conseqüências jurídicas da suspensão dos direitos políticos antes mencionada.
Exercitando a faculdade que lhe foi outorgada no art. 15 do Ato Institucional n.o 2, o Presidente da República, por decreto de 10-11-66, suspendeu os direitos políticos do paciente, o jornalista Hélio Fernandes.
Deu-se, porém, que, a 19-7-67, ao ensejo e por causa da morte do ex-Presidente Castello Branco, o jornalista Hélio Fernandes veio a escrever e publicar impiedoso artigo no jornal "Tribuna da Imprensa" sôbre a personalidade do referido e ilustre extinto.
Considerando que êsse eSCflto, por suas implicações e repercussão, perturbou a ordem política e social, houve por bem o eminente Sr. Ministro da Justiça aplicar ao seu autor a medida de segurança definida no art. 16, IV, c, do Ato Institucional n.o 2 (domicílio determinado), designando a Ilha de Fernando de Noronha para domicílio do paciente.
Ao mesmo tempo, o eminente Sr. Ministro da Justiça, dando execução ao que expressa o artigo 2.° do Ato Complementar n,o 1, submeteu o seu ato ao contrôle judicial, e o fêz na pessoa do MM. Df. Juiz Federal da 1.a
Vara da Secção da Guanabara, logrando sua aprovação em parte, visto que êsse honrado Magistrado ordenou fôsse fixado o prazo à medida e designado para domicílio do paciente uma cidade onde pudesse êle trabalhar para o sustento próprio e de sua família.
Acatando e cumprindo a decisão judi.ciária, o Sr. Ministro da
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Justiça designou a cidade de Piraçununga, em São Paulo, para domicílio do paciente, e, a seguir, fixou o prazo de sessenta dias para a duração da medida de segurança.
Considerando que a imposição da medida de segurança, no caso, é ilegal e constitui cerceamento da liberdade de locomoção do paciente, os ilustres advogados Drs. Antônio Evaristo de Moraes Filho, Mário de Figueiredo e George Tavares impetram ao Tribunal Federal de Recursos ordem de habeas corpus em favor do referido jornalista.
Apontam como autoridades coatoras o Sr. Ministro da Justiça, autor do ato havido por ilegal, e o MM. Dr. Juiz Federal da l,a Vara da Guanabara, que o aprovou.
Afirmam os ilustres Drs. Advogados impetrantes que, a 20-7-67, dia em que o eminente Sr. Ministro da Justiça aplicou a medida de segurança a que se refere êste processo, já se achava perempto o Ato Institucional n.o 2, porque sua vigência, prefixada no seu texto para o dia 15-3-67, havia chegado ao seu fim, e que, perempto o mencionado Ato, não havia como invocar-lhe o art. 16 para suporte legal da aplicação da medida.
Afirmam, ainda, que além da perempção, o Ato Institucional n.o 2, pela natureza constitucional das suas normas, ficou ab-rogado pela Constituição de 1967, como decorre do princípio de que a norma constitucional posterior ab-roga a anterior.
Contestando essas afirmações, alega o eminente Sr. Ministro da
Justiça que a norma do art. 16 do Ato Institucional n.o 2, de 1965, foi revigorada pelo art. 173, IlI, da Constituição de 1967, tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de vista material, e que, pelo revigoramento, ela se incorporou no Ordenamento Jurídico, embora de maneira excepcional e transitória, donde sua vigência.
Vê-se, de logo, que duas questões se apresentam à decisão do Tribunal: a da vigência da norma contida no art. 16 do Ato Institucional n.O 2 e das que compõem o Ato Complementar n.o 1, em face do que expressa o artigo 173, lIl, da Constituição de 1967; e a da constitucionalidade dessas normas, se admitida a vigência temporal delas.
Antes, porém, de enfrentar as questões, vejamos a situação constitucional sob cujo império foram editadas as normas referidas, pois é sabido que a situação constitucional tem incidência sôbre o entendimento hermenêutico das normas jurídicas (KarI Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, pág. 149).
Fixemos nossa atenção no que expressa o art. 29 do Ato Institucional n.o 2, assim redigido: "Incorpora-se definitivamente à Constituição Federal o disposto nos arts. 2.° a 12 do presente Ato".
Pelo que dispõe êste texto, as normas do Ato Institucional número 2 são de duas espécies: a das que se integraram na Constituição de 1946 e a das que não se integraram nela.
Da primeira espécie são as normas dos arts. 2.° ao 12.
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Da outra são as normas dos artigos 13 ao 33.
As primeiras, porque integrantes da Constituição de 1946, passaram a formar o texto da Emenda Constitucional n.o 16, de 26-11-65, e, como é óbvio, passaram a compor, modificando-o, o sistema constitucional então vigente.
As demais, porque não integrantes da mencionada Constituição, passaram a viger como normas de exceção, embora algumas delas sejam de .conteúdo jurídico-constitucional material.
Por que a diferença? Porque o legislador revolucio
nário, exercitando o poder constituinte inerente na Revolução de 31 de Março, cuidou, ao mesmo tempo, de reformar a Constituição de 1946 e de editar normas excepcionais de natureza constitucional para, por meio destas, assegurar a sobrevivência ou consolidação das medidas políticas por êle adotadas no trato dos problemas com que se defrontou no Govêrno instituído pela Revolução.
É o que se depreende, sem esforços maiores, do preâmbulo de cada um dos Atos Institucionais, bem como do texto dêstes Atos e de todos os que os complementaram.
Basta relembrar que o art. 10 do Ato Institucional n.o 1, o artigo 19 do Ato Institucional número 2 e o art. 6.° do Ato Institucional n.o 3 contêm a expressa proibição de o Judiciário apreciar tudo quanto tenha sido praticado com assento nas suas normas, donde o caráter constitucional, ex-
cepcional e político-revolucionário delas.
Fixada, assim, em traços rápidos, a situação constitucional sub cujo comando foram editadas as mencionadas normas, a conclusão que se nos impõe é a de que as normas jurídico-constitucionais editadas pelo legislador revolucionário ou foram de direito constitucional material e comum, integradoras da Constituição então vigente, ou foram político-decisórias, de significado voluntarista e revolucionário, integradoras de um direito de exceção destinado a consolidar a ordem jurídica instaurada pela Revolução.
As primeiras, porque integradoras da Constituição de 1946, foram, como esta, ab-rogadas.
Prevalece, no .caso, o princípio de que a norma constitucional posterior desfaz a anterior.
As demais, porque de natureza político-decisórias ou significado político-revolucionário, segundo os propósitos do legislador da Revolução, são normas excepcionais e de vigência temporária, editadas, elas tôdas, sob inspiração de idéias que, por natureza, são incompatíveis com as da nova Constituição, donde a certeza de que, salvo disposição expressa desta última, ou compatibilidade com o seu sistema, também elas ficaram desfeitas.
Ora, o art. 173 da Constituição vigente, compondo as suas "Disposições Transitórias", expressa a aprovação dos atos de suspensão dos direitos políticos praticados pelo Govêrno da Revolução e também os de natureza legislativa
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expedidos com base nos Atos Institucionais .
Pergunta-se, então: dado o que expressa esta norma, subsiste a vigência do art. 16 do Ato Institucional n. ° 2 e a das normas do Ato Complementar n.o 1, ambos de 1965, sob cuja invocação o eminente Sr. Ministro da Justiça aplicou a medida de segurança noticiada neste processo?
A resposta é afirmativa, porque, pelo que dispõe o referido art. 173 da Constituição, o constituinte revolucionário deixou expressa a sua vontade de manter vigente, como direito excepcional e temporário, aquilo de conteúdo político-revolucionário, e mantêlo com o mesmo propósito com que editou a norma, isto é, para o fim de consolidar a política revolucionária, consolidação que, por sua natureza, há-de projetarse para além do período agudo de implantação dessa política.
Dado que a consolidação da política revolucionária só se efetivará no tempo, óbvia é a conclusão de que as normas que constituem o instrumental dessa consolidação devem igualmente perdurar, isto pela mesma razão de que, perdurando vigente uma norma principal, deve igualmente viger a norma secundária ou regulamentar que lhe regula a eficácia, como é pa.cífico no campo do direito temporal.
Com efeito, uma vez que o legislador revolucionário editou a norma do art. 10 do Ato Institucional n.O 1 e a do art. 15 do Ato Institucional n.o 2, pelas quais se investiu êle no poder de suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos, e dado que prati-
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cou atos de suspensão de direitos políticos por dez anos, evidente se torna que o legislador revolucionário prefixou o prazo de dez anos para a consolidação da medida político-revolucionária de suspensão dos direitos políticos.
Prefixado, assim, o prazo de consolidação da política revolucionária, óbvia é a conclusão de que subsiste a vigência das normas que formam os instrumentos necessários a essa consolidação, ou, em outras palavras, das normas que lhe assegurem a eficácia.
É o que emana da natureza destas últimas normas.
É o que emana da vontade do legislador revolucionário, claramente expressada nos textos dos diversos Atos Institucionais que editou.
É o que emana da vontade do legislador constituinte de 1967, expressa no art. 173, 111, da Constituição dêste ano.
Se o legislador constituinte manifestou assim de maneira inequívoca a sua vontade, a ela deve submeter-se o julgador.
Note-se que o caso não é de direito comum, mas de direito constitucional, excepcional, transitório e revolucionário, expressamente aceito, recebido, ratificado . pelo legisl'l.dor constituinte, que escreveu isto no texto da Constituição que editou.
O importante, pois, no caso, é a vontade do constituinte, que há-de ser vivida objetivamente, e essa vontade foi manifestada ontem mesmo, e não em tempos idos, e manifestada, a bem dizer, em nossa presença, e de tal modo o fêz, que a conhecemos bem, sendo, portanto, desnecessária
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qualquer interpretação subjetiva da norma.
Note-se que o legislador que revigorou o conteúdo do art. 16 do Ato Institucional n.o 2 é constituinte, e sua vontade, no caso, é decisiva, como está assentado na doutrina mais abalizada.
Para não alongar-me neste ponto, permito-me relembrar ao Tribunal esta lição do Prof. Nawiasky, especialista suíço na matéria, que, em obra traduzida para o espanhol, em 1962, sob o título Teoria General deI Derecho, assim disserta, resumindo o bom e consagrado direito: "Todo un complejo de cuestiones crea el problema de Ia repercursión automática' de Ia derogación de una norma de grado superior sobre Ia vigencia de Ias normas de grado inferior derivadas de el1a. A primeira vista, podría parecer lógico que ai fal1ar el fundamento jU1'Ídico de una norma ésta se derrumbe. Esto esta1'Ía en paralelo con Ia invalidez de Ia norma superior, que acarrea indubitablemente la invalidez de las normas derivadas. Pero un estudio deI material que nos proporciona la- experiencia nos revela la necessidad de hacer Un análisis más profundo. Consideramos ef caso de la abolición de una ConstHución. Desaparece con és ta Ia obligatoriedad de todas Ias leyes dictadas hasta entonces? Generalmente sucede todo 10 contrario; por 10 menos una gran parte de Ias leyes se mantienen en vigor. Si la nueva Constitución dispone esto expressamente, existe una incuestionable legitimación por dicha nueva Ley Fundamental; se puede hablar entonces de una recepción deI
viejo Derecho por la nueva Norma Fundamental."
É a vigência formal do direito velho, aceita, expressamente, pelo nôvo.
Doutro lado, o Prof. Karl Engisch, da Universidade de Munique, em obra editada na Alemanha em 1964 e traduzida para o português em 1965 pelo Prof. João Batista Machado, da Universidade de Coimbra, ensina o seguinte, que se ajusta, com perfeição, ao caso ora debatido (Introdução ao Pensamento Jurídico, pág. 149): "Num Estado constitucional ou democrático, com divisão de podêres e pluralidade de partidos, as coisas podem apresentar-se sob uma luz diferente. É sem dúvida verdade que "a situação constitucional geral tem incidência sôbre o entendimento hermenêutico da lei". É mesmo possível que, após uma revolução, o método da interpretação seja duplo: um relativamente ao Direito anterior e outro em face do Direito nôvo. O Direito antigo será, por vêzes, adaptado ao nôvo estado de ,coisas criado pela revolução, através duma metódica objetivista; o Direito nôvo, pelo contrário, será interpretado ponto por ponto segundo a vontade do legislador revolucionário que conquistou o poder. Mas não podemos facilitar demasiado as coisas e afirmar sem mais que, para todo o sistema constitucional parlamentar e democrático, o método objetivista de interpretação é o único possível. A mim quer-me parecer que se menospreza em demasia o significado voluntarista, político-decisório que a legislação também tem na democracia,
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e que se confere demasiada autonomia a outros podêres do Estado que devem em certo sent'ido subordinar-se à vontade do legislador e às suas directivas, fontes de coesão do todo estadua1."
O mesmo autor, em nota que escreve na mesma obra (pág. 168), transmite o entendimento de Carl Schmitt sôbre o assunto, e o faz nestes têrmos: "C . Schmitt ... observa com razão que, sempre que as diretivas do legislador são meios de planeamento e de orientação, a sua vontade deve constituir critério decisivo".
Do exposto, a conclusão que se impõe ao julgador é a de que o legislador constituinte deixou expressa, no texto do art. 173 da Constituição vigente, a sua vontade não só de aprovar os atos de suspensão dos direitos políticos já praticados na vigência dos Atos Institucionais números 1 e 2, como, também, a executividade e a executoriedade dêsses atos, isto como seqüência lógica e complemento necessário da própria imperatividade inerente nesses atos.
Em outras palavras: o constituinte aprovou os atos de suspensão dos direitos políticos e sua executividade, que, no caso, é acompanhad'ã pela executoriedade, esta com as suas virtualidades, inclusive a de realização coativa mediante procedimento jurídico-político de execução (art. 2.°, do Ato Complementar n.o 1, de 1965 ).
Se assim não fôsse, resultaria algo de aberrante: a edição de um ato eficaz por si mesmo, ou
ipso iure, mas frustrado na sua eficácia pela ausência dos instrumentos legais de sua execução.
Em outras palavras: a Revolução teria decretado a suspensão por dez anos dos direitos políticos dos seus adversários, vencidos por ela a 31 de março, quando conquistou o poder; mas, por obra de mágica jurídica ou artifício cerebrino no interpretar e aplicar a lei, a suspensão dos direitos políticos dos seus adversários seria frustrada, e então êstes últimos apresentar-se-iam como titulares dos mesmos direitos de que ficaram privados, e a Revolução, de maneira teratológica, seria a anti-Revolução, ao mesmo passo que esta última passaria a ser a Revolução.
Dar-se-ia o vazio revolucionário com a Revolução no Govêrno.
Tamanho absurdo não encontraria apoio nem mesmo do mais apaixonado adversário da Revolução.
Pois é certo que esta não pode ~egar-se a si mesma e esfarinhar-se com a ab-rogação de tudo aquilo que ela institucionalizou.
Resumindo, podemos afirmar que, no tocante às vigências temporal e formal das normas acima referidas, o art. 173, III, da Constituição de 1967, expressamente as declara.
Porque, na verdade, pelo que dispõe esta última norma, o legislador constituinte de 1967 manifestou sua vontade de manter a vigência formal e temporal de tôdas as normas editadas pelo legislador revolucionário.
Aprovando as normas editadas pelo legislador revolucionário, o legislador constituinte nada mais
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fêz que homologá-las, ratificá-las, sancioná-las, ou, em outras palavras, nada mais fêz que aceitá-las como próprias, emprestando-lhes, a elas, as virtualidades da sua própria base ou da sua própria fonte, donde a inequívoca validez ou vlgencia formal dessas normas editadas pela Revolução de 31 de Março ( conf. Luis Recasens Siches, Tratado General de Filosofia deI Derecho, 3.a ed., 1965, pág. 298).
Estou em que, no tocante a êste aspecto da controvérsia, estamos todos de acôrdo, tanto os ilustres Drs. Advogados impetrantes, quanto nós outros, os Juízes do Tribunal Federal de Recursos.
Tão certo é isto, que não me detenho a fundamentar mais detalhadamente êste ponto.
Passemos, então, ao exame da matéria essencial, que é a da vigência material, ou constitucionalidade material, da norma do artigo 16 do Ato Institucional número 2 e das normas que compõem o Ato Complementar n.o 1.
Verifiquemos se estas normas têm ou não têm compatibilidade com o sistema constitucional instituído pela Constituição de 1967.
Se uma e outra estiverem em contradição com o sistema constitucional vigente desde 15-3-67, a inconstitucionalidade material delas é de ser proclamada, e, conseqüentemente, o habeas corpus agora sob nosso julgamento deve ser concedido.
De modo contrário, verificada a compatibilidade ou harmonia dessas normas com o nôvo sistema jurídico-constitucional, é de se proclamar a constitucionalidade
delas, e, conseqüentemente, o habeas corpus deve ser denegado.
Para esta verificação, cumprenos, antes do mais, registrar a diferença que existe entre o ato de suspensão dos direito políticos e as conseqüências jurídicas dêsse ato, ou, melhor dizendo, da eficácia jurídica dês se ato.
O primeiro, como se sabe, e decorre da sua natureza estruturalou fundamental, só pode ser objeto de regulamentação constitucional, embora, neste particular, pelo que expressa a norma do art. 151, combinada com a do art. 55, § único, 11, ambas da atual Constituição, o princípio tenha sido muito atenuado, senão revogado, no nôvo sistema.
Como quer que seja, admitamos, para argumentar, que, no tocante à matéria, prevaleça ainda o princípio .clássico do nosso Direito Constitucional de que o assunto de suspensão ou perda dos direitos políticos só pode ser objeto de tratamento constitucional, ou pela constituição, de acôrdo, aliás, com as lições de Barbalho (Comentários à Constituição de 1891, pág. 293), Carlos Maximiliano (Comentários à Constituição de 1891, pág. 728), Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1946, 111, 2.a ed., pág. 367) e outros.
No tocante, entretanto, à regulamentação das consequencias jurídicas do ato de suspensão dos direitos políticos, ou sua eficácia como ato jurídico, não prevalece o mesmo princípio.
É que esta matéria, por sua natureza, não é fundamental ou estrutural, e pode ser objeto de regulamentação por norma outra
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que não necessàriamente constitucional.
Tudo depende da natureza jurídica dessas conseqüências.
Com efeito, as conseqüências do ato de suspensão ou perda dos direitos políticos podem ter implicações as mais diversas: constitucionais, administrativas, eleitorais, penais, civis e outras.
Cada uma delas tem tratamento próprio no campo que lhe diz respeito.
As de natureza constitucional são tratadas na Constituição (artigo 37, IV, e art. 144, § 1.0, do texto de 1967).
As de natureza administrativa, nas leis próprias (Lei n.o 1.711, de 28-10-52, art. 22, lU).
As de natureza penal, no Código Penal e noutras leis de tal espécie.
Tanto isto é certo, que a Constituição de 1891 dispunha sôbre a suspensão e perda dos direitos políticos, mas não continha norma regulamentadora das conseqüências da suspensão ou perda dêsses direitos.
A de 1934 (art. 111) expressava apenas que a perda dos direitos políticos acarretava, simultâneamente, a do cargo público, nada regulando a respeito das conseqüências do ato de suspensão.
A de 1937, como a de 1891, não regulava a matéria.
A de 1946, no art. 136, determinava a perda do cargo ou função pública no caso de perda dos direitos políticos, mas não se referia às conseqüências da suspensão dêsses direitos.
E a atual, no art. 144, § 1.°, dispõe sôbre as conseqüências
constitucionais da perda e suspensão dos direitos políticos nos casos ali previstos, isto é, previstos no texto dessa norma, mas é omissa no tocante à suspensão prevista no art. 151 (a ser objeto de lei complementar), donde a certeza de que ficou deferida ao legislador comum a regulamentação da matéria.
No tocante às conseqüências pertinentes à vida partidária, inclusive comícios e atos de propaganda, regula-as o art. 337 do Código Eleitoral vigente.
Assim, cada uma das partes do ordenamento jurídico cuida do assunto segundo suas implicações materiais.
Não se trata, portanto, de matéria que deva ser objeto de necessário ou indispensável tratamento constitucional.
Vale, ao propósito, relembrar a lição de Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, 2.a ed., tomo I, pág. 27): "O mesmo fato ou complexo de fatos pode ser suporte fáctico de mais de uma regra jurídica. Então, as regras jurídicas incidem e fazem-no fato jurídico de cada uma delas, com a respectiva irradiação de eficácia."
A conclusão, pois, é a de que, no tocante às conseqüências jurídicas do ato de suspensão dos direitos políticos, ou sua eficácia, não se aplica a restrição segundo a qual só mediante norma constitucional pode ela ser tratada ou regulada.
Porque estas conseqüências são necessàriamente jurídico-civis, ou jurídico-comerciais, ou jurídico-penais, ou jurídico-eleitorais, e, assim, caem no campo da norma
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do art. 8.°, XVII, b, da Constituição de 1967.
Vale dizer que, a respeito da matéria, o legislador comum pode legislar.
Aliás, êste é o entendimento que decorre também do texto do art. 151 combinado com o do artigo 55, § único, lI, ambos da Constituição de 1967, pelos quais se conclui, sem qualquer dúvida, que a lei ordinária (não a delegada) poderá dispôr sôbre as conseqüências jurídicas ou eficácia jurídica do ato de suspensão dos direitos políticos.
À luz desta análise, a certeza que se impõe é a de que a norma do art. 16 do Ato Institucional n,o 2 e as do Ato Comolementar n.o 1, regulamentadoras' da eficácia jurídica do decreto de suspensão dos direitos políticos previsto no art. 15 daquele mesmo Ato, podem ser editadas pelo legislador comum, e, assim, do ponto de vista formal e orgânico, são constitucionais, pois é certo que elas se harmonizam com o sistema constitucional instituído pela Constituiçã0 de 1967, que, no tocante à matéria versada nessas normas, deixou o chamado vazio normativo para ser suprido pelo lerrislador comum.
Reafirmemos, então, que, do ponto de vista formal como do ponto de vista orgânico, a norma do art. 16 do Ato Institucional número 2 e as do Ato Complementar n.o 1, ambos de 1965, são constitucionais, isto porque a Constituição de 1967, no seu artigo 173, 111, as perfilhou, fê-las suas, integrando-as no ordenamento jurídico com as suas virtualidades formais e orgânicas,
donde não nos ser dado opor-lhes ressalvas neste ponto, sob pena de subtrairmos do texto constitucional vigente a norma supra-referida do art. 173, lU.
Vejamos, então, se as normas aqui apreciadas são contrárias ou não são .contrárias aos direitos enumerados no art. 150 da Constituição vigente.
Vejamos os que têm implicação com a matéria.
Não ofende o princípio da isonomia (art. 150, § 1.°).
Não ofende o da garantia de o indivíduo pleitear o reconhecimento de direito perante o Judiciário (art. 150, § 4.°).
Não ofende o da liberdade de manifestação do pensamento (art. 150, § 8.°), porque êste princípio está limitado pelo conteúdo da norma do art. 151, donde a certeza de que não se incompatibiliza com êle a proibição de que o que teve suspensos os seus direitos políticos manifestar-se sôbre assuntos políticos, senão que até se dá a compatibilidade manifesta da proibição legal com o sentido e objeto da norma constitucional.
Note-se, ao propósito, que, neste ponto, o sistema constitu.cional vigente não é igual nem semelhante 80 anterior, pois que é diferente dêle, eis que o anterior não impunha as restrições que o atual impõe ao mencionado art. 151, restrição esta nem sempre compreendida pelos amadores do Direito Constitucional, que pretendem quase sempre as soluções de emergência para os seus casos pessoais.
Não ofende o da garantia da qualidade da pena (art. 150, §
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11), porque a medida de segurança não é pena, como afirmam todos os doutrina dores, mas u'a medida de natureza administrativa, que tanto pode ser aplicada ao criminoso, como ao não criminoso (como aqui se dá), tudo dependendo da concorrência de certos requisitos legais, como o da periculosidade do agente no caso de crime; ou outros requisitos, como nos casos do Código de Menores, etc. ,
Não sendo pena, mas medida de segurança administrativa, ou cautelar, ou política, ou de polícia, a medida de segurança pode ser objeto de lei ordinária, como se dá no caso da do art. 16, IV, c, do Ato Institucional n.o 2, e se inclui nas matérias relacionadas no art. 8.°, XVII, b, da Constituição vigente.
Também não ofende o princípio da garantia de defesa (artigo 151, § 15), porque êste princípio a Constituição o outorga aos acusados por crime, e o .caso aqui debatido não é de crime.
Não ofende o princípio da instrução criminal contraditória (art. 151, § 16), porque êste princípio é de direito processual constitucional e tem por objeto garantir ao agente criminoso (o paciente não é criminoso) o direito de contraditar a acusação, dando-lhe, no processo, a mesma posição do acusador.
Os demais princípios do artigo 150 não são igualmente ofendidos.
Dispenso-me de analisar um por um para não alongar-me demasiadame11te e para não .cansar o Tribunal, que bem conhecp o Direito.
Vejamos, por fim, a compatibilidade das normas aqui apreciadas com a do art. 152, § 2.°, a, da Constituição vigente.
Trata-se da residência determinada como u'a das medidas autorizadas no estado de sítio.
De princípio note-se a diferença entre as duas situações.
No estado de sítio, suspendem-se algumas garantias constitucionais, mas não se suspendem direitos políticos.
As medidas de exceção que lhe são pertinentes tanto são aplicáveis aos que têm seus direitos políticos vigentes como aos que os têm suspensos.
Não se trata, pois, no caso, de suspensão de direitos políticos.
Não se deve, então, confundir uma situação e outra.
Como quer que seja, se é .certo que o legislador constitucional admitiu a medida de segurança de domicílio determinado ao ensejo do estado de sítio, que consubstancia situação política anormal, não se tem como negar ao legislador comum o direito de prever essa medida para o cidadão que, com os seus direitos políticos suspensos, vier a 'conturbar a ordem política e social.
Se no estado de sítio a medida pode ser aplicada a qualquer indivíduo, cidadão ou não, quer esteja o cidadão quer não esteja no gôzo dos seus direitos políticos, por que razão não se pode concebê-la e aplicá-la ao que foi privado dêsses direitos e tenha perturbado a ordem política e social?
Em havendo a mesma razão deve haver a mesma decisão.
Longe de se chocarem neste ponto, sem dúvida comum às
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duas, a situação do segundo compõe-se com a do primeiro.
Note-se que a Constituição, no art. 152, § 2.0
, a, prevê o domicílio determinado como u'a das medidas, mas não única.
Note-se que não há no texto constitucional vigente uma só norma que proíba o legislador comum de legislar sôbre medidas de segurança.
Conseqüentemente, a prevista no art. 16, IV, c, do Ato Institucional n.O 2, não tem incompatibilidade com o texto constitucional, nem com o sistema que êle instituiu.
Logo, a medida é constitucional.
Denego, portanto, o habeas corpus.
Peço desculpas ao Tribunal por haver-me demorado tanto neste meu voto.
É que, apesar de quase sexagenário, e apesar de haver-me dedicado ao ofício de escrever para o Direito desde os meus distantes 25 anos, não aprendi a escrever muito em poucas palavras.
O privilégio de ser .claro, completo, exato e sintético" Deus não deu a todos.
Escolheu poucos para conceder tamanha graça, como fêz, no Brasil, em nosso tempo, ao eminente Senador Milton Campos, que diz tudo certo e em poucas e lúcidas palavras, qual Horácio.
É o meu voto.
Questão de ordem
o Sr. Advogado - (Pela ordem): - Sr. Presidente, pela ordem.
o Sr. Min,. Oscar Saraiva: Com a palavra o nobre advogado.
O Sr. Advogado: - SI': Presidente, a questão de ordem a ser colocada pelo impetrante é a seguinte: como se verificou, a matéria objeto da decisão foi a da constitucionalidade ou inconstitu;., cionalidade do ato do Sr. Ministro da Justiça e a da lei em que se baseou êste ato.
Reza o art. 71 do Regimento Interno dêste Tribunal que no Tribunal Pleno os feitos são julgados: letra a - pelo Relator e todos os membros, sem excepcional' o Presidente, nos casos de declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato do Poder Público. Como a matéria da constitucionalidade ou não do ato do Sr. Ministro da Justiça e da lei em que se baseou S. Ex.a foi o próprio objeto do tema decidido, a defesa levanta esta questão de ordem: se o julgamento não necessita do voto de V. Ex.a, Sr. Presidente, para se considerar completo.
O Sr. Min. Oscar Saraiva: -Submeterei a questão que o Dl'. Advogado suscitou ao pronunciamento do Tribunal.
Devo dizer de minha parte que entendo não dever votar, porque ao Tribunal seria necessário, para que declarasse a inconstitucionalidade da lei ou de ato, que assim se houvesse pronunciado sua maioria absoluta. Não é o caso presente, em que sua maioria, simples embora, já se pronunciou pela constitucionalidade. Todavia, como não devo arvorar-me em árbitro dessa minha possibilidade de votar, irei tomar, como disse, os votos dos Srs. Ministros.
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Questãp de ordem (Vencido)
o Sr. Min. Amarílio Benjamin: - Senhores Ministros, o art. 71, em verdade, é claro no sentido da tomada dos votos nas questões que versarem sôbre inconstitucionalidade de lei ou ato.
Tenho para mim que a hipótese sub judice materializa a previsão regimental. Além disso, não posso fixar com precisão, já houve aqui caso mais ou menos recente, em que o Sr. Min. Godoy Ilha, estando na Presidência, reinvindicou a possibilidade de votar, sem objeção do Tribunal.
É verdade que, em situações semelhantes, acho que a deliberação decisiva deva partir da Presidência.
De minha parte, acolho a questão, para que o Presidente vote.
Questão de ordem
O Sr. Min. Armando Rollemberg: - Sem embargo do imenso prazer que teria em ouvir S. Ex.a
se manifestar sôbre a matéria, acompanho o Sr. Min. Henrique d'Ávila.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por maioria de
votos, denegou-se a ordem vencidos os Srs. Mins. Relator, Henrique d'Ávila, Djalma da Cunha Mello, Amarílio Benjamin e Armando Rollemberg. Impedido Sr. Min. Esdras Gueiros. Antes dessa proclamação, o Dr. Advogado impetrante suscitou questão de ordem regimental, sustentando dever o Sr. Min. Presidente participar da votação, por se tratar de matéria constitucional. Posta"! votos a questão pelo Sr. Min. Presidente, o Tribunal a rejeitou, vencido o Sr. Min. Amarílio Benjamin, que a acolhia. Não participou dessa votação, por se haver antes ausentado, por motivo de fôrça maior, o Sr. Min. Cunha Vasconcellos. Designado Relator para lavrar o acórdão o Sr. Min. Moreira Rabello. Os Srs. Mins. Moacir Catunda, Henoch Reis, Cunha Vasconcellos, Godoy Ilha e Antônio N eder votaram de acôrdo com o Sr. Min. J. J. Moreira Rabello. Quanto à questão de ordem levantada pelo Sr. Dr. Advogado, os Srs. Mins. J. J. Moreira Rabello, Moacir Catunda, Henoch Reis, Henrique d'Ávila, Djalma da Cunha Mello, Godoy Ilha, Armando Rollemberg e Antônio N eder votaram com o Sr. Min. Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Oscar Saraiva.
HABEAS CORPUS N.O 1.761 - GB.
Relator - O Ex.mo Sr. Min. Cunha Vasconcellos Paciente - Habib Hissa Impetrante - Antônio Carlos Amorim
Acórdão
Habeas corpus concedido para liberar o paciente de processo criminal já instaurado, em vir-
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tude de ter ficado positivada a inexistência de justa causa.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Habeas Corpus n.O 1.761, do Estado da Guanabara, em que são partes as acima indicadas:
Acordam os Ministros do Tribunal Federal de Recursos, em Sessão Plena, em conceder a ordem por falta de justa causa, por maioria de votos, na forma do relatório e notas taquigráficas de fls. 32/41, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Custas de lei.
Brasília, 12 de outubro de 1967. Oscar Saraiva, Presidente;
Cunha Vasconcellos, Relator.
Relatório
O Sr. Min. Cunha Vasconcellos: - Sr. Presidente, peço fi benevolência dos meus Colegas, porque me seria impossível fazer um resumo.
Foi requerido um habeas corpus, pelo Dr. Advogado Antônio Carlos Amorim, em favor de Habib Hissa. O fundamento é falta de justa causa. A denúncia, que foi oferecida em relação a êsse paciente, indicou como lei aplicável os arts. 297 e 332, ambos combinados com os arts. 51, §§ 2.0
e 25, do Código Penal. O que se alega é que êsse pa
ciente, Habib Hissa, teria se prestado a aliciar pretendentes a empréstimos na Caixa Econômica Federal do Estado da Guanabara, a fim de preencher listas, em que pessoas de acesso junto ao Presidente da República obtinham autorização do Chefe do Estado. para receber comissões. Habib
Hissa teria sido chamado a depor inicialmente no Inquérito Policial-Militar, em razão de oferecimento de denúncia. Em síntese, a acusação é esta: pede-se, entretanto, o habeas corpus alegando que a denúncia caía pela base quanto a Habib Hissa, porque não se indica um momento único, não se aponta um fato sequer que justifique a inclusão dêsse paciente entre os denunciados como incursos nos dispositivos penais indicados. Em síntese é isso. A denúncia é muito longa; a inicial aponta na denúncia que lerei oportunamente - os três únicos pontos dessa longa denúncia, em que há referência da acão de Habib Hissa, para que,· em razão dela e das palavras com que ela é feita, se possa tirar a conclusão de que não há crime.
Sr. Presidente, pedi informações, como é de praxe, e o Dr. Juiz Federal da 4.a Vara do Rio de Janeiro m'as concedeu.
Ê o relatório.
Voto
O Sr. Min. Cunha Vasconcellos: - Sr. Presidente, a denúncia é um trabalho exaustivo porque, como esclareceu o advogado da tribuna, o Dr. Promotor teria tido cinco dias para formulá-la. Não obstante, teve que cogitar da situação de 38 acusados, extraindo de muitos processos elementos para cada um dêles. E, assim, na denúncia faz referência ao procedimento de cada um, define a classificação e menciona o dispositivo legal em que teria incorrido.
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Com relação ao acusado presente, há três passagens na denúncia que vou ler: (lê).
Estas são as únicas referências que há em tôda a denúncia com relação a êste acusado.
1tste habeas corpus é caso típico, que surge, de tempos em tempos, na Administração Pública dêste País, nem sempre feliz. Mas é um procedimento que não recomenda, de forma nenhuma, quem o idealizou e quem o pôs em execução.
Ainda que examinando de boa-fé o que ocorreu, verifica-se que era simples aliciamento de popularidade, de eleitorado, mera ação politiqueira.
O Presidente da República, que nada tem a ver com a Administração da Caixa Econômica, deu ordem, entretanto, ao Administrador da Caixa, que se sujeitara e submetera à condição subalterna de mero preposto, deu ordem para que não concedesse empréstimos, a não ser autorizado por êle, e com essa autorização êle pretendia, evidentemente, angariar simpatias, boa vontade, popularidade. Não haveria, a meu ver, fins criminosos; haveria êsses objetivos que, de certo modo, ofendiam princípios morais, princípios de decência, princípios. incompatíveis com a atitude que deve guardar o Presidente da República. Foi o que se deu neste caso: pessoas que tivessem maior aproximação com o Presidente da República obtinham listas em branco, com autorização, para depois ir intercalar nomes, já com o deferimento assegurado, recebendo por isso uma comissão.
Eu ouso perguntar aos meus doutos Colegas: seria crime isso?
Ou seria, simplesmente, um procedimento censurável por parte de quem se aproveitava desta oportunidade?
Vejam-se os dispositivos invocados no art. 297.
Havia isto? De forma nenhuma. Não se alteravam listas; o Presidente da República assinava listas com claros. Não havia listas com f alsificações ou alterações. Nem uma lista assim, assinada pelo Presidente da República, é um documento público.
A seguir (lê) o art. 332. O que se dava era precisamen
te o oposto. Ainda que êste homem tivesse feito isto, não estaria influindo no Presidente da República para obter aquela lista. Estava prevalecendo-se de uma oportunidade que se apresentava para adquirir uma vantagem.
1tsses são os dois dispositivos em que se os dão como incursos.
Ora, além do mais, não está provada, de forma nenhuma, a acusação de agenciamento. O único fato concreto aludido é aquêle do recebimento dos .... NCr$ 60,00, mas sôbre êste assunto o que se encontra nos autos é palavra contra palavra. Temos a acusação do Ministério Público e as explicações do suplicante, dizendo que os NCr$ 60,00 haviam sido recebidos em pagamento do seu trabalho na decoração do escritório.
Para se oferecer uma denúncia é necessário: 1.0 - que haja um fato provado e positivado; 2.° -que os elementos de responsabilidade pessoal sejam veementes e indiquem, com probabilidades quase de certeza, a responsabilidade.
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Eu pergunto: haveria isto nos autos? Creio que não. Assim me parece que, efetivamente, em relação a êsse paciente não encontrei elementos para poder concluir que existe a justa causa para a denúncia.
Assim, Sr. Presidente, concedo a ordem por falta de justa causa.
Voto (Vencido)
o Sr. Min. Amarílio Benjamin: - Sem conhecer os autos e louvando-me apenas nas informações do Sr. Min. Relator, bem como no seu voto e na oração do advogado do paciente, animo-me, entretanto, a divergir dos eminentes Colegas, que concederam a ordem, para denegá-la.
É verdade que tenho posição firmada no sentido de sàmente conceder habeas corpus por "justa causa", quando resulte de processo, sem necessidade de mais aprofundado exame, e irresponsabilidade do acusado ou a falta de criminalidade dos fatos que constituam o ponto básico da acusação.
Na hipótese, não obstante as observações do Sr. Min. Relator, tenho impressão de que se trata de conduta de alta criminalidade que se desenvolveu junto à Caixa Econômica, com a exploração de prestígio, concussão, corrupção e outras figuras delituosas.
Dir-se-á: A denúncia, em tais condições, pela complexidade, pode dificultar a defesa? Acredito que não. Porque se faltar à denúncia a exata classificação do delito, sendo certas as faltas, os
acusados se defenderão, e a sentença, afinal, há de dar a devida classificação, para então, absolver ou condenar os acusados.
Com a minha responsabilidade, é que, vendo discutidos tantos fatos, não posso, sem maior exame, repelir a acusação.
Denego a ordem.
Voto
o Sr. Min. ]. ]. Moreira Rabel-10: - Sr. Presidente, entendo que não ficou absolutamente provado coisa alguma.
A denúncia não apontou nenhuma falta cometida pelo paciente; ao contrário, a denúncia gira derredor no depoimento do próprio paciente. Nêle é que ela busca elementos para acusá-lo.
Entretanto, nessa peça, não lobrigo fato que constitua crime. Ao contrário, o elemento de que se valeu para acusá-lo é o recebimento de NCr$ 60,00 que se declarou ter sido recebido para obras realizadas no apartamento.
Nessas condições, considero absolutamente inepta a denúncia.
Concedo a ordem.
Voto
o Sr. Min. Esdras Gueiros: Sr. Presidente:
Pelo que depreendi não só do Relatório mas do voto do eminente Sr. Min. Relator, estamos diante de um caso sui generis: um cidadão, que trabalhava na decoração de um escritório, foi convocado para depor num inquérito, como testemunha de conversas
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que ali teria ouvido, entre os donos do escritório e pessoas outras que ali acorriam, relativamente à obtenção de empréstimos na Caixa Econômica Federal, por via de certas propinas dadas a alguém influente junto ao Govêrno de então.
Surpreendentemente, depois dos depoimentos prestados, transformou-se aquêle cidadão, de testemunha que foi no inquérito, em participante direto da corrupção, sem qualquer elemento plausível que o pudesse comprometer no caso. É o que surge de modo claro no presente pedido de ha~ beas corpus.
Quanto à alegação de ter êle recebido a quantia de NCr$ 60,00 no citado es~ritório, ficou demonstrado que tal pagamento fôra feito por conta da prestação de serviços como decorador. E, só por isso, foi êle transformado de testemunha em criminoso.
Acompanho o Sr. Min. Relator, concedendo a ordem.
Voto
o Sr. Min. Henoch Reis: - Sr. Presidente, tenho votado aqui várias vêzes denegando o pedido de habeas corpus com fundamento na falta de justa causa. Realmente já citei um voto do eminente Min. Amarílio Benjamin, e que fiquei de pleno acôrdo, quando disse S. Ex.a que só há falta de justa causa quando o fato narrado na denúncia não constitui ilícito penal, ou, em o constituindo, o acusado, na hipótese do
paciente, estava na impossibilidade material e física de cometer o delito.
N o caso sub judice o que entendo, Sr. Presidente, é que não podemos chegar a êsse rigorismo de que o fato realmente denunciado em relação àqueles outros é crime. Não podemos negar. Mas, se nós, então porque há um fato narrado na denúncia e há possibilidade da denúncia do dito crime, embora nada conste na denúncia, naquelas três peças que constam dos autos, nem há relação de possibilidade de o paciente estar entre aquêles beneficiários, nem qualquer citação do órgão do Ministério público, como ser o indigitado acusado de cometer o crime? Assim, não é possível jogar-se um cidadão em tal denúncia.
Nestas condições, concedo a ordem.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por maioria de votos, concedeu-se por falta de justa causa, vencidos os Srs. Mins. Amarílio Benjamin, Armando Rollemberg e Moacir Catunda. Não tomou parte no julgamento o Sr. Min. Antônio Neder. Os Srs. Mins. Henrique d'Ávila, Djalma da Cunha Mello, Márcio Ribeiro, J. J. Moreira Rabello, Esdras Gueiros e Henoch Reis votaram com o Relator. Não compareceu, por motivo justificado, o Sr. Min. Godoy Ilha. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Oscar Saraiva.
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HABEAS CORPUS N.o 1.776 - PE.
Relator - O Ex:no Sr. Min. Márcio Ribeiro Paciente - Manoel Ferreira da Silva Impetrante - Severino Feitosa das Neves
Acórdão
Habeas corpus. Tráfico de entorpecentes. Competência. Conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, a competência para julgar crime de tráfico de entorpecentes somente será dêste Tribunal quando se discutir questão internacional conexa.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Habeas Corpus n.O 1.776, do Estado de Pernambuco, em que são partes as acima indicadas:
Acordam os Ministros que compõem o Pleno do Tribunal Federal de Recursos, vencidos os Srs. Mins. Relator e Antônio N eder, em restituir-se o pedido de habeas corpus ao Egrégio Tribunal de Pernambuco, tendo em vista o pronunciamento do Egrégio Supremo Tribunal Federal, na forma do relatório e notas taquigráficas de fls. retro, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Custas de lei.
Brasília, 5 de outubro de 1967. Oscar Saraiva, Presidente;
Márcio Ribeiro, Relator designado.
Relatório
O Sr. Mino Armando Rollemberg: - Severino Feitosa das Neves, sentenciado, requereu ao Tribunal de Justiça de Pernambuco habeas corpus em favor de Manoel Ferreira da Silva, vulgo "Cotó", que se encontra prêso na Casa de Detenção, em Recife, sob
a acusação de comércio clandestino de entorpecentes desde 14 de julho de 1966, alegando que até então, 8 de maio do corrente ano, apenas se realizara o interrogatório do paciente, do que resultava estar o mesmo sofrendo coação ilegal, por excesso de prazo na instrução criminal. • Solicitadas informações pelo Relator no Tribunal aludido foram estas prestadas pelo MM. Juiz da La Vara Criminal de Recife, esclarecendo que o paciente fôra condenado à pena de um ano de reclusão e multa de dois cruzeiros novos pela prática do delito previsto no art. 281 do Código Penal combinado com o art. 25 do mesmo Código.
A seguir o Tribunal de Justiça de Pernambuco se afirmou incom~ petente para conhecer do pedido e remeteu os autos a esta Côrte.
É o relatório.
Voto
O Sr. Min. Armando Rollemberg: - O Egrégio Supremo Tribunal Federal já decidiu que a
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competência para o julgamento do crime de tráfico de entorpecentes somente será dêste Tribunal quando se discutir questão internacional conexa, o que não ocorre no caso dos autos. Assim, não conheço do pedido e suscito conflito negativo de jurisdição perante aquela Alta Côrte.
Voto
o Sr. Min. Márcio Ribeiro: -Data venia do Sr. Min. Relator, meu voto é no sentido dE' se restituir os autos ao Tribunal de Pernambuco para que êle reconsidere sua decisão, tendo-se em vista decisão, posterior, do Supremo Tribunal Federal, em caso idêntico.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Vencidos os Srs. Mins. Relator e Antônio Neder, restituiu-se o pedido de habeas corpus ao Egrégio Tribunal de Pernambuco, tendo em vista o pronunciamento do Egrégio Supremo Tribunal Federal. Os Srs. Mins. Moacir Catunda, Esdras Gueiros, Henoch Reis, Djalma da Cunha Mello e Amarílio Benjamin. votaram de acôrdo com o Sr. Min Márcio Ribeiro. Deixaram de comparecer os Srs. Mins. Cunha Vasconcellos, Henrique d'Ávila, Godoy Ilha e J. J. Moreira Rabello, por motivo justificado. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Oscar Saraiva.
HABEAS CORPUS N.O 1.889 - CO.
Relator - O Ex.mo Sr. Min. Antônio Neder Paciente - Sílvio Mundim Pedroza Impetrantes - Joaquim OHnto de Jesus Meirelles e outrc
Acórdão
Ato Complementar n.o 2, de 1965, art. 1.0, § 1.0. Essa norma, de interpretação estrita, consubstancia o princípio da permanência objetiva e subjetiva do juiz estadual nos processos de competência da Justiça Federal, desde que a instrução dêsses processos haja sido iniciada em audiência e nêles incida o princípio da oralidade, como ocorre nos casos do art. 120 do C.P.C. e do art. 538, § 3.°, do C.P.P .. Em não havendo audiência de instrução e julgamento e incidência do princípio da oralidade, a competência é do Juiz Federal, ainda que o processo tenha sido iniciado por Juiz Estadual.
Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Habeas Corpus n.o 1.889, do Estado de Goiás, em que são partes as acima indicadas:
Acordam os Ministros que compõem o plenário do Tribunal Federal de Recursos, por unanimidade, em conceder a ordem para anular a sentença e determinar a
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remessa dos autos ao Juiz Federal competente, na forma do relatório e notas ta qui gráficas de fls. 57 a 68, que integram êste julgado. Custas de lei.
Brasília, 18 de março de 1968. - Amarílio Benjamin, Presidente' Antônio Neder, Relator. '
Relatório
o Sr. Min. Antônio Neder: _ Os advogados Joaquim Olinto de Jesus Meirelles e José Francisco Paes Landim impetram habeas corpus em favor de Sílvio Mundim Pedroza, e o fazem nestes têrmos: "1. Em meados de 1960 foi o paciente violentamente afas~ tado das funções de Prefeito Municipal de Ceres, Estado de Goiás por ato da Câmara local que si~
I A ' mu taneamente, com base em relatório de comlssao especialmente constituída para tal (doc. n.O 1), contra o mesmo promoveu representação judicial para a apuração de possíveis irregularidades na aplicação de dinheiro proveniente de convênio firmado entre a municipalidade e o extinto Instituto Nacional de Imigração e Co~onização. Ressalte-se que, àquela epoca, o paciente encontrava-se munido de autorização presidencial que fixava o prazo de 12 meses para a devolução da importância retirada do Escritório de Vendas de Terras daquele extinto órgão da administração centralizada, importância essa aplicada no atendimento aos flagelados da cheia do Rio das Almas e não devolvida no devido tempo, pôsto que o paciente encontrava-se já afastado das funções de Prefeito Municipal. Decorridos dois anos,
isto é, em 1962, a Câmara Municipal de Ceres, dentro dos estritos limites de poder fiscalizador (por ignorância ou grosseiro êrro de técnica legislativa falou-se ém "composição amigável"), aprovou as contas do paciente (aqui entendido como representante legal do Poder Executivo de cuja chefia fôra afastado desde 1960), fato que motivou a paralisação da ação penal até meados do ano próximo passado. Com base na ação penal, cuja denúncia é de outubro de 1961, foi impugnada, em 1965, a candidatura do paciente à Prefeitura Municipal de Ceres, sendo que a Justiça deu pela improcedência da impugnação, em primeira e segunda instâncias, vindo êle novamente a ser eleito Prefeito de Ceres para o período de janeiro de 1966 a janeiro de 1970. Agora, por razões onde o sagrado dever da prestação jurisdicional serviu de anteparo, involuntàriamente, a interêsses escusos, o processado, que se encontrava paralisado desde 1962, foi concluído a toque de caixa, condenado o paciente à pena de três anos de reclusão, como incurso no art. 1.0, inciso I, do Decreto-lei n.O 201, de 27-2-67, impondo-lhe, ainda de conformidade com o disposto no art. 1.0 § 2.°, do mencionado Decreto-lei n.O 201, a perda do cargo de Prefeito Municipal de Ceres, e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação sem prejuízo de reparação civil, como consta da sentença (doc. n.O 2).
Havendo o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás declarado inconstitucional o men-
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cionado Decreto-lei n.O 201, impetrou o paciente uma ordem de habeas corpus junto àquele Tribunal, alegando, entre outros fatos, a inconstitucionalidade da lei na qual se arrimara a sentença do Juiz a quo, tendo o mesmo Tribunal, em decisão de 19-12-67, declinado de sua competência para a do Tribunal Federal de Recursos (doc. n.o 3). Daí a razão do presente pedido, devidamente instruído com certidões do Tribunal de Justiça de Goiás e outras, que se espera seja recebido e, no final, concedida a ordem de habeas corpus, pelos seus próprios e jurídicos fundamentos. As leis de competência têm aplicação imediata, pelo que não há falar em "competência residual" da justiça comum para processar e julgar o presente caso; daí o constrangimento que sofre o paciente pela ilegalidade da coação ordenada por quem não tem competência para determiná-la. Diz o art. 2.°, do Código de Processo Penal: "A lei processual aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior". Estamos, portanto, diante do texto legal que, de maneira insofismável, estabeleceu a imediata aplicação das leis ue processo, e por assim dizer, as de competência, princípio êste fundamental admitido pela universalidade dos autores e pela jurisprudência antiga e moderna. A ilustre autoridade coatora, ao sentenciar em primeira instância, o fêz segundo recomendações dêsse Egrégio Tribunal sôbre o problema da competência residual. Tal orientação não há de prevalecer, data venia, eis que ela contrataria
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remota e pacífica orientação de nossa doutrina e jurisprudência, solidificada esta com recentíssimas decisões do Supremo Tribu· nal Federal, como do H.C. 44.928, do Estado do Rio, do qual foi Relator o ilustre Min. Evandro Lins.
Ensina-nos Espínola Filho, in Código de Processo Penal Brasi· leiro Anotado, vol. I, s.a edição, pág. 166, que "... firmado o princlplO geral da imediata aplicação da lei nova, estende-se ela não só a todos os processos que, após a sua entrada em vigor, se iniciaram, para a apuração de crimes cometidos antes da sua vigência, como até àqueles já começados, correndo o seu curso, sem terem sido ainda definitivamente solucionados" .
No mesmo diapasão toca Vicente de Azevedo, in Curso de Direito Judiciário Penal, vol. I, pág. 63: "O princípio geral aplicável às leis de processo propriamente ditas, assim como às leis relativas à competência, é o da imediata aplicação, do efeito imediato da lei nova. É realmente certo que as leis de processo, tal como quaisquer outras, não podem alcançar fatos consumados (facta praeterita) : assim, os atos de processo concluídos não podem ser reexaminados em virtude de lei nova, por exemplo uma apelação já julgada, ou prazo inteiramente esgotado, ou um prazo para interposição de recurso. Mas as leis têm, por certo princípio, efeito imediato sôbre as situações em curso (facta pedentia), e quando se trata de um processo composto de vários atos praticados sucessivamente, e com intervalos se os
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atos precederem à lei nova permanecem da competência da lei anterior, a lei nova predomina sôbre os atos. futuros".
Em sendo assim, admitido o remansoso princípio doutrinário e jurisprudencial da imediata aplicação das leis de competência, excluído, portanto, o entendimento no sentido da existência da "competência residual", só ao titular da Seção Judiciária da Justiça Federal em Goiás competia sentenciar a causa em primeira instância, devendo ser declarados nulos todos os atos nos quais oficiou a autoridade coatora, o Juízo da Comarca de Ceres. que interveio da ultimação do sumário até final sentença (doc. n.O 4). Da ilegalidade do constrangimento pela nulidade evidente do processo em que, sendo interessada a união, não foi aberta· vista ao procurador da república. No venerável Acórdão de 19 de dezembro de 1967, reconhecia o Tribunal de Justiça de Goiás que, desenganadamente, a competência para conhecer do presente pedido é do Egrégio Tribunal Federal de Recursos, tendo em vista tratar-se de crime praticado em detrimento de bens e interêsses da União. Ora, evidenciado à sociedade o interêsse da União no caso em pauta, interêsse dimensionado com meridiana clareza no anexo Acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás, justo é alegar-se que o paciente sofre constrangimento ilegal pela nulidade do processo em que, sendo interessada a União, não foi aberta vista ao Procurador da República é o que provam os documentos de n.OS 5 e 6. A Procuradoria Regional da República
em Goiás jamais foi chamada ao processo. Jamais, em tempo algum, delegou podêres à Justiça Pública de Ceres para o oferecimento de denúncia contra o paciente. Aliás, em 8 de novembro de 1966, no voto do Relator, o Ex.mo Sr. Min. Armando Rollemberg, assim se pronunciou êsse Egrégio Tribunal: "É nulo o processo em que, sendo interessada autarquia federal, não foi aberta vista ao Procurador da República" (Apelação Cível número 23.390, do Rio de Janeiro). De notar que o preceito constitucional, relativo à competência que se irroga ao Egrégio Tribunal Federal de Recursos, quando se refere a "crime", não delimita restritivamente o campo de "interêsse" da União no feito, como o faz ao referir-se às causas cíveis, em que tal interêsse sàmente se legitima quando a União figura, no pleito, como "autora", "ré", "assistente" ou "opoente". Tratando-se de crimes, de ação penal, o âmbito de "interêsse" da União é o mais amplo possível, ilimitado, onímodo, como claramente indicam as expressões genéricas usadas: "bens", "serviços" e "interêsses".
Na Apelação Cível n.O 20.848, de Minas Gerais, volta êsse Egrégio Tribunal a reafirmar o entendimento da nulidade de processo pelo não chamamento da União em pleito de seu interêsse, desta feita pelo voto do não menos ilustre Relator, o Ex.mo Sr. Min. J. J. Moreira Rabello: "Não convocada a União em pleito de seu interêsse, anula-se o processo para que ela venha a integrá-lo." E para justificar nosso pedido basta que se diga que a simples coação processual importa na
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coação à liberdade de locomoção. E mais: se o processo é nulo, de modo evidente deve ser êle desde logo declarado como tal, nos exatos têrmos do art. 648, inciso VII, do Código de Processo Penal Brasileiro, eis que, no mais douto entendimento, o processo criminal pode logo de início dar lugar à anulação pelo habeas corpus. E, por isso, face a tudo o que foi dito e exposto, esperam os impetrantes seja concedida a o .. dem de habeas corpus ora suplicada em favor do paciente Sílvio Mundim Pedroza, expedindo-se o competente salvo-condu~o, tendo em vista a ilegalidade da coação ordenada por quem não tem competência para determiná-la, anulando-se o processo a partir do sumário e, se assim não entender êsse Egrégio Tribunal, que seja anulado o processo a partir da citação, dada a sua manifesta nulidade, eis que, sendo interessada a União, não foi aberta vista ao Procurador da República nem êste delegou podêres à Justiça Pública de Ceres para oferecer denúncia contra o Paciente. Têrmos em que p. deferimento" (sic).
O MM. Dr. Juiz Federal da Seção de Goiás informa o seguinte: Sr. Ministro,
Em resposta ao ofício de V. Ex.a, n.O 232, de 19 do-corrente, a fim de instruir o pedido de habeas corpus em favor de Sílvio Mundim Pedroza, presto as seguintes informações: em 6 de setembro de 1967 êste Juízo, ao receber de Ceres o processo crime contra Sílvio Mundim Pedroza, mandou devolvê-lo entendenio que estava firmada a competência residual do ilustre titular da-
quela comarca. De fato, a Lei 5.010, de 30-5-66, no art. 80 reza: "Enquanto não forem nomeados e empossados os Juízes a que se refere o art. 94, inciso lI, in fine, da Constituição, com a nova redação que lhe deu o art. 6.° do Ato Institucional n.O 2, continuarão a funcionar nos feitos da competência da Justiça Federal os Juízes Estaduais aos quaiG a legislação anterior atribuía Essa jurisdição.
§ 1.0 - Essa competência residual temporária não cessará, depois da posse do titular federal, nos processos cuja instrução houver sido iniciada em audiência, quer perante as Varas Especiais dos Feitos da Fazenda Nacional, quer perante as Varas da Justiça comum, em todos os feitos que passaram para a competência da Justiça Federal".
J á foi decidirio: "6) Responder à consulta formulada pelo Juiz Federal da Seção Judiciária do Estado do Maranhão no sentido de ser aplicável, aos processos criminais, a disposição do § 1.0 do art. 80, da Lei 5.010 (Diário da Justiça pág. 1, de 7-7-1967). Ora, no referido processo crime contra Sílvio Mundim Pedroza já havia sido "iniciada a instrução em audiência", pois foram ouvidas testemunhas de acusação no Forum de Ceres, firmando-se, portanto, a competência residual do digno lVlagistrado de Ceres. Devolvidos os autos, o MM. Juiz de Ceres acolheu as considerações e aceitou a sua competência, conhecendo e julgando o processo. São estas as informações que submeto à alta apreciação de V. Ex.a. Ao ensejo, renovo a V. Ex.a os pro-
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testos de alto aprêço e distinta consideração" (sic).
O MM. Dr. Juiz de Direito da Comarca de Ceres, do Estado de Goiás, informa, por sua vez, o seguinte: "Tenho a súbida honra de dirigir-me a V. Ex.a para, em cumprimento aos têrmos do ofício n.O 231, de 19 de fevereiro último, prestar as informações que me são solicitadas, objetivando instruir o julgamento da ordem de Habeas Corpus n.o 1.889, impetrada a favor de Sílvio Mundim Pedroza. A 10 de outubro de 1961, o ilustre representante do Ministério Público, com fundamento em longa representação promovida pela Câmara de Vereadores de Ceres, denunciou· o paciente Sílvio Mundim Pedroza como incurso nas sanções do art. 312 do Código Penal, por se haver apossado da quantia de ...... . Cr$ 1.987.236 pertencente à Municipalidade (V. cópia da denúncia). Recebida a denúncia foi o paciente citado e interrogado. No tríduo legal, seu defensor apresen tou defesa prévia, acompanhada do rol das testemunhas. Ao assumir as funções de Juiz da Comarca, determinei, com fundamento no disposto no art. 119, inciso IV, da Constituição Federal, a remessa dos autos à Justiça Federal (V. cópia do despacho). Por sua vez, recebendo o processo, esclareceu o ilustre Juiz Federal haver decidido o Egrégio Tribunal Federal de Recursos ser aplicável, aos processos criminais, o preceito contido no § 1.0 do art. 80 da Lei n.o 5.010, segundo o qual a competência residual temporária não cessará depois da posse do titular federal, nos processos cuja instrução hou-
ver sido iniciada em audiência, em todos os feitos que passaram para a competência da Justiça Federal (V. cópia do despacho). Acolhendo as doutas considerações do ilustre Juiz Federal ordenei o prosseguimento do feito (V. cópia do despacho). Antes, acastelado em composição amigável feita com o Legislativo Municipal, o paciente requerera ao Egrégio Tribunal de Justiça de Goiás uma ordem de habeas corpus visando ao trancamento do processo. A Co lenda Câmara Criminal, conforme Acórdão unânime relatado pelo eminente Des. Romeu Pires de Campos Barros, indeferiu o pedido, decidindo que "a composição amigável entre Vereadores e Prefeito, para aprovação das contas dêste, não elide a ação penal por crime de peculato em que é indiciado o Chefe do Executivo Municipal, notadamente quando foram êsses mesmos Vereadores os portadores da "no titia criminis". A 2 de outubro do ano passado, acolhendo o pediio do Ministério Público, decretou-se a prisão preventiva do paciente e o seu afastamento do exercício do cargo de Prefeito Municipal de Ceres. Dessa decisão, no qüinqüídio legal, o paciente recorreu para instância superior. A 28 de novembro de 1967 foi afinal o paciente condenado à pena de 3 anos de reclusão e lhe imposta a perda do cargo de Prefeito Municipal de Ceres e a inabilitação, pelo prazo de 5 anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo de reparação civil do dano causado ao patrimônio da Prefeitura Municipal. Ao contrário do que afirmam os patronos do pa-
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ciente, o Sr. Dr. Procurador da República em Goiás delegou podêres ao Dr. Promotor de Justiça de Ceres para funcionar como representante da União, nos casos previstos no art. 15 da Lei 5.010, de 30-5-66, com redação alterada pelo Decreto-lei n.O 30, de 17-11-1966.
Valho-me da oportunidade para apresentar a V. Ex.a os protestos de elevada estima e distinta consideração" (sic ).
É o relatório.
Voto
O Sr. Min. Antônio Neder: -O art. 1.0, do Ato Complementar n.O 2, de 1965, expressa o seguinte: "Enquanto não forem nomeados e empossados os Juízes Federais a que se refere o art. 94, inciso lI, in fine, da Constituição, com a nova redação que lhe deu o art. 6.° do Ato Institucional n.O 2, continuarão a funcionar nos feitos da competência da Justiça Federal os Juízes Estaduais aos quais a legislação anterior atribuía essa jurisdição".
E o § 1.0 dêsse artigo dispõe: "Essa competência residual temporária não cessará, depois da posse do titular federal, nos processos cuja instrução houver sido iniciada em audiência".
É a sede jurídica da controvérsia que se contém nesse processo.
O MM. Dr. Juiz Federal da Seção de Goiás, invocando certa decisão dêste Tribunal, entendeu que, no processo criminal a que respondeu e foi condenado o paciente, ter-se-ia verificado exatamente o caso previsto no acima transcrito § 1.0, norma que consagra o princípio da permanência
subjetiva e objetiva do juiz estadual nos processos de competência da Justiça Federal desde que iniciada a instrução dêsses processos em audiência.
E o MM. Dr. Juiz de Direito da Comarca de Ceres, Goiás, aceitou, por fôrça da mesma orientação, a competência que lhe foi assim deferida.
Meu entendimento é diferente Estou em que, na verdade, a
norma do § 1.0, do art. 1.0, do Ato Complementar n.o 2, de 1965, consubstancia o princípio da permanência subjetiva e objetiva do juiz estadual nos processos de competência da Justiça Federal desde que a instrução dêsses processos haja sido iniciada em audiência.
Mas entendo que essa norma, por ser imperativa, é de interpretação estrita ou taxativa.
Em outras palavras, essa norma só se refere aos processos cuja instrução haja sido iniciada na audiência que, no campo do processo civil, é prevista no art. 297 do C.P.C. combinado com os arts. 263 e seguintes do mesmo Código; e na audiência que, no campo do processo penal, é prevista no art. 538 do C.P.P. (caso se dê a hipótese do seu § 3.°).
Em resumo, a norma do § 1.0, do art. 1.0, do Ato Complementar n.O 2, de 1965, tem a mesma inspiração das normas do art. 120 do C.P.C.e do § 3.°, do art. 538, do C.P.P.
Trata-se de corolário do princípio da oralidade.
A palavra audiência está escrita no texto com o sentido estrito de audiência de instrução e julgamento, e não no sentido lato de
"ouvir ou escutar alguém", como ensinam os dicionários.
Necessário é que haja audiência de instrução e julgamento em processo civil ou penal em que se tenha adotado a oralidade para que incida o princípio da permanência.
No processo civil prevalece o princípio de que o Juiz tem o dever de investigar a verdade, e isto lhe impõe necessàriamente a permanência no processo que haja instruído em audiência e na qual haja debate oral; e no processo penal, como se sabe, o princípio consagrado hoje é o de que, ao apreciar a prova, o Juiz forma livremente a sua convicção .... (C.P.P., art. 157), donde a necessidade de sua permanência no processo que haja instruído em audiência e no qual haja debate oral, como no processo sumário (C.P.P., art. 538).
O caso noticiado nestes autos é de processo criminal comum, da competência do JUIZ singular (C.P.P., arts. 498 e seguintes), e não de processo especial sumário, também de competência do juiz singular (C.P.P., arts. 531 e seguintes).
No primeiro não há oralidade; no segundo, sim.
Por causa da oralidade é que se dá a permanência do juiz da instrução no julgamento.
Se o caso dêstes autos não é de processo sumário, evidente é a conclusão de que a êle não se aplica a norma do § 1.0, do art. 1.0, do Ato Complementar n.o 2, de 1965.
Desde que essa norma não se aplica, a conclusão que se impõe
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é a de que o MM. Dl'. Juiz de Direito da Comarca de Ceres não tem competência para julgar o caso, visto que o competente é o MM. Dl'. Juiz Federal da Secção de Goiás.
É nula, pois, a sentença do MM. Dr. Juiz Estadual, como expressa o art. 564, I, do C.P.P., devendo o MM. Dr. Juiz Federal de Goiás proferir outra no processo, como ordena o art. 567 do mesmo Código.
Meu voto é no sentido de conceder o habeas corpus para anular tão-somente a sentença, devendo o MM. Dl'. Juiz de Direito da Comarca de Ceres remeter imediatamente o processo pata o MM. Dl'. Juiz Federal da Secção de Goiás para que êste último profira outra sentença, como ll::e parecer juridicamente certo.
Decisão
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Por unanimidade, concedeu-se a ordem para anular a sentença e determinar a remessa dos autos ao Juiz Federal competente. Não tomaram parte no julgamento os Srs. Mins. Cunha Vasconcellos, Armando Rollemberg e Márcio Ribeiro. Os Srs. Mins. J. J. Moreira Rabello, Esdras Gueiros, Moacir Catunda, Henoch Reis, Henrique d' Ávila e Godoy Ilha votaram com o Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Min. Amarílio Benjamin. Não compareceram os Srs. Mins. Djalma da Cunha Mello, por motivo justificado, e Oscar Saraiva (Presidente ), por ter entrado em gôzo de férias regulamentares.