O menor abandonado e as políticas de inserção social: Casa ... · que convergiam para...

49
WELSON LUIZ PEREIRA O menor abandonado e as políticas de inserção social: Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953 a 1962. Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa His- tórica do Departamento de História do Se- tor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orien- tadora: Profª. Dr.ª Judite Trindade. CURITIBA 2005

Transcript of O menor abandonado e as políticas de inserção social: Casa ... · que convergiam para...

WELSON LUIZ PEREIRA

O menor abandonado e as políticas de inserção social: Casa do Pequeno

Jornaleiro de Curitiba, 1953 a 1962.

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa His-tórica do Departamento de História do Se-tor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orien-tadora: Profª. Dr.ª Judite Trindade.

CURITIBA 2005

1

Resumo

O objetivo da presente monografia é discutir a política de inserção social realizada pela Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba no período de 1953 a 1962. De maneira mais específica, analisamos as ações e propostas da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba com relação aos meninos abandonados, com base nos relatórios anuais da própria instituição do período citado acima. Desta maneira, problematizar as ações da Instituição em torno dos menores abandona-dos e como estes deveriam ser recuperados: de meninos desviados e futuros delinqüentes a cidadãos úteis a pátria. É interessante ressaltar que a Casa do Pequeno Jornaleiro, primeira-mente criado no Rio de Janeiro e depois em Curitiba, foi criada na década de 1940 e, neste sentido, observar algumas mudanças de ação por parte do Estado na questão do menor aban-donado. Como discussão teórica, vamos utilizar os conceitos de filantropia, estudado por Ir-ma Rizzini, menor abandonado, estudado pelo historiador Londoño, e trabalho, estudado pelo historiador Erivan Karvat. Palavras chaves: Menor abandonado, filantropia e Casa do Pequeno Jornaleiro.

2

Sumário

Introdução _______________________________________________________________ 04

Capítulo 1: Instituições: uma breve análise de sua funcionalidade no início do século XX_ 07

Novo Asilo _______________________________________________________ 09

Juízo de Menores (1923) _____________________________________________ 12

Instituições em Curitiba _____________________________________________ 14

Estado Novo ______________________________________________________ 15

Capítulo 2: Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba_______________________________ 17

Estrutura e serviços especializados da Casa ______________________________ 21

Capítulo III: Casa do Pequeno Jornaleiro: proteger e educar os menores, é um dever de todos

os brasileiros_____________________________________________________________ 29

Trabalho como estratégia na regeneração de menores ______________________ 31

Conceito de Menor _________________________________________________ 36

Caridade e Filantropia _______________________________________________ 40

Conclusão _______________________________________________________________ 45

Fontes __________________________________________________________________ 47

Referências bibliografias____________________________________________________ 48

3

Introdução

Numa foto exposta no jornal Gazeta do Povo de 03 de agosto de 2003, na coluna Nos-

talgia, nos mostra uma situação bastante sugestiva, na qual vários menores, com capas, esta-

vam reunidos na frente do Diário da Tarde. Dois deles seguravam a seguinte faixa: Os jorna-

leiros do Diário da Tarde agradecidos ao povo de Curitiba. Segundo a descrição do colunis-

ta, Cid Estefani, os pequenos jornaleiros estavam recebendo doações de capas, sendo utilizado

como agasalho, no qual percebe-se que os menores estavam descalços. Estefani continua ain-

da: vender jornal era um trabalho realizado por crianças, em sua maioria órfãs e abandonadas.

Na foto nos mostra a situação dos menores em condições não tão favoráveis, pois estavam

descalços, possivelmente eram menores abandonados. A foto é datada em 24 de junho de

1939. Ou seja, a data é anterior a inauguração da Casa do Pequeno Jornaleiro (1943).

Temos outra foto, no mesmo jornal e coluna (entretanto datado em 13 de julho de 2003),

com outra especificidade, no qual pequenos jornaleiros uniformizados, com sapatos, gorros e

portando ao lado esquerdo do corpo os jornais que seriam vendidos. O colunista descreve o

foto da seguinte maneira: os pequenos jornaleiros estão formados na frente do Diário da Tarde

prontos para vender os jornais, a foto é datada de abril de 1944. Percebe-se ainda a maneira

organizada dos pequenos jornaleiros, todos uniformizados e ao contrário da foto anterior nos

mostra uma condição mais favorável.

As fotos citadas, para abrir a introdução, apresentam um diferencial relevante: a data

(1937 e 1944 respectivamente), e em comum o mesmo espaço geográfico (na frente do Diário

da Tarde). O que suscitou tais mudanças é o que pretendemos discutir na presente monografi-

a: a Casa do Pequeno Jornaleiro, mais especificamente a política de inserção social realizada

pela instituição.

Neste sentido, o objetivo da monografia é discutir a política de inserção social realizada

pela Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba. De maneira mais específica, direcionando a nos-

sa problemática, abordaremos as ações e propostas da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba

com relação aos meninos abandonados, com base nos relatórios anuais da própria instituição

do período de 1953 a 1962. Desta maneira, observar as ações da Instituição em torno dos me-

ninos abandonados e como estes deveriam ser recuperados: de meninos desvalidos e futuros

delinqüentes a cidadãos úteis a pátria.

Como fonte, utilizo os relatórios anuais da Instituição no recorte temporal citado, basi-

camente, estes relatórios, tinham como finalidade descrever as atividades desenvolvidas na

4

Casa no que se refere ao menor. E seriam entregues ao ministro dos Negócios do Interior e

Justiça e demais autoridades.

A casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba (Instituição criada em 1943 para abrigar me-

nores abandonados que se destinavam à venda de jornais), segundo os relatórios anuais, apre-

sentava um conjunto de serviços especializados (educação, médico, odontológico e religioso)

que convergiam para transformar menores abandonados em cidadão úteis à coletividade. A

presente monografia foi estruturada em três capítulos.

No primeiro capítulo, realizamos um panorama geral, no qual discutimos as finalidades

de algumas instituições para menores no início do século XX, nos fundamentando principal-

mente nos trabalhos de Irma Rizzini e Elizabeth Amorim de Castro. Abordamos também al-

gumas propostas, de cunho científico (medicina social com base nos preceitos da higiene e da

puericultura), de médicos e juristas na estruturação de modelos de instituições. Tais propostas

criticavam os estabelecimentos existentes de orientação religiosa, asilos de caridade (como

depósitos de crianças). Abordamos, também, em linhas gerais, a criação do Juizado de meno-

res (1923) e a promulgação do Código de menores (1927), pelos quais o Estado começa a

intervir, no campo jurídico, nas instituições de menores. E finalmente abordamos as ações, no

que tange a infância, do Estado Novo (principalmente no início da década de 1940) no qual

são criados órgãos de caráter centralizador, uma política mais nítida de assistência ao menor,

como o SAM (Serviço de Assistência aos Menores) e DNCR (Departamento Nacional da Cri-

ança). Portanto, a finalidade do capítulo era realizar um panorama geral, no qual meu objeto

está inserido.

É interessante ressaltar, os trabalhos da pesquisadora Irma Rizzini que realiza um traba-

lho na Universidade Santa Úrsula, mais especificamente na Coordenação de Estudos e Pes-

quisas sobre a Infância no qual promove discussões e produzem vários trabalhos em torno da

infância no Brasil. Por este motivo, os trabalhos da Rizzini foram de grande relevância para o

presente trabalho.

No capitulo dois abordamos especificamente as ações e os serviços da Casa do Pequeno

Jornaleiro. Que segundo os relatórios anuais, apresentava um conjunto de serviços especiali-

zados – educação (abrangendo o ensino primário), médico, odontológico e religioso – além de

refeitórios, alojamentos e demais serviços que convergiam para transformar menores abando-

nados, futuros delinqüentes em cidadãos fortes, saudáveis, crentes em Deus e úteis a coletivi-

dade, portanto o futuro trabalhador.

Portanto, nos relatórios apontam os detalhes dos serviços especializados da Casa e suas

implicações na recuperação dos menores. Os quais, teoricamente, cumpririam a sua finalida-

5

de, transformar meninos indisciplinados em futuro cidadão útil para a sociedade. Ou seja, os

menores, teoricamente deixando a Instituição, estariam suficientemente alfabetizados e sau-

dáveis, para se inserir na sociedade.

Portanto, o objetivo deste capítulo, foi discutir os serviços da Casa do Pequeno Jorna-

leiro e suas ações sobre o menor. No qual realizamos uma abordagem mais empírica, na qual

foi possível explorar informações pertinentes a minha problemática: como o menor era recu-

perado pela Instituição.

No terceiro capítulo, tentamos realizar uma discussão, de maneira mais verticalizada, em

torno das finalidades da Casa com alguns conceitos: trabalho, menor e filantropia. Ou seja,

para compreender a ação da Casa do Pequeno Jornaleiro analisamos estes três conceitos.

A discussão em torno do conceito de trabalho é compreender se o cidadão útil à coleti-

vidade, destacado nos relatórios, será o futuro trabalhador. Quando me refiro o conceito de

trabalho é a construção ideológica do trabalho, com adjetivações positivas (como lei suprema

da sociedade), o que implica na construção de um outro conceito: da vadiagem, com elemen-

tos ociosos (vadios e mendigos) que representavam a negação do trabalho, rotulados como

seres anti-sociais. O conceito de trabalho foi discutido pelo historiador Erivan Karvat, em sua

dissertação de mestrado: A sociedade do Trabalho: Discursos e práticas de controle sobre a

mendicidade em Curitiba, 1890-1933.

Nos relatórios da Casa, percebemos o valor positivo atribuído ao trabalho, lembrando

que os menores trabalhavam na venda de jornais em horários estabelecidos pela instituição.

Os quais eram vistos como pequenos heróis. Nos relatórios é destacado o Jornaleiro do ano,

ou seja, é o menor abandonado (analfabeto, possivelmente rotulado como desajustado) que

entrou na instituição, através dos serviços da Casa foi recuperado, e ao sair da instituição es-

tava empregado. Tal destaque provavelmente nos mostra que a Instituição cumpriu teorica-

mente sua finalidade: transformar o menor abandonado em cidadão útil, ou melhor dizendo

em cidadão trabalhador.

Portanto, o valor do trabalho também será uma estratégia para transformar delinqüentes

em cidadãos úteis a sociedade. E o menor que habitava nas ruas será rotulado menor vadio,

no qual a Casa sugere algumas medidas contra a vadiagem.

Realizamos também uma discussão em torno do conceito de menor, segundo Londoño,

que nas primeiras décadas do século XX deixou de indicar apenas faixas etárias para designar,

no campo jurídico, as crianças no seu estado de abandono. Ou seja, o menor será as crianças e

adolescentes pobres nas cidades, por não estarem sob a autoridade dos seus pais ou responsá-

6

veis serão chamados, pelos juristas, de abandonados. A rua, segundo os juristas, o espaço que

suscitava a degeneração nas crianças abandonadas e multiplicava as ameaças na sociedade.

Nos fundamentamos, na discussão do conceito de menor, no artigo do historiador, Fer-

nando Torres. Londoño: A origem do Conceito Menor. No qual estuda as mudanças de signi-

ficado da palavra menor em diferentes momentos no Brasil (basicamente séculos XIX e XX).

Ou seja, o autor analisa a historicidade da expressão menor.

Percebemos, nos relatórios da Casa do Pequeno Jornaleiro, a palavra menor atrelada ao

estado de abandono e a rua como espaço de ociosidade no qual os menores iriam contrair ví-

cios e provavelmente, mais tarde, permanecerem nas prisões. Expressões como: abandonado,

delinqüente, vadio, marginal e desajustado estarão associados ao menor. Interessante, segundo

a Casa do Pequeno Jornaleiro, a falta de assistência implicava no abandono das crianças.

No que se refere ao conceito de filantropia científica, que será uma proposta de médicos

e intelectuais, no início do século XX, os quais pretendiam reintegrar, através da higiene, edu-

cação e demais saberes científicos, os desajustados para se integrarem à Sociedade Brasileira.

Portanto, o objetivo da filantropia era qualificar o menor para o trabalho, através da ciência,

evitando, desta maneira, que viesse a aumentar as fileiras dos desocupados.

A filantropia idealizará um novo asilo – um asilo exemplar, idealizado pelos especialis-

tas (médicos, juristas e intelectuais) – para transformar os velhos asilos de cunho religioso (no

início do século), com métodos racionalizados, os quais deveriam, em tese, transformar meno-

res delinqüentes em cidadãos úteis e dóceis para serem inseridos na sociedade ordeira.

A discussão em torno do conceito de Filantropia nos fundamentamos no trabalho de Ir-

ma Rizzini: Assistência à Infância n Brasil: Uma análise de sua construção.

Neste sentido, levantamos a seguinte hipótese: se os serviços especializados da Casa do

Pequeno Jornaleiro apresentavam, em 1953, uma base ideológica da filantropia científica do

início do século XX. Ou seja, a proposta dos especialistas do início do século iria, de alguma

forma, servir de base para a configuração de instituições após a década de 1940, tendo como

exemplo a Casa do Pequeno Jornaleiro? De certa maneira, os serviços especializados da Casa,

se aproximam muito da proposta da filantropia do início do século XX.

7

Capítulo 1: Instituições: uma breve análise de sua funcionalidade no início do século XX.

Pretendemos analisar neste capítulo, as finalidades de algumas instituições para meno-

res no início do século XX, estudado por alguns autores. É relevante, antes de analisar a Casa

do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, observar o processo pelo qual se passava nessas institui-

ções. Neste sentido, verificar em que medida esse processo (com propostas ideológicas na

reconstrução de novas instituições com orientações científicas) influenciou a configuração da

Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba.

Nas primeiras décadas da República Brasileira, inaugura-se uma nova era de preocu-

pações com a infância desvalida e viciosa, cuja tônica higienista, nas discussões e nas ações

assistencialistas, é evidente e marcante. Entretanto, a assistência pública para a infância surge

como uma espécie de caridade oficial, expressão pejorativa, de Ataulpho de Paiva em 1903,

que denunciava a desorganização da assistência pública neste momento. Neste sentido, as

críticas, que vai de 1903 a1922, se referem à falta de organização do Estado e Municípios

frente ao problema da assistência. Que segundo Paiva produzia efeitos nefastos e degenerava

a raça.1

Neste contexto, a assistência oficial segue a tradição das práticas caritativas, constitu-

indo-se a partir da criação de instituições do tipo internato. Com o objetivo de recolher e

educar os menores abandonados e viciosos, surgem os institutos, os reformatórios e as esco-

las correcionais. Portanto são novas denominações do antigo asilo que indicam transforma-

ções na concepção da assistência, destinada, agora, a prevenir as desordens e recuperar os

desviantes. 2

Rizzini analisa as instituições para menores da cidade do Rio de Janeiro no início do

século XX, incluindo ainda instituições estatais de São Paulo e Minas Gerais, com base nos

relatórios de juízes e comissários de menores da Capital Federal e também da pesquisa de

Ataulpho de Paiva em 1913, encomendada pela prefeitura do Rio de Janeiro. Rizzini analisa,

quantitativa e qualitativamente, 33 instituições que abrigavam órfãos, menores desvalidos,

delinqüentes e viciosos, abordando a origem (religiosa, particular e estatal), clientela atendida

(sexo, idade, origem social e crimes) e as finalidades destas instituições.3

1 RIZZINI, Irma. Meninos Desvalidos e Menores Transviados: A Trajetória da Assistência Pública até a Era Vargas. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A História das Políticas Sociais, da Legislação e da Assis-tência à Infância no Brasil. Editora Universitária Santa Úrsula: Rio de Janeiro, 1995. p. 245 a 246. 2 Ibid., p. 246. 3 RIZZINI, Irma. Assistência à Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed. Uni-versitária Santa Úrsula, 1993. p. 61.

8

Destas instituições, 23 eram de procedência privada e 10 eram estatais. Entres as insti-

tuições particulares, 7 recebiam auxílio financeiro (federal ou municipal) e 16 foram fundadas

ou eram administradas por entidades religiosas (católicas). As instituições apresentavam tam-

bém uma classificação para os seus internos segundo sua origem social, práticas contra a so-

ciedade e critérios de sexo e idade. Portanto, são classificações que determinam a divisão da

clientela de cada instituição.4

Ressaltando que, na origem social dos internos, 10 instituições recebiam somente crian-

ças pobres. 10 instituições amparavam crianças abandonadas e desvalidas e 4 recebiam delin-

qüentes e viciosos. Segundo Rizzini, essas informações são um indicador da preocupação da

sociedade em prevenir a criminalidade, procurando educar as crianças desvalidas para poste-

riormente devolve-las validas por sua capacidade produtiva para a sociedade.5

Havia também uma divisão de clientela em três tipos de instituições. As instituições re-

ligiosas atendiam basicamente órfãs e meninas e moças desvalidas. As instituições mantidas

pelo Estado atendiam os menores delinqüentes, viciosos e abandonados do sexo masculino.

Nos estabelecimentos particulares, sem vínculo religioso, atendiam uma clientela mais ampla,

como órfãos, abandonados e desvalidos de ambos os sexos.

No que se refere a faixa etária, 12 instituições trabalham com a faixa etária que poderia

ir dos 5 anos aos 18 anos (ou até 21 anos). Rizzini argumenta que a utilização da faixa etária

(da pré-adolescência até a fase adulta) por parte dessas instituições demonstra a preocupação

dos seus fundadores com a educação, principalmente profissional, dos seus internos.6

A maioria das finalidades, 24 instituições, era a educação e a formação profissional dos

internos. Para meninas abandonadas (9 instituições) era dada ênfase à educação voltada ao

trabalho doméstico pela qual se pretendia formar futuras criadas e esposas. Parte das institui-

ções de amparo a meninas eram de origem religiosa, nas quais seu objetivo era a educação

moral mesclada com o objetivo econômico. Exemplo citado por Rizzini era a instituição Ór-

fãs Brancas do Colégio Imaculada Conceição, cujo objetivo era a educação religiosa, moral e

o trabalho das futuras empregadas domésticas e dona de casa.7

Nos estabelecimentos para os meninos abandonados era enfatizada a educação industri-

al e agrícola, ressaltando o amor ao trabalho. Portanto, a justificativa econômica se alia a

justificativa moral (amor ao trabalho). Rizzini cita um exemplo de instituição que articulou

essas duas justificativas, o Instituto de Educandos Artífices (SP) cuja finalidade, segundo seu

4 Ibid., p. 61 e 62. 5 Ibid., p. 62. 6 Ibid., p. 62 e 63. 7 Ibid., p. 63.

9

regulamento, era facilitar aos meninos pobres e desvalidos a sua educação industrial, impe-

dindo assim que por falta dela se desviassem do amor ao trabalho e se tornassem maus e

prejudiciais cidadãos.8

Entretanto, havia instituições (Casa de Correções, Colônia Correcional Asilo da Mendi-

cidade) que se preocupavam em apenas recolher menores delinqüentes e viciosos (considera-

dos perigosos ao convívio social) e menores abandonados e órfãos (por não disporem de ne-

nhum meio de sobrevivência na sociedade).9

Nesse contexto (primeiras décadas da República), o isolamento ainda era um objetivo

importante para as instituições, expressos pela quantidade expressiva de estabelecimentos que

se destinavam explicitamente a esta finalidade. Parte dessas instituições, entretanto, eram alvo

de várias críticas, forçando o fechamento de algumas e transformações de outras.

Portanto, os asilos eram combatidos, inicialmente, em favor do reconhecimento da fa-

mília como meio ideal para a criação de crianças. Entretanto, havia ressalvas – no sentido de

aceitar em algumas circunstâncias – da necessidade dos asilos em recolher menores moral-

mente abandonados e os delinqüentes oriundos de famílias de moral duvidosa, onde predomi-

navam as doenças e vícios – neste caso, exerciam funções opostas do esperado e as crianças

deveriam ser afastadas do convívio de seus familiares para evitar o seu efeito contaminador.10

Críticas feitas pelos idealizadores da assistência, do início do século XX, sobre as insti-

tuições de internamento também se referem à falta de promoção da educação da criança e sua

preparação para o futuro. As instituições de caridade também serão alvo de várias críticas por

parte de médicos e intelectuais por não corresponderem aos princípios científicos, no trata-

mento dos menores.11 Portanto, neste momento, os intelectuais – além de criticar os asilos de

caridade existentes como depósitos de crianças, vão propor modelos de assistência com ori-

entações científicas, métodos capazes de recuperar os menores desvalidos.

Novo Asilo:

O novo asilo será projetado pela medicina social na qual será a primeira investida das

ciências nos asilos para menores, ajudando a compor o projeto de medicalização das institui-

8 Apud id. 9 id. 10 Ibid., p. 68. 11 RIZZINI, Irma. Meninos Desvalidos e Menores Transviados: A Trajetória da Assistência Pública até a Era Vargas. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A História das Políticas Sociais, da Legislação e da Assis-tência à Infância no Brasil. Editora Universitária Santa Úrsula: Rio de Janeiro, 1995. p. 248 e 249.

10

ções. Pelos quais especialistas acreditavam ser uma opção economicamente mais favorável e

politicamente seria um meio eficaz de propaganda das ações do Estado e da filantropia.12

Entretanto, o projeto do novo asilo, que surge no final do século XIX, não será absorvi-

do pelo Estado como uma política social publicamente assumida e também não provocou

transformações na prática institucional dos asilos existentes. Nas décadas de 1920 e 1930, no

entanto, percebemos a implantação das novas idéias em algumas instituições, como instituto

João Pinheiro de Minas Gerais e o Instituto Disciplinar de São Paulo.13

O Instituto João Pinheiro fundado pelo Governo de Minas Gerais em 1909, segundo

Rizzini, era um asilo exemplar, idealizado pelos intelectuais da época sobre infância, situado

na área rural. Segundo seu diretor, foi uma instituição pioneira no atendimento de menores

carecedores do socorro público, correspondendo, na época, aos anseios da sociedade pela

criação de estabelecimentos funcionais, disciplinados, segundo parâmetros científicos, admi-

tindo uma clientela constituída por menores abandonados material ou moralmente. O objetivo

do Instituto João Pinheiro, era regenerar os inadaptados e prevenir as suas faltas, recorrendo

ao tratamento preventivo e regenerativo, compreendendo a educação física, a moral, o civis-

mo, o preparo intelectual e profissional.14

Entretanto, a instituição modelo, Instituto João Pinheiro, não prossegue seus serviços

após 1930 e também não foi amplamente divulgado para outros estados, conforme indagação

de Rizzini. Na qual a autora levanta três suposições para responder a sua indagação: a falta de

recursos do próprio Governo; os conflitos internos eram de certa maneira escamoteados em

nome de um modelo harmonioso; e, por fim, a crença equivocada na qual a sociedade estaria

preparada em receber os ex-internos.

A instalação de estabelecimentos para menores, com critério básico, será a garantia da

salubridade tanto no espaço interno como no externo. O médico Moncorvo Filho propunha

um estabelecimento bem arejado, bem iluminado e amplo para se evitar doenças, o combate

ao alcoolismo e a miséria com proveito de alimentos, de luz e tranqüilidade de espírito.15

Os regulamentos, projetos e propostas para criar instituições para menores (novo asilo)

estarão voltados ao processo de redistribuição urbana, ao abrigar crianças que não se encai-

xam na cidade saneada. Neste sentido, a sua clientela será, nas primeiras décadas do século 12 RIZZINI, Irma. Assistência à Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed. Uni-versitária Santa Úrsula, 1993. p. 68 e 69. 13 id. 14 RIZZINI, Irma. Meninos Desvalidos e Menores Transviados: A Trajetória da Assistência Pública até a Era Vargas. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A História das Políticas Sociais, da Legislação e da Assis-tência à Infância no Brasil. Editora Universitária Santa Úrsula: Rio de Janeiro, 1995. p. 252 a 253. 15 Apud RIZZINI, Irma. Assistência à Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed. Universitária Santa Úrsula, 1993. p. 69.

11

XX, menores abandonados e delinqüentes. E serão reclassificados, segundo regulamento das

instituições, conforme as finalidades de cada uma, de forma a racionalizar a ocupação do

espaço e o tratamento a ser dado, que seria diferenciado para cada classe de menor.

O projeto de criação do Instituto Educativo Paulista (1909) recomendava a divisão dos

menores em três classes com diferentes níveis de tratamento: os menores criminosos ficariam

na primeira classe, isolados; os menores abandonados poderiam trocar de classe conforme

sua evolução e merecimento. 16

A Escola Correcional Quinze de Novembro, 1903, atendia apenas, pelo seu regulamen-

to, menores abandonados, dividindo-os em dois grupos (por idade): maiores de nove anos e

menores de nove anos (com tratamento diferenciado para cada grupo). Portanto, os idealiza-

dores desta instituição vão propor a divisão por faixa etária, estabelecendo a idade de 9 anos

como limite diferenciador do menor. 17

O abrigo de Menores (1924), em seu regulamento, vai propor a classificação dos meno-

res em quatro grupos, como critério o tratamento a ser realizado. Os grupos eram:

a) Menores que precisam de maior observação; b) menores que, pela sua de-generação ou por seu estado mórbido, precisavam de tratamento hospitalar em vez de escolar; c) menores que, pelo seu estado de fraqueza ou doença, precisavam de cuidados especiais, antes de se sujeitarem a regime educativo e disciplinar; d) menores em condições de admissão imediata ao regime pe-dagógico-correcional.18

Portanto, o critério de classificação será o grau de degenerescência do menor. Que se-

gundo Rizzini, neste contexto, a teoria da degenerescência – herança pelos descendentes de

doenças físicas e morais – era amplamente aceita nos meios intelectuais e filantrópicos, co-

meça a ser absorvida explicitamente pelas instituições de atendimento ao menor. 19

Rizzini discute com Foucault sobre o espaço disciplinar e suas necessárias divisões para

obter o controle necessário – controlar as presenças e as ausências, vigiar os contatos, as co-

municações e o comportamento de cada indivíduo. Neste sentido, o regime celular será a me-

lhor estratégia para o estabelecimento do espaço disciplinar. No qual, será a melhor maneira,

segundo autores brasileiros da época, de regenerar menores delinqüentes – a ausência de

companhia implicava em uma saudável meditação.

16 Ibid., p. 72. 17 id. 18 id. 19 id.

12

Entretanto, o conceito de regime celular não será aplicado na sua totalidade nos projetos

do novo asilo. Mas, serão utilizados derivações do regime celular, com divisão dos menores

internos em pequenos grupos. A Escola Correcional Quinze de Novembro, segundo seu regu-

lamento (1903), proíbe dormitórios grandes (tipo caserna), devendo os internos permanecer

em pequenos grupos sob vigilância. Ou seja, a divisão em pequenos grupos permite que os

internos sejam investigados, estudados, analisados. No qual a vigilância terá um grau de deta-

lhamento e sofisticação surpreendente. 20

Portanto, a idealização de um novo asilo – um asilo exemplar, idealizado pelos especia-

listas na época –, será proposto para transformar os velhos asilos (no início do século), com

métodos racionalizados, os quais deveriam, em tese, transformar menores delinqüentes em

cidadãos úteis e dóceis para serem inseridos na sociedade ordeira.

É interessante ressaltar, neste contexto, o surgimento de colônias, patronatos, institutos

agrícolas e estabelecimentos industriais, com novas idéias e teorias sobre a recuperação do

indivíduo pelo trabalho e pela vida ao ar livre. Ou seja, estas instituições, principalmente as

colônias agrícolas, se basearam no sistema assistencial psiquiátrico do início do século XX,

tendo como característica fundamental o regime do open-door – princípio da máxima liberda-

de possível, contrapondo ao sistema de isolamento (considerado incapaz na recuperação dos

delinqüentes pois o isolamento os irrita), pela qual a ilusão de liberdade tranqüiliza os delin-

qüentes, tornando-os mais passíveis de serem disciplinados para o trabalho.21

Juízo de Menores (1923):

Com a criação do Juízo de Menores em 1923 e a promulgação do Código de Menores

em 1927, o Estado começa a intervir nas instituições para menores, através dos juízes – inter-

venção no campo jurídico. A sua implicação no funcionamento das mesmas provoca modifi-

cações, pela qual, em 1930, as instituições passam a ser divididas em oficiais, semi-oficiais,

particulares com subsídio do Estado – estas categorias de instituição recebiam menores enca-

minhados pelo juiz e, além de sofrerem fiscalização, o regime administrativo e técnico sofria

imposição da instância jurídica – e particulares sem subsídio – estas estavam sujeitas apenas à

fiscalização.

Entretanto, a intervenção dos Juízes de menores, como órgão centralizador, não era uma

proposta nova. Intelectuais, tais como: Franco Vaz, Ataulpho de Paiva, Evaristo de Moraes e

20 Ibid., p. 72 a 73. 21 Ibid., p. 70.

13

Moncorvo Filho, desde o início do século XX, já defendiam a criação de instituições específi-

cas para o atendimento da população. 22

As instituições particulares, até então funcionavam de maneira independente (sem in-

tervenção estatal), passaram a ser alvo de interesse do Estado, com a sua autorização legal

para fiscaliza-las. Segundo Rizzini, será um indicador importante do crescente interesse do

Governo nas questões relativas à regeneração e à reeducação da infância abandonada e de-

linqüente.

As instituições oficiais eram mantidas pelo Governo Federal, e eram subordinadas ao

Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Ressaltando que a Casa do Pequeno Jornaleiro de

Curitiba, criada em 1943, apresentava o relatório de suas atividades para o Ministro dos Ne-

gócios do Interior e Justiça.

As instituições semi-oficiais eram mantidas pelo Estado e gerenciadas por associações

civis, por delegação permitida pelo Código de Menores. Os estabelecimentos particulares

contratados ou apenas auxiliados pelo Governo Federal eram subordinados ao Ministério da

Justiça.

Neste sentido, o Juízo de Menores oficializara a participação dos métodos científicos

na assistência ao menor, através da criação do Laboratório – este tinha por objetivo exami-

nar e classificar os menores por seus profissionais lotados, de modo a fundamentar as deci-

sões do juiz quanto ao encaminhamento de menores. O juiz pretendia também obter um con-

trole direto sobre a vida diária das instituições, principalmente ao desenvolvimento pedagó-

gico e psicológico de cada menor.23

A psicologia terá, neste momento, um papel importante para fundamentar o estudo do

menor realizado basicamente por médicos e educadores pelos quais utilizarão instrumentos e

conceitos da psicologia para o enquadramento do menor em categorias classificatórias.

Entretanto, apesar da introdução de métodos científicos na assistência oficial ao menor,

os juízes de menores criticavam que não havia a devida continuidade entre a atuação do La-

boratório e a assistência posteriormente dada ao menor. O laboratório classificava o menor,

segundo critérios científicos, mas este, não raro, era encaminhado para estabelecimentos onde

os menores viviam em promiscuidade, sob um regime repressivo.

22 RIZZINI, Irma. Meninos Desvalidos e Menores Transviados: A Trajetória da Assistência Pública até a Era Vargas. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A História das Políticas Sociais, da Legislação e da Assis-tência à Infância no Brasil. Editora Universitária Santa Úrsula: Rio de Janeiro, 1995. p. 258. 23 Ibid., p. 65

14

Rizzini expõe uma crítica contundente do Juiz Sabóia Lima ao apresentar, em 1938

(portanto no início do Estado Novo), um memorial ao Presidente da República (Getúlio Var-

gas) sobre:

a situação dos institutos de proteção à infância abandonada e delinqüente, em que constata a total falência do regime administrativo e educativo dos es-tabelecimentos. É feito um estudo minucioso dos institutos subordinados ao Juízo de Menores, principalmente dos oficiais, considerados os mais pro-blemáticos. Na escola João Luiz Alves, por exemplo. S. Lima constatou que os problemas eram muitos: custo elevado por aluno; funcionalismo excessi-vo para um pequeno número de abrigados; burocracia enorme e nomeações por influência política. 24

Ou seja, são problemas, apontados pelos juízes, de ordem moral e técnico-pedagógico –

causados basicamente por nomeações de cidadãos incapazes para ocupar o cargo que foram

designados ou por conveniências políticas e favoritismo oficial de diretores. Problemas admi-

nistrativos decorre da incapacidade administrativa dos diretores. A falta de recursos e gêne-

ros de baixa qualidade compromete a estrutura material dos estabelecimentos.25

Instituições em Curitiba:

Para observar algumas instituições em Curitiba, o trabalho de Elizabeth Amorim de

Castro: A arquitetura do isolamento em Curitiba na República Velha. Na qual analisa a arqui-

tetura de algumas instituições em Curitiba, no período citado, e sua implicação no controle de

delinqüentes e indesejáveis para a modernização de Curitiba no contexto republicano.

Até a década de 1920, a Igreja Católica ainda tomava a iniciativa da assistência a infân-

cia abandonada. Castro cita o Asilo São Luiz que foi aberto, em 1919, pelo Bispo da Diocese

de Curitiba, devido à existência de muitas crianças órfãs, cujos pais foram vítimas da epide-

mia de gripe espanhola. 26

Neste momento, entretanto, as instituições sociais já não conseguiam atender a deman-

da cada vez maior de carentes a procura de seus serviços. Na qual a sociedade curitibana pas-

sou a cobrar do governo uma ação mais efetiva em relação à assistência social. Além disso,

os modelos assistenciais, neste contexto, já não correspondiam às aspirações sociais de cor-

reção do indivíduo. Castro cita a Penitenciária e o Asilo Nossa Senhora da Luz pelos quais

apresentavam problemas de superlotações. Os orfanatos do Cajuru e São Luiz, como objetivo,

24 Ibid., p. 66. 25 id. 26 CASTRO, Elizabeth Amorim. A arquitetura do isolamento em Curitiba na República Velha. Curitiba: Maxigráfica e Editora Ltda, 2004, p. 33.

15

apenas abrigavam e protegiam crianças abandonadas e não a educação pelo e para o traba-

lho.

Na década de 1920, no governo de Caetano Munhoz da Rocha, há uma definição e es-

truturação no serviço social do Estado do Paraná. Castro cita a criação do Patronato Agrícola,

em outubro de 1920, no qual prestava a assistência profissional para criança desvalida. Ou

seja, como objetivo o trabalho no processo de aprendizagem, desta maneira, afastando as cri-

anças das veredas do mal e tornando-as úteis à sociedade a si mesmas.

Outras instituições e órgãos, em 1926, são criados: a sede do Juizado de Menores, A-

brigos de Menores e as Escolas de Preservação e de Reforma. Os quais, os abrigos, destina-

vam-se ao recebimento provisório de crianças abandonadas, as quais aguardavam a decisão

judicial sobre seus destinos. Nas Escolas de Preservação eram destinadas, por ordem do juiz

competente, a dar educação física, moral, profissional e literária aos menores de 7 a 18 anos.

Finalmente, nas Escolas de Reforma, tinha como objetivo regenerar (pelo trabalho), educar e

instruir menores de mais de 14 anos e menos de 18 anos que forem julgados e encaminhados

pelo juiz de Menores.27

Neste sentido, crianças abandonadas, além de criminosos, loucos, mendigos e doentes,

teoricamente longe das ruas, estariam em abrigos seguros, modernos – fundamentados com

normas rígidas, disciplina e trabalho – os quais seriam corrigidos e, desta maneira, poderiam

contribuir para o desenvolvimento e o progresso do País. 28

Estado Novo:

No início da República, enquanto o Governo não assumia um planejando para implan-

tar um serviço de assistência eficaz, intelectuais e médicos vão propor modelos de assistência

pública à infância, baseados nas experiências estrangeiras. Os projetos, de um modo geral,

com teor científico, para organização da assistência pública começaram a surgir desde o início

do século XX. Entretanto, a descentralização da justiça e dos serviços públicos foi instituída

nas primeiras décadas do Governo Republicano, que tratou de implantar o sistema federativo.

Na qual converteu as antigas províncias do Império Brasileiro em Estados autônomos, com

direito de decretar a sua própria constituição e eleger os seus próprios governos. O que será

alvo várias críticas de intelectuais da época sobre a descentralização dos serviços públicos,

como o médico Moncorvo Filho, em 1922, insistia na idéia impiedosa e urgentíssima neces-

27 Ibid., p. 34. 28 Ibid., p. 35.

16

sidade da organização da assistência pública, cuja existência se resumia a movimentos dis-

persivos, levados a efeito sem uma orientação harmônica, sem uma direção.29

Entretanto no Estado Novo, contexto pelo qual o nosso recorte empírico se encontra,

são criados órgãos de caráter centralizador. No qual o governo federal inaugurou uma política

mais nítida de proteção e assistência ao menor e a infância, representada pela criação de

órgãos federais que se especializaram no atendimento à essas duas categorias, menor e cri-

ança, neste momento indiscutivelmente separadas. Ou seja – até então a assistência pública

para menores eram tratados pela esfera jurídica (juízes de menores) e pela atuação isolada de

algumas instituições para menores – o Governo Vargas, em 1941, tomou a iniciativa de criar

um órgão que deveria centralizar a assistência ao menor, inicialmente no Rio de Janeiro, e

posteriormente, em 1944, no restante do território nacional.30

Segundo Rizzini, a criança pobre e sua família passaram a ser objeto de diversas ações

do Governo Vargas no início da década de 40. Criando uma política de proteção materno-

infantil, tendo como objetivo a preparação do futuro cidadão. Ou seja, formar trabalhadores

como capital humano, através do preparo profissional e o respeito à hierarquia pela educação

da criança.31

Neste sentido, ao analisar as finalidades da Casa do Pequeno Jornaleiro, observamos

uma relação estreita dos propósitos da Casa com as propostas mais amplas, do contexto do

Estado Novo. Pois a Casa é criada em 1940, primeiramente no Rio de Janeiro, e depois em

Curitiba, dentro desta ótica assistencialista do governo Vargas.

29 RIZZINI, Irma. Meninos Desvalidos e Menores Transviados: A Trajetória da Assistência Pública até a Era Vargas. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A História das Políticas Sociais, da Legislação e da Assis-tência à Infância no Brasil. Editora Universitária Santa Úrsula: Rio de Janeiro, 1995. p. 255. 30 Ibid., p. 275. 31 id.

17

Capítulo 2: Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba

É relevante, antes de discutir as propostas e ações da Casa do Pequeno Jornaleiro, des-

crever a estrutura de funcionamento e a fundação da Casa para melhor compreende-la e anali-

sar as suas implicações na assistência do menor carente do sexo masculino, conhecido na é-

poca como pequeno jornaleiro ou simplesmente jornaleiro.

No natal do ano de 1942 foi lançada a pedra fundamental da Casa do Pequeno Jornalei-

ro em terreno central de Curitiba, – rua Saldanha Marinho número 155 – cuja doação foi feita

pelo Governo do Estado do Paraná (pelo então Interventor Manoel Ribas). A sua inauguração

foi levada a efeito precisamente um ano após o lançamento da Pedra fundamental, em 25 de

dezembro de 1943.32

Segundo o próprio relatório citado anteriormente, a inauguração foi solene e festivo,

tendo comparecido as mais altas autoridades Federais, Estaduais e Municipais, bem como

Eclesiásticas 33. Também o jornal Gazeta do Povo publica e descreve, no meio de vários arti-

gos sobre a 2ª Guerra Mundial, os programas das festividades, conforme o próprio artigo:

Para a inauguração da Casa do Pequeno Jornaleiro, foi organizado expressi-vo programa de festejos, cuja execução obedece-à a seguinte ordem: A’s 7 horas – Concentração dos jornaleiros na sede da rua Saldanha Mari-nho; A’s 8 horas – Missa solene na Catedral metropolitana, em ação de gra-ças, oficiada por D. Atico Euzébio da Rocha; A’s 9 horas – Hasteamento do Pavilhão Nacional, na fachada principal da sede da Casa do Pequeno Jorna-leiro; A’s 9,15 horas – Benção do edifício, por D. Atico Euzébio da Rocha, Arcebispo Metropolitano; A’s 9,30 horas – Café no refeitório da Casa do Jornaleiro, servindo ás autoridades. Depois de ser servido o café, dar-se-à a instalação da Casa do Pequeno Jor-naleiro, que entrará assim a prestar sua assistência aos pequenos vendedores de jornais. Concretizada essa cerimônia, os jornaleiros, formados e puxados pela banda de musica e de tambores da Força Policial do Estado e devidamente unifor-mizados, desfilarão pelas principais ruas da cidade, em seguida, para a Grande Exposição de Curitiba, onde inaugurarão o magestoso pavilhão de Ministério da Justiça.34

32 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 29. Neste relatório, também, descreve que o prédio, da Casa do Pequeno Jornaleiro, possui três andares de alvenaria e de perfeito acabamento, construído para atender as finalidades da Casa, e, segundo o relatório contribuindo para a festa do centenário da emancipa-ção política do Paraná (1953), passou por processo de ampliações, três metros de frente, dezesseis metros de fundos e com três andares, perfazendo uma área de 144,90m2. 33 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 29. 34 A grande data dos pequenos vendedores de jornais. Gazeta do Povo.Curitiba. 25 de dezembro de 1943. Ano XXV. Nº 7120.

18

E, também, o jornal Diário da Tarde, além de descrever as atividades, nos oferece in-

formações sobre a estrutura física da Casa com todo o conforto, com ventilação natural, ser-

vida por três andares, que comportam dormitórios, almoxarifado, cozinha, sala de aulas,

gabinete médico e dentário, serviço sanitário, além de uma sala de recreio e outras instala-

ções, destinadas á administração. 35 No mesmo artigo, o jornal expõe também o objetivo da

Casa, que se destinava a abrigar os jornaleiros pobres, ensinando-os, carinhosamente, a eco-

nomizar e prestando-lhes toda a assistência. 36

Mais adiante, o jornal ressalta a simplicidade da Casa, mas movida pela bondade de sua

fundadora, conforme trecho:

Sem as prerrogativas de um edificio suntuoso, onde tapetes caros e moveis de alto preço ao invés de levarem o garoto a sentir-se como em sua propria casa, dele o afastam, a aludida instituição, criada pelo coração generoso da sra. Anita Ribas, será, sem duvida, o lar de muitos pequeninos que lutam de sol a sol pelo pão de cada dia, amassando ás vezes, nos reconcavos dos seus lares humildes, com o fel de suas lagrimas de revolta contra o mundo que os fez tão infelizes ... Agora, porem, assistidos por aquela instituição, eles serão mais felizes, viverão mais alegres, encontrando no carinho dos que rodeiam, na assistencia que lhes for prestada, aquilo que os filósofos chamam “a razão de viver”, “o motivo da propria vida” ... E subirão aos céus preces de gratidão, por todos quantos contribuiram para a sua felicidade, para a construção da “Casa do Pequeno Jornaleiro”, a obra magistral da senhora Anita Ribas, que veio concretizar os anseios de tantos pequeninos sem lar, sem carinho ...37

A Casa do Pequeno Jornaleiro foi reconhecida e declarada como utilidade pública, pelo

decreto de 28 de Março de 1945, pelo Presidente da República, na época Getúlio Vargas. E

mantinha cerca de cinqüenta menores dos menos favorecidos pela sorte, dando preferência

aos mais necessitados ou órfãos. Destacando, também, as condições de aumentar o seu efeti-

vo, uma vez [que] a venda de jornais exigia essa providencia. 38

As finalidades da Casa, neste sentido, segundo o relatório, eram proporcionar:

toda a assistencia aos seus internados, como seja: alimentar sadia, com sufi-ciencia não racionada; - Assistência Escolar; Assistencia Medica; - Assisten-cia Dentaria; - Assistencia Religiosa. Para isso dispõe de ampla e arejada Sala de aulas, - Dedicada e competente Médica, com Gabinete aparelhado; - Dentista permanente bem aparelhado e bastante capaz, dispondo de um Gabinete Dentário bem aparelhado com Ca-

35 “Casa do Pequeno Jornaleiro”. Diário da Tarde. Curitiba. 27 de dezembro de 1943. Ano 45. Nº 14894. 36 “Casa do Pequeno Jornaleiro”. Diário da Tarde. Curitiba. 27 de dezembro de 1943. Ano 45. Nº 14894. 37 “Casa do Pequeno Jornaleiro”. Diário da Tarde. Curitiba. 27 de dezembro de 1943. Ano 45. Nº 14894. 38 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 30.

19

deira Moderna; - Lndissima [sic] Capela com duas professoras religiosas da Escola de Assistencia Social e Colegio Divina Providencia, Refeitório , Co-zinha, Copa, Amplo e Arejado Dormitório, Engraxataria, Almoxarifado, Serviços Higiênicos diversos com Privadas? [sic] Banheiros e Chuveiros etc.39

Ou seja, a proposta da Casa era amparar os menores abandonados desprotegidos pela

sorte – crianças que se dedicavam á venda de jornais e revistas – oferecendo, em um ambiente

de labôr honesto, uma “ASSISTENCIA DE FAMILIA”, assistência moral, intelectual, materi-

al. Não propor caridade, mas apontar as implicações do trabalho, que segundo a Casa, era o

resultado de todos os menores assistidos e da direção, fazendo o progresso comum, avivando-

lhes déss’arte, o valor da cooperação. 40

Segundo o jornal Diário da Tarde, as ações da Casa, também, destinavam-se em abrigar

os jornaleiros pobres, ensinando-os, carinhosamente, a economizar e prestando-lhes toda a

assistencia. 41

O gerenciamento da Casa era composto por: um presidente, um vice-presidente, 1º se-

cretário, 2º secretário, um diretor contador, um procurador, um diretor interno e tesoureiro e

um conselho administrativo e fiscal. A diretoria era eleita e permanecia por três anos no car-

go. 42

De acordo com estatuto da Casa, Anita Ribas, fundadora da Casa, era a Presidente Per-

pétua da Casa do Pequeno Jornaleiro. Pelo qual o relatório descreve Anita Ribas como ideali-

zadora, além de construir e inaugurar, da Casa. 43. Hermínia Rolim Lupion, primeira dama,

recebia, em 1956, o título de presidente de honra e madrinha protetora dos pequenos jorna-

leiros. 44

Homenagens eram feitas, pelo relatório, para Darcy Vargas e para Anita Ribas, assim

descritas: Homenagem às Exmas. Senhoras DARCY VARGAS e ANITA RIBAS, as primeiras

creadoras de Instituições denominadas “Casa do Pequeno Jornaleiro”, simultaneamente no

Rio de Janeiro e em Curitiba. 45

No que se refere a Darcy Vargas, conforme trecho:

39 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 31. 40 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 3 e 4. 41 “Casa do Pequeno Jornaleiro”. Diário da Tarde. Curitiba. 27 de dezembro de 1943. Ano 45. Nº 14894. 42 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro, 1953. p. 9 e 10. 43 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro, 1953, p. 29. 44 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro, 1956, p. 22 e 23. 45 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro, 1955, p. 45.

20

Excepcional Dama Brasileira, Criadora da Legião Brasileira de Assistência, da Casa do Pequeno Jornaleiro Carioca, da Casa do Menor Trabalhador e de outras Instituições de Serviço Social, além dos exemplos edificantes que sua inspiração fez distender pelos demais Estados do Brasil em benefício da hu-manidade. Dedica ainda, sua existência em benefícios dessa ordem, trabalhando dia e noite, para manter a “Casa do Pequeno Jornaleiro Carioca”, onde faz expedi-entes, lançando mãos até de seus recursos particulares, do seu crédito, para manter íntegra essa organização difícil de ser mantida, por depender de um equilíbrio delicado, dada a sua qualidade de não obrigatoriedade e falta de amparo legal pelos poderes públicos.46

A manutenção da Casa é mantida – além de donativos (dinheiros e viveres), auxílios e

subvenções do Estado (Federal, Estadual e Municipal) e das mensalidades de sócios – pela

porcentagem sobre a venda de jornais e revistas. O restante do produto da venda de jornais e

revistas, feita pelos menores assistidos pela Casa, pertence aos mesmos. Este valor, que per-

tence aos menores, é depositado mensalmente na Caixa Econômica Federal, e parte do que

arrecadam é destinada aos seus pais ou responsáveis. Conforme trecho abaixo:

Dos lucros auferidos pelos Pequenos Jornaleiros, são retirados de cada um, a importancia de Cr$ 100,00, mensalmente e entregues aos seus Paes ou res-ponsáveis, em quinzenas de Cr$ 50,00, como Assistencia aos mesmos e o restante, recolhidos á Caixa Economica Federal vencendo juros e obedecen-do condição de não poderem ser retirados, nem mesmo pela Instituição, e nem pelos seus pais ou tutores e sim, somente pelos próprios menores, de-pois de atingirem maioridade.47

A outra renda auferida pela Casa são os alugueis do prédio Anita Ribas – situado na rua

Cruz Machado, número 50 – o qual foi completamente pago e encorporado ao patrimonio da

Instituição, em 14 de Agosto de 1952. O prédio possuía duas lojas e oito salas, pelas quais,

todas alugadas, produziam parte substancial da renda para a Casa. 48 Neste momento, em

1952, a Casa possuía dois prédios: a sede da Instituição e o prédio de aluguel, “Anita Ribas”.

Entretanto, havia críticas ao pagamento de impostos, que segundo o relatório: continua

a Instituição a pagar o absurdo dos impostos que muito bem poderiam ser dispensados pelo

Estado e pela Prefeitura. 49 Os impostos pagos eram: imposto predial e taxa de água e esgoto.

Para complementar, a Casa do Pequeno Jornaleiro do Rio de Janeiro, criada em 08 de

setembro de 1940, tinha como público alvo os meninos que vendiam jornais e dormiam nas

ruas da cidade. E como objetivo a Casa pretendia acolher, formar e orientar as crianças e

46 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 21. 47 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 51. 48 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 87. 49 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1955. p. 78.

21

jovens de 11 a 18 anos das camadas mais pobres. Atualmente a Casa está aberta também para

meninas, o sistema de internato foi extinto e a ênfase do trabalho é na educação geral e ca-

pacitação para o trabalho. 50

Estrutura e serviços especializados da Casa

A estrutura da Casa para acolher e manter os menores, segundo o relatório da institui-

ção, possuía departamentos especializados: Saúde e Higiene; Educação e Cultura e departa-

mento religioso, além de refeitórios, alojamentos e demais serviços. Todos os departamentos

convergiam para transformar menores delinqüentes em cidadão úteis, fortes, saudáveis e

crentes a Deus.

No departamento de Saúde de Higiene possuía gabinetes médicos e dentários – cujos

profissionais eram nomeados pela Secretaria de Saúde Pública do Estado – para atender os

menores. Conforme trecho:

O Gabinete Medico que é modelar, funcionou durante o ano. Os menóres In-ternos são atendidos pela Medica da Casa em qualquer dia ou á noite. A Secretaría da Saúde Publica, em oficio numero 676 de Abril do corrente ano, fez apresentar á ésta Instituição, a Médica – Dra. Aglaé Taborda Ribas, para exercer as funções de Médico-Tarefeiro, tendo assumido o cargo com apresentação do mesmo ofício. A médica em apreço, tem com toda a dedicação e carinho, prestado relevan-tissimos serviços, atendendo Dia e Noite, os menóres que necessitam de sua Assistência.51

A respeito do gabinete dentário, percebemos a preocupação em demonstrar a estrutura

moderna para atender o menor, continua o relatório:

O Gabinete Dentario que é perfeitamente equipado com os mais modernos instrumentos e cadeira modernissima estilo vem satisfazendo as suas finali-dades. Vinha exercendo as funções de Dentista nesta Instituição, o Dr. Amilcar de Medeiros Crespo, até que em data de 30 de Setembro de 1952, o Departa-mento de Saúde, pela Secretaria de Saúde Publica do Estado, em oficio nu-mero 1.517, apresentou a Dra. Glycinia de França Borges, para prestar seus serviços profissionais na casa. Escusado é dizer da assiduidade, dedicação e carinho, com que a Dra Glyci-nia se desempenha, prestando inestimáveis serviços, atendendo a todos os jornaleiros que tanto necessitam de sua Assistência.52

50 Casa do Pequeno Jornaleiro. Disponível em: http://www.fdv.org.br Acesso em: 14 de setembro de 2005 51 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 37. 52 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 37.

22

Portanto, são profissionais, da área médica e odontológica, nomeadas pelo Estado para

as atribuições acima descriminadas, as quais trabalhavam no próprio gabinete da Instituição.

Era enfatizada a importância do serviço médico e odontológico, os relatórios da Casa descre-

vem os problemas de saúde recorrente entre os menores e o tratamento dado. São casos diver-

sos envolvendo os menores - desde gripe, alergia, desinteira, ferimentos e outras até casos

mais graves de internamento em hospitais. Conforme trecho:

Importantíssima é a assistência médica da instituição (...). Dispõe a Casa de um Gabinete Médico aparelhado para o exercício à suas funções e sem que seja necessário lhe solicitar [se referindo a médica do Estado], encaminha pessoalmente, até conduzindo em seu automóvel particular, os pequenos do-entes, para destinos especializado (...).53

Temos um outro trecho que nos mostra o perigo recorrente do trabalho diário dos me-

nores:

Os Pequenos Jornaleiros e os Pequenos Engraxates, pelas profissões que e-xercem, estão sujeitos a contaminações de doenças corriqueiras, como sarna, cachumba, varicéla, e outras, através do dinheiro miúdo que recebem de mão sujas e do pó que respiram ao lustrarem calçados, diàriamente e seguidamen-te.54

A Casa possuía um departamento religioso, no qual os menores tinham aulas puramente

católicas aos sábados. Os religiosos e padres que trabalhavam na Casa pertenciam a Arquidi-

ocese Metropolitana de Curitiba e do Colégio Santa Maria (professores de filosofia, religião,

história e humanidade), os quais atuavam na educação religiosa dos menores. Com objetivo

de transformar completamente o mais pertinente dos meninos em cidadãos tementes a Deus.

O trecho abaixo nos demonstra o serviço religioso na recuperação dos menores.

(...) compareceu à Capela da Instituição, o Revdo. Padre Albano Cavalin, acompanhado por dois sacerdotes e levaram a efeito o ato de confissão dos menores e em seguida foram os mesmos encaminhados à Catedral Metropo-litana, onde foi realizada a missa cerimonial e ato de comunhão. (...) em pa-lavras comoventes [o padre], concitou os pequenos jornaleiros a trilharem o caminho da virtude e do dever, para se conduzirem com dignidade afim de terem lugar aos pés de Deus e serem úteis à Pátria e a Sociedade em que vi-vem.55

53 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 42. 54 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1958, p. 40. 55 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 37.

23

As aulas eram também ministradas por duas professoras, as quais preparavam os meno-

res para o sacramento da comunhão. Segundo o relatório da Instituição, a religião católica

(...) tem produzido efeitos milagrosos na educação dos meninos, porque, uma das causas so-

bre delinqüência, é a falta do ensino religioso, ou, digamos: o temôr de Deus.56

A Casa, também, possuía uma capela, cujo padroeiro era São Francisco de Salles prote-

tor dos jornalistas e jornaleiros, na qual era praticado o ofício religioso (missas, orações, ca-

tecismo, comunhões, etc.). O padroeiro está exposto no altar mór da capela da Instituição. 57

No departamento de Educação, a Casa possuía salas de aula (denominada Escola Ma-

noel Ribas), segundo o relatório, com todos os requisitos exigidos para seu funcionamento, na

qual eram ministradas aulas para os menores, abrangendo os quatros anos do antigo primário

e o pré-ginasial (equivale atualmente ao ensino fundamental de primeira a quarta série). As

aulas eram ministras por professoras normalistas – mantidas pelo Estado. Ao termino do ano

letivo, após exames finais e com avaliações (além das professoras da Casa) da banca exami-

nadora designada pela Diretoria da Educação, os menores aprovados participavam de uma

cerimônia festiva, na qual eram convidados algumas autoridades, além de professoras e mem-

bros da própria instituição, conforme o trecho abaixo:

No dia 11 de dezembro, teve logar a cerimonia da entrega de certificados aos pequenos jornaleiros que concluíram cursos, tendo presidido a cerimônia, o Exmo. Senhor Ney Braga, digno Chefe de Policia do Estado, com mais a presença das professoras, membros da Diretoria da Instituição e convidados – Cerimonia que teve carater festivo, servindo-se aos presentes e aos Peque-nos Jornaleiros, Refrescos e Doces, com abundancia, oferecido pelas profes-soras e pela casa.58

As professoras normalistas, além de alfabetizar os menores, ensinavam a educação mo-

ral e cívica, instruções de higiene, história do Brasil em contos e religião. Cujo objetivo era

transformar os meninos em cidadão, homem dígno, zeloso, em pessoa humana e consciente

de [sua] personalidade pessoal. Portanto, as professoras se dedicavam exclusivamente na e-

ducação dos meninos e no preparo de cidadãos brasileiros.59

É interessante ressaltar a ênfase dada aos dias que se referem às comemorações da Pá-

tria, uma das preocupações da educação da Instituição é despertar o amor à pátria, conforme

trecho:

56 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 73. 57 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 38 e 39. 58 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1955, p. 47. 59 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1958, p. 45.

24

À 19 de Novembro, dia da Bandeira, não funcionaram as aulas por ser dia da Bandeira, o símbolo sagrado da Pátria! Houve ao em vez, concentração das professoras e alunos, estando presentes todos os Pequenos Jornaleiros no Sa-lão de aulas e aí, a nossa Bandeira recebeu as homenagens que lhe são devi-das. Dissertações, palestras, hinos, etc. levados a efeito como demonstração de respeito à Bandeira do Brasil, imagem da querida Pátria que amamos e fazemos respeitar. Pelas professoras, a maior preocupação, foi fazer despertar nos Pequenos Jornaleiros, o sentimento de patriotismo e amor, pelo que é nosso, pelo que nos é sagrado, herança dos nossos antepassados que devemos com sacrifício da própria vida, mantermos gloriosa e íntegra.60

O refeitório da Casa do Pequeno jornaleiro era constituído de um salão bem arejado,

cheio de luz, com mezas higienicas e com assentos de bancos envernizados, dotado de bebe-

douro de agua por esguicho, espelho e pia.61

A alimentação dos menores era realizada na própria instituição, no seu próprio refeitó-

rio, a cargo do cozinheiro profissional 62. A refeição diária dos menores era basicamente:

arroz, carne fresca, alternadamente com carne seca, bacalháo e peixe, feijão, batatas e ver-

duras – são pratos comuns da casa tendo dias determinados para sopas e macarrão 63. O

horário para a realização das refeições era fixado da seguinte maneira: Café da manhã às 6

horas, almoço às 11 horas e jantar das 18 horas às 19 horas.

Era destinada aos menores também uma sala de projeções, na qual continha uma tela

grande e móvel, cadeiras e mais o necessário para o seu funcionamento. O dormitório desti-

nado aos menores se constituía em um amplo alojamento apropriado, fartamente arejado e

higienico. Contendo cinqüenta camas arrumadas com colchões e travesseiros de crina vege-

tal, lençóes e fronhas e dois cobertores para cada cama.64 Após as ampliações de 1953, foi

instalando um novo dormitório, o que possibilitou a separação dos menores por faixa etária –

maiores, médios e menores.65

O objetivo, segundo o relatório, da ampliação era satisfazer completamente as exigen-

cias salutares dos regulamentos e leis sobre menores. O qual, também, recebia material higi-

ênico, como pijamas, toalhas de banho, toalhas de rosto, sabonete, escovas e pastas de dente.

A Casa possuía três costureiras para confeccionar Fardamentos Cáqui, Gorros, Cami-

sas, Aventais, Lençóes e fronhas 66, os quais eram utilizados pelos menores internos. Todos os

60 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1959, p. 71. 61 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 38. 62 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1955, p. 44. 63 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1955, p. 44. 64 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 38. 65 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 43. 66 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 48.

25

pequenos jornaleiros usavam fardamento padrão, conforme várias fotos impressas nos relató-

rios da Casa.

Foi instalada também, em 1956, uma biblioteca, assim descrita no relatório:

No dia 29 de março – “Dia de Curitiba” – em homenagem à data, foi inaugu-rado na Sala da Escola Manuel Ribas, a BIBLIOTECA DO JORNALEIRO. Foi instalada adequadamente, com armários apropriedos [sic], mesas, cadei-ras, tudo de imbuia, grande coleção de quadros de brasileiros célebres, pás-saros empalhados e boa qualidade de livros infantis de autores brasileiros, como sejam Monteiro Lobato e outros.

Em 1957, é criado o departamento dos engraxates, no qual a Casa pretendia oferecer as-

sistência aos pequenos engraxates, conforme relatório:

(...) com o único objetivo de proteger por certo modo, esses interessantes meninos improvizados engraxates, para que eles recebam instrução e ali-mentação adequadas, isto é, que recebam almoço às 11 e meia horas e em seguida freqüentam as aulas da Instituição, das 12 às 14 horas, sem nenhuma contribuição, inteiramente, gratuito, lhes fornecerá a Casa, desse mesma forma, a “banca de engraxate” padronizada, suprida dos objetos necessários para exercerem as suas funções, com escovas, escovinhas, pastas, tintas, e ainda, guarda-pó, gorro, naturalmente não consentindo que os mesmos se a-presentem em público sem estarem calçados, proporcionando-lhes também outros recursos de assistência de que tanto necessitam, como assistência mé-dica, dentaria e religiosa.67

A Casa oferecia também aos engraxates pontos determinados de trabalho e caderneta

especial vizada por quem de direito, afim de serem identificados e controlados no cumpri-

mento do dever. Os menores engraxates também eram registrados na Casa, na qual fiscalizava

a freqüência nas aulas. Esses conjuntos de medidas, segundo relatório, tiveram boa repercus-

são na sociedade, por conduzir um certo número de meninos ao trabalho, afastando-os do

vício deprimente de esmolarem.68

No relatório de 1957, há uma transcrição do diário da Assembléia Legislativa, datado

em 14 de fevereiro de 1950, no qual descreve a visita de políticos a Casa do pequeno Jornalei-

ro. As informações nos mostram a recuperação dos menores ao entrarem na Casa, passando

pelos serviços especializados, e, finalmente, a sua completa recuperação. Conforme trecho:

Fiz uma visita, acompanhado de Nobres Vereadores, à Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, e tive desta instituição a melhor impressão possível. É uma instituição de assistência social, que honra sobremodo o nosso Estado. Foi organizado com o espírito de servir uma classe até então abandonada e

67 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 46. 68 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 47.

26

desprotegida. As dependências dessa organização foram por nós visitadas em demorada observação e verificamos a perfeita ordem e o asseio existen-tes naquèle modelar estabelecimento de assistência. Estão ali abrigados cer-ca de 50 jornaleiros que recebem instrução diariamente com uma professora mantida pelo Estado, que lhe ministra o ensino primário. Há assistência reli-giosa também, de vez que, está construída uma belíssima capela no próprio estabelecimento assistencial. Visitamos o dormitório, em uma das depen-dências mais amplas, perfeitamente ventilado e iluminado e que pode obri-gar 80 pequenos jornaleiros. A assistência disciplinar também é digna de menção. Estão ali destacados guardas civis que atendem solicitamente aos pequenos jornaleiros. (...) Antigamente, sabíamos nós que os jornaleiros es-tavam completamente desorganizados e eram constituidos de meninos indis-ciplinados, faltosos e até malcriados. No entanto, êsse panorama se modifi-cou e verificamos hoje que o vendedor é menino solícito, atencioso e de ó-timo comportamento. 69

Portanto, antes os menores eram um verdadeiro bando de gaiatos mal educados, auda-

ciosos e até insuportáveis. Nada respeitavam e, insolentemente, afrontavam os pacatos cos-

tumes da cidade. Segundo, o relatório, com a inauguração da Casa do Pequeno Jornaleiro e

seu serviço especializado, o pequeno vendedor de jornais, [agora] prima pela conduta, pela

atenção e delicadeza com que serve a sua clientela de leitores da imprensa diária70.

Observamos os detalhes sobre os serviços especializados da Casa e suas implicações na

recuperação dos menores. Os quais, teoricamente, cumpririam a sua finalidade, transformar

meninos indisciplinados em futuro cidadão útil para a sociedade. Ou seja, com os serviços

especializados, a Casa cuida do corpo e da alma dos pupilos, através de perfeito serviço mé-

dico-dentário e de assistência escolar e religiosa.(...) 71 Os menores, teoricamente deixando a

Instituição, estarão suficientemente alfabetizados e saudáveis, para jogar-se à luta de maio-

res.72

Mas isso significa que todos os menores delinqüentes eram recuperados? Segundo o rela-

tório da Casa, os menores pobres, que se destinavam à venda de jornais, são matriculados por

sua livre espontânea vontade e são excluídos quando assim desejarem. A Casa também pode-

rá excluir os menores quando achar conveniente. 73 Temos um trecho específico do relatório

que expõe as dificuldades da Casa em recuperar alguns menores:

(...) esta Diretoria vem procurando fazer na Casa do pequeno Jornaleiro, on-de se trabalha de coração, estudando a psicologia de cada menino acolhido, porque cada menino é um caso especial e diferente. Procura-se compreende-los (...) para que êle se enquadre na sua nova vida, sem contrariedades, até

69 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 19. 70 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1959, p. 22. 71 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1959, p. 16 72 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1960, p. 19. 73 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1961, p. 9.

27

serem moldados para um futuro mais promissor e é aí nesse mistér que está o maior problema do menor. Há, porém, meninos, isto é necessário confessar, que não se compreende e por isso não se pode corrigir. Esses casos especialíssimos, pois preferem dormir ao relento e se alimentarem com restos de frutas apanhadas nos cai-xões das feiras, a um internamento, para receberem com todo o conforto, a educação familiar. Êsses não se consegue corrigir, porque culminam em abandonar a Institui-ção, fugindo à nossa ação.74

Portanto, as informações extraídas do trecho citado, nos revelam que nem todos os me-

nores que entravam na Casa eram recuperados. Mas cabe outra pergunta, por que alguns me-

nores não permaneciam na Casa ou preferiam viver nas ruas? Questão difícil de responder

pela falta de documentação específica, pois nos relatórios da Casa basicamente expõem as

suas finalidades com teor positivo. A hipótese seria o rigor da disciplina no interior da Casa,

temos um pequeno trecho no relatório que enfatiza a disciplina.

A disciplina vem sendo aplicada – a de família, porque se for aplicada como se torna necessário, a Casa ficaria deserta – não se sujeitariam; mas se não houver, também uma fôrça moral bem fortalecida, até a Casa seria destruída. Por aí avalia-se , quão difícil é, praticar o bem! Preferem êsses menores, a vida liberta da rua de um regime familiar.75

Quando a Casa comemorou seus 50 anos (em 1993), são publicadas algumas informa-

ções sobre a Casa, sempre carregadas de adjetivações positivas. Entretanto, temos uma fonte

que nos mostra o rigor da disciplina no interior da Casa. O jornal é publicado em 1993, utili-

zando algumas informações de ex-jornaleiros, sem, contudo, identifica-los.

Na época da disciplina rígida, a palmatória e os castigos eram coisas co-muns, principalmente aos que voltaram do trabalho com débitos. Para os que não fechavam as contas entre o número de exemplares vendidos e o total de dinheiro arrecadado era polir os talhares enferrujados com areia. Trabalho que durava uma tarde, segundo os ex-jornaleiros, que depois colocavam no-vamente os talheres na água para enferrujar e servir de castigo para o próxi-mo76

Temos outro trecho, também, que nos mostra que a Casa não recebia todos os menores

que precisavam de amparo. Segundo relatório:

74 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba. 1958, p. 9 e 10. 75 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba. 1961, p. 10 76 O Estado do Paraná, 1993.

28

Na Casa do Pequeno Jornaleiro, aparecem com freqüência meninos de toda aparte, analfabetos, não conhecendo nem o nosso dinheiro, em busca de in-ternamento e investigados, dizem que eram lavradores, mas que a roça é pe-sada para fazer e que não dá resultados. Causa pena, ver-se dêsses meninos: não conhecem a cidade, com suas misé-rias e desenganos, não conhecem dinheiro, analfabetos e completamente bi-sonhos, impossibilitados assim, de serem recebidos na Instituição, por não saberem distinguir os títulos dos jornais para venda e tão pouco trocar di-nheiro. É necessário que seja impedida a vinda dêsses elemntos [sic], que abandonaram suas casinhas onde vivem em liberdade e onde possuem suas plantas e seus recursos, para virem sofrer as dolorosas misérias de uma vida diferente.77

O problema, citado na fonte, se refere o aumento considerável de população pobre em

Curitiba, no relatório nos mostra as providências que deveriam ser tomadas para resolver o

problema do aumento da pobreza, segunda a Casa.

Urge providências para não aumentar o número de vadios, desocupados e mendigos; quem de direito, obrigue-os a regressarem, mesmo fornecendo-lhes meios para isso, porque, caso contrário, torna-se impossível o atendi-mento pelas associações respectivas e pelo Govêrno (...) 78

O objetivo deste capítulo, foi discutir os serviços especializados da Casa do Pequeno

Jornaleiro e suas implicações na transformação do menor. Os serviços especializados da Casa

– educação, saúde, religião, além da importância da higiene – convergiam para transformar

delinqüentes em cidadãos úteis a Pátria. Essa era a finalidade principal da Casa, pelo menos

em tese. Pois não sabemos a trajetória deste menor depois da Casa, com exceção de algumas

informações presentes nos relatórios como o Jornaleiro do ano que ao sair da Casa estaria

empregado. Percebemos também, que nem todos os menores eram recuperados, mesmo com

poucos indícios que nos possam fundamentar tal argumentação, pois a grande maioria das

informações contida nos relatórios apresenta um teor positivo, exaltando as finalidades da

casa.

No próximo capítulo, tentaremos discutir, de maneira mais verticalizada, as finalidades

da Casa com alguns conceitos, menor e filantropia. Tentar, também, sem pretensão de res-

ponder, discutir em que medida os conceitos de filantropia, esboçado nas primeiras décadas

da República, estão presentes nas finalidades da Casa.

77 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 43. 78 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 43.

29

Capítulo 3: Casa do Pequeno Jornaleiro: proteger e educar os menores, é um dever

de todos os brasileiros.

No capítulo anterior, nos propomos em analisar os serviços especializados e o funcio-

namento da Casa do Pequeno Jornaleiro no período de 1953 a 1962 – pelo qual nos funda-

mentamos nos únicos documentos da instituição, os relatórios anuais de nove anos. Tentare-

mos, neste capítulo, analisar especificamente as finalidades da Casa e suas implicações na

recuperação do menor carente: transformar pequenos marginais, prováveis futuros delinqüen-

tes, em cidadãos úteis à coletividade. Para concretizar esta análise, faremos uma discussão em

torno dos conceitos: menor, trabalho e filantropia.

Segundo o próprio relatório, que restringe a fundação e a idealização da Casa do Pe-

queno Jornaleiro à Anita Ribas, nos diz o seguinte:

tudo não passava de um sonho . . . mas provinha de uma alma profundamen-te cristã, de um coração generoso e de um desejo ardente de ser útil à coleti-vidade no que ela tem de mais precioso e que, embora tão fragil, é o alicerce de uma Nacionalidade. Ela [Anita Ribas] sabia que a “criança esquecida, a-bandonada, maltratada, vinga-se, quando adulto, transformando-se em cri-minoso, punindo, dessa forma, a Sociedade” [grifo meu]; que “no tratamen-to, amparo e educação da criança, repousa todo o sentido da salvação nacio-nal” [grifo meu]. Ela sabia que um ideal vale mais que uma vida! E demons-trou-o dedicando os últimos anos de sua existência ao sonho que transforma-ra em realidade. Morreu feliz, há pouco, levando consigo para o ignato e ine-fável satisfação de ter podido concretizar uma boa obra 79

Segundo o jornal Diário da Tarde (27 de dezembro de 1943) a finalidade da Casa era a

recuperação de menores para serem úteis à sociedade: Que ela testemunhe, hoje e sempre, o

seu sagrado sentido creador; e então, aqueles que nela se abrigarem e que aqui se educarem

(...) se tornarão homens uteis á Sociedade e á Patria.80

Neste sentido, a Casa se propõe a educar (moralmente, intelectualmente e materialmen-

te), instruir e garantir meios para que o menor, assistido pela instituição, possa enfrentar a

luta pela vida. Desta forma, terem a oportunidade de trilharem o caminho do bem. Ou seja,

cuidar da sua manutenção no presente e se tornar, no futuro, um cidadão util á Patria. 81

Vender jornal nas ruas era uma prática geralmente realizada por crianças abandonadas,

conforme o próprio relatório: antigamente, sabíamos (...) que os jornaleiros estavam comple-

tamente desorganizados e eram constituidos de meninos indisciplinados, faltosos e até mal-

79 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1955, p. 3. 80 “Casa do Pequeno Jornaleiro”. Diário da Tarde. Curitiba. 27 de dezembro de 1943. Ano 45. Nº 14894. 81 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 89.

30

criados. E após o amparo oferecido pela Casa do Pequeno Jornaleiro, o vendedor de jornal

será um menino solícito, atencioso e de ótimo comportamento. 82

Era recorrente nos relatórios da Casa destacar exemplos de jornaleiro, um deles nos

mostra o típico jornaleiro de Curitiba que:

Foi internado na Casa, em 19 de fevereiro de 1953, juntamente com um seu irmão (...). É órfão de pai e desconhece o paradeiro de sua progenitôra. Al-fabetizado na Instituição, prestou recentemente exame do quarto ano primá-rio, tendo sido aprovado com distinção. É portador da Caderneta da Caixa Econômica (...), produto de seu esforço como jornaleiro exemplar que é.83

Outro destaque feito pelos relatórios, como modelo de jornaleiro, é à saída de um inter-

no, devido a sua maioridade, o qual recebe, em cerimônia, a sua caderneta entregue pela Pri-

meira-Dama, Herminia Lupion. É interessante ressaltar o destaque dado as primeiras damas,

como madrinha protetora dos pequenos jornaleiros. Neste sentido é relevante citar o seguinte

documento:

Á 2 de Fevereiro, na sede da LEGIÃO BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA, a Exma. Senhor HERMÍNIA ROLIM LUPION, Presidente de Honra e Madri-nha Protetora dos Pequenos Jornaleiros, em cerimônia ali realizada, fez en-trega ao ex-pequeno jornaleiro (...), de sua caderneta da Caixa Econômica, (...) produto do seu esforço, caderneta essa que foi instituída em seu favor, pela Casa do Pequeno Jornaleiro da qual é Criadora, a Sra. ANITA RIBAS de saudosa memória. (o ex-jornaleiro) foi um excelente jornaleiro, que demonstrou sempre ótimo comportamento, tendo ainda, durante sua permanencia na Instituição, auxili-ando a sua progenitora (...). Foi alfabetizado na Casa, onde recebeu diploma de 4º ano primário, obtendo sempre, em exames, notas altas. Recuperou seus dentes, é bem equilibrado, sendo já reservista de 3a. catego-ria do Exército e está empregado no S. E. S. C. com possibilidades de bom futuro, pela sua dedicação ao serviço.84

Desta forma, a proposta da Casa é transformar pequenos marginais prováveis futuros

delinqüentes em cidadãos úteis à sociedade. Ou seja, os menores, ao saírem da Casa, devido a

sua maioridade, suficientemente alfabetizados e saudáveis estarão aptos para o trabalho.

Neste sentido, cabe a pergunta: o que ser cidadão útil? Será o futuro trabalhador?

Para responder, tentaremos discutir alguns conceitos para compreender os objetivos da

Casa, dividimos o capítulo em três partes: Trabalho, menor e filantropia.

82 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 19. 83 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 41. 84 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 62 e 63.

31

Trabalho como estratégia na regeneração de menores

Para compreender o sentido da expressão trabalho, o historiador Erivan Cassiano Kar-

vat discute a construção do conceito de trabalho em oposição à vadiagem. Salientando que o

autor discute o conceito no final do Império e nas primeiras décadas da República Brasileira.

No final do século XIX, a construção ideológica do trabalho buscava a manutenção da

estrutura social – proprietário de terras e escravos recém libertos – conectando o trabalho,

rotulado como lei suprema da sociedade, com a moralidade, manutenção da ordem e respeito

à propriedade. Para a configuração do conceito de trabalho – ligado ao desenvolvimento de

atributos morais – implicava na formatação do conceito de vadiagem, na qual era vista como

uma ameaça constante à ordem, associando-se à imoralidade e à perversão.

O ocioso é o individuo que vivenciava a vadiagem, pois é ausente de educação moral e

respeito à propriedade. Portanto, a ociosidade será um estado de depravação de costumes que

acabava introduzindo ao indivíduo as ações criminosas contra a propriedade e a segurança

individual. 85

Karvat propõe uma discussão não polarizada entre a ordem do trabalho e a ociosidade –

a ociosidade a margem da ordem estabelecida – mas presentes na mesma sociedade, como

elementos constituintes da própria noção de ordem. Portanto, o conceito de vadiagem – preo-

cupação da elite dirigente do final do século XIX e também durante a República Velha – será

uma construção ideológica utilizada para justificar a ação de mecanismos de controle, coa-

ção e sujeição de grupos sociais menos favorecidos.86

Nas primeiras décadas republicanas a construção de uma sociedade do trabalho, objeti-

vando o Progresso e a Civilização implicava na necessidade da manutenção da paz e da or-

dem social, concebidos como os fatores que possibilitariam alcançar seu objetivo central: o

progresso. Para isso, era necessário, ao mesmo tempo, construir uma sociedade Disciplinada

e necessariamente disciplinar. Uma sociedade, neste sentido, de indivíduos disciplinados e de

cidadãos morigerados e operosos. 87

Ou seja, os elementos ociosos (vadios e mendigos) representavam a negação do traba-

lho, rotulados como seres anti-sociais, inseridos numa sociedade que acreditava se instituir a

partir do próprio trabalho. No qual, homens deveriam cooperar funcionalmente para se atin-

gir o Progresso. O não trabalhador (ocioso) era motivo de diferentes discursos de poder e

85 KARVAT, Erivan Cassiano. Vadios e mendigos: dentro e fora das leis. In: _____. A Sociedade do Trabalho: Discursos e práticas de controle sobre a mendicidade e a vadiagem em Curitiba, 1890-1933. Curitiba: Aos quatro ventos, 1998. p. 30 e 31. 86 Ibid., p. 32 e 33. 87 Ibid., p. 33.

32

conseqüentemente, alvo de diferentes estratégias de poder – a disciplina do indivíduo, resul-

tante das relações de saber e poder – possibilitando a regeneração, através do trabalho, dos

seres anti-sociais, se responsabilizando pela sua socialização.88

A constituição da sociedade do trabalho está diretamente relacionada a uma sociedade

disciplinar que articulada em estratégias e em instituições disciplinares, se responsabiliza na

inserção do indivíduo ao mundo do trabalho. As instituições disciplinares – estabelecimentos

que articulam a produção de saberes e os exercícios de poder – têm como finalidade fixar in-

divíduos, liga-los a um aparelho de correção e introduzi-los normas, portanto transformando-

os em cidadãos produtivos e dóceis.89

Com base nos conceitos discutidos pelo historiador Erivan Karvat, pretendemos discu-

tir, afinal, se o cidadão útil à pátria expresso nos relatórios da Casa do Pequeno Jornaleiro será

o futuro trabalhador. No relatório da Casa é exposta a publicação do jornalista Heitor Stloc-

kler de França na qual destaca a importância do trabalho realizado pelos pequenos jornaleiros

da Instituição:

Edificante, sem dúvida, é êsse resultado de um labor intenso [grifo nosso] dos pequenos jornaleiros a quem não tolhem os passos, o sol, a chuva, o ca-lor ou o frio. Há os que percorrem a cidade, rua após rua e os que se plantam em pontos estratégicos, nos passeios, com jornais, inteligentemente, expos-tos à preferência do leitor. (...) 243 menores, desde a fundação, ali atingiram a maioridade, deixando o generoso recolhimento e levando a sua fortuna a-cumulada (...), para encetar a vida, com novas rotas mas, educados num sen-tido de sadia ambição, isto é, de pelo trabalho contínuo [grifo nosso], fazer frutificar o seu primeiro capital. 90

Percebemos no trecho, que os menores após atingirem a maioridade e receberem a sua

caderneta terão um novo caminho a percorrer: do trabalho contínuo. A finalidade da Casa é

transformar meninos em cidadãos úteis a pátria. E neste trecho, nos revela que o trabalho con-

tínuo será a tarefa desses cidadãos.

Os menores, segundo o relatório da Casa, eram considerados como pequenos heróis que

pela madrugada ainda arrostando as intempéries, suportando estoicamente a impiedade do

frio cortante, do sol e da chuva, proclamando as noticias do dia (...)91 Portanto, são heróis

porque trabalham, mesmo enfrentando as intempéries diárias.

Em outro trecho, temos a informação que o Pequeno Jornaleiro começava a trabalhar,

na sua venda diária de jornal, ainda de madrugada:

88 Ibid., p. 34. 89 Ibid., p. 35. 90 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1960, p. 16. 91 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 28.

33

Na Instituição, os pequenos jornaleiros tomam o leito para dormir, entre 21 e 22 horas e levantam às 4 e meia da madrugada. Não dormem demais e dis-postos, enfrentam intempéries! Bem pensado, o Pequeno Jornaleiro é um herói. E assim, centenas e centenas de menores foram recuperados, recebendo completa Assistência médica, dentária, cultural, religiosa, alimentar, etc...92

Podemos perceber, que os menores foram recuperados através dos serviços especializa-

dos da Casa e pelo trabalho diário no qual ainda de madrugada enfrentando intempéries co-

meçam a vender jornais.

Temos o hino do Pequeno Jornaleiro, escrito pela professora Ivete Santos em 1959 –

professora da Casa do Pequeno Jornaleiro – nos mostra a importância do trabalho para os me-

nores:

Mensageiros, o jornal vamos levando, Para o povo as notícias receber, É por nós que a mensagem divulgando: Que tristeza ou alegria possam ter... Jornaleiros! Pois soldados nós devemos, Ter por lema: “ó dever e a retidão”: A nossa fôrça: é a grande fé que temos; E a esperança: é Deus no coração! De caminhos, mais diversos nós viemos, Outros tantos, vamos nós também seguir; Na crença de que um dia então seremos, Também, homens de valor e de porvir... Nossa “CASA” proteção que não tivemos, O colega – o irmão que então quisémos, No trabalho – a nossa corôa de glória, [grifo nosso] Nosso esforço, e o prêmio da vitória! 93

O hino citado foi adotado pela Casa e percebemos nas últimas linhas do hino, o valor

do trabalho, como coroa de glória e seu esforço irá contribuir na sua poupança que, após a

maioridade, terá direito de usufruir.

Temos também a poesia menino jornaleiro de Maria de Lourdes Gomes, exposta pelo

relatório que nos mostra a criança forjada no trabalho:

Envolvido numa capa para se defender da chuva e do frio um menino jornaleiro olha sem ver . . . O rosto moreno emoldura em sorriso vago . . .

92 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1962, p. 26. 93 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1959, p. 70 e 71.

34

Com que sonhas meu menino jornaleiro? Com o carinho de uma mãe? ou com a bicicleta enfeitada? . . . Desejas um pae amigo? ou em carro todo cromado? . . . As quimeras voltejam em redor dos teus cabelos anelados e pousam nos teus gestos. Não me enxergas e no entanto em ti, criança forjada no trabalho, eu vislumbro os gigantes que sustentarão o meu Brasil.[grifo nosso]94

A poesia citada foi extraída do livro: Frases, Emoções para homenagear a Infância que

trabalha. Interessante que a autora expõe os sentimentos ou sonhos que a pequeno jornaleiro

poderia ter durante o seu trabalho diário, no entanto a autora poderá observar o menor como

gigante que irá trabalhar pela pátria.

Temos um trecho que nos mostra o menor, antes de entrar na Casa como analfabeto

(possivelmente rotulado de menor vadio) e sua recuperação pelos serviços especializados,

saindo apenas quando encontrou trabalho, conforme trecho:

Ingressou na Casa, em 19 de fevereiro de 1953, Analfabéto, órfão de pai e abandonado. De bom comportamento e o obediente, permaneceu nesta instituição até 11 de março de 1959. Foi alfabetizado, recebeu completa assistência médica, dentária, escolar e re-ligiosa. Cursou até o 4º ano primário, fez a primeira comunhão, deixando a Casa por ter sido empregado e é hoje, proprietário de uma banca de jornais, comerciante por sua própria conta. [grifo nosso] Tendo completado maioridade, recebeu a sua caderneta da Caixa Econômica (...) produto de seu esforço.95

O menor, referente à citação, ao receber o valor de seu depósito, disse: faço um apelo a

todos os jovens que tiverem a desdita de enfrentar problemas como o meu: busquem institui-

ções como a Casa do Pequeno Jornaleiro que ela lhes há de amparar e dirigir os passos, por

um futuro melhor.96 O futuro melhor se refere ao trabalho.

Temos outro exemplo semelhante, que saiu da Casa por ter conseguido emprego, o me-

nor é destacado também como Jornaleiro do ano:

(...) sendo órfão de mãe, ingressou na Casa em 1953, analfabeto e sem recur-sos.

94 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1961, p. 51. 95 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1960, p. 27. 96 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1960, p. 28.

35

Cursou a Escola “MANOEL RIBAS”, da Cada do Pequeno Jornaleiro, onde, como aproveitamento, recebeu certificado de quarto ano primário. Teve assistência médica, dentária e religiosa. Deixou a Casa em dezembro de 1958 por ter obtido emprego. Em 8 de abril de 1961, tendo atingido maioridade, recebeu sua caderneta da Caixa Econômica Federal (...) produto de seu esforço. 97

A Casa destaca os menores como Jornaleiro do ano, tal destaque provavelmente nos

mostra que a Instituição cumpriu sua finalidade: transformar o menor abandonado (analfabe-

to), através dos serviços especializados, em cidadão útil, ou melhor dizendo em cidadão traba-

lhador. Utilizando as palavras de Karvat: cooperando funcionalmente para se atingir o Pro-

gresso da Pátria.

Para exemplificar o antônimo do trabalhador (o ocioso), temos um trecho de uma su-

gestão do Diretor da Casa do Pequeno Jornaleiro, no qual propõe uma ação contra a vadia-

gem, através de ações específicas, conforme trecho:

Dar-se ao Juizado de Menores um prédio amplo, não distante do centro da cidade, Nêsse prédio, em alas bem dispostas, seriam colocados os órgãos técnicos do Juizado; em anéxo, um Pensionato com sala de refeição, dormi-tórios, instalações sanitárias, escolas, tanto para meninos como para meni-nas; serviço de enfermagem; ainda mais: um corpo de “Comissários secre-tos” e um veículo apropriado. Assim, se um Comissário deparasse com um menor vadio, segui-lo-ia, discretamente, com seu carro e, sem escândalo (...), com rapidez, apreende-lo-ia ao Pensionato do Juizado. Ai, prestaria ele, suas declarações; seus pais ou responsáveis seriam chama-dos para esclarecimentos e até mesmo para constatação de seu próprio desa-justamento social. Segundo as circunstâncias apuradas, o menor seria imedi-atamente assistido no Pensionato com vestuário, alimentação, tratamento médico e etc. e encaminhamento à escola. O “Visitante Assistente” então buscaria colocação para o menor, considerando o seu sexo, idade, e aptidões, em casas de comércio, em escritórios, em casas de família, aonde poderiam prestar pequenos serviços, tais como: entregas de pacotes, retirar e postar correspondência, recados, pagem, e etc. Esses menores e seus responsáveis seriam fichados advertidos e instruídos a respeito de sua responsabilidade, sobre as conseqüências de não cumprimento honesto de seus misteres. E no caso de não procederem corretamente, ou de voltarem à vadiagem ou se mostrarem avessos às determinações que se lhes dessem, ou incorrigíveis, seriam encaminhados à um Reformatório de disciplina mais severa de maior vigôr. 98

Percebemos a sugestão do diretor da Casa e membro do Conselho de Obras Sociais do

Paraná, no qual mostra o menor vadio (possivelmente habitando as ruas e com riscos de co-

97 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1961, p. 58. 98 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 30 e 31.

36

meter delitos) e as ações necessárias para recupera-lo. Não obtendo êxito na primeira tentati-

va, por ser incorrigível, teremos ações mais severas.

Portanto, além dos serviços especializados na recuperação do menor, a Casa enfatizava

o valor do trabalho, que era também uma estratégia para transformar delinqüentes em cida-

dãos úteis a sociedade. Neste sentido, a instituição conduzia menores ao trabalho, afastando-

os do vício deprimente de esmolares nas ruas. Pois a criança representa o cidadão do futuro,

o operário, o soldado; o homem, enfim, sob cujos ombros recairá a conservação do próprio

país. 99

Conceito de Menor

A expressão menor – que aparece com certa freqüência nos relatórios da casa como:

menor abandonado, desajustado e delinqüente – vai fazer parte, no final do século XIX e co-

meço do século XX, do vocabulário judicial da República Brasileira, utilizadas nos relatórios

policiais e nos pareceres jurídicos. A preocupação dos juristas, pela questão envolvendo o

menor, coincide também com a introdução da puericultura – método de assegurar o perfeito

desenvolvimento físico, mental e moral da criança, desde o nascimento até a puberdade – por

parte dos médicos. Segundo Londoño, o interesse pelas questões do menor e métodos de tra-

tamento evidenciou-se com força como subproduto do prestígio que adquiram entre os seto-

res ilustrados das classes dominantes as chamadas ciências positivas e o desejo de copiar a

europeus e americanos como uma força de participar dos avanços do progresso ocidental. Os

juristas, neste sentido, procuravam nas legislações jurídicas na Europa e nos Estados Unidos,

modelos que deveriam ser implementadas nas instituições e nas legislações no Brasil no que

se refere ao menor.100

Neste sentido, no final do século XIX, os juristas vão propor um novo significado no

conceito de menor – o sentido da expressão menor até o século XIX era usada para distinguir

apenas as faixas etárias, proibindo, desta maneira, as pessoas de terem direito à emancipação

paterna ou assumir responsabilidades civis ou canônicas – os quais vão designar as crianças e

adolescentes pobres das cidades, por não estarem sob a autoridade dos seus pais e tutores são

chamadas pelos juristas de abandonadas. O menor, segundo os juristas, será as crianças que

povoavam as ruas do centro das cidades, os mercados, as praças e por incorrerem em delitos

freqüentavam o xadrez e a cadeia, neste caso passando a serem chamados de memores crimi-

99 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 51. 100 LONDOÑO, Fernando torres. A origem do conceito menor. IN PRIORE, Mary Del. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. p. 133.

37

nosos. Portanto, a partir da década de 1920, a palavra menor se refere à criança em sua situa-

ção de abandono e marginalidade, além de determinar a sua condição civil e jurídica e os

direitos que lhe correspondem. 101

A rua será vista pelos juristas como espaço que suscitava degenerações a infância aban-

donada, multiplicando todos os vícios que ameaçava a sociedade. Segundo os juristas, o a-

bandono tinha existido sempre, mas nas atuais circunstâncias, a criança vivendo à vontade

na rua, abandonada no material e no moral, necessariamente terminava por se contaminar

do vício e se transformar num criminoso que ameaçava a sociedade.102

Com base no conceito proposto pelo historiador Londoño, tentaremos discutir e com-

preender a expressão menor que está presente nos relatórios da Casa. O relatório da Casa do

Pequeno Jornaleiro expõe uma investigação realizada na cidade de São Paulo (realizada pela

Associação Comercial) sobre a delinqüência juvenil, na qual aponta números alarmantes: 155

mil crianças sem dono (abandonadas) sob risco de se perderem nos descaminhos da miséria e

da delinqüência:

negligencia do próprio governo. (...) que sòmente em 1954, mais de 2.400 processos tiveram curso no Juizado de Menores, assim classificados: 52% por furtos; 19% por agressão e 29% por delitos vários. Manifestações ema-nadas das mais altas autoridades executivas e judiciárias revelam que 70% dos assaltos praticados por adultos têm a participação de menores. 103

Na mesma pesquisa é apontada a causa do aumento da criminalidade juvenil, ocasiona-

da pelo abandono “do ponto de vista assistencial (...), completamente desprotegida de recur-

sos para preparar técnica e culturalmente a geração que amanhã deverá assumir o encargo

de conduzir os seus destinos”. Portanto a falta de assistência social, a origem do mal, implica-

rá no abandono de crianças:

“Em nosso meio, perambulam 60 mil crianças impedidas de freqüentar cur-sos primários, porque não há vagas nas escolas. Cerca de 100.000 menores entre 11 e 14 anos – por não haver cursos profissionais em número suficiente – ficam pelas ruas, contraindo maus hábitos, adquirindo vícios, ajustando-se à ociosidade, constituindo, futuramente, o manancial de onde deriva, em cor-rentes, que se avolumam, o contingente de delinqüentes juvenis, criminosos em potencial, que engrossarão mais tarde as fileiras das penitenciárias.”104

101 Ibid., p. 129 a 135. 102 Ibid., p. 137. 103 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 4. 104 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 4.

38

Percebemos, no trecho anterior, a expressão menor se referindo a situação de risco que

a criança se encontra. A rua como espaço de ociosidade no qual os menores irão contrair ví-

cios e provavelmente, mais tarde, permanecer nas prisões.

Na pesquisa são apontadas as limitações das instituições oficiais e entidades privadas

diante do problema do menor abandonado:

108 instituições destinadas a assistir o menor: 2 oficiais e 106 particulares, subvencionadas pelo Estado. Nas obras oficiais estão abrigadas 994 crianças e 4.723 nas particulares. De acordo, portanto, com os dados conhecidos, o governo só pode (com recurso de particulares) acudir a 5 mil, arredondada-mente, dos 160 mil menores que perambulam pela cidade, contraindo maus hábitos e preparando-se para engrossar o contingente de deliquentes juvenis. 155 mil menores, pois, em São Paulo, estão simplesmente, matriculadas na escola do crime. Sendo a população infantil (de 1 a 14 anos), de 650 mil, conclui-se que 24% dos menores acham-se ao abandono. 105

No que se refere ao Estado do Paraná, o relatório da Casa nos mostra que não há meno-

res abandonados e para se fazer prova, o bastante é apreender um menor e imediatamente

aparecem pais, parentes ou responsáveis, reclamando-o. E segundo o mesmo relatório, isso é

provocado pelo trabalho do governo, Juizado de menores, Imprensa e diversas associações. O

relatório aponta também o número reduzido de delinqüentes juvenis no Paraná. Utilizando-se

do argumento que repartição alguma e mesmo o Juizado de Menores, apresentou, uma esta-

tística que se relacione com menores abandonados e juvenis delinqüentes. E, se a estatística

fosse realizada, seria em número ínfimo, que (...) tão pouco viesse a preocupar nossas autori-

dades. A Casa do Pequeno Jornaleiro, também, estaria colaborando com esforços incessantes,

para que o Estado do Paraná, principalmente a Capital, venha a ter problemas insolúveis

como os Estados do Rio e São Paulo.106

Neste sentido, cabe a pergunta: Não havia menor abandonado ou que seu número era ir-

risório que pudesse não preocupar? Evidente se houvesse seria um número bem menor que

São Paulo e Rio de Janeiro, devido ao tamanho demográfico destes estados.

Entretanto, no relatório do ano seguinte (1957) expõe o seguinte trecho:

Membro do “CONSELHO DE OBRAS SOCIAIS DO PARANÁ”, integran-te da COMISSÃO EXECUTIVA, e ainda como Presidente da CASA DO PEQUENO JORNALEIRO DE CURITIBA, me coube observar e alertar as autoridades sobre o fato de que, nesta Capital, bem surgindo com freqüência, gente pobre, de todos os quadrantes, principalmente do Estado de Santa Ca-

105 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 5. 106 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 6.

39

tarina, que imigra para o nosso Estado – dementes, miseráveis, menores a-bandonados [grifo nosso] e indesejáveis, o que já é notório, além de outros elementos pobres que voluntariamente abordam por aqui. (...) pelo menos os departamentos em que essa gente aborda para pedir e a própria polícia, to-mem providências severas, fazendo com que retornem à seus pagos [sic], que vão fazer suas plantações e viver em seus ranchos que lá possuem (...)107

No outro trecho, a Casa se refere o aumento de indigentes em Curitiba:

(...) de tão grande numero de indigentes, tornando o serviço de ASSISTÊN-CIA SOCIAL, incapaz de vencer a sua tarefa, porque essa massa vem con-tribuir problemas mais complicados, mais complexos ainda, acarretando de responsabilidades, Govêrno do Estado e Juizado de Menores, principalmente [grifo nosso]. Cuidemos com carinhos, dos nascidos e radicados na Cidade, que não são poucos, dando-lhes colocações, enfim, encaminhando-os para uma existência normal e honrosa. 108

Portanto, percebemos que há menores abandonados em Curitiba. Outro trecho, intitula-

do delinqüência e abandono de menores, também nos mostra uma contradição com a afirma-

ção que não haveria menores abandonados em Curitiba:

Dia a Dia, aumenta consideravelmente a delinqüência infanto-juvenil em Curitiba. [grifo nosso] Cresce percentual e assustadoramente o número de jovens encaminhados ao Juizado de Menores, e dali para as Escolas de recu-peração ou abrigo. Sobre as crianças abandonadas pouco se pode dizer: po-bres órfãos, relegados à miséria, não só econômica, como também moral, não contam com o elemento primordial de sua educação: a família social-mente adaptada. O Estado, através dos recursos disponíveis, intervém, então, avocando a si a responsabilidade pela proteção, trato e educação do menor [grifo nosso] (...). Quanto ao menor delinqüente, além de passar pelas mes-mas necessidades do abandonado, possue outro impecilho a vencer – o delito jurídico social, que evita a sua integração dentro da coletividade. [grifo nos-so] (...) Não há dúvida sobre o grande mal do nosso povo: a falta de educa-ção, o analfabetismo mesmo. Mas dentro de nossas possibilidades, cada um poderia colaborar com a recuperação urgente, pelo menos do menor delin-qüente que do contrário, será hospede forçado de nossas penitenciárias.109

Além de informar a existência de menores abandonados em Curitiba, percebemos que

nos relatórios da Casa, a expressão menor se refere também ao estado de abandono. Outras

expressões também são associadas ao menor: delinqüente, vadio, marginal e desajustado. Se-

gundo a Casa as suas atribuições como:

107 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 41 e 43. 108 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 43 e 44. 109 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1960, p. 20.

40

(...) utilidade pública pelo Governo Federal tem procurado impôr nos meios sociais, como útil à coletividade (...) procurando elevar-se o tanto mais que pode, afim de ser conservada e considerada no que diz respeito, principal-mente a menores abandonados e desajustados, colaborando como o Governo nesse problema tão sério, de que os governos tanto têm se preocupado.110

Portanto, o conceito de menor vai se caracterizar, neste momento, principalmente como

criança pobre, desprotegida moral e materialmente pelos seus pais, o Estado e a própria socie-

dade. Inicialmente, a infância abandonada era tratada como caso de polícia ou simples repres-

são. As primeiras décadas do século XX, a questão do menor abandonado,

vadia e infratora, pelo menos no plano da lei, deixou de ser uma questão de polícia e passou a ser uma questão de assistência e proteção, garantida pelo Estado através de instituições e patronatos. Atenção à criança passou a ser proposta como um serviço especializado, diferenciado, com objetivos espe-cíficos. Isso significa a participação de saberes como os do higienista, que devia cuidar da sua saúde, nutrição e higiene; os do educador, que devia cuidar de disciplinar, instruir, tornando o menor apto para reintegrar à soci-edade; e os do jurista, que devia conseguir que a lei garantisse essa proteção e essa assistência. 111

Neste sentido, as preocupações com o menor se aproximam à minha problemática, a re-

cuperação do menor abandonado, através de serviços especializados, pela Casa do Pequeno

Jornaleiro. Também são preocupações da filantropia científica, que, de certa maneira, estarão

presentes nos anos 40 no governo Vargas no que tange a infância. Mesmo que recorte tempo-

ral do nosso objeto seja de 1953 a 1962, pois segundo o relatório da Casa, a estatística que se

seguem evidenciam, comparados como os de anos anteriores, que ésta entidade manteve a

mesma orientação imprimida desde o seu nascimento e o mesmo ritmo de trabalho e de suas

realizações.112

Caridade e Filantropia

A caridade com base na religião – até o final do século XIX, a assistência à infância

pobre era feita, sobretudo, por iniciativa de ordens religiosas, oferecendo ao pobre um aten-

dimento asilar (Exemplo as Casas de Expostos mantidas e criadas pela Casa de Misericórdia)

– pretendia estabelecer uma divisão moral da sociedade, entre os indivíduos com poder de

perdoar e os que precisavam ser perdoados. Com objetivo de aliviar a dor temporária para

110 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956, p. 3. 111 LONDOÑO, Fernando torres. A origem do conceito menor. IN PRIORE, Mary Del. História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. p. 142. 112 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 3.

41

salvar os seus semelhantes e de assegurar a felicidade após a morte. Uma preocupação im-

plícita da Burguesia em estabelecer uma ordem ao mundo da miséria. 113

O isolamento de crianças pobres na esfera da caridade (submetidos à educação moral)

tinha como objetivo preservar a moral destes, mas, sobretudo da sociedade, na qual se preve-

nia contra os potencialmente desviantes. Num segundo plano, a caridade tinha outra utilidade

que era a possibilidade de regenerar, pela educação moral e pelo trabalho, jovens degenera-

dos e despreparados, com intuito de seguirem uma ocupação útil à sociedade. Entretanto, tal

ação se baseava fundamentalmente em impedir a deterioração moral desses sujeitos do que

profissionaliza-los.114

Entretanto, no início do século XX, os asilos de caridade eram alvos de diversas críticas

de especialistas por não atenderem as especificidades do novo projeto de asilo, nos princípios

científicos no tratamento de menores. Segundo o médico Moncorvo Filho, em 1926:

O asilo, tal qual o concebiam os antigos, era uma casa na qual encafurnavam dezenas de crianças de 7 a 8 anos em diante nem sempre livres de uma pro-miscuidade prejudicial, educadas no carrancismo de uma instrução quase exclusivamente religiosa, vivendo sem o menor preceito de higiene, [grifo nosso] muitas vezes atrofiadas pela falta de ar e de luz suficientes. Via de regra pessimamente alimentadas, sujeitas, não raro, à qualquer leve falta, a castigos bárbaros dos quais o mais suave era o suplício da fome e da sede, aberrando, pois, tudo isso dos princípios científicos e sociais que devem pre-sidir a manutenção das casas da caridade, [grifo nosso] recolhimentos, pa-tronatos, orfanatos, etc, sendo, conseqüentemente os asilos nessas condições instituições condenáveis.115

As principais críticas aos estabelecimentos caritativos, realizados principalmente por

médicos e juristas, se referem à alta taxa de mortalidade infantil, a educação quase exclusi-

vamente religiosa, o tratamento indiscriminado e não especializado dos menores e falta de

preceitos higiênicos nos estabelecimentos caritativos. 116

Portanto, até o final da década de 1930, verifica-se no Brasil a existência de um embate

conflitivo entre duas tendências assistencialistas, caridade e filantropia. Um dos pontos de

ruptura e conflito entre os dois modelos será a substituição da fé pela ciência como justificati-

va para a assistência da população pobre. 117

113 RIZZINI, Irma. Assistência à Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed. Uni-versitária Santa Úrsula, 1993. p. 52. 114 Ibid., p. 51 a 55. 115 Apud Ibid., p. 56. 116 Ibid., p. 56. 117 Ibid., p. 47.

42

No início da República, a economia se baseia na redescoberta do trabalho como fonte

de riqueza, a caridade também será criticada pelos especialistas por promover a miséria, por

não distinguir sujeitos válidos e inválidos para o trabalho. Ou seja, a criança pobre não era

preparada para se enquadrar na sociedade produtiva. 118

Neste sentido, a filantropia, na orientação do trabalho, terá duas sinalizações: econômi-

ca e moral. Na questão econômica se fundamenta na formação de uma futura mão-de-obra,

através da educação profissional a ser realizada pelas instituições. Na questão moral, não se

limitando em apenas proteger a moral dos inocentes ou a moral da sociedade (como funda-

mentava a caridade), mas introduzir os improdutivos na esfera produtiva, além de prevenir a

desordem que a miséria poderia provocar.

Neste sentido, a filantropia surge para renovar a caridade, com nova concepção de as-

sistência (fundamentada nas ciências). Propondo-se a reintegrar os indivíduos desajustados

que na caridade seriam seus eternos clientes.

A assistência, com base filantrópica, difere da caridade nos seus objetivos e métodos

científicos (médica e jurídica inicialmente). As finalidades da filantropia são de cunho eco-

nômico, político e moral.119

O método científico da filantropia – com valores de ordem, disciplina, organização,

discrição e discriminação – através da higiene e educação, pretendia reintegrar os desajusta-

dos para se integrarem à Sociedade Brasileira o que requer o seu ajustamento às demandas do

mercado de trabalho e a sua aceitação das normas sociais e da moral vigente. 120 Portanto, o

objetivo da filantropia era qualificar o menor para o trabalho, através da ciência, evitando,

desta maneira, que viesse a aumentar as fileiras dos desocupados.

Porém, a caridade vai criticar as ações científicas dos estabelecimentos filantrópicos por

afastarem a palavra cristã em suas instituições. Entretanto, no início do século XX a pura fi-

lantropia não chega a ser estabelecida por seus defensores. Neste período, não há uma separa-

ção radical entre a filantropia e a caridade. Os estabelecimentos filantrópicos não têm sua

prática guiada apenas pela ciência, pois mantém algumas práticas inerentes a caridade.121

Com base no conceito de filantropia científica, tentaremos discutir a finalidade da Casa

do Pequeno Jornaleiro e observar se os objetivos da Casa se aproximam da filantropia cientí-

fica proposta nas primeiras décadas do século XX.

118 Ibid., p. 57. 119 Ibid., p. 57 e 58. 120 Ibid., p. 49. 121 Ibid., p. 60.

43

Nos relatórios da Casa do Pequeno Jornaleiro, percebemos que a casa não realizava a-

penas caridade, mas, sobretudo, preparava cidadãos para enfrentar os desafios da vida, con-

forme trecho: A orientação da Casa [...] não se cogita de CARIDADE e não se inculca no

menor o complexo de invalidez. Dá-se-lhe educação moral e intelectual, instrução e meios

para enfrentar a luta pela vida. 122

No capítulo 2, analisamos os serviços especializados – educação, médico, dentário, re-

ligioso e alimentação – da Casa que convergiam na recuperação do menor esquecido da cole-

tividade. Preocupando-se, também, com a higiene no interior da Casa: como refeitório e dor-

mitório, amplo e apropriado, fartamente arejado e higiênico. 123

Segundo o escritor Heitor de França, pelo qual sua crônica é expressa no relatório da

Casa: (...) impressiona, sobretudo, no quadro das atividades permanentes, como se cuida do

corpo e da alma dos pupilos, através de perfeito serviço médico-dentário e de assistência

escolar e religiosa, com excelentes resultados práticos.124

Temos um trecho que nos mostra um menor sendo recuperado pela Casa, através dos

serviços especializados. Percebemos que tal recuperação se enquadra na proposta da filantro-

pia científica proposta pelos médicos no início do século XX.

O herói do ano. Jornaleiro número 1 em antiguidade, exerce as funções de Fiscal nº 1 e chefia a turma 1. Ingressou na Casa em 31 de Dezembro de 1951. É órfão de mão. Não vive às expensas do pai e auxilia a sua madrinha (...). Demonstrou sempre bom comportamento, sendo de compleição sadia e está apto para enfrentar a vida em suas lutas. Foi alfabetizado na Instituição, na Escola Manoel Ribas recebendo diploma do 4º ano primário e continua recebendo assistência completa – alimentar, escolar, médica, dentária e religiosa [grifo nosso] e como produto de seus es-forços e de seu trabalho, é possuidor da Caderneta da Caixa Econômica (...)125

Percebemos, a Casa intervindo, com serviços científicos (educação, médico e odontoló-

gico) na recuperação do menor, transformando-o em cidadão útil ao trabalho. Isto nos deduz,

pelo menos em tese, que a Casa está, de certa maneira, cumprindo as exigências da filantropi-

a. Entretanto, a Casa do Pequeno Jornaleiro apresenta uma especificidade que é a ênfase ao

serviço religioso, alvo de críticas da filantropia científica. Mas, como aponta Rizzini: a filan-

122 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1955, p. 4. 123 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953, p. 38. 124 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1960, p. 20. 125 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957, p. 88.

44

tropia não abandona os preceitos religiosos, embora estes apareçam justificativas secundá-

rias e sem efeitos práticos.126

Entretanto, como foi discutido no segundo o capítulo, a Casa do Pequeno Jornaleiro não

colocava o serviço religioso em segundo plano ou sem efeitos práticos. O serviço religioso

pretendia cumprir a finalidade de ensinar o amor ao trabalho, o amor ao próximo e, acima de

tudo, a temer a Deus.127 Segundo a Casa, não bastava apenas oferecer serviços especializados

(científicos) da Casa aos menores. Era necessário, portanto, o ensino religioso (oferecido pela

Arquidiocese de Curitiba). Conforme trecho:

A êsses Pequenos Jornaleiros, crianças jogadas à sorte, em sua maioria ór-fãos, não bastavam o amparo que nesta Casa encontravam; mas sobre tudo a eles carecia o temor, o respeito a Deus; a fraternidade e a honestidade, o co-nhecimento e a obediência aos sublimes ensinamentos de Cristo, para que, preparados contra as vacilações da vida, se habilitassem a trilhar o caminho da verdade.128

Portanto, a estrutura da Casa do Pequeno Jornaleiro, com serviço religioso e demais

serviços científicos (médico, dentista, educadores e higiene) oferecidos pela Casa, convergia

numa única finalidade, pelo menos em tese: recuperar o menor abandonado para ser inserido

na sociedade ordeira, como cidadão útil a Pátria.

Neste sentido, para concluir o capítulo, esboçando algumas hipóteses, percebemos que

o conceito de filantropia científica, proposto no início do século XX será, em tese, a base ide-

ológica de instituições criadas após 1940. A Casa do Pequeno Jornaleiro pelo menos nos sina-

lizou para está hipótese. Porém, Rizzini discute se a filantropia obteve sucesso no objetivo de

recuperar menores para o trabalho. Tendo como base o SAM (Serviço de Assistência a Meno-

res) a hipótese será negada. Porque, segundo Rizzini, o SAM, passará a aglutinar a assistên-

cia à infância do país a partir de 1941, abandonando o ideal filantrópico do jovem útil à soci-

edade, e passará a encarcerar crianças e adolescentes em instituições fechadas.129

Mas nosso referencial empírico (Casa do Pequeno Jornaleiro) nos ofereceu outra hipó-

tese, pelo menos em tese (segundo os relatórios da Instituição), a Casa teria cumprido sua

finalidade filantrópica. Ou seja, recuperar menores abandonados, transformando-os cidadãos

úteis a sociedade.

126 RIZZINI, Irma. Assistência à Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed. Uni-versitária Santa Úrsula, 1993. p. 47 e 48. 127 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1961, p. 33. 128 Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1961, p. 33. 129 RIZZINI, Irma. Assistência à Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed. Uni-versitária Santa Úrsula, 1993. p. 49.

45

Conclusão

Para concluir o presente trabalho, recuperamos algumas idéias que foram discutidas na

monografia. A primeira delas se referem à filantropia científica, que teoricamente serviu de

base na configuração da Casa do Pequeno Jornaleiro, que foi uma hipótese levantada no final

do terceiro capítulo. Nos relatórios da Instituição, porém, limitam a idealização e a construção

da Casa pela Primeira Dama: Anita Ribas. Algo semelhante na Casa do Pequeno Jornaleiro do

Rio de Janeiro, no qual a construção e idealização pertencem a Darcy Vargas (esposa de Ge-

túlio Vargas).

Mas ao realizar o panorama geral das propostas de especialistas (no primeiro capitulo

no tópico Novo Asilo) e discutir o conceito de filantropia (capítulo terceiro) e compara-las

com a política da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba (capítulo segundo) podemos afirmar

que a idealização da Casa não surgiu de repente. Não estou negando da possibilidade das pri-

meiras damas terem sugerido (o que requer uma discussão específica da função social das

Primeiras Damas em trabalhos posteriores) a construção de uma instituição para atender os

menores abandonados denominada Casa do Pequeno Jornaleiro. O problema é: como criar,

quais as ações que a Instituição deveria adotar e qual formato de instituição deveria ser colo-

cado. Essas preocupações não surgiram do nada. Neste sentido, de acordo com as discussões

da presente monografia, podemos afirmar que a Casa do Pequeno Jornaleiro teve uma orien-

tação da filantropia científica. Pois as discussões em torno de modelos de instituições, com

orientação da ciência, já estavam em debate desde o início do século XX, portanto, na inaugu-

ração da Casa do Pequeno Jornaleiro, vem de encontro com estas propostas já colocadas.

Da mesma maneira, a ação centralizadora do Governo Vargas no que tange a infância

não surge do nada. Pois as propostas de médicos e intelectuais, no início do século XX, exigi-

am, além das propostas da filantropia científica, uma participação mais efetiva do Estado nas

questões da criança pobre. Portanto, esta demanda social, de certa maneira, será atendida no

governo Vargas, pois teremos ações de caráter centralizadoras nas questões da infância pobre.

Conforme Rizzini:

A criação do Serviço de Assistência aos Menores (SAM) não pode ser en-tendida somente como uma atitude de caráter centralizador de um governo ditatorial. Deve-se levar em conta que, há pelo menos três décadas, os “após-tolos” da assistência vinham defendendo o lema de sua centralização num

46

órgão que passaria a ter o controle sobre as ações dirigidas a esta população, tanto do setor público quanto do privado. 130

Os órgãos centralizadores criados na década de 1940 no governo Vargas já eram pro-

postas de especialistas como o médico Moncorvo Filho, os quais exigiam uma participação

mais efetiva e centralizadora do Estado. Da mesma forma a estruturação de instituições como

a Casa do Pequeno Jornaleiro já era idealizada por médicos e intelectuais nas primeiras déca-

das do século XX.

130 RIZZINI, Irma. Meninos Desvalidos e Menores Transviados: A Trajetória da Assistência Pública até a Era Vargas. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A História das Políticas Sociais, da Legislação e da Assis-tência à Infância no Brasil. Editora Universitária Santa Úrsula: Rio de Janeiro, 1995. p. 275.

47

Fontes:

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1953.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1954.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1955.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1956.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1957.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1958.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1959.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1960.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1961.

Relatório da Casa do Pequeno Jornaleiro de Curitiba, 1962.

A grande data dos pequenos vendedores de jornais. Gazeta do Povo.Curitiba. 25 de de-zembro de 1943. Ano XXV. Nº 7120. Inaugurada a “Casa do Pequeno Jornaleiro”. Gazeta do Povo. Curitiba. 28 de dezembro de 1943. Ano XXV. Nº 7120. “Casa do Pequeno Jornaleiro”. Diário da Tarde. Curitiba. 24 de dezembro de 1943. Ano 45. Nº 14893. “Casa do Pequeno Jornaleiro”. Diário da Tarde. Curitiba. 27 de dezembro de 1943. Ano 45. Nº 14894.

48

Referências bibliográficas:

CASTRO, Elizabeth Amorim. A arquitetura do isolamento em Curitiba na República Velha. Curitiba: Maxigráfica e Editora Ltda, 2004. KARVAT, Erivan Cassiano. Vadios e mendigos: dentro e fora das leis. In: _____. A Socie-

dade do Trabalho: Discursos e práticas de controle sobre a mendicidade e a vadiagem em Curitiba, 1890-1933. Curitiba: Aos quatro ventos, 1998. LONDOÑO, Fernando Torres. A origem do Conceito Menor. In: PRIORE, Mary Del (org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. p. 129 – 145. MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha. Revista Brasi-leira de História, São Paulo, v. 19, n. 37, p. 85-102. 1999. RIZZINI, Irma. Assistência à Infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: Ed. Universitária Santa Úrsula, 1993. RIZZINI, Irma. Meninos Desvalidos e Menores Transviados: A Trajetória da Assistência Pú-blica até a Era Vargas. In: RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. A História das Políticas Sociais, da Legislação e da Assistência à Infância no Brasil. Editora Universitária Santa Úrsula: Rio de Janeiro, 1995. SARTOR, Carla Silvana Daniel. Perfil da Produção Atual das Ciências Humanas e Sociais sobre Criança Pobre No Brasil. In: RIZZINI, Irene. Olhares sobre a Criança no Brasil: Sé-culos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1997. DUPRAT, Catherine. Punir e Curar – em 1819, A Prisão dos Filantropos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 7, n. 14, p. 7-58, mar./ago. 1987. GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÉS, Philippe; CHARTIER, Roger. História da Vida Privada 3: Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Editora Sch-waez, 1991. PINHEIRO, Luciana de Araújo. A civilização do Brasil através da infância: propostas e ações voltadas à criança pobre nos anos finais do Império (1879-1889). Niterói, 2003. 144 f. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense. RODRIGUES, Andréa da Rocha. Infância esquecida (Salvador 1900 – 1940). Salvador, 1998. 248 f. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de Filosofia e Ciências Hu-manas, Universidade Federal da Bahia. SANDIN, Bengt. Imagens em conflito: Infâncias em Mudanças e o Estado de Bem-Estar So-cial. Reflexões sobre o Século da Criança. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 19, n. 37, p. 15-34. 1999.