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|1| Trabalho & Educação | Belo Horizonte | v.24 | n.1 | p. E00-E00 | jan-abr | 2015 HEGEL, MARX E A ONTOLOGIA DO SER SOCIAL 1 Hegel, Marx and the ontology of the social being LOSURDO, Domenico 2 RESUMO Este texto representa um levantamento analítico de como Hegel tem sido avaliado e sua obra criticada a partir da perspectiva marxiana e quais as contradições presentes em tais colocações. Rompendo com a chave marcadamente consciencialista atribuída a Hegel, registra-se, aqui, como a natureza integra a sua filosofia da história e, não menos, sua filosofia política. Observando-se atentamente, verifica-se que o trabalho, em Hegel, afasta-se da caracterização pré-preconcebida de seu pensamento estando restrito ao caráter espiritual e abstrato de tal categoria. Comprova-se como o filósofo de Stuttgart dedica especial atenção às relações de classe, ao conflito social e à sua concreta configuração. Tais reflexões procuram afastar Hegel de um idealismo histórico e buscam aproximá-lo de um materialismo histórico, com plenas referências ao ser social. Ressalta-se como as mais diversas configurações do ser social aguardam por uma análise ontológica e, para tal, torna-se necessário um novo olhar para a obra hegeliana e suas reais contribuições a tão relevante propósito. Palavras-chave: Hegel; Idealismo histórico e materialismo histórico; Ontologia do ser social. ABSTRACT This text is an analytical survey of how Hegel has been evaluated and how his work has been criticized from the marxist perspective and which contradictions are present in these settings. Breaking with the markedly awareness key assigned to Hegel, it is registered here, how nature integrates its history of philosophy and, not least, its political philosophy. Observing carefully, we find that the work, in Hegel, moves away from the preconceived characterization of his thought being restricted to the spiritual and abstract character of this category. It’s possible to verify how the philosopher from Stuttgart dedicates particular attention to class relations, to social conflict and to its concrete configuration. Such reflections move Hegel away from a historical idealism and bring him closer to a historical materialism, with ample references to the social being. It should be noted how the most diverse configuration of the social being await for an ontological analysis and there unto it a new look is necessary to Hegelian’s work and its real contributions to such a relevant purpose. Keywords: Hegel; Historical idealism and historical materialism; Ontology of social being. 1 Versão em português da publicação original, em italiano: LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e l’ontologia dell’essere sociale. Critica marxista: analisi e contributi per ripensare la sinistra. Editori Riuniti Divisione Periodici, Roma, n.5, p.40-49, set./out. 2010. Disponível a partir de: <http://criticamarxista.net/2010/05/> e de <http://dialnet.unirioja.es/servlet/ejemplar?codigo=265242>. Acesso em: out. 2014. Tradução: Monica de Sanctis Viana. Tradutora Pública Juramentada e Intérprete Comercial de Italiano (JUCEMG, Matrícula n.778); Tradutora Reconhecida pelo Consulado Italiano de Belo Horizonte e Membro da Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes (ABRATES); Vice- Presidente da Associação Cultural Italiana Amici del Veneto. Sítio eletrônico: <www.monicasanctis.com>. Revisão técnica: Giovanni Semeraro e Luciana Amaral Praxedes. 2 Doutor em Filosofia pela Universidade de Tubinga, Alemanha. Professor de História da Filosofia da Universidade de Urbino Carlo Bo, Itália. Preside, desde 1988, a Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für dialektisches Denken e é membro do Comitato Scientifico dell’Istituto Italiano per gli Studi Filosofici. E-mail: <[email protected]>.

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    Hegel, Marx e a ontologia do ser social1

    Hegel, Marx and the ontology of the social being

    LOSURDO, Domenico2

    resuMoEste texto representa um levantamento analtico de como Hegel tem sido avaliado e sua obra criticada a partir da perspectiva marxiana e quais as contradies presentes em tais colocaes. Rompendo com a chave marcadamente consciencialista atribuda a Hegel, registra-se, aqui, como a natureza integra a sua filosofia da histria e, no menos, sua filosofia poltica. Observando-se atentamente, verifica-se que o trabalho, em Hegel, afasta-se da caracterizao pr-preconcebida de seu pensamento estando restrito ao carter espiritual e abstrato de tal categoria. Comprova-se como o filsofo de Stuttgart dedica especial ateno s relaes de classe, ao conflito social e sua concreta configurao. Tais reflexes procuram afastar Hegel de um idealismo histrico e buscam aproxim-lo de um materialismo histrico, com plenas referncias ao ser social. Ressalta-se como as mais diversas configuraes do ser social aguardam por uma anlise ontolgica e, para tal, torna-se necessrio um novo olhar para a obra hegeliana e suas reais contribuies a to relevante propsito.

    Palavras-chave: Hegel; Idealismo histrico e materialismo histrico; Ontologia do ser social.

    abstractThis text is an analytical survey of how Hegel has been evaluated and how his work has been criticized from the marxist perspective and which contradictions are present in these settings. Breaking with the markedly awareness key assigned to Hegel, it is registered here, how nature integrates its history of philosophy and, not least, its political philosophy. Observing carefully, we find that the work, in Hegel, moves away from the preconceived characterization of his thought being restricted to the spiritual and abstract character of this category. Its possible to verify how the philosopher from Stuttgart dedicates particular attention to class relations, to social conflict and to its concrete configuration. Such reflections move Hegel away from a historical idealism and bring him closer to a historical materialism, with ample references to the social being. It should be noted how the most diverse configuration of the social being await for an ontological analysis and there unto it a new look is necessary to Hegelians work and its real contributions to such a relevant purpose.

    Keywords: Hegel; Historical idealism and historical materialism; Ontology of social being.

    1 Verso em portugus da publicao original, em italiano: LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e lontologia dellessere sociale. Critica marxista: analisi e contributi per ripensare la sinistra. editori riuniti divisione Periodici, Roma, n.5, p.40-49, set./out. 2010. Disponvel a partir de: e de . Acesso em: out. 2014.Traduo: Monica de Sanctis Viana. Tradutora Pblica Juramentada e Intrprete Comercial de Italiano (JUCEMG, Matrcula n.778); Tradutora Reconhecida pelo Consulado Italiano de Belo Horizonte e Membro da Associao Brasileira de Tradutores e Intrpretes (ABRATES); Vice-Presidente da Associao Cultural Italiana Amici del Veneto. Stio eletrnico: .Reviso tcnica: Giovanni Semeraro e Luciana Amaral Praxedes.2 Doutor em Filosofia pela Universidade de Tubinga, Alemanha. Professor de Histria da Filosofia da Universidade de Urbino Carlo Bo, Itlia. Preside, desde 1988, a Internationale Gesellschaft Hegel-Marx fr dialektisches Denken e membro do Comitato Scientifico dellIstituto Italiano per gli Studi Filosofici. E-mail: .

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    No captulo conclusivo dos Manuscritos econmico-filosficos, Marx sintetiza assim a sua opinio sobre Hegel: a questo principal que o objeto da conscincia no nada mais que a autoconscincia, ou que o objeto apenas a autoconscincia objetivada, a autoconscincia como objeto. Consequentemente: o nico trabalho que Hegel conhece e reconhece o trabalho espiritual, abstrato (MARX; ENGELS, 1981, p.574-575).

    uma leitura que, durante a posterior evoluo de Marx, passa por atenuaes e modificaes igualmente bem significativas, mas sem chegar a um verdadeiro e prprio repdio. E uma leitura que, justamente na sua formulao mais radical, fez escola entre os autores e correntes mais diversas da tradio marxista. Lembremo-nos de Gyrgy Lukcs que, mesmo em uma sua clebre monografia O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista, teve o mrito de sublinhar a centralidade dos temas da necessidade e do trabalho em Hegel: se o primeiro tema remete claramente natureza biolgica do homem, o segundo implica a transformao da natureza fsica que se faz necessria para a satisfao das necessidades. E, todavia, escrevendo em 1967, portanto quatro anos antes de sua morte, Lukcs no tem dvidas: o objeto, a coisa em Hegel, existe apenas como alienao da autoconscincia (prefcio em LUKCS, 1988, p.XXV). Fica, porm, o mistrio de como, mesmo com essa propenso visionria, Hegel possa ser, citando sempre Lukcs, um filsofo com um robusto e vasto senso da realidade, com uma fome to intensa de realidade genuna como, depois de Aristteles, talvez no se encontre em mais nenhum outro pensador (LUKCS, 1976-1981, p.181).

    Analogamente, mesmo sendo a partir de uma orientao diferente, Ernst Bloch argumenta e evidencia, por um lado, o resultado de grande relevncia, para o qual na Fenomenologia do esprito o desenvolvimento maior da autoconscincia acontece mediante a conscincia do servo que trabalha. De novo somos direcionados ao tema do trabalho e, implicitamente, das necessidades que este chamado a satisfazer, ou seja, somos direcionados de novo tanto natureza fsica no seu conjunto quanto natureza biolgica do homem. Por outro lado, Bloch afirma que a conquista da identidade de sujeito-objeto entendida por Hegel apenas como a revogao completa das exteriorizaes (os objetos em geral) no sujeito, e isso em conformidade a uma dialtica que profundamente idealstica e que, alis, fica aos poucos mais rarefeita (BLOCH, 1962, p.69, 71). Sem divergncia , ao contrrio, a leitura de Hegel em chave grotescamente consciencialista que, na Itlia, precedeu a escola de Galvano della Volpe e de Lucio Colletti.

    Se Marx e, mais ainda, a tradio a ele ligada empenharam-se em evidenciar a absoluta originalidade da nova viso do mundo e do novo movimento poltico, do lado oposto, no apenas o neoidealismo italiano, mas tambm as mais diversas correntes de pensamento preocuparam-se, principalmente nos anos da Guerra Fria, em proteger Hegel de toda e qualquer contaminao com o materialismo comunista que ludibriava e ameaava os valores ideais, espirituais e religiosos do Ocidente. Foi a partir dessas motivaes contrapostas e diversas que acabou sendo consolidada como um lugar-comum a leitura de Hegel por ser exemplo do consciencialismo ou do panlogismo. Em uma situao histrica radicalmente mudada atualmente, o momento de se repensar o problema em novos termos.

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    natureza e trabalHo eM Hegel

    Para comear, conveniente lembrar, depois das consideraes metodolgicas de carter geral e antes de dar incio narrao em si, que as Lies sobre a filosofia da histria abrem-se sublinhando as bases geogrficas da histria mundial e esclarecendo que, sem considerar a geografia, o terreno onde afunda as suas razes, o esprito do povo, sem considerar a sua ligao com a natureza, aquela base essencial e necessria, no possvel compreender nada do real desenvolvimento histrico e poltico (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.105).

    Como se v, a natureza no est nem um pouco esvanecida. Pelo contrrio, possui at mesmo um papel excessivo. As Lies sobre a filosofia da histria consideram que,

    [...] na zona fria e na zona quente no se pode encontrar o terreno de povos histrico-mundiais [...]. Nessas zonas extremas a indigncia nunca pode (nie) cessar, nem nunca pode (niemals) ser prevenida; o homem pode apenas se dedicar continuamente sua preocupao para com a natureza, aos raios incandescentes do sol e ao gelo das geleiras (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.106, 107).

    O mnimo que se pode dizer que parece ser problemtica a insistncia sobre a imodificabilidade do dado de fato natural. Podemos concordar com Hegel que as civilizaes martimas geralmente comprovam ter maior abertura e ousadia: a terra firme, de fato, fixa o homem ao solo, derivando, assim, uma infinidade de obstculos (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.118-119). Mas no podemos concordar com a outra afirmao segundo a qual, nas civilizaes martimas, a liberdade civil segue no mesmo passo do comrcio e da navegao (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.131). Desse quadro removido o comrcio dos escravos negros que v como protagonistas, por muito tempo, os estados, regies e cidades costeiras empenhados, de maneira ativa, justamente na navegao e no comrcio.

    Alm da natureza fsica, a natureza biolgica do homem tambm possui um papel essencial em Hegel. O triunfo dos conquistadores no Novo Mundo explica-se com uma srie de fatores: a falta do cavalo e do ferro e a fragilidade da constituio natural dos indgenas (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.108-109); ao invs, no se acena s contradies e aos conflitos que atravessavam profundamente as sociedades pr-colombianas e que provavelmente tiveram um papel mais importante na derrota total infligida pelos invasores, que no a frgil constituio fsica dos indgenas. Em concluso, verdade que Hegel adverte contra o perigo do reducionismo e sintetiza assim o seu ponto de vista: no devemos estimar a natureza nem muito nem pouco (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.105-106). E se, todavia, uma crtica fosse voltada ao filsofo, no seria o idealismo, mas o fato de cair, s vezes, no naturalismo.

    Feitas essas premissas, a afirmao j vista dos Manuscritos econmico-filosficos, segundo a qual o trabalho descrito por Hegel seria exclusivamente o trabalho espiritual, abstrato, pode ser considerada apenas como a expresso de uma intemperana juvenil (mas a nfase dada a uma afirmao contida nas anotaes que no eram destinadas publicao foi, principalmente, de responsabilidade dos

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    intrpretes do sculo XX). Na realidade, se a natureza est bem presente na filosofia da histria, certamente no est ausente na filosofia poltica de Hegel: o homem est em relao prtica com a natureza no momento em que se coloca diante da mesma como um indivduo imediato e externo a algo imediato e externo e, portanto, como um indivduo sensvel (CICERA, 1996, p.419, 245). uma relao prtica que se expressa por meio do trabalho; e o duro esforo do trabalho pressupe a resistncia e, assim, a intensidade material da natureza: srio o trabalho em relao necessidade, necessrio que sucumba a natureza ou eu, se um deve existir, o outro tem que ceder (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.297-298). E seria, como sempre, o homem que cederia e sucumbiria, se ele enfrentasse a luta sem nada nas mos: quaisquer que sejam as foras advindas da natureza contra o homem frio, animais selvagens, gua, fogo ele sabe recorrer a meios contra as mesmas, e extrai tais meios da prpria natureza, contra a qual os utiliza (CICERA, 1996, p.419, 245). Sim, o desenvolvimento da tcnica, das foras produtivas, em ltima anlise da histria, a resposta que o homem ope resistncia dada pela natureza para a satisfao de suas necessidades: os objetos naturais (Naturgegenstnde) so potentes e prestam uma resistncia (Widerstand) multplice. Para dom-los o homem interpe outras coisas naturais (Naturdinge), voltando, assim, a natureza contra si mesma. para tal fim que o homem inventa instrumentos. Essas invenes humanas pertencem ao esprito, portanto o instrumento deve ser mais estimado do que o objeto natural (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.295). E, como resultado permanente da luta que o homem conduz para garantir sua sobrevivncia e a melhoria das condies de vida, o instrumento fica sendo mais importante do que a satisfao momentnea das necessidades que o mesmo consegue assegurar: o arado mais nobre de quanto imediatamente no sejam as satisfaes que o mesmo proporciona e que constituem os objetivos da sua utilizao. O instrumento conserva-se, enquanto que as satisfaes imediatas passam e so esquecidas (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986b, p.453). No por acaso, na Grcia antiga, a honra da inveno humana, que doma a natureza, atribuda aos deuses (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.95).

    Trata-se, porm, de um domnio que est longe de ser ilimitado. Se o dilema que diz que na relao homem-natureza um dos dois est destinado a ceder, provocaria decepo nos seguidores do movimento ecolgico moderno. A observao contida na Enciclopedia suscitaria, ao contrrio, a simpatia: na sua luta o homem consegue vitrias importantes, mas sempre parciais; em relao natureza como tal, a natureza no seu conjunto, o homem no pode nem domin-la neste modo, nem subordin-la para seus fins (CICERA, 1996, p.419, 245).

    Em Hegel, a natureza est to presente que desempenha um papel essencial na prpria definio das categorias centrais do discurso poltico. Tome-se a liberdade. Porque o afamado que corre o risco de morrer de fome encontra-se, por isso, em uma situao de total falta de direitos, de inutilidade de toda a extenso da realizao da liberdade (ILTING, 1973, p.342; ILTING, 1983a, 127), e portanto de substancial escravido (ILTING, 1983b, p.196)? Devido ao fato de que a vida o lado real da personalidade. Somos reconduzidos natureza biolgica do homem, cuja

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    centralidade ulteriormente evidenciada pela afirmao para a qual a vida constitui um direito autntico contrariamente ao direito formal (ILTING, 1983a, 127).

    Tambm a cesso ao empregador de todo o tempo da vida concreta de um operrio, mesmo sendo sancionada por contrato, equivaleria a uma reduo em estado de escravido. Leiamos os Lineamentos de filosofia do direito: com a alienao de todo o meu tempo concreto de trabalho e da totalidade da minha produo, eu tornaria propriedade de outro o elemento substancial da minha produo, a minha atividade e realidade universal, a minha personalidade (ILTING, 1983a, 67).

    Talvez ainda mais eloquentes sejam os trechos correspondentes nas lies: Com a alienao de todo o meu tempo a ser transcorrido no trabalho, tornaria propriedade de um outro a minha atividade e realidade universal, a minha personalidade (ILTING, 1983b, 36). E ainda:

    Portanto, mediante a alienao de todo o meu tempo concreto, preenchido pelo meu trabalho, ou melhor, da produo na sua totalidade, alienado tambm o todo [...]; a minha personalidade , assim, mantida, se for alienada somente uma parte da minha particularidade, limitada no tempo (ILTING, 1973, 254).

    Se nos Lineamentos a pessoa e a liberdade da pessoa so pensadas e definidas a partir da vida, agora so pensadas e definidas a partir do tempo concreto do trabalho e da vida, assim como do conjunto da atividade e da manifestao das foras vitais do homem. O objeto da anlise de Hegel est bem longe de ser o trabalho espiritual, abstrato, mas tal anlise age claramente nos bastidores da celebrao, em termos picos, que O Capital faz da luta para a regulamentao e reduo do horrio de trabalho como luta para a liberdade. Nas palavras de Marx, o operrio organiza-se e esfora-se para no ser reduzido a simples fora-trabalho durante todo o tempo da sua vida, para no se submeter a uma maior reduo do tempo que ele tem para viver (Lebenszeit) (MARX; ENGELS, 1962, p.280-281). O Capital descrevee compartilha a denncia que os operrios ingleses fazem das condies que lhes foram impostas: a durao do tempo de trabalho exigida pelo sistema atual longa demais e no deixa ao operrio nenhum tempo para o repouso e para a educao, alis, o rebaixa a um estado de servido que s pouco melhor que a escravido (MARX; ENGELS, 1962, p.319, nota 196).

    Voltemos, agora, filosofia da histria de Hegel: a histria da liberdade tambm a histria da progressiva libertao do trabalho (material) dos liames da escravido e da servido. No Oriente desptico quase todos so servos (Knechte) para a construo das obras de enorme grandeza (ILTING, 1983a, 167). Na Grcia, onde propriamente inicia a histria da liberdade, a particularidade atinente necessidade [isto , satisfao das necessidades mediante o trabalho material] no ainda acolhida na liberdade, mas excluda e confinada em uma classe de escravos (ILTING, 1983a, 356). Ainda no mundo contemporneo, o operrio desempregado ou invlido que corre o risco de morrer de fome est em condies - como sabemos - de substancial escravido. A histria da liberdade e da libertao do trabalho (material) no est ainda concluda.

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    ser e ser social

    Quando Lnin se depara com o trecho j visto em que Hegel sublinha a referncia do homem natureza externa de maneira prtica, levado a aproximar explicitamente Hegel e Marx sublinhando os acenos em Hegel de materialismo histrico (LNIN, 1969, p.316-317). Sim, mas o que o materialismo histrico? Na Ideologia alem, podemos ler: a conscincia outra coisa no seno o ser consciente, e o ser do homem o seu real processo vital (MARX; ENGELS, 1978, p.26). Vejamos agora a formulao contida no Prefcio de Para a crtica da economia poltica: No a conscincia dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrrio, o seu ser social (gesellschaftliches Sein) que determina a sua conscincia (MARX; ENGELS, 1961, p.8). Poderamos ento formular o problema assim: O que define o materialismo histrico a referncia ao ser ou ao ser social? Obviamente, h uma relao entre um e outro, mas a compreenso dos conflitos sociais e dos processos histricos exige, em primeiro lugar, a anlise do ser social. Diversamente, no teria sentido a tese de abertura do Manifesto do partido comunista, em base ao qual a histria histria das lutas de classe. Por outro lado, apenas assim se pode explicar o fato de a Ideologia alem criticar de idealismo histrico um filsofo que no se cansa de professar o materialismo: quando Feuerbach materialista, para ele a histria no aparece. E, quando considera a histria, no um materialista. Materialismo e histria para ele so totalmente divergentes (MARX; ENGELS, 1978, p.45). Em outras palavras, em Feuerbach a referncia natureza, ao ser natural constante, mas no h a essencial ateno ao ser social, objetividade social. Justamente por causa de tal ausncia, o sujeito constitudo sempre pelo homem em geral e nunca pelos homens histricos reais (MARX; ENGELS, 1978, p.42), pelos homens s voltas com condies materiais de vida historicamente determinadas e colocadas em relaes sociais e em conflitos sociais, tambm estes, historicamente determinados.

    A esse ponto obrigatria a pergunta: Como esto as coisas para Hegel? O mesmo Bloch, o qual o acusa de ter desfeito a objetividade enquanto tal, observa com perspiccia que o que caracteriza o suposto filsofo idealista uma grandiosa reviravolta da ironia [romntica] do sujeito na ironia do objeto (BLOCH, 1967, p.24). O objeto do qual se fala aqui o objeto social, o ser social. Poder-se-ia dizer que o que cadencia o desenvolvimento da Fenomenologia do esprito a progressiva, e sempre mais rica e madura, tomada de conscincia da espessura da objetividade social, da qual no possvel e nem lcito evadir, mesmo quando, alis, principalmente, quando se nutrem projetos ambiciosos de transformao do mundo. Todas as vezes que a conscincia tem a pretenso de impor-se em relao ao ser social, este ltimo acaba ganhando. assim que o curso do mundo (Weltlauf) exercita a sua ironia sobre a virtude (Tugend) e o processo histrico real exercita a sua ironia primeiramente sobre a conscincia honesta (ehrliches Bewutsein), depois, com modalidades diversas, sobre a conscincia nobre (edelmtiges Bewutsein) e, por fim, sobre bela alma (schne Seele). At o fim, Lukcs (1976-1981, p.601) critica Hegel por ter identificado o estranhamento com a objetivao e at mesmo com a objetividade. Assim, estaramos diante de um filsofo que foge da objetividade como se fosse um elemento de

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    contaminao. Mas justamente esta a crtica que Hegel faz a Kant e bela alma. O primeiro est como que paralisado pelo medo do objeto (Angst vor dem Objekt) (MOLDENHAUER; MICHEL, 1969, p.45). J para a alma bela, falta-lhe a fora da exteriorizao, a fora de realizar coisas e de suportar o ser. A conscincia vive na angstia de manchar, com a ao e o existir, o esplendor da sua interioridade; e, para conservar a pureza do seu corao, foge do contato com a realidade (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986a, p.483). Segundo Hegel, a Alemanha do seu tempo a sofrer um tipo de doena nacional que a hipocondria. Sim, a hipocondria o ponto de vista dominante, e este faz com que seja v toda e qualquer objetividade, usufruindo, depois, em si mesma apenas desta fatuidade (LOSURDO, 2001, cap.IV, 3). E, assim, Lukcs atribui a Hegel a doena que este diagnostica e denuncia com tanta fora!

    Vale a pena notar que a ironia hegeliana do objeto profundamente apreciada e assimilada por Marx e Engels, os quais a usam para debochar daqueles que, principalmente depois da derrota de uma revoluo, ao invs de se aprofundar na anlise das contradies objetivas, das fraquezas ideolgicas e dos erros polticos que conduziram a tal resultado, preferem fornecer garantias sobre a bondade e pureza das prprias intenes contrariamente geral vulgaridade e maldade da realidade circunstante e do curso do mundo. Ao condenar esse idealismo histrico como impotente no plano poltico e narcisista no plano moral, Marx e Engels fazem referncia explcita e repetitiva s figuras da Fenomenologia do esprito precedentemente citadas. Chegando concluso que o mundo governado com bem pouca sabedoria, Arnold Ruge e os outros revolucionrios do mesmo tipo no podem deixar de exibir a sua conscincia honesta, ou melhor, a sua conscincia nobre. Na Alemanha, como na Frana, os anos que se seguem a 1848 veem ufanar-se e choramingar a bela alma, que se sente subestimada e incompreendida pela humanidade profana. Mas j o velho Hegel justamente observou que a conscincia nobre se transforma invariavelmente na conscincia ignbil; e, sob um olhar mais atento, a bela alma perde logo a sua pretendida imaculabilidade.3

    Se em Feuerbach a falta de ateno objetividade social vai no mesmo passo, segundo Marx, de uma viso da histria em que no h lugar para os homens histricos reais, ou seja, para homens colocados em bem determinadas relaes sociais e de classes, o contrrio acontece em Hegel: muitssima a ateno reservada, por este ltimo, ao conflito social e sua concreta configurao. Isso vale para a histria antiga assim como para a histria moderna e contempornea. Para limitar-me a um exemplo: no mbito do Antigo regime, a liberdade dos bares (Freiheit der Barone) comporta a absoluta servido (absolute Knechtschaft) da nao e impede a libertao dos servos da gleba (Befreiung der Hrigen). Por isso o povo [...], em todas as partes, libertou-se (befreit) atravs da represso (Unterdrckung) dos bares (LASSON, 1920, p.902-903). A aristocracia percebe a perda do privilgio, que lhe fazia, por exemplo, ser a nica depositria da administrao da justia, como violncia inconveniente, como opresso da liberdade (Unterdrckung der Freiheit) e como despotismo (ILTING, 1983a, 219). Mas - observa Hegel - quando se fala de liberdade, deve-se observar sempre atentamente se no

    3 Cf. MARX; ENGELS (1960a, p.246, 275-276), MARX (1960a, p.185; 1960b, p.493, 496-497) e ENGELS (1977, p.83-84).

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    sejam, na verdade, interesses privados aqueles dos quais se trata (LASSON, 1920, p.902). uma concluso que suscita o interesse e a aprovao de Lnin, em que ele reconhece novamente acenos de materialismo histrico, por causa da devida ateno reservada s relaes de classe (LNIN, 1969, p.316-318).

    o idealisMo Histrico coMo enfraqueciMento ou negao do ser social

    E de novo, tambm aos olhos de Lnin, o materialismo histrico remete em primeiro lugar ao ser social. a viso do ser social, a viso da histria e da sociedade, do terreno artificial (como diz Labriola) em que se coloca a vida do homem, da segunda natureza que constitui o campo de batalha decisivo da luta poltico-ideolgica; mesmo que, depois, seja necessrio dizer que o ser social , por sua vez, condicionado pelo ser natural. Uma viso materialista da primeira natureza, isto , a afirmao da prioridade do objeto em relao ao sujeito, da natureza em relao conscincia, podemos encontr-la tambm no mbito das religies, mas isso no as impediu de se configurar por milnios como instrumento de consagrao e transfigurao idealstica das relaes poltico-sociais existentes. E a viso materialista da primeira natureza caracteriza obviamente Feuerbach, mas isso no o impede de cair no idealismo histrico. Do ponto de vista de Marx (e de Engels), uma crtica anloga pode ser dirigida ao Hegel que vimos limitar, nas zonas temperadas, a rea em que podem emergir os povos histrico-mundiais ou atribuir um notvel peso frgil constituio dos amerndios para explicar a catstrofe infligida pelos seus conquistadores. Tal idealismo, todavia, no de fato sinnimo de consciencialismo. Mas, ento, por que to difundida a interpretao em chave consciencialista? Talvez a resposta esteja em uma observao de Lukcs dos ltimos anos, o qual, depois de ter sublinhado, como sabemos, o extraordinrio sentido da realidade de Hegel, diz que, simultaneamente apropriao dos prprios fatos, ao centro da ateno havia a construo categorial dos mesmos. Basta separar a segunda dimenso da primeira e o jogo est pronto!

    Na verdade, completamente estranho ao consciencialismo, Hegel tambm est bem longe do idealismo histrico. Para perceber isso, basta dar um exemplo. Entre o final do sculo XVIII e as primeiras dcadas do sculo XIX, a cultura e a filosofia poltica no Ocidente tiveram de encarar um problema: Como explicar o diverso desenvolvimento da Frana em relao Inglaterra e aos Estados Unidos? No primeiro pas, depois da revoluo, seguiu-se a contrarrevoluo, a qual abria, por sua vez, o caminho em direo a uma revoluo maior. Os regimes polticos seguiam-se um depois do outro: monarquia absoluta, monarquia constitucional, terror jacobino, ditadura militar, Imprio, repblica democrtica, bonapartismo... E no se conseguia entrever o fim da crise e a estabilizao. Como tudo isso contrastava em modo clamoroso com a evoluo gradual e construtiva dos outros dois pases! E, ento, como explicar esse contraste radical? Autores importantes como Tocqueville e J. S. Mill celebram o robusto senso moral e prtico e o amor da autonomia e da liberdade individual que caracterizariam os anglo-americanos: devido a tais virtudes que eles, em contraposio maldade dos franceses, conseguiriam evitar o horror das guerras civis e salvaguardar a liberdade. Essa explicao cai, pelo menos

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    no que diz respeito a Tocqueville, quando se lembra que nos Estados Unidos a instituio da escravido continua viva e vital poucos anos antes que a Guerra de Secesso provocasse no pas um banho de sangue; e duas dcadas antes que, com o advento da Terceira Repblica, a Frana visse emergir uma slida democracia parlamentar, certamente no menos avanada que a inglesa e a americana.

    Vejamos por ora a leitura de Hegel. As Lies de filosofia da histria evidenciam dois pontos essenciais:

    [1] Os livres estados norte-americanos no possuem nenhum Estado confinante com o qual se encontrem em uma relao anloga quela dos Estados europeus entre si, um Estado ao qual precisem vigiar com desconfiana e contra o qual devem manter um exrcito permanente; [2] a via de sada da colonizao (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.113-114).

    Estes permitem repblica norte-americana eliminar notavelmente o conflito social. Em ltima anlise: se as florestas da Alemanha existissem ainda, certamente no teramos tido a Revoluo Francesa (MOLDENHAUER; MICHEL, 1986c, p.114), ou esta teria se manifestado em modo menos radical e menos sofrido. No diferentemente de Hegel, Engels argumenta que na Amrica do Norte [...] os conflitos de classe apenas se desenvolvem de modo incompleto; as colises de classe so, de tempos em tempos, camufladas com a emigrao para o Oeste da superpopulao proletria (MARX; ENGELS, 1960b, p.288).

    So duas explicaes materialistas. Mas a explicao do primeiro mais rica: faz referncia a um elemento (a colocao geopoltica) que, ao contrrio, est ausente no segundo. Pelo menos, na viso prpria de Hegel, a colocao geopoltica (a vantagem para os Estados Unidos de no ter, em suas fronteiras, grandes potncias tendencialmente rivais) um dado no meramente natural, mas sim mediado pela histria: ou seja, estamos na presena de uma maior articulao do ser social.

    Na contraposio estereotipada que Tocqueville e Mill fazem dos franceses e anglo-saxes, o idealismo histrico reside no esquecimento do ser social e na inveno de um ser natural inexistente. Essa mesma observao pode ser feita para as outras correntes de pensamento que, mais acentuadamente, passam do ser social ao ser de uma pressuposta natureza antropolgica e racial.

    crtica do idealisMo e ontologia do ser social

    Aprendendo com a lio de Marx e Engels, possvel criticarem Hegel e as quedas no idealismo histrico. Mas aqueles que primeiro empenharam-se na sistematizao terica do materialismo histrico esto imunes dessas quedas? Na sociedade comunista almejada por Marx e Engels, juntamente com a diviso em classes, desaparecem o mercado, a nao, a religio, o Estado ou talvez at mesmo a norma jurdica, enquanto tal, sendo suprflua devido ao prodigioso desenvolvimento das foras a ponto de consentir a livre satisfao de todas as necessidades e, portanto, a superao da difcil tarefa da distribuio dos recursos. Uma viso assim est altura do materialismo histrico? Ao se empenhar, seguindo a tradio marxista,

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    na construo de uma ontologia do ser social, o filsofo Lukcs dos ltimos anos adverte justamente sobre um duplo perigo de idealismo histrico: Ou o ser social no foi distinguido do ser em geral, ou foi visto como algo radicalmente diverso no possuindo mais o carter do ser (LUKCS, 1976-1981, p.3). Com a sua insistncia na prxis e na transformao do mundo, o pensamento revolucionrio exposto ao segundo tipo de idealismo histrico. Lembremo-nos de Fichte, que institui um paralelismo entre a sua Doutrina da cincia e a ao enrgica da Frana revolucionria: assim como aquela nao d ao homem a liberdade das correntes externas, o meu sistema o liberta dos vnculos das coisas em si, das influncias externas (LOSURDO, 1997, cap. IV, 1). O jovem Lukcs posiciona-se da mesma maneira que Fichte quando, em 1922, sob a influncia da revoluo que estava agitando o mundo, escreve: O ncleo do ser descobriu-se como acontecimento social, o ser pode aparecer como produto, tendo ficado certamente inconsciente, at agora, da atividade humana, e esta ltima pode, por sua vez, aparecer como o elemento determinante da transformao do ser (LUKCS, 1988, p.26). Aqui transparece tambm aquilo que poderia ser definido como idealismo da prxis.

    Marx e Engels formam-se nos anos em que, de um lado, os ecos da Revoluo Francesa ainda so ouvidos e, de outro lado, j se intraveem os sinais premonitrios da gigantesca onda revolucionria de 1848 que, na esperana dos dois jovens revolucionrios teria colocado em discusso, alm das velhas relaes feudais, tambm o ordenamento burgus. Pode-se compreender muito bem que, na viso do comunismo amadurecida por Marx e Engels, o mercado, a nao, a religio, o Estado tendem, usando a linguagem de Lukcs mais maduro, a perder o carter do ser.

    O ser do ser social pode ser enfraquecido ou negado em duas maneiras diferentes. O que causa tal resultado pode ser, primeiramente, uma viso esquemtica da historicidade, incapaz de distinguir entre durao breve ou durao longa: fora de discusso fica a historicidade das naes e das lnguas nacionais, mas prever a sua extino, mesmo sendo na onda de uma revoluo radical, significa perder a dimenso da durao longa ou ter uma viso distorcida do ser social, configurando-o como uma realidade homognea regulada por um tempo histrico homogneo. E, ao contrrio, realidades to diferentes entre si como, por exemplo, as modas, as instituies polticas, as lnguas nacionais desenvolvem-se com temporalidades radicalmente diferentes entre si, isto , caracterizam-se por um teor ontolgico que, s vezes, diverso.

    Ou o ser do ser social pode estar enfraquecido, ou negado no momento em que se perde de vista quanto de natural continua existindo no mundo histrico e poltico: por mais desenvolvida que possa ser uma sociedade, os indivduos que a compem continuam sendo entidades naturais sujeitas fragilidade biolgica; e tal fragilidade manifesta-se no apenas na doena e na morte, mas tambm nas paixes. Isso faz com que seja impossvel a imediata identificao entre indivduo e gnero, frequentemente sonhada pelas correntes mais messinicas do movimento comunista. A possibilidade de conflito entre indivduos diversos continua a subexistir tambm em uma sociedade livre da diviso e do antagonismo de classes: que sentido h em se falar de extino do Estado ou at mesmo do ordenamento jurdico enquanto tal?

    Os dois processos atravs dos quais se enfraquece ou se anula o ser do ser social podem tambm entrelaar-se: o que se verifica quando se espera o

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    desaparecimento da religio na onda da superao da opresso de classe. Por um lado, tal previso no considera quanto de natural continua existindo na realidade social, perdendo de vista a precariedade da existncia individual e o medo da morte. Por outro lado, escapa, a tal previso, a ligao entre religio e identidade nacional: mais do que ser expresso exclusiva da luta de classe, a religio remonta tambm a uma realidade social (a nao) certamente histrica, mas regulada por uma temporalidade caracterizada por longa durao.

    A histria do socialismo real tambm a histria da dolorosa descoberta da objetividade do ser social. Menos de dois anos depois da exploso da Revoluo de Outubro, Gramsci observa: no profundo abismo de misria, de barbrie, da anarquia, da dissoluo aberto por uma guerra longa e desastrosa apenas os bolcheviques souberam colocar um ponto final; estes, portanto, constituem uma aristocracia de estadistas e Lnin deve ser considerado como o maior estadista da Europa contempornea. Bem se compreende a reao escandalizada de um leitor anrquico do lOrdine Nuovo. Ele mostra que a prpria Constituio sovitica a se esforar para instaurar um ordenamento, onde no existiro mais divises de classes, nem poder do Estado. O Estado russo salvo pelos fatores da extino do Estado: esse no o nico paradoxo na histria do socialismo real!

    A Revoluo de Outubro deveria ter iniciado um processo destinado a concluir-se no desparecimento no apenas das fronteiras estatais, mas tambm das identidades e das fronteiras nacionais. Mas, em maro de 1929, Stalin no pode deixar de observar: a estabilidade das naes grande em medida colossal. Tambm a tal propsito pode-se constatar um paradoxo anlogo quele que acabou de ser visto: no h dvidas que, conferindo um poderoso impulso ao processo de emancipao dos povos coloniais, o movimento comunista tenha contribudo em medida notvel ao reforamento e multiplicao das identidades nacionais. A mesma observao pode ser feita em propsito das lnguas que, mesmo segundo uma viso difundida nos ambientes marxistas e compartilhada tambm por Karl Kautsky, deveria fundir-se, mais cedo ou mais tarde, em uma lngua unitria da humanidade finalmente unificada. E os paradoxos no param por aqui: nas sociedades atrasadas e semifeudais, o desenvolvimento da economia e das foras produtivas promovidas pelos comunistas que chegaram ao poder comportou o desenvolvimento tambm das relaes mercantis e, de qualquer maneira, o advento de um autntico mercado nacional. Em concluso, a prtica real de governo colocava em crise a plataforma terica com a qual, principalmente na Rssia, os comunistas chegaram ao poder. Obviamente, no faltaram as tentativas de remediar, de alguma forma, tal divergncia. A propsito, em 1939, observa um ilustre jurista (Hans Kelsen) que a teoria da extino do Estado de fato abandonada por Stalin, o qual acabara tambm tomando, mais ou menos cautelosamente, distncia da expectativa da fuso final das naes e das lnguas nacionais e da viso, segundo a qual, a produo mercantil seria sinnimo de capitalismo.4

    Enfim, no momento da invaso da Unio Sovitica, por parte do Terceiro Reich, Stalin apelava, com sucesso, Igreja Ortodoxa para que esta apoiasse e fomentasse

    4 Sobre isso, remeto a Losurdo (2008), especialmente: p.66, no que se refere a Gramsci e os anrquicos; p.53, 68 e 117-122, no que se refere a Stalin.

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    a resistncia nacional. Desgraadamente, a (parcial) tolerncia religiosa era apenas uma breve estao. E, todavia, se pensarmos ao Terceiro Mundo, provvel que o movimento histrico ligado a Marx, atravs de mltiplas mediaes e promoo da libertao dos povos coloniais, acabou estimulando o reforamento das identidades religiosas e o renascimento religioso, pelo menos em certas reas do Terceiro Mundo.

    De maneira geral, a adaptao da teoria prxis foi tardia, parcial e contraditria, j que foram enormes os estragos provocados pelo idealismo histrico (e pelo messianismo): a construo, dificultada por um estado de exceo permanente, de um Estado de direito e democrtico, resultava privao e sentido na perspectiva da extino do Estado. Quando eclodiu o conflito entre a Unio Sovitica e a Iugoslvia e entre a Unio sovitica e a China, os antagonistas, partindo do pressuposto comum, pelo qual os dissdios entre as naes desaparecem com o advento do socialismo, acusaram-se reciprocamente de traio. Cada um deles estava convencido de seguir o materialismo histrico, identificando a raiz de classe (o retorno do capitalismo) como fundamento do comportamento criticado no pas adversrio. Porm, na verdade, todos manifestavam o idealismo histrico, perdendo de vista a espessura ontolgica das realidades e individualidade nacionais entre as quais, mesmo depois do advento do socialismo, continuam subsistindo interesses diversos e possveis fontes de conflito.

    A passagem do arranjo at o repensamento terico comea a se delinear somente com a aproximao da queda do socialismo na Europa Oriental. Aqueles que percebem a inutilidade de comportamentos como os de Arnold Ruge e que se recusam a constituir uma nova encarnao das figuras da bela alma, da conscincia honesta e da conscincia nobre, debochadas antes por Hegel e depois por Marx e Engels, chamam a ateno, com maneiras e linguagens diversas, sobre a necessidade de uma ontologia do ser social. Para formular tal exigncia, se pode partir das experincias de governo, ou da reflexo filosfica. Em 1991, Fidel Castro observava: Ns, socialistas, cometemos um erro ao subestimar a fora do nacionalismo e da religio (SCHLESINGER JUNIOR, 1992, p.25). A milhares de quilmetros de distncia, rompendo com a Revoluo Cultural (pela extrema esquerda ocidental, s vezes saudada como o incio ou o possvel incio da extino do Estado), a partir do final dos anos 70 do sculo XX, Deng Xiaoping pedia o empenho para a extenso e o melhoramento do sistema legal e para a introduo do governo da lei no Partido e na sociedade no seu conjunto como condies prvias para um real desenvolvimento da democracia (XIAOPING, 1992-1995, v.2, p.196; v.3, p.166-167). Assim como no significava a extino do Estado, o socialismo no comportava nem o desaparecimento do mercado nem a fuso dos pases envolvidos na construo do novo ordenamento social em uma comunidade livre de tenses e conflitos. Alis conclua o lder chins conversando com Gorbachev na primavera de 1989 , o que provocou o conflito sovitico-chins foi mais o fato de que os chineses no foram tratados como iguais e se sentiram humilhados, do que as divergncias ideolgicas; graas nova conscincia dificilmente adquirida, era possvel virar a pgina (XIAOPING, 1992-1995, v.3, p.287). Mas agora, pelo menos para a Unio Sovitica, era tarde demais, e tambm para a China a situao no era livre de perigos, como demonstrava o incidente da Praa de Tienanmen.

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    Convm reformular e generalizar os dois balanos autocrticos de Castro e Deng. A espessura do ser social do Estado, da nao, da lngua, da religio, do mercado, a essncia de tudo isso que podia desaparecer, foi objeto de subestimao de carter idealstico. Assim, o marxismo revela que precisa de uma ontologia do ser social. um problema percebido com clareza pelo Lukcs dos ltimos anos, neste caso, a partir da reflexo filosfica; mesmo se o livro que ele teria dedicado a tal tema apresenta-se, em grande parte, como uma promessa no mantida: no mbito do marxismo, o Estado, a nao, a lngua, a religio, a multiplicidade das civilizaes, o mercado, as diversas configuraes do ser social esperam ainda para serem indagadas ontologicamente. Podemos nos perguntar se, para cumprir tal tarefa, no seriam de grande ajuda as anlises realizadas por Hegel sobre tal propsito. Aqui o problema pode ser apenas mencionado, mas estou convencido de que, para resolver o problema da reconstruo e reformulao do materialismo histrico, o pensamento de um filsofo que foi obstinado e superficialmente acusado de idealismo pode fornecer uma contribuio essencial.

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    Data da submisso: 14/10/2014

    Data da aprovao: 24/02/2015