REALISMO CIENTIFICO EMPIRISTA

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REALISMO CIENTIFICO EMPIRISTA.71 SILVIO SENO CHIBENI Universidade Estadual de Campinas ABSTRACT In his influential criticism of scientific realism, Bas van Fraa.s- sen assumes that thzs doctrtne is incompatzble with empiriczsm, according to which the sole ultimate basis of knowledge is expe rience This claim has been generally accepted in the contempo rary literature in philosophy of science Thus, the very distinc non between scientific realism and empiricism is often forgot ten, the term 'empiricism' being now widely used to designate a range of anti-realist positions, such as van Fraassen's "constructive empiricism" In this paper it is argued, first, that empiricism, zn the traditional and proper sense of the word, is a thesis about the problem of the foundations of knowledge, and should therefore be clearly distinguished from anti realism, which concems the issue of the extenszon of knowledge It is then conceded that the main arguments for scientific realism do indeed require that extra emptrical charactenstics of scientific theories, such as sim plicity and explanatory power, should be ascribed epistemic weight Although this potra lends support to van Fraassen's claim, it is indicated here that his constructive empiricism is threatened by the same kznd of epistemological obj ections which he razses against his opponents Like some other scientific anu realists, van Fraassen avowedly embraces realism conceming ordinary material ob jects, but it is not clear that this form of anti realism remains tenable when explanatory power, simplicity, etc are regarded as merely pragmatic, non epistemic virtues © Principia, 1(2) (1997) pp 255-69 Published by Editora da UFSC, and NEL — Epistemology and Logic Research Group, Federal University of Santa Catarina (UFSC), Brazil

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REALISMO CIENTIFICO EMPIRISTA.71

SILVIO SENO CHIBENI

Universidade Estadual de Campinas

ABSTRACT

In his influential criticism of scientific realism, Bas van Fraa.s-sen assumes that thzs doctrtne is incompatzble with empiriczsm,according to which the sole ultimate basis of knowledge is experience This claim has been generally accepted in the contemporary literature in philosophy of science Thus, the very distincnon between scientific realism and empiricism is often forgotten, the term 'empiricism' being now widely used to designate arange of anti-realist positions, such as van Fraassen's"constructive empiricism" In this paper it is argued, first, thatempiricism, zn the traditional and proper sense of the word, is athesis about the problem of the foundations of knowledge, andshould therefore be clearly distinguished from anti realism,which concems the issue of the extenszon of knowledge It isthen conceded that the main arguments for scientific realism doindeed require that extra emptrical charactenstics of scientifictheories, such as sim plicity and explanatory power, should beascribed epistemic weight Although this potra lends support tovan Fraassen's claim, it is indicated here that his constructiveempiricism is threatened by the same kznd of epistemologicalobjections which he razses against his opponents Like someother scientific anu realists, van Fraassen avowedly embracesrealism conceming ordinary material ob jects, but it is not clearthat this form of anti realism remains tenable when explanatorypower, simplicity, etc are regarded as merely pragmatic, nonepistemic virtues

© Principia, 1(2) (1997) pp 255-69 Published by Editora da UFSC, andNEL — Epistemology and Logic Research Group, Federal University ofSanta Catarina (UFSC), Brazil

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1. Empirismo e racionalismo

Tradicionalmente, no estudo do conhecimento humano emgeral distinguem-se dois problemas um relativo as suas fon-tes e outro que diz respeito a sua extensão A investigaçãodo segundo problema naturalmente pressupõe algum posi-cionamento quanto ao primeiro Não e claro, contudo, queuma solução do problema das fontes do conhecimentoconduza automaticamente a uma resposta univoca para aquestão da extensão ou limites do conhecimento Assim e,por exemplo, que no Ensaio sobre o Entendimento HumanoLocke examina de modo explicito e detalhado a extensãodo conhecimento apos, e mesmo apos, haver estabelecidosua teoria acerca das fontes do conhecimento

Utilizamos propositadamente a expressão 'fontes doconhecimento', embora sabendo que o leitor podera identi-fica-la como ambigua Afinal, Kant distinguiu a questão dafundamentação do conhecimento daquela relativa a suaorigem ou "começo" Anteriormente a Kant, porém, osepistemologos não estabeleciam de forma clara essa distin-ção, e a investigação de como o conhecimento "começa", seadquire, se origina, era tambem entendida como se dirigin-do a questão dos seus fundamentos, ou justificação Embo-ra a tradição filosofica tenha reconhecido a conveniência dese traçar a distinção, não acreditamos que se trate de umponto que dispense ulteriores exames críticos No presentetrabalho, todavia, nada dependera de forma essencial daposição que se adote quanto a isso, e continuaremos falan-do em fontes do conhecimento, em sentido bastante amplo

E a questão das fontes do conhecimento assim en-tendida que o empirismo diz respeito Trata-se da tese epis-temologica segundo a qual a fonte ultima do conhecimentoe a experiência (Locke, Berkeley, Hume) Em oposição a ela,o racionalismo mantem que e possivel obter conhecimento,

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ou justifica-lo, independentemente da expenencia (Descar-tes, Leibniz)

Embora quando caracterizados dessa forma geralempirismo e racionalismo digam respeito ao conhecimentode quaisquer dommios, o tema deste trabalho permite queanalisemos exclusivamente o conhecimento do mundo fisi-co, sem nos preocuparmos com o conhecimento matemati-co, por exemplo Alem disso, não iremos tratar das posiçõesracionalistas, sem com isso fugirmos ao foco do debateatual sobre o realismo cientifico Alias, o interesse dos epis-temologos que se ocupam das ciência naturais parece ter-seinclinado irreversivelmente para o empirismo depois queteorias consideradas paradigmas de conhecimento a priori,como a geometria euclidiana e a mecanica classica, cederamlugar a teorias incompativeis, no processo evolutivo da ci-encia

2. Realismo e anti-realismo

Percebe-se facilmente que e possivel haver divergencias en-tre empinstas e, igualmente, entre racionalistas, sobre o quepode ou não ser conhecido acerca do mundo, sobre quaisobjetos, propriedades e relações caem dentro do escopo dacognição humana Considerando-se então determinadaclasse de objetos, ha, de modo geral, duas posições episte-mologicas possiveis o realismo, que defende que eles podemem principio ser conhecidos (sua existencia, suas proprieda-des e relações), e o anti-realismo, que os considera inaborda-veis por nossas faculdades cognitivas

Realismo e anu-realismo têm recebido caracteriza-ções e denominações particulares, dependendo da classe deobjetos em questão Assim, por exemplo, o behavionsmo euma forma de anu-realismo quanto aos estados mentais, oconstrutivismo uma forma de anu-realismo quanto aos ob-jetos matematicos, o fenomenalismo, quanto aos objetos

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materiais ordinarios Neste trabalho discutiremos exclusi-vamente o conhecimento das entidac. 3 e processos mob-servaveis postulados pelas teorias cienti cas para predizer eexplicar aquilo que se observa Temos, neste caso, a tese dorealismo cientifico, de acordo com a qual a - ência ja deter-minou a realidade de algumas dessas entidades e processos,ou, em formulações mais fracas, que ela se aproxima gradu-almente de uma descrição correta da realidade mobservavelou, simplesmente, que tem essa descrição entre seus ob j eti-vos

A negação dessa tese pode ser feita de diversas ma-neiras, resultando dai formas diferentes de anti-realismocientifico A substituição da concepção classica, correspon-dencial, de verdade por concepções como a pragmatica, oua concepção da verdade como coerência, por exemplo, levaa um anti-realismo bastante radical, de indole relativistaNas posições instrumentalista e redutivista a noção dassicae em geral preservada, mas as proposições que se referem acoisas mobservaveis são interpretadas de forma não-literalPara o instrumentalismo elas são, na verdade, pseudo-proposições, que não asserem nada sobre o mundo, nãopassando de instrumentos de calculo ou predição que auxi-liam a conexão e a estruturação das proposições genumas,sobre coisas e processos observaveis Para o redutivismo,aquelas proposições das teorias cientificas são proposiçõesgenumas, porem de fato referem-se (indiretamente) apenasao que e observavel, sendo abreviações para proposiçõesmais complexas sobre entidades e processos observaveis

Boa parte do debate contemporaneo acerca do rea-lismo cientifico gira em torno do empirismo construtivo, dou-trina anti-realista cientifica proposta por van Fraassen(1980) Segundo esse filosofo, as proposições sobre entesmobservaveis são proposições genumas e devem ser inter-pretadas literalmente, porem a determinação de seu valor

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de verdade não constitui objetivo da ciência "A ciênciaobjetiva a nos fornecer teorias que são empiricamente ade-quadas, e a aceitação de uma teoria envolve, como crença,apenas que ela e empiricamente adequada" (van Fraassen1980, p 12) Trata-se, pois, de uma forma de ann-realismocientifico aparentemente mais fraca e plausivel do que redu-tivismo, ja que van Fraassen desenvolveu sua posição apartir do reconhecimento da insustentabihdade do projetoredutivista do positivismo logico Quanto as relações dessaposição com o instrumentalismo, podenamos talvez apro-veitar uma distinção traçada por Newton-Smith (1981,p 30), e dizer que o empirismo construtivo e um "instru-mentalismo epistemologico", enquanto que o descrito noparagrafo precedente e "semantico"

Para as analises a serem desenvolvidas logo mais, eimportante observar que van Fraassen compartilha com orealista cientifico tipico de nossos dias não apenas a inter-pretação literal das teorias cientificas e a noção classica deverdade, mas tambem o realismo quanto aos objetos mate-riais ordinanos e o empirismo, tal como caracterizado naprimeira seção Sobre esse ultimo ponto, afirma explicita-mente que "identifica o empirismo com a tese epistemologi-ca de que a expenencia e a unica fonte legitima de informa-ção sobre o mundo" (1985, p 286)

Todavia, van Fraassen junta-se aos instrumentalis-tas semanncos e redutivistas ao considerar que o conheci-mento se limita estritamente ao que e diretamente observa-vel Defende, ademais, que essa tese anu-realista cientifica euma consequencia do empirismo No mesmo paragrafo emque expressa corretamente a posição empinsta, na citaçãoque acabamos de fazer, acrescenta "Eu diria que a criticaempinsta do conhecimento corta todas as bases do realismocientifico" (ibid )

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Nessa passagem, van Fraassen esta respondendo aacusação de Brim Elhs (1985, p 48) a, lue seu conceito deempirismo não e o tradicional De fatc, o leitor atento deThe Scienufic Image tera boas razões para concordar comEllis Ja na primeira linha desse livro, por , 2nnplo, o autorafirma que "a oposição entre empirismo e realismo e anti-ga", confrontando assim posições que se referem a proble-mas epistemologicos diferentes Conforme salientamos noinicio, o empirismo opõe-se, mais propnamente, ao racio-nalismo, enquanto que ao realismo opõem-se diversos tiposde anu-realismo Em nenhum lugar, antes de ser pressiona-do por Elhs, van Fraassen traça uma distinção explicitaentre empirismo e anu-realismo cientifico Infelizmente, aliteratura recente mostra acentuada tendência para confun-dir essas duas doutrinas Esteja ou não correta a tese de queo anu-realismo cientifico decorre do empirismo, a clarezarecomenda que elas sejam diferençadas conceituai e termi-nologicamente Popper e Carnap, por exemplo, eram am-bos empinstas, divergindo, no entanto, quanto aos limitesdo conhecimento Para Popper, porem não para os positi-vistas logicos, hipoteses acerca da existencia e propriedadesde entes inobservaveis poderiam ser consideradas veiculosde genuino conhecimento, desde que submetidas a controleexperimental

3. Realismo científico empirista?

O vinculo forte proposto por van Fraassen entre empirismoe anu-realismo cientifico não e trivial, o que ja se percebepela inspeção de algumas de suas consequências Ainda naresposta a Ellis, por exemplo, não podendo negar que Ga-Meu agia como se tivesse adotado uma postura realista, vanFraassen e forçado a afirmar, implausivelmente, que talvezo grande gemo fosse um "empinsta que tinha prazer em

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fazer lances de fe E 1 ou então um empirista que não via asimplicações de sua propria posição"

Evidentemente, o fato de Galileu ou qualquer outrocientista haver adotado uma posição realista não pode serevocado como uma razão filosofica a seu favor Parece-nosbizarro, no entanto, manter que genios da ciência com am-plo conhecimento filosofico como Galileu e Einstein, porexemplo, tenham sido incapazes de perceber as consequen-cias filosoficas de suas proprias posições, e não dispusessemde argumentos ponderaveis para sustenta-ias, entregando-seao 'nacionalismo puro e simples

Referindo-nos a essa passagem, queremos sobretudosalientar que, de um modo geral, a tese de van Fraassenobriga-o a introduzir um corte radical entre a metodologia daciência (que ele admite depender de procedimentos naturaisem uma filosofia realista, ver e g 1980, pp 80-3 e 93, e1985, parte I) e a interpretação epistemologica da ciência (anti-realista, segundo ele) Não apenas as praticas da ciênciaparecem ricas demais para caberem na magra epistemologiaempirista de van Fraassen, mas tambem nela não ha recur-sos suficientes para tratar a questão-chave da escolha deteorias Isso conduz van Fraassen a propor a cisão entrecrença e aceitação de teorias Esse topico exige que exami-nemos brevemente as motivações e justificações do empi-rismo construtivo

O principal argumento de van Fraassen contra orealismo cientifico e o de que as teorias cientificas que ba-seiam suas previsões e explicações dos fenomenos em supos-tos mecanismos inacessiveis a observação direta são subde-terminadas empiricamente, ou seja, os dados empiricos sãopor principio insuficientes para determinar o valor de ver-dade de algumas de suas proposições fundamentais Assim,e possivel que duas teorias incompativeis em suas proposi-ções acerca do inobservavel sejam empiricamente equiva-

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lentes, isto e, coincidam no que afirmam a respeito do quee observavel Para manter sua posição, o realista científicotem de fornecer critenos para a discriminação epistêmicadas teorias empiricamente equivalentes, critenos que indi-quem qual e a verdadeira, ou qual se aproxima mais daverdade

Ora, por necessidade, esses critenos não poderão serempincos, e tipicamente envolvem fatores como o poderexplicativo, a simplicidade, a unidade, etc E precisamentenesse ponto que van Fraassen centra sua critica o apelo atais pnncipios não empincos (ou "superempincos", como asvezes se diz) significaria um rompimento com os ideais em-pinstas tradicionais, introduzindo inaceitaveis elementosnão objetivos no conhecimento O desejo de salvar o credofilosofico empinsta e, assim, a motivação basica de vanFraassen, conforme apontou Arthur Fine (1986, p 167)

Van Fraassen reconhece o papel essencial dos prin-cimos superempincos na escolha e aceitação de teorias Emnome da preservação do empirismo, porem, relega-os aodominio pragmatico, negando-lhes qualquer relevânciaepistêmica, ou seja, não os considera motivos de crença ouindicação de verdade (1980, pp 87-8) Vejamos esta passa-gem significativa (1985, p 286-7)

Suponha, porem, que aceitemos alguns desses criteriospropostos e tomemos sua satisfação como razões para cren-ça Teremos assim identificado algo novo como uma fontede informação legitima sobre o mundo E então [ 1 j a nãoseremos empiristas Pois aquilo que constitui a melhor ex-plicação disponivel [ 1 depende de fatores tais como queteorias fomos capazes de imaginar, e [ 1 tambem de nossosinteresses e outros fatores contextuais capazes de conferirconteudo concreto a noção de 'melhor explicação' Essascaracteristicas dos participantes e de outros aspectos docontexto de descoberta, todas independentes daquilo que aexperienaa ia revelou sobre os fenomenos relevantes, de-

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sempenhanam [segundo o realista cientifico] um papel naformação de nossas expectativas quanto ao futuro Issoesta em conflito direto com a tese empinsta de que a expe-riencia e a unica fonte legitima [de tais expectativas]

Assim, segundo van Fraassen, a desqualificaçãoepistemica das virtudes superempincas de uma teoria seimpõe pelo fato de não dizerem respeito as relações da teo-ria com o mundo, mas com os usuanos da teoria, depen-dendo de fatores historicos, culturais, psicologicos, soaolo-gicos, etc A esse respeito, ja em The Sctentific Image pode-mos ler (p 88)

Na medida em que forem alem da consistencia, da adequa-ção empinca e da força empinca, elas [as virtudes] não di-zem respeito a relação entre a teoria e o mundo, mas aouso e a utilidade da teoria Fornecem razões para se prefe-rir a teoria independentemente das questões sobre a verda-de

Van Fraassen procura elaborar esse ponto especial-mente no caso do poder explicativo, desenvolvendo umateoria pragmatica da explicação (1980, cap 5), na qual opapel das teorias cientificas nas explicações vai para umsegundo plano, como fornecedoras de conhecimento defundo, e a enfase recai nos referidos fatores "contextuais"A estrategia de van Fraassen aqui e bem calculada, dadoque o poder explicativo e, reconhecidamente, o principiosuperempinco de maior peso na metodologia cientifica e naepistemologia realista

De fato, a defesa positiva do realismo cientifico temseu principal ponto de apoio nos argumentos abdutivos, ouseja, aqueles que evocam alguma ligação entre o poder ex-plicativo das teorias e razões para a crença em sua verdadeOs dois argumentos dessa classe mais discutidos na litera-tura são os chamados "argumento da coincidência cosmi-ca," exposto por Smart, e o "argumento do milagre," for-mulado por Putnam 2 Simplificadamente, o primeiro argu-

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mento e o de que se uma teoria e capaz de explicar umagi ande quantidade e variedade de fenômenos e improvavelque seja falsa acerca da realidade inobservavel que postulaSe as entidades inobservaveis postuladas pela teoria nãoexistissem, e se o que a teoria diz sobre elas não fosse apro-ximadamente verdadeiro, somente uma coincidência deproporções cosmicas poderia explicar seu sucesso empine°,especialmente quando ha antecipação de fatos de tipos nãolevados em conta quando da sua formulação

Embora tambem envolva um ramo= abdunvo, oargumento exposto por Putnam não deve ser confundidocom o argumento da coincidência cosmica, como frequen-temente ocorre na literatura, pois opera em um nivel supe-rior, por assim dizer Do mesmo modo como Smart alegaque a capacidade de uma teoria cientifica explicar certosfenômenos constitui evidência de sua verdade, Putnam sus-tenta (em sua fase realista) que a capacidade de uma teoriafilosofica — o realismo cientifico — explicar o sucesso daciência fornece evidencia de sua verdade O realismo, dizPutnam, "e a unica filosofia que não faz do sucesso da cien-cia um milagre" (1975, p 73) Embora ambos os argumen-tos forneçam apoio a mesma tese, o realismo cientifico, fa-zem-no de formas diferentes

Não podemos estender-nos aqui na analise dessesargumentos Por meio de um esclarecimento de seus pres-supostos, estrutura e implicações, acreditamos ser possivelmostrar que van Fraassen aparentemente não capturou deforma adequada sua real natureza, deixando-os conseguin-temente sem resposta efetiva 3 Se essa tese estiver correta,van Fraassen ficara apenas com a objeção geral de que ainferência abdutiva não merece confiança epistemica

Aparentemente chegamos aqui a um ponto terminalda argumentação racional Os realistas reconhecem os prin-cipios superempincos como instrumentos epistêmicos, en-

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quanto que van Fraassen e outros anu-realistas admitemapenas o seu papel pragmatico, todos com o proposito ex-clusivo de manter suas posições

Acreditamos, porem, que o =passe não seja totalPor um lado, o realista havera de conceder que se sua posi-ção realmente so puder ser mantida por um apelo ao poderexplicativo, a simplicidade, a unidade, etc , estara, ipso factoultrapassando as fronteiras de um empirismo estrito, ja quenão se pode evidentemente pretender que a atribuição des-sas caractensticas a uma teoria possa ser decidida unica-mente com base na experiencia Por outro lado, se o anu-realista cientifico for, a exemplo de van Fraassen, um realis-ta quanto aos objetos materiais ordinarios, tera de justificaresse realismo sem recorrer aqueles principios, para que suaargumentação contra o realismo cientifico não fique com-prometida

Ora, essa parece uma tarefa Mal, quando não im-possivel, pelo menos dentro do referencial empirista dos grandesfilosofos do periodo moderno Tradicionalmente, na perspecti-va empinsta assume-se que a base ultima do conhecimentosobre os corpos são os dados sensoriais (as ideias simples desensação lockeanas, ou as impressões dos sentidos humea-nas) Tais elementos não permitem, por si, a justificação dacrença realista na existencia do mundo externo, conformetestemunham, por exemplo, as razões claramente extra-empincas que Locke se ve na contingencia de apresentar aseu favor (Essay IV xi), ou a sua substituição por uma cren-ça incompativel, no caso de Berkeley, ou ainda a argumen-tação de Hume contra a possibilidade de sua justificaçãoracional ou empinca O anu-realista cientifico empinstaestara em apuros se tiver, como Locke, que recorrer a fato-res superempincos para firmar seu realismo sobre os objetosmateriais ordinanos (Por exemplo, a hipotese de que haum rato no rodape — rato e rodape entendidos de forma

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realista — pode eventualmente ser a melhor explicaçãopara um certo fluxo de impressões sensoriais, e nessa condi-ção receber nossa crença )

Parece que van Fraassen de fato encontra-se nessasituação delicada Embora seja inegavel que ele adota umainterpretação realista dos objetos ordinarios, e ele proprio odiz em varias passagens, não fornece nenhuma justificaçãoexplicita a esse tipo de realismo Em uma unica passagemrelevante (1980, p 72), limita-se a asseverar que esta certode que "dados sensoriais não existem" Isso poderia insinuara ideia de um acesso epistemico mais direto aos objetos ma-teriais ordinarios Porem van Fraassen não propõe explici-tamente essa ideia — que o distanciaria, alias, das raizesclassicas do empirismo, que no embate com o realismo ci-entifico diz querer preservar Reconhece, todavia, que "aoendossar um simples juizo perceptual," como o de que haum rato-realista no rodape-realista, ja esta "ari iscando opescoço" (and ) Ora, como entender tal afirmação dentrode um possivel realismo direto ? Por que seria arriscadomanter, na presença de certas percepções, que ha um ratono rodape, senão porque a existência realista de tal objeto einferida a partir dessas percepções por argumentos que nãogarantem, como os argumentos dedutivos, a verdade daconclusão? E como evidentemente não se trata de argumen-tos indutivos, haveria de ser por meio de argumentos abdu-tivos

Diante disso, parece licito concluir, ate prova emcontrario, que mesmo van Fraassen tem de fazer uso epis-têmico do poder explicativo e outras "virtudes" que ele pre-tende meramente pragmaticas, uolando assim, ele tambem,seu acalentado credo empirista

Em sua Historia da Filosofia Ocidental, Bertrand Rus-sell comentou que Locke so conseguiu apresentar uma filo-sofia empirista razoavel ao preço de admitir inconsistencias,

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enquanto que Hume, menos tolerante, levou o empirismoas ultimas consequencias, tornando-o desse modo implau-sivel (pp 612-13 e 659) Talvez as considerações deste arti-go mostrem que ha uma certa dose de verdade nessa apre-ciação O ceticismo seletivo de van Fraassen, que exclui doclormnio das crenças racionalmente fundamentadas a cren-ça nas entidades inobservaveis da cencia, mas não aquelasreferentes aos objetos do dia-a-dia, não parece sustentavel 4

O empirismo estrito que procura defender aponta para umesteril fenomenalismo, que ele no entanto se recusa a acei-tar A opção poderia ser o abrandamento do empirismo,com o reconhecimento do valor epistemico de certos fatoresextra-empincos e do carater falivel da cognição Nesse caso,o conhecimento humano alcançaria tanto objetos e proces-sos inobservaveis quanto observaveis

Referências

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Palavras-chaveEmpirismo, realismo cientifico, van Fraassen

Silvio Seno ChibeniDepartamento de Filosofia

Unicamp13000 Campinas, SP

Brazilchibemeturing umcamp br

Notas

1 Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional de Filosofia,promovido pela Associação Nacional de Pos-Graduação em Filo-sofia (ANPOF) em Águas de Lindma, de 19 a 24 de outubro de1996

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2 Smart 1968, Putnam 1975 e 1978 Chibem 1993 salienta que oargumento da comcidencia cosmica ja se encontrava expressoclaramente nos Principios da Filosofia de Descartes3 Consulte-se, a esse respeito, Chiberu 1996 De forma multosimplificada, a linha de argumento aí desenvolvida e a seguinteVan Fraassen interpreta o argumento da comadencia cosmicacomo envolvendo a exigencia de que toda regularidade na natu-reza seja explicada Segundo van Fraassen, poderíamos bloqueara defesa do realismo imitando os nominalistas medievais e acei-tando as regularidades naturais como fatos brutos, que não re-querem explicação Essa interpretação não nos parece corretaComo as situações de "comcidencia cosmica" evidenciam, o ma-°cimo abdutivo se aplica quando a explicação ja esta disponivelOu seja, uma vez que alguem forneça uma teoria que de conta demaneira natural de uma multiplicidade de fenomenos, somosconvidados a acreditar que e verdadeira, se não for puramente aditoc Associar ao realismo a exigencia ilimitada de explicação etorna-lo alvo facil demais de ser atingido, pois essa exigencianaturalmente conduz a um regresso infinito de teorias explicati-vas Quanto ao argumento de Putnam, um dos problemas de suainterpretação por van Fraassen e que ele o entende como se diri-gindo a questão de por que somente as boas teorias sobrevivemna ciencia Conforme observa Musgrave (1985, p 210), a expli-cação "darwiniana" desse fato oferecida por van Fraassen podeser aceita tambem por realistas cientificos, como e o caso de Po-pper, por exemplo O que, segundo nossa interpretação do ar-gumento do milagre, somente o realismo cientifico explica ecomo uma atividade dependente de uma complexa dinamicainterna envolvendo explicita e essencialmente uma realidade não-observavel pode "dar certo" empiricamente Ou, em outros ter-mos, como a ciencia como um todo, em suas sofisticadas relaçõesinter-teoricas e com a experiencia, seus metodos e sua evoluçãohistorica, e um empreendimento bem sucedido Note-se que umdos explananda mais importantes aqui e exatamente o referidopoder de certas teorias cientificas adiantarem-se aos fenomenos4 Para uma analise incisiva deste ponto ver Churchland 1985

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