Portugueses -...

15
Samuel Alemão The Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers Tertúlias e Tradição Cafés Portugueses

Transcript of Portugueses -...

Cafés

Portu

gueses

Tertú

lias e Trad

içãoT

he C

afés o

f Po

rtuga

l T

raditio

n an

d G

et-To

gethers

Samuel A

lemão

Samuel Alemão

The Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Tertúlias e Tradição

CafésPortugueses

Introdução 6 Introduction

Norte • North A Brasileira 14 Braga Café Aviz 18 Porto Café Castelo 22 Santa Maria da Feira Café Guarany 26 Porto Café Java 30 Porto Majestic Café 34 Porto Manuel Natário 40 Viana do Castelo Café Milenário 44 Guimarães Pastelaria Gomes 48 Vila Real Café Piolho (Âncora d'Ouro) 52 Porto Café Progresso 56 Porto Café São Gonçalo 60 Amarante Café Vianna 64 Braga

Centro • Centre A Brasileira do Chiado 70 Lisboa Café Central 76 Caldas da Rainha Confeitaria Nacional 80 Lisboa Martinho da Arcada 86 Lisboa Café Nicola 90 Lisboa Café Paraíso 96 Tomar Pastéis de Belém 100 Lisboa Pastelaria Benard 108 Lisboa Pastelaria Cego 112 Azeitão Pastelaria Garrett 116 Estoril Pastelaria Machado 120 Caldas da Rainha Pastelaria Versailles 124 Lisboa Café Portugal 130 Fundão Café Santa Cruz 134 Coimbra Pastelaria Suíça 140 Lisboa Café Tertúlia 144 Alcobaça

Sul • South Águias d'Ouro 150 Estremoz Café Alentejano 154 Portalegre Café Arcada 158 Évora Café Aliança 164 Faro Café Calcinha 168 Loulé Luiz da Rocha 172 Beja

Ilhas • Madeira and the Azores Café Apolo 178 Madeira, Funchal Pastelaria Athanásio 182 Açores, Angra do Heroísmo Café Internacional 186 Açores, Horta Peter Café Sport 190 Açores, Horta

Bibliografia 196 Bibliography

ÍndiceContents

have flattened or attenuated local specificity. The so-called “social networks” have taken over the two-hundred-year-old role of cafés as places for debate and get-togethers – or, for the most pessimistic, for its mere simulation. Despite all their virtues and defects, it is through them that most of the rhetorical game that is instrumental to the creation of one of the key concepts of any democratic society – public opinion – is made nowadays. Still, cafés remain unique in their physical existence. You can actually be there, and that makes all the difference. It has always been like that, here as in the rest of Europe.

“The café is a place for assignation and conspiracy, for intellectual debate and gossip, for the flâneur and the poet or metaphysician at his notebook. […] A cup of coffee, a glass of wine, a tea with rum secures a locale in which to work, to dream, to play chess or simply keep warm the whole day”, emphasized essayist George Steiner in The Idea of Europe (2004), assuring that the Old Continent would always have content as long as there were coffee-houses. “Europe is its

cafes. From those of Lisbon beloved by Fernando Pessoa to those of Odessa, frequented by the gangsters of Isaac Babel, to those of Copenhagen in front of which Kierkegaard passed by in his thoughtful wandering, or those of Palermo. […] Draw the coffee-house map and you have one of the essential markers of the ‘idea of Europe’”, postulated the also literary critic and philosopher.

Long before him, Italian writer Claudio Magris had placed cafés at the centre of a very specific way of being European in Danube (1986), another essay that aims to define the shape of the continental soul. “Sitting in the café, you’re on a journey; as in a train, a hotel, on the road, you’ve got very little with you and you cannot in your vanity grace that nothing with your personal mark, you are nobody. In that familiar anonymity you can dissimulate, rid yourself of the ego as if it were a shell”, he wrote. He explained his fascination for those places in an interview with a Portuguese newspaper three decades later: “Cafés are a modern version of the Greek agora. They are places where work and leisure are

sobre uma região, cidade, vila ou aldeia – ou mesmo à escala de um bairro. E, reforçando o seu ponto de vista, o mesmo autor rematava: «Levem-me de olhos tapados onde quiserem, não me desvendem senão no café; e protesto-lhes que em menos de dez minutos lhes digo a terra em que estou se for país sublunar.»

Quando o escritor escreveu estas linhas, em 1846, na obra Viagens na Minha Terra, a importância social, política e, por isso, também simbólica dos cafés era muito maior do que a detida nestes primeiros anos do século xxi. A instantaneidade e a globalização contemporâneas da comunicação, aliadas à facilidade de deslocação, têm-se encarregado de ajudar a rasurar ou a atenuar a especificidade local. As denominadas «redes sociais» assumem hoje um papel semelhante ao desempenhado, durante dois séculos, pelos cafés, como espaços de discussão de ideias, de tertúlia – ou, do ponto de vista dos mais pessimistas, da sua mera simulação. Descontadas todas as suas virtudes e defeitos, é através delas que, agora, se faz a maior parte do jogo retórico associado à formação de um dos conceitos definidores de uma sociedade democrática: a opinião pública. Os cafés continuam, porém, a ter uma característica única: são espaços físicos. Neles, podemos estar. E isso faz toda a diferença. Como sempre fez. Aqui, como no resto do continente europeu.

«O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico

debruçado sobre o bloco de apontamentos. […] Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia», enfatizava o ensaísta George Steiner, em 2004, quando, em A Ideia de Europa, assegurava que o Velho Continente teria sempre conteúdo enquanto existissem cafetarias. «A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkgaard passava nos passeios concentrados, aos balcões de Palermo. […] Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da “ideia de Europa”», postulava o também crítico literário e filósofo.

Já antes dele, o escritor italiano Claudio Magris, em Danúbio (1986), outro livro preocupado em definir os contornos da alma continental, havia colocado o café como local central de uma forma muito própria de ser europeu. «Sentados no café viajamos. Como num comboio, num hotel ou pela rua temos connosco muito poucas coisas, não é possível opor a coisa alguma qualquer vaidosa marca pessoal. Não somos ninguém. Naquele anonimato familiar, podemo- -nos dissimular, livrar-nos do eu como de uma casca», escrevia, para, três décadas depois, numa entrevista a um jornal português, explicar o encanto por estes lugares: «Os cafés são uma versão moderna da ágora grega. Locais onde se misturam trabalho e lazer, onde nos

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

8•9

Cafés que encerraram durante o século xx, em Lisboa (da esquerda para a direita e de cima para baixo):Cafés that closed down in Lisbon during the 20th century (left to right and top to bottom):

Pastelaria Foz, no Palácio Foz, 1918. Pastelaria Foz, at Palácio Foz, 1918.©Joshua Benoliel.

Café Áurea Peninsular, na Rua dos Sapateiros, 1909.Café Áurea Peninsular, Rua dos Sapateiros, 1909. ©Joshua Benoliel.

Café Cristal, na Avenida da Liberdade, sem data.Café Cristal, Avenida da Liberdade, undated. ©Estúdio Mário Novais.

Café Suisso, na Praça Dom João da Câmara, c. 1910. Café Suisso, Praça Dom João da Câmara, c. 1910. ©Alberto Carlos Lima.

Café Pam Pam, na Avenida Almirante Reis, sem data. Café Pam Pam, Avenida Almirante Reis, undated. ©Estúdio Mário Novais.

Interior do Café Martinho, no Rossio, c. 1909.The interior of Café Martinho, Rossio, c. 1909. ©Joshua Benoliel.

A única distinção garantida era em relação ao Vianna, instalado no mesmo prédio histórico e há muito visto como alfobre de contestatários. Entre estes estavam os técnicos de artes gráficas dos jornais editados em Braga. Apesar da aguda consciência ideológica e do espírito de classe, eles eram obrigados a visitas diárias à Brasileira, a umas poucas dezenas de metros. Lá dentro, numa das elegantes mesas metálicas, esperava-os Joaquim Chaves (1903-1977). Ao princípio da noite, este escrutinava com rigor as provas que os periódicos levariam para as rotativas dentro de poucas horas. Algumas frases e palavras passavam, outras não. O censor era figura conhecida na cidade e tinha mesa marcada, a um canto. Tinha como alcunha «Velho Chaves», e até ganhou direito a placa póstuma com o seu nome.

Entre os jornais visados diariamente pelo fiscal do regime estava o Correio do Minho. O mesmo que, a 19 de março de 1907, dava conta de um acontecimento ocorrido dois dias antes: «Abriu domingo este novo estabelecimento luxuosamente instalado no Largo do Barão de São Martinho, esquina da Rua de São Marcos. Houve ali n’esse dia, concorrência de visitantes, sendo muito apreciada a boa disposição que em tudo se nota.» Além do café brasileiro, o jornal realçava a venda de diferentes produtos vindos do outro lado do Atlântico e dos vinhos da Parceria Vinícola dos Lavradores do Douro. «O proprietário de A Brasileira, senhor Adolpho de Azevedo, negociante portuense, oferece todos os dias, exceto aos domingos, desde as 2 horas da tarde até às 8 horas da noite, uma chávena de café a todos os seus fregueses que comprem, pelo menos, meio quilo de café. Assim prova, praticamente, a excelência do produto», acrescentava-se.

A estratégia promocional era a mesma das outras duas lojas «A Brasileira», a do Porto, inaugurada em 1903, e a de Lisboa, aberta em 1905. Na senda do êxito alcançado nessas cidades por Adriano Telles – um audacioso empresário, originário de uma aldeia do concelho de Arouca, que fez fortuna a negociar café em Minas Gerais –, o comerciante

During the most repressive years of the Estado Novo regime, in the mid-twentieth century, Braga, as other towns and cities across the country, was a place full of glances, sighs and whispers between café tables. People were attentive to whoever came in, who the others got along with – and, of course, to what was said. Sentences, gestures and companies meant a lot to define the way each piece was positioned in the chessboard of community life. Equally as important was the place where you chose to be: establishments were associated to a particular trend according to their customers. A Brasileira was known as “the priests’ café”.

This was particularly important in a city shaped by ecclesiastical life. The huge institutional and social weight of the Catholic Church can be felt in Braga more than in any other city in Portugal at least since the days of the Christian Reconquest and the restoration of the archdiocese in 1070. This would be enough to confer a special status to the café that was established by Adolpho de Azevedo on the corner of Largo do Barão de São Martinho and Rua de São Marcos in 1907. That is why it was

also known by many people as a place where several local sympathisers of the political regime of the time could be seen. The same label could easily be applied to other cafés nearby like Astória, in the Arcada Building on Praça da República.

The only guaranteed odd-one-out was Vianna, which was located in the same historical building and deemed a meeting place for protesters since long ago. Among these were graphic arts technicians of the local newspapers. Despite the acute political consciousness and class spirit, they were forced to go to Brasileira, just a few dozen metres away, every day. Inside, on one of the elegant metal tables, they were awaited by Joaquim Chaves (1903-1977). In the early evening, he would examine thoroughly the proofs of the newspapers that would be brought to the press in a few hours’ time. Some sentences and words would pass; some would not. The censor was a well-known figure in the city and had his own table on a corner. He was nicknamed “Velho Chaves” (“Old Chaves”) and he even earned a plaque bearing his name after he died.

14•15

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Durante os anos de maior repressão do Estado Novo, em meados do século xx, Braga, como outras cidades portuguesas, vivia de olhares, suspiros e sussurros entre as mesas de café. Estava- -se atento a quem entrava, às pessoas com quem cada um se dava e, claro, ao que se ia dizendo. Afirmações, gestos e companhias contribuíam para definir parte importante da forma como cada peça se posicionava no xadrez da vida comunitária. Tão importante como isso, era, todavia, o cenário escolhido para se estar, pois os estabelecimentos eram associados a determinada tendência, consoante quem os frequentasse. A reputação de A Brasileira era a de ser o «café dos padres».

Tal notoriedade assumia particular importância numa urbe moldada pela vida eclesiástica. Mais que em qualquer outra cidade em Portugal, sente-se em Braga o enorme peso institucional e social da Igreja Católica, desde pelo menos a Reconquista Cristã e o restauro da arquidiocese, em 1070. A herança seria suficiente para conferir um estatuto especial ao espaço fundado em 1907 por Adolpho de Azevedo, e situado na esquina do Largo do Barão de São Martinho com a Rua de São Marcos. Muitos conheciam- -no também, por isso, como um lugar onde podiam ser vistos diversos simpatizantes locais do sistema político então em vigor. A etiqueta era, porém, colada com facilidade a outros cafés das redondezas, como o Astória, no edifício da Arcada, na Praça da República.

BragaLat: 41.550841

Long: -8.423554

A Brasileira

Edifício do café A Brasileira, em Braga, sem data.The building of Café ABrasileira, Braga, undated.

©Arquivo Pelicano.

de uma saga literária milionária. Antes de o terminar, no final de 1993, e com o divórcio à vista, a autora regressava ao seu país.

Nessa altura, o estabelecimento estava ainda em obras. Os trabalhos só terminariam no verão de 1994, dando seguimento a um projeto desenhado dois anos antes pela arquiteta Teresa Mano Mendes Pacheco, para restituir ao espaço a aura romântica de um café aberto em 1921. Além do restauro da fachada e das paredes interiores, a intervenção regeneradora passou pela substituição do pavimento e pela reposição do mobiliário e decoração originais, incluindo também sofás e candelabros. Tudo com uma única finalidade em mente, a de reconquistar o esplendor perdido, sobretudo nas duas décadas anteriores. «A nossa grande preocupação foi apenas e só recuperar a beleza arquitetónica do espaço e devolver à cidade um local que faz parte da sua memória», dizia Agostinho Barrias, o sócio-gerente, a um jornal, nas vésperas da reabertura.

Para trás, ficava um período de lenta agonia. O empresário assumira uma posição maioritária na sociedade do Majestic em outubro de 1983, um ano depois de ter feito o mesmo num outro café emblemático do Porto, o Guarany – também ele, nessa altura, muito longe dos seus tempos de glória. E não era só a qualidade do serviço que havia decaído. Apesar de classificado como imóvel de interesse público, desde 1981, o estabelecimento da Rua de Santa Catarina encontrava-se, nessa época, bem distante do brilho da Belle Époque que a sua arquitetura e decoração Arte Nova deixavam adivinhar. Os materiais de revestimento estavam degradados e, tal como a mobília, haviam sido progressivamente substituídos, compondo então um quadro não muito harmonioso, e que pouco tinha já que ver com o traço original.

Quando inaugurado, a 17 de dezembro de 1921, o café idealizado pelo arquiteto João Queiroz ostentava bem mais que uma fachada de mármore, adornada com motivos vegetais

Two events that were not directly related took place in Porto in the early days of October 1992. Only a few people noticed them, although more people did in one case. However, they would mark the end of an era and the beginning of another era for their protagonists. On 16 October, a British girl, an English teacher who had been living in Porto for a year and a half married a Portuguese undergraduate student of Journalism in the registry office. Old Majestic Café, located at number 112 in Rua de Santa Catarina, had closed for a major refurbishment the previous week. As both later went through moments of splendour, it would be known that their paths had crossed before.

In a way, both became synonyms of magic for different reasons – and proof that there is such a thing as redemption, if you are determined to embrace it. When she started to roam the streets of Porto in her free time – she had moved there in 1991, to flee her recent past, which had been marked by the traumatic death of her mother – J. K. Rowling found solace in the cafés of a city

34•35

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Nos primeiros dias de outubro de 1992, tinham lugar no Porto dois acontecimentos não diretamente relacionados. Embora com graus de notoriedade diferentes, ambos passaram despercebidos a quase toda a gente. Iriam, porém, representar para os seus protagonistas o fim de uma era e o começo de uma outra. No dia 16 desse mês, uma jovem inglesa, professora do seu idioma e a residir há ano e meio na cidade, casava-se no registo civil com um estudante de jornalismo português. Na semana anterior o velho Majestic Café, situado no 112 da Rua de Santa Catarina, havia fechado portas para profundas obras de reabilitação. Mais tarde, a viverem momentos de esplendor, viria a saber-se que os seus destinos, afinal, já se haviam cruzado.

De certa forma, e por razões distintas, passaram também a ser sinónimos de magia. E a prova definitiva de que a redenção é muitas vezes possível, se houver determinação para a abraçar. Quando, nas horas livres das aulas de inglês, começou a calcorrear as ruas da Invicta – para onde se mudara, em 1991, em fuga de um passado recente, marcado pela traumática morte da mãe –, J. K. Rowling foi descobrindo refúgio nos cafés de uma cidade que lhe era estranha. Neles começou a materializar um projeto de escrita que vinha, há algum tempo, a crescer na sua imaginação. Foi no Majestic, todavia, que passou a maior parte do tempo a trabalhar nos capítulos iniciais de Harry Potter e a Pedra Filosofal, livro inaugural

PortoLat: 41.147210

Long: -8.606740

Majestic Café

Esplanada do Majestic Café na década de 1920.The terrace of Majestic Café in the 1920s.

she knew nothing about. It was there that a writing project that had been growing in her imagination for some time began to materialise. It was in Majestic that she spent most of her time working on the first few chapters of Harry Potter and the Philosopher’s Stone, the first book of a best-selling literary saga. The author returned to her country at the end of 1993. The novel was not finished yet and she was heading to divorce.

Back then, Majestic was still undergoing refurbishment. It would only be finished in the summer of 1994, according to a project designed by architect Teresa Mano Mendes Pacheco two years before, which brought back the romantic aura of the café that had opened for the first time in 1921. Besides restoring the facade and the walls inside, the floor was replaced and the original furniture and decoration were returned, complete with sofas and chandeliers. The aim was to bring back the splendour that been lost, especially in the two previous decades. “Our sole concern was to recuperate its architectural beauty and to give back to the city a place that is part of its memory”,

managing partner Agostinho Barrias told a newspaper a few days before the reopening.

Majestic had finally left behind a period of slow agony. The entrepreneur became the major partner of Majestic in October 1983, a year after he did the same in another iconic café in Porto, Guarany – which was also far from its glory days at that time. Service was not the only thing that was not as good as it used to be. Despite being listed as a property of public interest since 1981, the establishment in Rua de Santa Catarina was a long way away from the Belle Époque glow of its Art Nouveau architecture and decoration. Cladding materials were flaking off and the furniture was shabby: they had been replaced over time and had little to do with their original harmonious look.

When it opened for the first time on 17 December 1921, there was more to the café designed by architect João Queiroz than a marble facade adorned with vegetable motifs featuring two smiling children. The exquisite interior decoration was the talk of the town, although

e na qual pontificavam duas crianças sorridentes. O interior deu que falar pelo requinte, embora a abertura tenha passado despercebida aos jornais da cidade. As madeiras envernizadas e o teto de gesso, plenos de exuberância formal, casavam na perfeição com as paredes espelhadas com recurso a cristal flamengo, e ainda com os elegantes candelabros metálicos e estatuária. O requinte do mobiliário de madeira era sublinhado pelos bancos e pelos sofás aveludados em tom vermelho.

Com tão fortes argumentos decorativos, aos quais se juntava o pátio interior, permitindo a ligação à Rua Passos Manuel e construído quatro anos após a abertura, o Majestic afirmava-se, sem dúvida, como uma distinta sala de visitas do Porto. O suficiente para passar a ser salão preferencial das elites. Intelectuais como José Régio, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes e artistas como Júlio Resende ou Amadeo de Souza-Cardoso eram presenças frequentes. Tal como o almirante Gago Coutinho, que uma das vezes terá ali entrado acompanhado da atriz Beatriz Costa. Durante quatro décadas, o café funcionou como uma espécie de compêndio de elegância na Invicta.

As mudanças económicas e sociais que se começaram a fazer sentir a partir de meados dos anos 60 ditaram, porém, profundas alterações nas preferências. Os meios de comunicação de massas, com predomínio da televisão, iam substituindo o lugar da mesa de café como difusores de ideias e fomentadores da discussão. Os tempos eram outros, as modas também. Um ambiente aristocrático e lento como o do Majestic Café estava, cada vez mais, em contramão com os gostos vigentes, rápidos e lineares – embora os outros estabelecimentos sentissem dificuldades semelhantes. Como muitos deles, o Majestic deixou-se enredar numa modorra decadente, teve dificuldades em apresentar-se de cara lavada. Foi-se degradando e descaracterizando. Tal não impediu, porém, J. K. Rowling de nele trabalhar as linhas fundamentais da sua obra.

36•37

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

porém, um corte abrupto com todas as referências à monarquia e, por isso, também a proibição da iguaria – que, ainda assim, continuou a ser comercializada pelos pasteleiros, como «gâteau des sans-culottes», designação dada aos pobres.

A receita trazida para Lisboa era oriunda da região do Loire e foi apurada por Balthazar Rodrigues Castanheiro Júnior, juntamente com o seu pasteleiro Gregório. A coisa resultou tão bem que, em pouco tempo, se impôs como essencial nas mesas das elites da capital e, não muito depois, se disseminou pelo resto do país. Foi com base nessa forma de trabalhar os ingredientes, aliás, que o bolo-rei se popularizou entre nós, até aos dias de hoje. Fazendo jus ao seu nome, a Confeitaria Nacional orgulha-se, por isso, de ser a «criadora» em Portugal desta iguaria doce. A implantação da República, em 1910, levou a que alguns pedissem a mudança do nome «bolo-rei», mas este manteve-se, tal como a receita, que permanece um segredo.

As origens da casa, fundada em 1829, embora não envoltas em sombra contêm elementos ainda por definir com exatidão. E bem curiosos. Ora, se, na sua história oficial, a Confeitaria Nacional assegura que, em 1803, «Balthazar Roiz Castanheiro é eleito “Juiz mais velho” da Irmandade de Nossa Senhora da Oliveira, Padroeira dos Confeiteiros», está ainda por dar como certo que esta seja, de facto, a mesma pessoa mencionada na ata da confraria em que essa nomeação acontece. O que se pode ler no documento é o nome de Balthazar Roiz Aguiar – sendo «Roiz» equivalente a Rodrigues. O mais provável é que fosse um ascendente do fundador, uma vez que este apenas morrerá em 1869, ou seja, sessenta e seis anos depois da supracitada eleição como «juiz mais velho».

Sabe-se, no entanto, das credenciadas origens confeiteiras desta família com raízes em Trás-os-Montes, as quais remontam a meados do século xviii. Existirão documentos de 1753 que permitem estabelecer a sua ligação ao «negócio das matérias-primas para o setor».

It is a well-known fact that bolo-rei – literally, “king cake”, a traditional Christmas cake with candied fruit and nuts – came to Portugal because of Confeitaria Nacional. When he took over management of the establishment in 1869 following the death of his father, Balthazar Rodrigues Castanheiro, entrepreneur Balthazar Rodrigues Castanheiro Júnior was determined not only to keep Nacional’s high standard to which Lisbon’s society had grown accustomed to but also to move on up from the start – literally. One of his first decisions as the new owner was to have a tea room on the first floor of the building, right above his confectionery. It was the talk of the town. His ambition also meant that he was very demanding as to the quality of his confectionery. He travelled frequently to other European cities, visiting trade fairs looking for innovations that might help him fulfil his aspiration.

Soon he started recruiting confectioners abroad. Some of them came from Madrid and Paris. It was probably on one of his trips to the French capital that the owner of Confeitaria Nacional

80•81

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

A chegada do bolo-rei a Portugal, é conhecido, deve-se à Confeitaria Nacional. Quando assumiu a gestão deste estabelecimento, em 1869, após a morte do pai, Balthazar Rodrigues Castanheiro, o empresário Balthazar Rodrigues Castanheiro Júnior mostrou-se desde logo determinado não apenas a manter o elevado nível a que a Nacional havia já habituado a sociedade lisboeta, como a subir a fasquia. E isso teve consequência literais. Uma das primeiras decisões da sua gerência foi a de construir no primeiro andar do prédio, por cima da loja, um salão de chá, que muito deu que falar. A ambição impeliu-o também a ser exigente com a qualidade dos produtos, viajando muitas vezes pelas cidades europeias, visitando as feiras industriais, em busca de inovações que o pudessem ajudar a cumprir a sua aspiração.

Não tardou muito a que começasse a recrutar oficiais confeiteiros lá fora. Alguns deles, foi buscá-los a Madrid e a Paris. E terá sido numa das viagens à capital francesa que o dono da Confeitaria Nacional trouxe consigo uma receita há muito caída em desuso naquele país. Com origens pagãs, remontando à era romana, e mais tarde generalizado no continente europeu com o beneplácito da hierarquia da Igreja Católica, o bolo-rei fora adotado por Luís XIV (1638- -1715) como apropriado para a celebração da quadra natalícia. A Revolução Francesa (1789) impôs,

LisboaLat: 38.713190

Long: -9.138085

Confeitaria Nacional

Fatura da Confeitaria Nacional, de 1872.An invoice from Confeitaria Nacional dated 1872.

Fotografia que registou a chegadado primeiro bolo-rei a Portugal,

pela mão de Balthazar Júnior, em 1871.A photo signalling the arrival

of the first bolo-rei to Portugalby the hand of Balthazar Júnior, 1871.

A pastelaria, que era já uma atividade importante, continuava a crescer. Senão, atente-se à descrição feita por Luís Pastor de Macedo em Lisboa de Lés a Lés (1940): «Não muitos anos após o terramoto, vemos os doceiros começarem a escorregar para a Rua Nova de El-rei, que aliás era destinada aos capelistas e às lojas de venda de chá e de louça da Índia. Em 1779, encontramos lá nada menos que dez confeiteiros.»

Entre eles estava Balthazar Rodrigues de Aguiar, «que tinha a confeitaria num dos extremos da rua e que ainda ali estava em 1789». O mesmo homem que, em 1803, seria indicado como «juiz mais velho» da confraria dos confeiteiros era tido, mais de duas décadas antes, em muito má conta pela mesma agremiação. Leia-se o que lhe sucedeu, segundo o excerto de um documento do arquivo da Irmandade de Nossa Senhora da Oliveira: «Este Balthazar Rodrigues era muito ganancioso e pouco temente de Deus, e assim, no ano 1781, desde o meio-dia de sexta-feira de Paixão, enquanto todos os seus colegas tinham as lojas fechadas, conforme então se praticava, ele teve a sua aberta. E nem aos conselhos dos amigos cedeu. Mas o Vigário Geral pouco depois soube do caso, do grande escândalo, e o Balthazar lá teve os ossos depositados no Limoeiro durante algum tempo.»

A prisão, por uns tempos, não o desviou do ofício. Tanto que, já se viu, foi eleito «juiz mais velho» da mesa da confraria. Fórum no qual também ocupará um lugar o seu presumível descendente, Balthazar Rodrigues Castanheiro, pouco tempo depois de abrir a Confeitaria Nacional, na Rua da Betesga. O pasteleiro inaugurou a casa em 1829, depois de ter começado as obras no ano anterior, e na sequência da entrada em funcionamento de uma primeira loja na Rua da Prata. Viviam-se tempos de grande instabilidade política, com a iminente deflagração da guerra civil entre liberais e absolutistas, que duraria até 1834. Tal não se revelou, porém, suficiente para afastar a burguesia lisboeta da nova pastelaria. O negócio prosperou, e em 1835 já as instalações estavam a ser ampliadas, passando a ter fachada para a Rua dos Correeiros.

century. According to documents dated 1753, it was related to “trade in raw materials for the industry”. Pastry was already an important business, and was still growing strong. As Luís Pastor de Macedo’s described it in Lisboa de Lés a Lés [Lisbon from End to End] (1940): “Not long after the earthquake, confectioners started to move to Rua Nova de El-rei, which was meant for haberdashers and for shops selling tea and tableware from India. By 1779, there were already ten confectioners there.”

One of them was Balthazar Rodrigues de Aguiar, “whose confectionery still stood on one end of the street in 1789”. The same man who had been appointed “elder judge” of the Confectioners’ Brotherhood in 1803 was looked down on by the same association over two decades before. Here is what happened to him, according to an excerpt from a document belonging to the archive of the Brotherhood of Nossa Senhora da Oliveira: “The aforementioned Balthazar Rodrigues was very greedy and not much of a God-fearing man. In the year 1781, since noon on Good Friday,

when all his colleagues’ shops were closed, as it was customary then, he kept his open. He would not even give in to his friends’ advice. The Vicar General learned about the case, the big scandal, shortly after, and Balthazar ended up in Limoeiro for some time.”

Despite going to prison, his mind was still set on confectionery – so much so that he was later appointed “elder judge” of the board of the Brotherhood. His presumed descendent, Balthazar Rodrigues Castanheiro, was also a member of the board soon after he opened Confeitaria Nacional in Rua da Betesga. The confectioner opened it for the first time in 1829 – works had begun in the previous year. He already had a confectionery in Rua da Prata. Those were days of great political instability: a civil war between Liberals and Absolutists was imminent – it lasted until 1834. However, this was not enough to keep Lisbon’s bourgeoisie away from the new pastry shop. Business prospered. The premises were expanded as early as 1835. There was a new facade overlooking Rua dos Correeiros.

brought along a recipe that had long since fallen into oblivion in France. The origins of bolo-rei are pagan and date back to the Roman era. It was later widespread across Europe with the approval of the Catholic Church and was adopted by King Louis XIV (1638-1715) as an appropriate way to celebrate Christmas. However, the French Revolution (1789) imposed an abrupt ban on all references to monarchy. Subsequently, the delicacy was forbidden. Still, confectioners continued to sell the cake as “gâteau des sans-culottes”, the name given to the poor.

The recipe Balthazar Rodrigues Castanheiro Júnior brought to Lisbon was originally from the Loire region and was perfected by Balthazar himself together with Gregório, his confectioner. It turned out so well that it soon became an essential item at the tables of the capital city’s elites and disseminated across the country shortly after. Actually, it was based on their recipe that bolo-rei is popular in Portugal to this day. In keeping with its name, Confeitaria Nacional prides itself in having “created” the sweet

delicacy in the country. Although some people asked to change it when Portugal became a republic in 1910, bolo-rei kept both its name and its recipe, which is a secret.

Even though they are not exactly unknown, the origins of the confectionery, established 1829, are not entirely clear. There are some rather interesting bits. According to Confeitaria Nacional’s official history, “Balthazar Roiz Castanheiro was elected as ‘elder Judge’ of the Brotherhood of Nossa Senhora da Oliveira, the Patron Saint of Confectioners” in 1803. Yet it remains to be proved that this was actually the same person that was mentioned in the minutes of the meeting of the brotherhood to which he was appointed. The document states the name Balthazar Roiz Aguiar – “Roiz” being equivalent to Rodrigues. This was most likely an older relative of the founder, as he died in 1869, i.e., sixty-six years after being appointed “elder judge”.

What is known for a fact is that the family, originally from the Trás-os-Montes region, was linked to confectionery since the mid-eighteenth

82•83

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Mas havia motivos para sair do recinto, claro. Entre eles estava a Cavacaria Machado, situada mesmo em frente, na Rua de Camões, onde foi ocupar umas antigas cocheiras nos primeiros anos do século xx. Pertencia a Joaquim Machado, que dava ali continuidade à nobre arte doceira das cavacas, pela qual as Caldas já eram então conhecidas. Aprendera a confecioná-las durante os muitos anos em que trabalhara às ordens das conceituadas irmãs Fausta. Herdeira de uma tradição doceira iniciada no século xviii, a Casa Fausta terá começado a sua atividade, junto ao Hospital Termal, por volta de 1840. Ao longo das décadas seguintes, as cavacas das irmãs ganharam a fama, permitindo a Joaquim Machado dela beneficiar quando ambas se reformaram.

Não foi, por isso, difícil encontrar clientela. Além da especialidade da casa, outros doces regionais deliciavam quem entrava na loja. E se nela as trouxas de ovos ocupavam um lugar privilegiado nas preferências de quem ia às Caldas da Rainha, outras gulodices eram mais requisitadas aos demais estabelecimentos da terra: pastelinhos de Marvão, lagartos, queijinhos do céu, lampreias, esquecidos ou queijadas. Algumas destas iguarias começaram também a ser feitas na casa Machado. A oferta ia-se alargando e refinando. Sobretudo a partir do momento em que, na década de 20, à sociedade se juntou José Pérez, galego de Vigo cujos frustrados planos de emigração para os Estados Unidos da América haviam resultado num emprego na mundana Pastelaria Benard, em Lisboa.

José Pérez, que, além de outra exigência nos métodos de trabalho, trouxe consigo doces diferentes, como os suspiros, as línguas de gato e os bolinhos de amêndoa, desenvolveu forte amizade com Joaquim Machado. A ponto de este, gradualmente, lhe ir cedendo parte do capital da empresa, acabando o galego por ficar com uma participação maioritária a partir de 1929. O negócio foi crescendo, à imagem da fama das especialidades ali confecionadas. As coisas corriam bem a José, tanto que, em 1944, pôde receber o neto, José Fernández

In the late nineteenth century/early twentieth century, the upper and middle bourgeoisie yearned to go to Caldas da Rainha every time they could. Hospital Termal Rainha D. Leonor, the spa hospital established in 1485 and rebuilt during the reign of King João V (1689-1750), enjoyed a growing prestige as a place for rest and recreation – with a little help from the royal family, who used to go there as well. In an age before the delights of sea bathing, bodies were supposed not to be shown: baths were the utmost pleasure of the well-offs. Caldas spa grew and consolidated itself under the direction of Rodrigo Maria Berquó (1888-1896).

Another floor was added to the hospital to accommodate the wards, and pavilions were built for internments. However, the distinctive feature under Berquó’s watch was the opening of the adjoining Parque Dom Carlos I. The works, which were a huge investment and involved many workers, changed Passeio da Copa altogether. Inaugurated in June 1892, the park, designed in the Romantic style that was all the rage in the

120•121

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Na viragem do século xix para o seguinte, as Caldas da Rainha eram um local onde a alta e a média burguesia aspiravam a ir sempre que podiam. O Hospital Termal Rainha D. Leonor, instituído em 1485 e reconstruído no final do reinado de D. João V (1689-1750), gozava de um prestígio crescente enquanto lugar de recreio e de veraneio, a que a frequência da família real dava a devida caução. Numa época de enorme pudor em mostrar o corpo, anterior aos deleites dos banhos de mar, as termas constituíam o prazer supremo dos abastados. Sob a administração de Rodrigo Maria Berquó (1888-1896), a unidade das Caldas conheceu o período de maior afirmação e consolidação.

Ampliado o hospital em mais um piso, a fim de acolher as enfermarias, e construídos os pavilhões destinados a áreas de internamento, a marca distintiva desse consulado foi, porém, a criação do contíguo Parque D. Carlos I. As obras, que implicaram uma assinalável mobilização de recursos financeiros e humanos, modificaram de forma radical o Passeio da Copa. Inaugurado em junho de 1892, o jardim, projetado num estilo romântico, ao gosto então vigente no continente europeu, concedia ao hospital termal uma extraordinária atração. As famílias das elites circulavam pelo parque, resguardadas de eventuais impertinências populares por uma vedação.

Caldas da RainhaLat: 39.402869

Long: -9.134476

Pastelaria Machado

Bilhete-postal ilustrado da Cavacaria Machado,impresso por R. Guilleminot et Cie – Paris, 1907.

An illustrated postcard of Cavacaria Machado,printed by R. Guilleminot et Cie – Paris, 1907.

funções na autarquia com as de presidente do Conselho de Arte e Arqueologia de Coimbra. Dias Urbano chegou mesmo a realizar diversos estudos para a reforma da Baixa da cidade.

Foi ele quem mais dores de cabeça deu a Adriano Ferreira Cunha, Adriano Viegas Lucas e Mário Pais, os empresários que, desde 1919, lutavam para abrir um café na antiga Igreja de São João de Santa Cruz. A ideia de conferir tal uso ao edifício adjacente ao Mosteiro de Santa Cruz, situado na Praça 8 de Maio e que era Monumento Nacional desde 1910, parecia até fazer sentido. Afinal, o espaço já havia desempenhado funções tão díspares quanto as de armazém de ferragens e canalizações, esquadra de polícia, casa funerária, quartel de bombeiros, estação de correios e habitação. Tudo isto desde que, com a Revolução Liberal e consequente extinção das ordens religiosas, em 1834, se procedera à dessacralização de um local até aí ocupado pelos monges crúzios.

Os entraves postos por Abel Urbano ao avanço do empreendimento comercial do trio de empresários eram motivados pelas consideráveis implicações do projeto de arquitetura, de Jaime Inácio dos Santos, num edifício construído no século xvi – e também conhecido popularmente como Igreja de São João das Donas. A primeira proposta do arquiteto para uma fachada neomanuelina do imóvel fora apresentada em fevereiro de 1921 e logo causou polémica junto de alguns dos membros das elites da cidade: consideravam-na uma adulteração do aspeto exterior de uma construção que, bem visto, era originalmente parte do Mosteiro de Santa Cruz.

O edifício onde hoje está o Café Santa Cruz foi construído em 1530, com o objetivo de funcionar como Igreja Paroquial de São João de Santa Cruz. A reorganização serviu para libertar o Mosteiro de Santa Cruz, ao lado, que ficou para o culto exclusivo dos membros da Ordem dos Crúzios e também como panteão dos primeiros reis portugueses – estão lá ainda os restos mortais de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I.

Café Santa Cruz was still causing quite a stir in Coimbra two weeks after it opened for the first time on 8 May 1923. An article in A Notícia on 24 May, titled “Café de Santa Cruz, a local staple known for its beautiful decoration and restaurant and café service”, mentioned the huge crowds inside. According to the newspaper, the public filled all the tables of the café/restaurant, “showing that it is willing to lend a hand to a venture that has enabled Coimbra to rival with big cities as far as this kind of establishment is concerned”. It went on enthusiastically: “Its clientele hint at life in the capital. The most distinguished ladies in the city attend it for lunch or dinner. A superior distinction can be felt there.”

After praising the aesthetic qualities of the café, the article ended with a lesson to be learned from this example: “Even Mr Abel Urbano will be sorry for trying to cause so much trouble to the making of this work, which has added life and distinction to the third city in the country.” The person the article referred to in such a condescending way was Abel Dias Urbano, the

then head of the Municipality of Coimbra Works Department. The military engineer was especially interested in urbanism and heritage. In those days, he was also the Chairman of the Coimbra Art and Archaeology Council. Dias Urbano went as far as to make several studies for the redesign of the city’s downtown area.

Urbano was a problem for Adriano Ferreira Cunha, Adriano Viegas Lucas and Mário Pais, the entrepreneurs who had been trying to open a café in the former São João de Santa Cruz Church since 1919. The idea of using the building next to Santa Cruz Monastery in Praça 8 de Maio – which was listed as a National Landmark in 1910 – for a café actually seemed to make sense. After all, the place had been used for such different purposes as a hardware and plumbing warehouse, a police station, a funeral home, a fire station, a post office and for housing ever since the place formerly used by the monks of the Order of the Holy Cross was de-sacralised when religious orders were dissolved in 1834, in the wake of the Liberal Revolution.

134•135

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Duas semanas após a inauguração, a 8 de maio de 1923, o Café Santa Cruz continuava a agitar a sociedade coimbrã. Num artigo publicado no jornal A Notícia, a 24 de maio, intitulado «O Café de Santa Cruz, marca no nosso meio, pela sua bela instalação e pelo serviço de restauração e café», dava-se conta das enchentes de habitantes da cidade do Mondego. O público ocupava todas as mesas do café- -restaurante, relatava o periódico, «mostrando que está disposto a auxiliar esse empreendimento que contribuiu para que Coimbra possa rivalizar com os grandes centros em estabelecimentos desse género». E prosseguia, no mesmo tom entusiasta: «Pressente-se na sua frequência um aspeto da vida da capital. Vão ali as mais distintas senhoras desta terra fazer o seu almoço ou jantar, notando-se ali uma superior distinção.»

Depois de elogiar as qualidades estéticas do espaço, o mesmo artigo rematava com uma lição a retirar deste exemplo: «Até o Sr. Dr. Abel Urbano, a estas horas há de estar arrependido dos embaraços que tentou criar à realização dessa obra que deu movimento e distinção à terceira cidade do país.» A pessoa a quem o artigo se referia em modos algo condescendentes era Abel Dias Urbano, então chefe da repartição de obras da Câmara Municipal de Coimbra. Engenheiro militar de formação, tinha um especial interesse por questões de urbanismo e património e, nessa época, acumulava as

CoimbraLat: 40.210787

Long: -8.428982

Café Santa Cruz

The reason for Abel Urbano’s objection to the three entrepreneurs’ business venture was the considerable implications of Jaime Inácio dos Santos’s architectural design in a sixteenth-century building commonly known as São João das Donas Church. The architect’s first proposal for a Neo-Manueline facade, submitted in February 1921, was immediately met with controversy by members of the local elite: some saw it as an adulteration of the exterior appearance of a building which had originally been part of Santa Cruz Monastery.

The building where Café Santa Cruz now stands was built in 1530 as São João de Santa Cruz parish church. As a result of this reorganisation, Santa Cruz Monastery next door was used exclusively by the members of the Order of the Holy Cross and as the pantheon of the first Portuguese kings – it is still home to the remains of King Afonso Henriques and King Sancho I.

The decision to build the new temple, designed by the Asturian architect Diogo de Castilho, was taken by Friar Brás Braga, a Church reformer who

A Igreja de São João de Santa Cruz viu, porém, a existência de três séculos terminar, de forma abrupta, em consequência das profundas mudanças impostas pela Revolução Liberal. O fim das ordens religiosas masculinas, em 1834, ditou a saída forçada dos monges crúzios do Mosteiro de Santa Cruz. O edifício passou então a funcionar como sede da paróquia, deixando a Igreja de São João de Santa Cruz sem a utilidade que motivara a sua edificação. Daí que, após um impasse que durou algum tempo, outros usos tenham surgido, durante as décadas seguintes. Coimbra, que até ao início do século xix tivera as suas zonas alta e baixa a viverem de costas voltadas, atravessaria, nesses anos, alterações urbanísticas de vulto.

O perfil dos arruamentos da Baixa começava a mudar substancialmente, numa tentativa de normalização, de acordo com os padrões de uma economia em aceleração, marcada pela chegada do caminho de ferro. Em 1874, uma década após a inauguração da estação de comboio da cidade, junto ao Mondego, iniciava-se a ligação desta ao centro através do primeiro transporte público urbano, o carro americano – uma carruagem deslocando- -se sobre carris, puxada por dois cavalos. Nesse mesmo ano, o antigo Largo de Sansão, em frente do Mosteiro de Santa Cruz, vê a configuração alterada e passa a chamar-se «Praça 8 de Maio». Uma homenagem ao dia em que o exército liberal entrou em Coimbra, em 1834, sob o comando do duque da Terceira.

A mesma data serviria de mote à inauguração do Café Santa Cruz, a 8 de maio de 1923, depois de este ter aberto portas aos primeiros clientes, três dias antes. Tal acontecia depois de sanada a polémica em torno da proposta de intervenção apresentada por Jaime Inácio dos Santos. Já com o edifício classificado como Monumento Nacional, desde outubro de 1921, fora por fim autorizada uma solução arquitetónica de compromisso. Se as modificações no interior do antigo templo, com uma nave central dividida por três tramos, deixaram quase intacto o desenho de Diogo de Castilho, já as alterações feitas na fachada foram profundas,

136•137

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Projeto para a modificação da fachada principalda antiga Igreja de São João de Santa Cruzpara Café Santa Cruz, de Jaime Inácio dos Santos, 1921.A blueprint of the project by Jaime Inácio dos Santosfor the modification of the main facade of the formerSão João de Santa Cruz Church into Café Santa Cruz, 1921.©José Pessoa.

O Mosteiro de Santa Cruz e o Café Santa Cruz,em Coimbra, década de 1940.Santa Cruz Monastery and Café Santa Cruz,Coimbra, in the 1940s.©Fundo de Fotografia Alvão.

café da capital algarvia. A poucas dezenas de metros da doca e da Ria Formosa, oferecia à cidade a sua primeira esplanada, com elegantes cadeiras e mesas de verga.

Também pioneira foi a oferta de sorvetes, no verão de 1911, possibilitada pela instalação de uma máquina de fazer gelo, encomendada a uma firma inglesa. Funcionando igualmente como mercearia, e ganhando progressivamente as valências de quiosque, posto de telefones, correios e telégrafos, e ainda de barbearia, o estabelecimento oferecia todas as razões para ser famoso. Muito do pulsar citadino passava por ali. O ambiente era propício à discussão. Não espanta, por isso, que o espaço tenha sido eleito como ponto de encontro e sala de estar para um conjunto de artistas e intelectuais de diversas tendências, mas em divergência com o gosto prevalecente. Entre eles estavam os pintores modernistas Carlos Augusto Lyster Franco e Carlos Porfírio ou o poeta e dramaturgo pós-simbolista Cândido Guerreiro. Pouco depois, começaria ali a funcionar a redação improvisada de uma das mais singulares experiências editoriais no meio literário nacional.

Fundado como semanário, em Tavira, em 1901, O Heraldo transfere-se para Faro em abril de 1912, depois de adquirido pelo advogado João Pedro de Sousa e por Lyster Franco, que seria o diretor. Nos cinco anos seguintes, seria veículo dos mais arrojados ensaios literários nacionais. Iniciando a publicação bissemanal na capital algarvia, rapidamente congrega as atenções dos poucos interessados na criação de um espaço mental e intelectual novo, o do modernismo. Após a receção hostil à experiência da Orpheu nos meios bem-pensantes de Lisboa, o título publicado na mais meridional província acolheu, até ao fim, em 1917, trabalhos de Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro. O autor de Mensagem sentia-se atraído pelo fulgor criativo do Aliança e tornou-se presença frequente nas suas tertúlias. O Heraldo acabou devido a dificuldades financeiras, deixando um legado cultural único.

Recalling the literary and artistic movement that surrounded Orpheu magazine – of which only two issues were published in 1915, yet which was extremely important to the definition of modernist ideals in Portugal – means evoking the romantic image of get-togethers in some of the most important cafés in Lisbon. A Brasileira do Chiado and Martinho da Arcada were the places of choice to meet and for intellectual speculation for many men and a few women seeking a rupture with the canon. Among them were Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro and Almada Negreiros. However, the role of Faro as a hub for the avant-gardes of the time is seldom remembered.

The Algarve was, for once, highly relevant in the cartography of the country’s letters and arts. At the epicentre of the movement there was a newspaper, O Heraldo, and a café, the Aliança. Pessoa, the literary scene’s major name, attended it regularly. At the time, in the mid-1910s, the Aliança was yet to have its staple revolving door and elaborate ceiling and walls, which made it

164•165

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Ao lembrar o movimento literário e artístico surgido em torno da revista Orpheu, com apenas dois números publicados, em 1915, mas de extraordinária importância na definição dos ideais modernistas em Portugal, evoca-se com facilidade a imagem romântica de tertúlias em alguns dos mais importantes cafés lisboetas. A Brasileira do Chiado e o Martinho da Arcada eram locais privilegiados de encontro e especulação intelectual para muitos homens, e umas poucas mulheres, ambicionando uma rutura com o cânone. Entre eles estavam figuras como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro ou Almada Negreiros. Poucas vezes se recorda, porém, o papel desempenhado pela cidade de Faro como foco de agitação entre as vanguardas da época.

O Algarve foi, por uma vez, território de enorme relevância na cartografia das letras e artes nacionais. No epicentro desse movimento estavam também uma publicação, O Heraldo, e um café, o Aliança. Pessoa, vulto maior de toda uma cena, foi aqui visita frequente. Quando tal aconteceu, em meados da década de 1910, o Aliança não era ainda, todavia, um espaço com teto e paredes trabalhados e porta giratória, pelos quais viria a ser conhecido. Fundado como «Leitaria Aliança», em 1908, pelo comerciante José Pedro Silva, numa zona central, à entrada da Rua Dom Francisco Gomes, mesmo em frente ao Jardim Manuel Bivar, este estabelecimento tornou-se em poucos anos o mais frequentado

FaroLat: 37.016133

Long: -7.9345681

Café Aliança

O Café Aliança e a Rua Dom Francisco Gomes,em Faro, segunda metade do século xx.

Café Aliança and Rua Dom Francisco Gomes,Faro, second half of the 20th century.

The Aliança from those days came to an end too, as a consequence of a devastating fire in the early 1920s. The owner, José Pedro Silva, was not willing to see its lifelong dream go up in smoke. He decided to rebuild the café, taking advantage of the setback to upgrade his business. He wanted something big. And so he looked for the best examples in the country, searching for inspiration in Nicola, in Lisbon, and Majestic, in Porto. He commissioned it to the renowned architect Norte Júnior – who had designed the project that brought the café in Lisbon’s main square, Rossio – back to life. The result featured elegant wood panelling and especially a classic stone facade with three arched doors and a lion’s head on top.

The new Salão Aliança was inaugurated on 19 October 1930. It included a room with three billiard tables. The refurbishment was completed nearly two years later, as a large revolving door was installed in the main entrance. The café was ready to become the city’s main social forum once again. Simone de Beauvoir

made a conference there in 1942 and tasted (and enjoyed) the traditional aguardente de medronho, i.e., firewater. From the 1940s, a kind of informal stock exchange for the region’s main agricultural products – namely almond, carob, fig, wine and cork – flourished under the café’s exquisite ceiling. Up to the early 1970s, the major industrialists in the Algarve used to get together there every Wednesday and Friday to analyse the market and set prices.

The place went through major changes in the last few decades of the twentieth century. The café where poets António Ramos Rosa, Gastão Cruz and Casimiro de Brito, as well as novelist Lídia Jorge used to go closed in 2010 after a long decay. It reopened, completely restored, in the summer of 2016, and is now a café and a cervejaria, a beer restaurant.

famous. It was founded by the merchant José Pedro Silva and started life as Leitaria Aliança in 1908, at the entrance to Rua Dom Francisco Gomes, opposite Manuel Bivar Garden in the city centre. It soon became the busiest café in the capital of the Algarve. Just a few tens of metres from the dock and Ria Formosa, it opened the first terrace in the city, with elegant wicker chairs and tables.

Café Aliança also pioneered the selling of sorbets in the summer of 1911, using an icemaker commissioned from a British company. The café also doubled as a grocer’s, a kiosk, a telephone booth, a post office and a barber shop – all the more reasons to be famous. It was at the heart of the teeming city. The atmosphere inspired debate. Hence, it is not surprising that it was chosen as the meeting point and living room by a group of artists and intellectuals from different trends who were against the prevailing taste. Among these were modernist painters Carlos Augusto Lyster Franco and Carlos Porfírio and post-symbolist poet and playwright Cândido

Guerreiro. It would soon become the impromptu office of one of the most unique publishing experiments in the country’s literary milieu.

O Heraldo started life as a weekly in Tavira in 1901 and moved to Faro in April 1912, after being bought by the lawyer João Pedro de Sousa and by Lyster Franco, who became the editor. The most daring literary essays in the country would be published by O Heraldo in the five years that followed. The now biweekly soon gathered the attention of a few people that were interested in creating a new mindset – Modernism. In the wake of the hostile reception of the Orpheu experiment amid the Lisbon intelligentsia, the newspaper that was published in the southernmost region of the country was home to works by Fernando Pessoa, Almada Negreiros and Mário de Sá-Carneiro up to 1917. Pessoa, the author of Mensagem, was attracted by the creative glow of the Aliança and became a regular at get-togethers there. O Heraldo folded due to financial difficulties, leaving a unique cultural legacy.

O Aliança daquele tempo também terminou, mas em consequência de um devastador incêndio, ocorrido no início da década de 20. O proprietário, José Pedro Silva, não estava, todavia, disposto a ver o esforço de anos esfumar-se, e logo arregaçou mangas para reerguer o café. Aproveitando a contrariedade, subiu a fasquia na reconstrução. Queria uma coisa em grande. E foi à procura do que de melhor existia no país, buscando inspiração nos cafés Nicola, de Lisboa, e Majestic, do Porto. Encomendou o trabalho ao conceituado arquiteto Norte Júnior, responsável pelo projeto que ressuscitou o estabelecimento do Rossio lisboeta. A escolha resultou na grande elegância dos revestimentos de madeira e, sobretudo, do frontispício de influência clássica, de pedra, com três portas em arco e encimado por uma cabeça de leão.

O novo Salão Aliança seria inaugurado a 19 de outubro de 1930, incluindo ainda uma sala com três mesas de bilhar. A reabilitação estaria finalizada quase dois anos depois, com a instalação de uma grande porta giratória na entrada principal. Completava-se o cenário para transformar, outra vez, a casa no principal fórum social dos farenses. Em 1942, Simone de Beauvoir fez lá uma conferência, tendo provado e apreciado a tradicional aguardente de medronho. A partir da década de 40, sob os requintados tetos assistir-se-ia ao florescer de uma espécie de bolsa de valores informal para os principais produtos agrícolas regionais, como a amêndoa, a alfarroba, o figo, os vinhos e a cortiça. Até ao princípio da década de 70, à quarta-feira e à sexta-feira reuniam-se ali os maiores industriais algarvios, para analisarem o mercado e estabelecerem os preços.

Nas últimas décadas do século xx, o espaço sofreu diversas adulterações. O café frequentado pelos poetas António Ramos Rosa, Gastão Cruz e Casimiro de Brito, e também pela escritora Lídia Jorge, fechou em 2010, após prolongado período de decadência. No verão de 2016, reabriu totalmente restaurado, a funcionar como café e cervejaria.

166•167

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Mundial, ajudou a dar o impulso definitivo ao fenómeno de popularidade universal em que se converteu o estabelecimento fundado, no início do século xx, por Henrique Azevedo (1895-1975), pai de José, aliás «Peter». A tradição familiar de genuína hospitalidade, forjada na natural solidariedade faialense com os marujos de todas as latitudes e em conversas regadas a gin tónico, foi continuada pelo filho, José Henrique Azevedo, a partir de 2005.

Apesar de a casa ter sido oficialmente fundada em 1918, as suas raízes estão no final do século xix, quando Ernesto Lourenço S. Azevedo (1859-1931), pai de Henrique Azevedo, explorava um bazar de artesanato no Largo do Infante. Bordados, rendas, chapéus e cestos de palha, flores de penas ou trabalhos de crivo eram os produtos vendidos no Bazar of Fayal Manufactures & Products, uma designação em inglês que indiciava já a vocação internacionalista da Horta. A posição desta levou-a a funcionar como porto estratégico para as diversas frotas que atravessavam o Atlântico Norte, entre as quais se contavam as das quatro companhias estrangeiras que escolheram a ilha como base para a colocação de cabos de comunicação submarinos. Em 1888, os produtos mostrados pelo bazar na Exposição Industrial de Lisboa valeram-lhe uma medalha de ouro e um diploma.

Foi em 1901 que Ernesto abriu aquele que, de facto, pode ser considerado o antecessor direto do atual Café Sport. Tal aconteceu quando se mudou para um edifício comprado na Rua Tenente Valadim, a dois passos do ancoradouro, onde instalou uma loja, a Azorean House, na qual se acrescentavam as bebidas ao que já vendia. Os marinheiros gostaram. O negócio corria cada vez melhor. Pelo que não foi difícil a um dos filhos continuá-lo, quando Ernesto se decidiu reformar. Em 1918, Henrique Azevedo transfere o estabelecimento para um prédio localizado mesmo ao lado, mudando-lhe o nome para «Café Sport», fruto da paixão nutrida pela atividade desportiva – praticava futebol, remo e bilhar. Algo que denotava muito de espírito britânico, tal como o gin, outra das marcas identitárias da casa iniciada nessa altura. Foi

A name as proof of affection. As he looked at José Azevedo (1925-2005), his faithful eighteen-year-old Azorean helper in 1943, the lieutenant in charge of ammunitions and maintenance of HMS Lusitania II of the British Navy was reminded of his son, who was fighting in the war. The ship had been moored at Horta, in Faial Island, since 1939, having lost its stern after a depth charge exploded before time. The ship now coordinated communications between the North Atlantic military fleet. The officer asked José, who had been working with the British for three years, if he did not mind if he called him Peter – his son’s name. It would be a way not to be so far away from him. The boy thought for a moment – then he said yes. The nickname would spread from the crew across the island in no time.

The story has been told so many times it is well-known by now. It is the perfect metaphor for a unique spirit, a mixture of cosmopolitism and disinterested companionship that is behind Café Sport’s ever-growing legend. Even though the simple establishment was already relatively

famous among sailors from around the world who sailed on the North-Atlantic waters, its importance grew exponentially in the following decades. The development of yachting after World War II helped give a definitive boost to the worldwide popularity phenomenon of the establishment that was founded by Henrique Azevedo (1895-1975), José’s father – or rather “Peter’s” father – in the early twentieth century. Since 2005, “Peter’s” son, José Henrique Azevedo, has continued the family tradition of genuine hospitality, which has its roots in the natural local solidarity with seamen from across the globe in conversations sparked by a gin and tonic.

Although it was officially established in 1918, the origins of Café Sport are in the late nineteenth century, when Ernesto Lourenço S. Azevedo (1859-1931), Henrique Azevedo’s father, had a handcraft bazaar in Largo do Infante. Embroidery, lace, straw hats and baskets, feather flowers and hardanger embroidery were sold at Bazar of Fayal Manufactures & Products – the name in English denoted Horta’s internationalist penchant. Due to its

190•191

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Um nome como prova de afeto. Em 1943, ao olhar para o seu fiel e jovem ajudante açoriano – José Azevedo (1925-2005), de dezoito anos –, o tenente responsável pelo serviço de munições e manutenção do navio HMS Lusitania II, da marinha de guerra britânica, era acometido pela lembrança do filho, combatente na guerra. O barco, atracado no porto da Horta, na ilha do Faial, chegara em 1939, depois de perder a popa na sequência do rebentamento de uma bomba de profundidade antes do tempo. Dali, o navio passara a desempenhar funções de coordenação das comunicações para a restante frota militar do Atlântico Norte. O oficial perguntou então a José, há já três anos a trabalhar para os ingleses, se não se importaria de, daí em diante, responder pelo nome do filho, Peter. Seria a forma de amenizar a distância. O rapaz meditou um pouco e aceitou. Em pouco tempo, o batismo saltaria da tripulação para toda a ilha.

A estória é bem conhecida, de tantas vezes contada, e serve de perfeita metáfora para o espírito único, misto de cosmopolitismo e fraternidade desinteressada, responsável pela mística crescente em torno do Café Sport. A modesta casa já tinha, na altura, uma certa reputação entre os embarcadiços de todo o mundo que sulcavam as águas atlânticas setentrionais, mas nada que se comparasse ao estatuto adquirido nas décadas seguintes. O desenvolvimento do iatismo, depois da Segunda Guerra

Açores, HortaLat: 38.529560

Long: -28.626825

Peter Café Sport

Henrique Azevedo, José Azevedoe José Henrique Azevedo,

à entrada do Peter Café Sport, 1973.Henrique Azevedo, José Azevedo

and José Henrique Azevedooutside Peter Café Sport, 1973.

Depois do conflito, a Horta manteve-se como escala de grande relevância nas rotas atlânticas, sobretudo para barcos de pequena dimensão, e em particular para os veleiros. Os iates passaram a ser presença cada vez mais constante, contando-se entre eles muitos navegadores solitários. O fenómeno foi crescendo, muito graças ao passa-palavra entre velejadores de todo o mundo, encantados com a aliança entre as boas condições naturais daquele local situado a meio do Atlântico e a extrema afabilidade dos habitantes da ilha – que passaram a apelidar «aventureiros» os estrangeiros ali aportados. Aquele era um sítio diferente, onde os velejadores se sentiam relaxados e podiam fazer os seus reabastecimentos, além de comer e beber a preços reduzidos. Uma atratividade complementada pela existência do Café Sport, cada vez mais conhecido como «Peter’s».

Graças a José Azevedo e ao pai, Henrique, o estabelecimento passou a ser a referência obrigatória pela qual os «aventureiros» perguntavam, mal punham o pé em terra. Mais que um local onde se bebia e confraternizava, o espaço passou a funcionar como porto de abrigo para os temerários marinheiros, fruto da imensa solidariedade demonstrada pela família Azevedo. Não raras vezes, emprestaram dinheiro a velejadores em apuros. O companheirismo, porém, revelava-se na simples vontade de ajudar a suprir as necessidades quotidianas, como indicar locais onde se deveriam dirigir para comprar víveres e equipamento, mas também servindo de casa de câmbios ou ainda – algo muito apreciado pela comunidade iatista – como posto de correios informal. Desde 1918 que aquela é a morada para a qual se envia muita da correspondência destinada aos navegantes oceânicos, numa conveniência a que se dá o nome de «posta-restante». Quando ali chegam, a primeira coisa que eles fazem é indagar se chegou alguma coisa.

A fama de simpatia e presteza de Peter na resolução de pequenos e grandes problemas dos marítimos alicerçara-se antes ainda de estes desembarcarem. Desde o início dos anos 50,

customers. It was enjoyed so much over time that tonic water began to be produced locally several years later – production has ended since.

British sailors were essentially the light of the café, drinking, smoking, playing cards and dominoes and mingling with the locals, who were known for their easy-going, open-minded character. After a hot meal and the first sips of gin, conversations would soon turn into loud voices and laughter. The natives of Old Albion were joined by the Dutch in 1921, when a tugboat base was established there to aid Dutch ships in distress in the wide ocean. They also contributed to fill the café, where they were always welcome regardless of the way they looked – which was often not very good after long journeys across the sea. Besides helping to define the soul of the café, the Dutch connection left a very clear mark: the outside of the café was painted with black and blue paint from Dutch tugboats.

The beginning of World War II emphasized the strategic importance of the port, which became instrumental to the British Navy. Ships

kept coming, and so did sailors. The period was a determining chance, the defining moment of a lifetime for José Azevedo, a young boy who helped Henrique, his father, running the business. He started to work for the British at fifteen, carrying ammunition to ships and working in the cafeteria that catered for them, and later as head painter – a position he took up because he spoke English fluently. This was how he gained access to HMS Lusitania II for six months, where he got the nickname that stayed with him for the rest of his life.

Horta remained an important port of call in Atlantic routes after the conflict, especially for small ships and particularly for sailboats. Yachts became a constant presence, including many solitary sailors. It was an ever-growing word-of-mouth phenomenon: sailors from around the world were charmed by the alliance between the good natural conditions of that place in the middle of the Atlantic Ocean and the sheer friendliness of the inhabitants of the island – who dubbed all the foreigners that landed there “adventurers”. It

location, Horta was a strategic port for the fleets that crossed the North Atlantic, namely those belonging to four foreign companies that chose the island as their base to place submarine communications cables. The bazaar was awarded a gold medal and a diploma at the 1888 Lisbon Industrial Exhibition for the items it showcased there.

Ernesto opened that which may truly be deemed the direct predecessor of present-day Café Sport for the first time in 1901. He moved to a building he had bought in Rua Tenente Valadim, a stone’s throw away from the mooring site, where he opened Azorean House, a shop which added drinks to his regular items. Sailors liked it. Business kept going strong. It was not hard for one of his children to take over when Ernesto decided to retire. Henrique Azevedo moved the shop to a building next door in 1918. He changed its name to “Café Sport” because he loved sport: he played football and billiard and did rowing. He had a somewhat British spirit, as did gin – another staple of the new café. The drink came to be sold there because of British

por causa dos clientes ingleses que esta bebida passou a ser ali vendida. O desenvolvimento do gosto por ela levou mesmo, anos mais tarde, ao surgimento de uma produção local de água tónica, posteriormente cessada.

Os marujos britânicos eram grandes animadores do espaço, bebendo, fumando, jogando cartas e dominó e confraternizando com os faialenses, gente conhecida pela facilidade do trato e com um apelo universalista. As conversas, reconfortados os estômagos com uma refeição quente e vertidos nas gargantas os primeiros goles de gin, rapidamente se convertiam em alta vozearia e em amplas risadas. Aos naturais da Velha Albion se juntaram, em 1921, os holandeses, quando ali estabeleceram uma base de rebocadores para auxiliar as embarcações da sua frota em dificuldades na imensidão oceânica. Também eles contribuíam para encher a casa, que os acolhia sempre sem olhar à aparência – que muitas vezes, e após longas jornadas marítimas, estava longe de ser a melhor. O contacto neerlandês, além de ajudar a definir a alma da casa, conferiu-lhe também uma marca bem tangível: a cedência de tintas azul e preta, usadas nos rebocadores, permitiu pintar o exterior do café.

O início da Segunda Guerra Mundial sublinhou a importância estratégica daquele porto, que constituiu um ponto de apoio fulcral para a marinha de guerra britânica. Os barcos chegavam em grande número, e com eles muitos marinheiros. Este período foi uma oportunidade determinante, o momento definidor de uma vida, para o rapazito José Azevedo, até então ocupado a ajudar o pai Henrique nos afazeres do estabelecimento. Aos quinze anos, começava a trabalhar para os ingleses, realizando primeiro tarefas de transporte de munições para os navios e na cantina que os fornecia, e depois como chefe dos pintores – posto que conquistou graças à fluência com que falava o idioma dos empregadores. Foi o que lhe permitiu o acesso, durante seis meses, ao HMS Lusitania II, onde ganhou a alcunha que o acompanharia o resto da vida.

192•193

Cafés Portugueses Tertúlias e TradiçãoThe Cafés of Portugal Tradition and Get-Togethers

Peças de scrimshaw, artesanato em ossoe dentes de baleia, Museu de Scrimshaw do «Peter».

Scrimshaw (handicraft made of whale bones and teeth)pieces, Peter’s Scrimshaw Museum.