O Grande Inquisidor, de Dostoiévski e a crítica ao marxismo

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    XII Congresso de Iniciao e Produo Cientfica

    XI Seminrio de Extenso da Metodista

    VI Seminrio PIBIC/UMESP 27 a 29 de outubro de 2009

    Ttulo: "O Grande Inquisidor", de Dostoivski e a crtica ao marxismo

    Nmero: 5012 Curso: Ps-Graduao em Cincias da Religio

    Introduo

    O intuito deste ensaio procurar mostrar que O Grande Inquisidor , de Dostoivski,contm uma forte crtica ao marxismo. Num primeiro momento, relato a histria daparbola O Grande Inquisidor. O Reino do Inquisidor, citado na parbola, pode ser comparado ao comunismo, por isso relato as caractersticas que os aproximam. Ao longodestas duas temticas, as idias de Dostoivski e Marx foram apresentadas em termos decomparao e oposio. Por ltimo, nas consideraes finais, procurei identificar oaspecto antropolgico da crtica feita por Dostoivski por meio de O Grande Inquisidor aomarxismo.

    1 Contando O Grande Inquisidor

    A parbola O Grande Inquisidor foi escrita por Dostoivski em seu romance OsIrmos Karamazovi , nos anos de 1879-80. O personagem Ivan, ateu, intelectual e liberal,narra a histria a seu irmo Alicha, aspirante a monge ortodoxo, cheio de f. Naparbola, Cristo aparece como smbolo da liberdade e o Inquisidor, cardeal do SantoOfcio da Inquisio, como smbolo da conscincia dominadora, da autoridade, do Anticristo (porque se ope a Cristo).

    A histria se passa na poca da Inquisio, na cidade de Sevilha, Espanha. Nessapoca, era costume nas obras poticas fazer com que as foras celestes descessem Terra. Foi o que aconteceu com Jesus que a ela retornou, no de forma gloriosa, massemelhante sua primeira vinda, aparecendo para as pessoas que ansiavam por Ele.Silenciosamente, Jesus reconhecido pela multido, opera curas, maravilhas, ressuscitaos mortos e demonstra seu infinito amor. A multido se alvoroa, grita e chora. Aoperceber o tumulto causado por Cristo, um velho cardeal de noventa anos, o GrandeInquisidor, manda prend-lo nas casas do Santo Ofcio por heresia e na noite daquele diainicia suas acusaes contra Ele. Ento, o Inquisidor ameaa Jesus dizendo que tempoder para colocar a multido dos fiis contra Ele.

    Segundo O Grande Inquisidor , Jesus acusado por ter proporcionado liberdade aosseres humanos que so vistos como miserveis e incapazes de lidar com esta

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    responsabi lidade: no pensaste que ele [o ser humano] acabaria repelindo a Tua imageme a Tua verdade, esmagado por esse fardo terrvel que a liberdade de escolher ? 1. Emseguida, o Inquisidor prossegue o seu discurso acusando Jesus de ter sido muito tolo aorecusar as propostas de Satans na tentao do deserto (cf. Mt 4. 1-11) e explica o que

    teria acontecido caso Jesus tivesse aceitado suas propostas. A primeira tentao deu-se na esfera do milagre. Segundo o relato bblico, aps

    jejuar quarenta dias, Satans apareceu a Jesus e ordenou que Ele transformasse pedrasem pes. Para o Inquisidor, se Jesus tivesse realizado este milagre, a humanidade teria oque comer e este seria um meio de dominao global: Melhor ser que nos torneis

    escravos, contanto que nos deis de comer. [...] Mas, repeliste o nico meio que Teofereciam para congregar a humanidade num culto nico, indiscutvel, levantando oestandarte do po ter restre 2.

    Na segunda tentao, Satans disse para Jesus se precipitar do pinculo do temploporque Deus enviaria anjos para proteg-lo. A questo central desta tentao aconfiana que no necessita ver para crer. Jesus no deveria tentar Deus exigindomilagres.

    A terceira e ltima tentao diz respeito glria que seria concedida a Jesus seprostrado Ele adorasse a Satans. Apesar de Jesus ter recusado a proposta, ocristianismo, na parbola, atravs da Igreja Catlica Romana aceitou a proposta malignapor meio da posse do poder temporal na terra.

    De acordo com a parbola, o Inquisidor aceitou as trs tentaes (o po, o milagre eo poder) e deseja fundar seu Reino de acordo com esta trade rejeitada por Cristo. Por meio do po, o Inquisidor atrairia a multido faminta; por meio da aceitao da segundatentao, o Inquisidor alcanaria a multido desejosa de milagres e por meio da autoridadee do poder, o Inquisidor teria domnio sobre as conscincias humanas.

    2 O tema da liberdade em O Grande Inquisidor como crtica ao marxismo

    A liberdade3 para Dostoivski uma marca de Deus, assim como Deus livre, o ser

    humano tambm o , entretanto, ser livre implica em sofrer. No existe liberdade semsofrimento. Na parbola, o personagem Ivan considera emocionalmente insuportvel eintelectualmente incompreensvel a existncia do sofrimento e da misria no mundo, aquesto da teodicia o corri interiormente.

    1 DOSTOIVSKI, Fidor Mikhailovich. O Grande Inquisidor. In:Os Irmos Karamazovi. (Trad. Rachel deQueiroz e introduo de Otto M. Carpeaux). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1953. p. 492.

    2 Idem, ibidem, p. 489.

    3

    Sobre o tema da liberdade em Dostoivski ver as seguintes obras: BERDIAEFF, Nicolai.O esprito de Dostoivski . Traduo de Otto Schneider. Rio de Janeiro: Panamericana, 1921 e POND, Luiz Felipe.Crticae profecia: A filosofia da religio em Dostoivski. So Paulo: Editora 34, 2003

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    No intuito de sanar o sofrimento humano, o Inquisidor, na companhia de seuscolaboradores, julga-se escolhido e capaz de empreender uma nobre misso: acabar como reino da liberdade concedida por Cristo. Por isso, a utopia do seu Reino consiste nacriao de um mundo feliz e bom, sem liberdade, onde todos/as estaro debaixo do seu

    domnio:conosco todos sero felizes; os homens no mais se ho derevoltar, deixaro de se destruir mutuamente, como o faziamno reino da Tua liberdade. Oh, conseguiremos convenc-losde que no sero realmente livres seno quando renunciarem sua liberdade e se submeterem a ns 4

    Para o Inquisidor, a ausncia da liberdade o caminho para a felicidade . Naperspectiva dele, Cristo culpado e cruel por ter concedido liberdade ao ser humano.Cristo pede ao ser humano que sofra em favor Dele, j o Inquisidor capaz de sofrer pelo

    ser humano, como um bom humanista.Dostoivski ope-se proposta do Inquisidor ao negar qualquer tipo de

    racionalizao da sociedade humana que tenta colocar a felicidade, a razo e o bem-estar acima da liberdade. Dostoivski enxergava como uma ameaa qualquer idia de felicidadeuniversal e de unio entre as pessoas quando Deus excludo destes propsitos. Paraele, um engano pensar numa sociedade justa e igualitria sem a presena de Cristo. Por este motivo, sua parbola contm uma forte crtica ao marxismo. A verdadeira liberdade eigualdade no so possveis seno em Cristo, fora dele, s possvel encontrar a tirania.

    A viso de Dostoivski acerca da liberdade oposta aos preceitos marxistas.Vejamos o que diz Marx acerca da liberdade:

    H verdades eternas, como a liberdade , a justia etc, que socomuns a todos os regimes sociais. Mas o comunismo quer abolir estas verdades eternas , quer abolir a religio e a moral ,em lugar de lhes dar uma nova forma e isto contradiz todo odesenvolvimento histrico anterior 5

    De acordo com esta citao do Manifesto Comunista , a liberdade para Marx eramuito mais uma idia burguesa do que um valor que merecesse apreo, por este motivo,no comunismo, todas estas verdades eternas devero ser extintas. A teoria marxista foiuma resposta prtica ao idealismo alemo predominante em seu tempo. Como teoria

    materialista, os marxistas se opunham aos idealistas. A idia de que a liberdade umconceito, no sentido burgus e idealista do termo, assim descrita: "A definio daliberdade como igual direito escolha a idia burguesa da liberdade e no a realidadehistrico-social da liberdade6 e mais:

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    DOSTOIVSKI, 1953, p. 4975 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista . So Paulo: CHED, 1980. p. 356 CHAU, Marilena. O que ideologia . 11. ed. So Paulo: Brasiliense, 1983. Coleo Primeiros Passos. p.89.

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    Na sociedade burguesa, o capital independente e pessoal,ao passo que o indivduo que trabalha no tem nemindependncia nem personalidade. a abolio desemelhante estado de coisas que a burguesia verbera como aabolio da individualidade e da liberdade. E com razo.Porque se trata efetivamente de abolir a individualidadeburguesa, a independncia burguesa, a liberdade burguesa

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    Para Marx, a liberdade que Dostoivski tanto zelava no passava de uma liberdadeburguesa. Nos preceitos marxistas, este tipo de liberdade aprisiona e no liberta, por isso, prefervel a igualdade anunciada no comunismo liberdade individual da burguesia. Aliberdade burguesa aliena, causa injustias e sofrimentos, portanto, no merece prevalecer no futuro reino comunista. Embora Marx critique e deseje abolir a liberdade burguesa, eleno exclui completamente o conceito de liberdade. No comunismo haveria de prevalecer outra liberdade, a liberdade da coletividade, diferente da liberdade burguesa:

    Apenas na coletividade que cada indivduo encontra osmeios de desenvolver suas capacidades em todos ossentidos; somente na coletividade, portanto, torna-se possvel a liberdade pessoal. Nos sucedneos da coletividadeexistentes at aqui, no Estado etc., a liberdade pessoal temexistido apenas para os indivduos desenvolvidos dentro dasrelaes da classe dominante e apenas na medida em queeram indivduos dessa classe. (...) Este direito de poder desfrutar imperturbavelmente, dentro de certas condies, oacaso, tem sido chamada at agora de liberdade pessoal. (...)Na imaginao, os indivduos parecem ser mais livres sob a

    dominao da burguesia do que antes, porque suascondies de vida parecem acidentais; mas, na realidade, noso livres, pois esto mais submetidos ao poder das coisas 8.

    O paralelo do comunismo com o Reino do Inquisidor claro, pois ambos desejamsuprimir a liberdade: o Inquisidor quer acabar com a liberdade concedida por Cristo, nointuito de sanar o sofrimento humano, j o marxismo quer acabar com a liberdadeburguesa para proporcionar igualdade s pessoas.

    Para Dostoivski, a liberdade inerente e no externa e alheia ao ser humano. Apessoa no precisa de circunstncias externas para ser livre, ela , por natureza, por semelhana a Deus, essencialmente livre. Dostoivski compreendeu que o ser humanopode ser livre, mesmo estando algemado e condenado. A experincia dele no exlio naSibria, em sua juventude, o fez perceber o valor da liberdade. Por assim acreditar,Dostoivski se posicionou contra a Teoria do Meio que afirmava que o ser hum ano fruto do seu meio social. Para ele, a responsabilidade por qualquer ao, boa ou m,

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    MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista . So Paulo: CHED, 1980. p. 29.8 MARX, K. ; ENGELS, F. A ideologia alem [I Feuerbach] . Traduo de Jos Carlos Bruni e MarcoAurlio Nogueira. So Paulo: Grijalbo, 1977. p. 117-119.

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    inerente ao ser humano por conta da sua liberdade e no devido ao meio no qual ele estinserido.

    A oposio de Dostoivski Teoria do Meio foi tambm uma forte crtica ao

    marxismo, pois Marx acreditava que aspectos externos vida influenciavam e at mesmo

    impediam o ser humano de ser livre. Por exemplo: um trabalhador, por estar submetido aum injusto processo de produo no seu trabalho, tornando-se escravo dele, jamaisconseguiria ser livre ao menos que estas produes fossem alteradas. A mudana e aliberdade, na concepo marxista, so externas e no interiores ao ser humano, por isso,a necessidade da revoluo para transformar a sociedade: Para o materialista prtico,

    isto , para o comunista , trata-se de revolucionar o mundo existente, de atacar etransformar, praticamente, o estado de coisas que ele encontrou 9. Vejamos outros trechosonde Marx explicita estas idias:

    O que os indivduos so, portanto, depende das condiesmateriais de sua produo. (...) No a conscincia [algointerno] que determina a vida, mas a vida [com suascircunstncias reais] que determina a conscincia. (...) Ascircunstncias fazem os homens assim como os homensfazem as circunstncias 10

    A crtica de Dostoivski ao marxismo, depois da discusso em torno da liberdade,prossegue com a discusso do Reino do Inquisidor e sua relao com o comunismo.

    3 O Reino do Inquisidor como crtica ao comunismo marxista

    Para o Inquisidor, no existe sentido metafsico nem eternidade, portanto, s restapromover a felicidade sobre a Terra. Por este motivo, o Reino do Inquisidor est baseadoem valores terrenos como o po (primeira tentao), o milagre (segunda tentao) e opoder (terceira tentao). Dostoivski enxergou a semelhana do Reino do Inquisidor tantono catolicismo romano quanto no socialismo europeu, especialmente o marxismo 11. ParaDostoivski: o socialismo e o catolicismo t inham-se tornado idnticos como encarnaesda primeira [socialismo] e da terceira [catolicismo] tentao de Cristo 12.

    Tal como o Reino do Inquisidor, o marxismo surge no intuito de implantar um reinode justia no presente, na terra. O marxismo desejava:

    efetivamente libertar o homem e, no fundo, quer ser acorreo dos erros praticados pelo cristianismo . Condenando

    9 MARX, K. ; ENGELS, F. A ideologia alem [I Feuerbach] . Traduo de Jos Carlos Bruni e MarcoAurlio Nogueira. So Paulo: Grijalbo, 1977. p. 66.

    10 Idem, ibidem,. p. 27, 28, 37 e 56.11 O Grande Inquisidor uma crtica ao socialismo europeu do sculo XIX. Como o maior expoent

    socialismo foi Karl Marx, a crtica, de forma indireta, chega ao marxismo.12

    FRANK. Joseph. Dostoivski: o manto do profeta (1871-1881) . Traduo de Geraldo Gerson de Souza. SoPaulo: Edusp, 2007. p. 549. Esta obra compreende o quinto e ltimo volume da biografia de Dostoiescrita por este autor, considerado o maior especialista em Dostoivski da atualidade.

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    o cristianismo como religio que aliena, o marxismo quer ocupar o seu lugar (...). A eficincia de seu credo vem da fque desperta o seu mtodo: a viso encantada dos parasosque se perderam, no apresentado em Marx como umsonho, e sim como resultado de uma dialtica fria, inexorvel,[cientfica]13

    Se o marxismo deseja ser a correo dos erros praticados pelo cristianismo, oInquisidor, da mesma maneira, deseja corrigir o terrvel fardo da liberdade concedida por Cristo atravs da implantao de seu Reino.

    Por meio do Reino do Inquisidor, Dostoivski faz uma crtica a qualquer tentativa dese estabelecer um paraso terrestre. Quando Dostoivski assemelha o Reino do Inquisidor com o socialismo, na verdade, ocorre uma crtica indireta a este sistema, em forma detexto literrio. A crtica, porm, clara. Para Dostoivski, o socialismo/marxismo era, antesde tudo, uma questo religiosa: a questo de Deus e da imortalidade, do atesmo e daTorre de Babel (cf. Gn 11.1-9) construda sem Deus para fazer descer o cu sobre a terra:

    O socialismo quer substituir o cristianismo, substitu-lo por simesmo. Como este, ele est impregnado do espritomessinico e pretende trazer a boa nova de uma humanidadesalva de suas misrias e de seus sofrimentos. E o socialismosurgiu do solo judeu. Ele a forma secular do antigomilenarismo hebreu, da esperana de Israel num milagrosoreino terrestre, numa felicidade terrena 14

    Dostoivski no acreditava que era possvel estabelecer uma espcie de paraso

    terrestre. Como cristo ortodoxo, sua viso de Deus era transcendente, ou seja, Deus estalm dos limites da existncia terrena, da vida concreta e real:

    Para a ortodoxia, assim como para Dostoivski, no hsalvao no regime da natureza. A salvao s se d nadimenso da absoluta Transcendncia: tanto o corpo quanto aalma, bem como a natureza, s so efetivamente salvos, isto, s se redimem eficazmente do pecado e da queda em queesto imersos por meio de uma imerso contrria, nosobrenatural, a partir de uma transfigurao 15.

    Feitas estas primeiras consideraes, preciso entender o motivo que levou Marx adesenvolver sua teoria.

    Para compreendermos Marx precisamos atentar para a sua compreenso acerca daHistria. A Filosofia da Histria, como produto cristo, teve suas origens em Agostinho.Este importante telogo enxergava na Histria o cumprimento e o agir da Providnciadivina. O filsofo alemo Hegel, que influenciou fortemente Marx, no pensava a Histriacomo uma sucesso contnua de fatos no tempo, mas como um movimento, um processo,

    13 BARBUY, Heraldo. Marxismo e Religio. So Paulo: Dominus, 1963.p. 47-48.

    14 BERDIAEFF, 1921, p. 171.15 POND, 2003, p. 91.

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    dotado de fora interna, criador dos acontecimentos atravs da contradio, da dialtica.Este movimento na histria foi chamado por Hegel de Histria do Esprito. O que ficaevidente tanto em Agostinho quanto em Hegel o fato de que o destino humano estdiante de foras transcendentes a ele. No caso de Agostinho a Providncia divina, no

    caso de Hegel, a prpria Histria. Em Marx, ocorre uma mudana nesta concepo, poisele no admite qualquer absoluto que no seja o ser humano, portanto, o ser humano absolutizado e divinizado, autor e construtor de sua prpria histria, processo chamadopor Dostoivski de deificao. Diante da compreenso marxista da histria, o ser humanosurge como um Sujeito histrico, consciente de sua importncia na construo de outromundo.

    De acordo com a teoria econmica marxista, o processo de desenvolvimento docapitalismo se esgotaria e daria origem a uma sociedade sem classes chamada de

    comunismo. Nesta sociedade paradisaca iria predominar a igualdade e a justia. Extinta aluta de classes, o ambiente seria de paz, harmonia e contentamento. Enquanto que nocristianismo, a esperana estaria na felicidade eterna, no ps-morte (teologia tradicionalpredominante), a esperana marxista estaria na felicidade terrena, num final escatolgicoem que o Estado seria extinto.

    A diferena do comunismo para o paraso cristo est em um fato importante: aexistncia de Deus. Para a f crist, Deus quem salva e conduz ao paraso. Para omarxismo, o ser humano ocupa o lugar de Deus. Este ser transcendente chamado Deusperde sua funo ou deixa de existir, nisto reside a base do atesmo marxista. Para Marx,no existem deuses, mas h omens 16 e estes so responsveis e convocados a lutar por uma nova sociedade:

    Os comunistas no se rebaixam a dissimular suas opinies eseus fins. Proclamam abertamente que seus objetivos spodem ser alcanados pela derrubada violenta de toda ordemsocial existente. Que as classes dominantes tremam idiade uma revoluo comunista! Os proletrios nada tm aperder nela a no ser suas cadeias. Tm um mundo a ganhar.

    Proletrios de todos os pases, uni-vos!17

    Dostoivski questiona a possibilidade de transformao de um mundo sem a

    existncia de Deus ou de Cristo

    Ser possvel transformar o mundo numa realizao do ideal cristo sem acreditar em Cristo? [ideal socialista]. [...] Osmesmos ideais e sentimentos que haviam levado Alicha aZssima [pai espiritual de Alicha] poderiam t-lo levado aoatesmo a ao socialismo, pois ambos fornecem caminhos

    16 DESROCHE, Henri.O marxismo e as religies . Traduo de Lucas Rabelo Malaquias. Rio de Janeiro: Paz

    Terra, 1968. 17 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista . Traduo e reviso de Maria Arsnio da Silva. SoPaulo: CHED, 1980. p. 55.

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    divergentes que conduzem ao mesmo objetivo: atransformao da vida terrena numa sociedade mais prximado Reino de Deus ; mas o primeiro seria guiado por Cristo ,enquanto o segundo carece da bssola moral que Eleoferece .18

    O Inquisidor deseja transpor as pessoas do Reino de Cristo, reino de liberdade esofrimento, para o seu Reino anticristo, reino da verdadeira felicidade. Neste processo

    ocorre um deslocamento, do Reino de Cristo ou do Deus Homem para o Reino do Anticristo ou Homem Deus. Da mesma maneira, o comunismo deseja transpor o indivduodo Reino de Deus, reino da alienao e da iluso, para o Reino do Homem, reino daautonomia e do humanismo, onde indivduo torna-se seu prprio Deus. O comunismo asociedade ideal para a manifestao do Homem-Deus. Neste caso, Marx disse:

    Como se passa realmente do reino de Deus para o reino do

    homem como se esse reino de Deus tivesse sempreexistido a no ser na imaginao e como se os eruditossenhores no tivessem vivido sempre, sem sab- lo, no reinodos homens, para o qual procuram agora o caminho 19

    A sociedade comunista proposta por Marx se aproxima de valores cristos como oparaso, a igualdade e a paz, entretanto, ele bastante crtico em relao religio.

    As concepes sobre a religio em Marx receberam influncias de filsofos alemes,entre eles L. Feuerbach 20 que afirmava que Deus era uma projeo humana do mundointerior. O ser humano no aquilo deve ser (essncia), por este motivo faz uma projeo

    dos seus prprios desejos tornando-os objetos de adorao:Deus a mais alta subjetividade do homem, abstrada de simesmo. (...). O homem projeta o seu ser na objetividade eento se transforma a si mesmo num objeto face a estaimagem de si mesmo, assim convertida em sujeito 21.

    Marx, embora tenha criticado Feuerbach, tambm enxergava a religio como umacriao humana. Ele explicita esta idia, juntamente com Engels, no texto Contribuio

    crtica da filosofia do direito de Hegel , escrito e m 1844:

    O fundamento da crtica religio : o homem fez/criou areligio ; a religio no fez o homem (...). O homem o mundodos homens , o estado, a sociedade. Este estado e estasociedade produzem a religio, uma conscincia invertida domundo (...) a religio a teoria geral deste mundo (...) a sualgica sob forma popular (...), a sua sano moral (...), a suaconsolao e justificao universais. a realizao fantstica do ser humano, porque o ser humano no possui verdadeira

    18 FRANK, 2007, p. 722 -724. Grifo meu.19 MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alem [I Feuerbach] . Traduo de Jos Carlos Bruni e Marco

    Aurlio Nogueira. So Paulo: Grijalbo, 1977. p. 59.20

    Idem, ibidem. Esta obra uma crtica filosofia alem, neo hegeliana, predominante na poca de Mrepresentada por Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner,21 ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos . 5. ed. So Paulo: Paulus, 2003.p. 45.

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    realidade (...). O sofrimento religioso ao mesmo tempo aexpresso de sofrimento real e o protesto contra umsofrimento real. A religio o suspiro da criatura oprimida, ocorao de um mundo sem corao, da mesma forma comoela o esprito de uma situao sem esprito. Ela o opium do povo22

    Em meio dor do sofrimento da vida, o ser humano busca a religio. A religio,assim como o pio, anestsica e paliativa, ou seja, ela tira a dor, mas no cura. Areligio apenas anestesia a realidade, mas no a transforma, por isso alienante.Tratando-se em termos sociais, Marx compara a religio como flores em meio a prises.Nesta situao, as flores (ou a religio) abrandam e alegram as cadeias que

    permanecem intactas. Desta forma, a religio no passa de uma iluso. A funo da crticaalem religio foi mostrar que existe uma iluso (a religio) que precisa ser superada:

    A crtica da religio destruiu as iluses do homem para queele pense, aja, construa a sua realidade como homem semiluses chegado idade da razo, para que gravite em voltade si mesmo, isto , do seu sol real. A religio no passa dosol ilusrio que gravita em volta do homem enquanto ohomem no gravita em torno de si mesmo 23

    Desiludir o ser humano acabar com a religio. Quando as iluses forem abolidas, omundo ir se transformar. Na sociedade ideal no haver necessidade de religio,contudo, enquanto no houver sociedade ideal, ou comunismo, a religio estar semprepresente.

    Marx diz que a religio alienante. O que isto, na verdade quer dizer? O conceito dealienao marxista diz respeito a qualquer atribuio da vida social a foras ignoradas,alheias, superiores e independentes de seus criadores, quer sejam os deuses, a natureza,a razo, o Estado ou o destino. Alienao quando o Sujeito no se reconhece comoprodutor das obras e como sujeito da histria, mas toma as obras e a histria como forasestranhas, exteriores, alheias a ele e que o dominam e perseguem 24. Alienao estligada ao conceito marxista de ideologia. A ideologia surge no intuito de fazer com que aspessoas creiam que suas vidas so resultados de intervenes da natureza, de Deus, doEstado, etc. A ideologia cristaliza em verdades a viso invertida da realidade, por isso, nopermite pessoa enxergar a realidade como ela . Marx vai dizer que a ideologiapredominante na sociedade a ideologia da classe dominante, portanto, sua inteno apaziguar as lutas de classes para dominar.

    22 MARX, K.; ENGELS, F. Contribuicin a la crtica de la filosofia del derecho de Hegel (1844). In:Sobre la Religin. Edicin preparada por Hugo Assmann Reyes Mate. Salamanca: Sgueme, 1979. 2ed. p. 93-94trechos traduzidos.

    23

    Idem, ibidem, p. 94.24 De acordo com a obra de CHAU, Marilena. O que e ideologia . 11. ed. So Paulo: Brasiliense, 1983. ColeoPrimeiros Passos. p.41

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    Consideraes Finais

    Dostoivski, posteriormente, foi chamado de profeta da Revoluo Russa emvirtude das palavras contidas em sua parbola. O socialismo russo foi interpretado por alguns como o cumprimento do Reino do Inquisidor. De acordo com esta interpretao, o

    po rejeitado por Cristo no episdio da primeira tentao foi aceito pelos revolucionriosrussos como princpio para o estabelecimento do socialismo naquele pas. A base dosocialismo marxista a descrena: ele no cr em Deus, na imortalidade e na liberdadedo esprito humano, por isso, aceita a tentao de transformar as pedras em pes, atentao do milagre social.

    A antropologia do Inquisidor, segundo Dostoivski, embora parea humanista justamente o contrrio, ou seja, anti-humanista. Nesta perspectiva, o ser humano acabado, previsvel, manipulvel, sem poder de deciso, completamente sujeitoqueles/as que detm suas conscincias. No caso da parbola, o Inquisidor desejadominar a conscincia das mul tides para promover a felicidade a todos. Dostoivskiescreveu, em 1873: O que o homem sem desejos, sem liberdade de d esejo e deescolha, se no uma pea num rgo? 25. Uma pea em cima de um rgo um objetopronto, definido e sem escolhas. Da mesma forma, o ser humano sem liberdade semelhante quela pea, ao viver o que j est escolhido e determinado para ele/a. OInquisidor escolheu trocar Cristo e a liberdade por si e pela felicidade da multido. Deforma muito semelhante, o comunismo tentou fazer descer o Cu Terra sem o auxlio deDeus, mas por intermdio nico e exclusivo da ao humana. Para Marx, no comunismo,as pessoas no teriam a liberdade burguesa to criticada por ele, mas teriam a liberdadena coletividade, a uniformidade, a ordem, a abolio das classes, a harmonia e a paz.Entretanto, de acordo com os dados histricos, a Revoluo Russa, como uma tentativade implantao do socialismo naquele pas, revelou a ambigidade da teoria marxista. Arevoluo deveria libertar, entretanto, sabemos que, principalmente no perodo stalinista, apopulao foi submetida a um regime totalitrio. Neste regime, a maioria da populao noexerceu a sua liberdade pessoal (burguesa, na concepo marxista) e muito menosexperimentou a ideal liberdade do comunismo. A populao russa desse perodo ficoucativa. A liberdade levou ao cativeiro e tirania. O humanismo libertador ateu deu origemao desespero e ao caos.

    Enquanto que a antropologia do Inquisidor anti-humanista, na parbola, deacordo com o Reino de Cristo, o ser humano se descobre paulatinamente, atravs daliberdade, da conscincia, do desejo e no ato de poder escolher o prprio caminho.

    25 Apud: SANTOS, Luciano Gomes dos. O cristianismo humanismo? Ensaio a respeito da parbola

    Grande Inquisidor de Dostoivski. Convergncia - Revista mensal da Conferncia dos Religiosos do Brasil (CRB) Rio de Janeiro, Ano XLI, n. 396, p. 506-512, outubro 2006. p. 512.

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    Dostoivski cessara de crer no homem maneira humanitria, mas cria nele como

    cristo, aprofundando, fortificando sua f. Eis porque Dostoivski no pode ser um escritor pessimista e desesperado 26. De acordo com a antropologia dostoievskiana, h certootimismo ao acreditar em Cristo e no ser humano restaurado por Ele, contudo, para o ser

    humano afastado da presena de Deus s resta o pessimismo:Na medida em que o ser humano perde o referencial vertical[Deus], ele se desfaz, se dissolve. Ento no sobra ser humano para ficar no lugar de Deus, o que sobra oespetculo do niilismo, o espetculo da dissoluo dacondio humana 27.

    O Inquisidor, como um bom humanista, demonstra um grande amor pelahumanidade, a ponto de lutar contra Cristo em prol dela. Porm, para Dostoivski, oamor fora do cristianismo apenas um amor mentiroso e ilusrio, por isso, o amor ateu e

    anticristo do Inquisidor em nome da humanidade e da felicidade terrena intil. Estaposio de Dostoivski em relao ao amor cristo se refere s palavras ditas por Jesus: Amars, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu corao, e de toda a tua alma, e de todo

    o teu entendimento, e de todas as suas foras: este o primeiro mandamento. E o

    segundo, semelhante a este : Amars o teu prximo como a ti mesmo. No h outro

    mandamento maior do que estes (Mc 12.30 -31). Para Dostoivski, a pessoa deveprimeiro amar a Deus para depois amar o prximo, sem o amor a Deus, o amor aoprximo no possvel. a forma e a semelhana divina que se ama no semelhante, por

    isso, amar o ser humano, se Deus no existe, significa vener-lo como deus, incorrer emidolatria e iludir-se com um pseudo-amor.

    Em resumo, pode-se dizer que O Grande Inquisidor faz uma forte crtica no que serefere idia de que seja possvel construir, atravs da razo, na histria e nasrevolues, um processo salvfico da humanidade sem a presena de Cristo. ParaDostoivski, s podero ocorrer mudanas significativas quando a humanidade setranscendentalizar. Para ele, as mudanas sero alcanadas, mas atravs de umprocesso interior e pessoal de transformao. Em suma, ele rejeita utopia da construode uma histria que tem por base a lgica dialtica natural e neste aspecto, a crtica aomarxismo bastante clara e coerente.

    26 BERDIAEFF, 1921. p. 29-30.27 POND, 2003, p. 179.

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    XI Congresso de Iniciao e Produo Cientfica

    X Seminrio de Extenso da Metodista

    V Seminrio PIBIC/UMESP 28 a 30 de outubro de 2008

    Referncias Bibliogrficas

    ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos . 5. ed. So Paulo: Paulus, 2003.BARBUY, Heraldo.Marxismo e Religio. So Paulo: Dominus, 1963.BERDIAEFF, Nicolai.O Esprito de Dostoivski . Traduo de Otto Schneider. Rio de

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    MARX, Karl (1818-1883).Manuscritos Econmico-filosficos e outros textos escolhidos.Seleo de textos de Jos Arthur Giannotti; tradues de Jos Carlos Bruni. 2 ed. SoPaulo: Abril Cultural, 1978. (Coleo Os Pensadores).