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    Comissão Científica 

    Prof. Dr. Alexandre Alves (UERN)Profa. Dra. Antonia Marly Moura da Silva (UERN)

    Profa. Me. Ana Maria de Carvalho (UERN)Profa. Me. Flávia Rodrigues de Melo (UERN)

    Prof. Me. Francisco Aedson de Souza Oliveira (UERN)Prof. Dr. Francisco Paulo da Silva (UERN)Profa. Dra. Fabiana Cristina Komesu (UNESP)

    Profa. Me. Hubeônia Morais de Alencar (UERN)Profa. Dra. Izabel Souza do Nascimento (UERN)Prof. Dr. José Roberto Alves Barbosa (UERN)

    Profa. Dra. Lúcia Helena Tavares (UERN)Profa. Dra. Leila Maria Araújo Tabosa (UERN)

    Prof. Me. Lucas Maciel (UERN)Profa. Me. Maria Solange de Farias (UERN)Profa. Dra. Maria de Fátima Bianchi (USP)

    Prof. Me. Nilson Barros (UERN)Prof. Dr. Pedro Adrião da Silva Júnior (UERN)

    Profa. Dra. Raquel Salek Fiad (UNICAMP)Coordenação de Finanças 

    Profa. Dra. Lucimar Bezerra Dantas da Silva

    Coordenação de Certificados e Monitoria Prof. Dr. Moisés Batista da Silva

    Prof. Me. Francisco Aedson de Sousa Oliveira

    Coordenação de Infra-estrutura Prof. Me. Aluísio Barros de Oliveira

    Conselho Editorial (Queima-Bucha) Alexandre Alves (UERN)

    Gustavo LuzJosé Luiz Ferreira (UFRN)

    José Roberto Alves Barbosa (UERN)

    Catalogação da Publicação na Fonte 

    Bibliotecário: Jocelania Marinho Maia de Oliveira CRB 15 / 319

    Todos os textos são de inteira responsabilidade de seus autores. 

    S621a Simpósio Nacional de Literatura, Linguística e Ensino(1.: Mossoró, RN 2014)I SINALLE: Simpósio Nacional de Literatura, Linguística e Ensino: Anais. /

    Organizadores Alexandre Alves, José Roberto Alves Barbosa, Lucimar BezerraDantas da Silva. - Mossoró, RN: Queima-Bucha/GPELL, 2014.

    1 CD-ROM.

    ISBN: 978-85-8112-111-6

    1. Literatura – Simpósio. 2. Linguística - Ensino – Simpósio - Anais.I. Alves, Alexandre. II. Barbosa, José Roberto Alves. III. Silva, Lucimar

    Bezerra Dantas da. IV. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. V.Título.

    UERN/BC CDD 400

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    A IDENTIDADE MARGINAL DOS PERSONAGENS DE RUBEM FONSECANO CONTO “FELIZ ANO NOVO” 

    Francisco Lindenilson Lopes José Dantas da Silva Júnior

    1. INTRODUÇÃO 

    Rubem Fonseca, célebre escritor contemporâneo, tem por característica retrataro submundo da marginalidade em seus contos. Nossa análise será circunscrita a posturados personagens do conto “Feliz Ano Novo” do referido autor, posto que são estes afonte das ações violentas e marginais que buscamos evidenciar. Como referencial

    teórico utilizamos os postulados de Souza (2003), Brait (1998), Leite (1985), Mussi(2002), Cardoso (2000), entre outros.

    “Feliz ano novo” traz como tema a relação conflitante e muito violenta entre osintegrantes das classes inferiores e os representantes das classes abastadas. A narrativase estrutura em torno da ação de um marginal e sua gangue que, movido pelo desejo deneutralizar a contradição entre sua realidade e a realidade da alta burguesia, invademuma casa rica, roubam e assassinam cruel e friamente os moradores.

     Nas palavras do narrador-personagem em relação a si próprio e aos demais personagens percebemos a constituição de sua identidade, como um sujeito que tenta atodo custo fugir da miséria e da marginalidade contraditoriamente se envolvendo comatitudes marginais e extremistas. Tentaremos evidenciar os traços dessa identidademarginal nos tópicos a seguir.

    2. 

    “FELIZ ANO NOVO”: A NARRATIVA 

    Ambientada na cidade do Rio de Janeiro, na época dos festejos de ano novo, oconto é narrado em primeira pessoa e traz uma boa dose da violência marginal

     protagonizada pelo narrador personagem e sua visão onisciente construída “através dasua experiência vivencial conflituosa” (MUSSI, 2002).

    Os atos violentos dos marginais na narrativa fonsequiana são movidos pelainveja dos ricos, pela ânsia de querer ter o que os ricos têm e deixar de estar à margem

    da sociedade (MANGUEIRA, 2002). Tal desejo é bem explícito na passagem que onarrador personagem diz claramente: “Eu queria ser rico, sair da merda em que estavametido! Tanta gente rica e eu aqui fudido” (FONSECA, 1994, p.13-21).

    Para Rubem Fonseca, o que realmente interessa é recriar, através da linguagemliterária, o cotidiano das grandes cidades brasileiras onde há não uma simples luta declasses, mas sim uma terrível e sangrenta guerra civil não declarada (CARDOSO,2000). Nesses termos os crimes bárbaros cometidos pelos personagens do contosimbolizam a crítica do autor à sociedade que oprime o indivíduo, fazendo-o acreditarque o único meio de reverter essa situação é o crime, a marginalidade.

    Os personagens violentos, frios e totalmente desprovidos de qualquer tipo desentimento moral, matam, roubam e estupram sem nenhum remorso. É essa postura

    marginal que analisaremos nos tópicos seguintes.

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    3. O NARRADOR PERSONAGEM CONSTITUI SUA IDENTIDADE 

    Como já dissemos, o foco narrativo é em primeira pessoa, o que confere aonarrador-personagem um estreitamento do ângulo de visão da realidade ficcional, isto é,uma visão muito particular da realidade que é criada no conto. Esse aspecto da obra faz

    com que o personagem tenha uma onisciência caracterizada pelo que Mussi (2002)denominou “experiência vivencial conflituosa”, ou seja, a narração é baseada nasimpressões particulares do narrador mediante a sua realidade marginal e precária de

     poucas condições de vida digna. Por isso vamos demonstrar a seguir as visõesexperienciais do narrador.

    3.1. VISÃO DE SI MESMO E DOS DEMAIS PERSONAGENS 

    O narrador faz a análise dos demais personagens por um ângulo de visãoonisciente e particular baseado nas experiências conflituosas vivenciadas, o que lhe

     permite formular conceitos sobre si mesmo e sobre o que os outros pensam dele e de

    seus companheiros. Ele se supõe um cara inteligente, que não leva produto de furto pracasa, esconde em outro lugar em caso de haver alguma batida policial:

    Onde você afanou a TV? Pereba perguntou. Afanei porra nenhuma.Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô pereba! Você pensaque eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meucafofo? (FONSECA, 1994, p.13, grifos nossos).

    O narrador-personagem se considera uma pessoa letrada com nível de estudosuficiente para não acredita nos poderes sobrenaturais e nas superstições. Ao que se

     pode constatar, ele é pobre, apesar disso não concorda como tal situação, dando mostras

    de sua personalidade reativa e revoltada com a sua condição social e com as intempériesque ela lhe aflige, isto é o que podemos constatar com base nas passagens a seguir:

    Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler,escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que eu quiser. [...]Eu queria ser rico, sair dessa merda em que estava metido! Tantagente rica e eu aqui fudido (FONSECA, 1994, p.13-14).

     Nessa mesma linha de revolta, o narrador personagem dá mostras desublevação velada com relação ao seu fiel escudeiro, o personagem Pereba. Nos trechocitados acima, deduz-se essa sublevação nas referencias a Pereba como burro, por supor

    que a TV que estava no apartamento era roubada; e supersticioso, por não ter estudo.Em outros trechos fica claro a necessidade do narrador de opor-se a Pereba para sesentir superior não só a ele, considerado a escória marginal, mas também a todos os seuscomparsas. Perceba o tom de deboche quando ele descreve o seu amigo Pereba:

    Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que asmadamas vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazeré tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa (FONSECA,1994, p.14).

    Com o uso da onisciência baseada em experiências vivenciais que aparece no

    momento em que o narrador-personagem deduz os pensamentos dos burgueses emrelação a ele próprio, conseguimos mais uma nuança da identidade do narrador. Uma

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     passagem que ilustra essa dedução se encontra na cena em que o narrador dialoga comum dos senhores burgueses da casa que ele e seus comparsas estavam assaltando:

    Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem oque quiserem, não faremos nada. [...] Podem também comer e beber à

    vontade, ele disse. Filho da puta. As bebidas, as comidas, as joias, odinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinha muito nobanco. Para eles nós não passávamos de moscas no açucareiro.Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado,instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa a polícia. Ele disse isto olhando para os outros, que estavam quietos,apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, comoquem diz calma, minha gente, já levei esse bunda suja no papo(FONSECA, 1994, p.19, grifos nossos).

    Para Mussi (2002) a interpretação da fala do senhor burguês por parte donarrador é feita baseada em uma distorção ideológica construída a partir da realidade

    conflituosa com a qual ele costuma conviver. Nesses termos a autora diz que o narradortoma o enunciado do burguês como uma provocação, daí surge a interpretaçãodistorcida, posto que o objetivo do senhor burguês ao proferir aquelas palavras eraapaziguar os ânimos e demonstrar cooperação.

    Tomando a tese de distorção ideológica, proposta pela autora supracitada,como efeito ou consequência, podemos inferir que essa imagem distorcida é, naverdade, a imagem que o narrador faz de si mesmo, o que nos leva a concluir que acausa dessa distorção ideológico é a “projeção freudiana” (FREUD, 1996, p.182),através da qual o indivíduo atribui a outro um desejo próprio, ou atribui ao outro algoque justifique a própria ação, como um mecanismo de defesa. Nas palavras de Freud(1996):

     Na paranoia, a auto-acusação é recalcada por um processo que se podedescrever como projeção. É recalcada pela formação do sintomadefensivo de desconfiança nas outras pessoas. Dessa maneira, osujeito deixa de reconhecer a auto-acusação; e, como que paracompensar isso, fica privado de proteção contra as auto-acusações queretornam em suas representações delirantes. (FREUD, 1996, p.182,grifos nossos)

    Desta forma, acreditamos que o narrador projeta na voz do outro um conteúdoideologicamente distorcido que ele imputa a si próprio, usando essa distorção como

     justificativa para assassinar o senhor burguês, logo em seguida. O narrador constitui-seentão como um sujeito paranoico, com uma visão distorcida da realidade e dos demais asua volta.

    3.2. VISÃO DO AMBIENTE 

    O narrador e Pereba, seu parceiro, viviam em um prédio na zona sul do Rio deJaneiro, veja a seguir duas passagens que descrevem um pouco o prédio e as condiçõesde vida desses dois:

    Pereba vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha

    morta e farofa dos macumbeiros. Pereba entrou no banheiro e disse,

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    Mangueira (2002) já identificava esse recurso quando analisava a obsessão do personagem central “d’O cobrador” por dentes, sendo dentes brancos e parelhossinônimos de riqueza e o contrário sinônimo de marginalização.

    É interessante ressaltar que o narrador-personagem não apenas percebe asdiferenças entre seu mundo e o mundo burguês. Ele sempre reage violentamente a cada

    contraste que encontra, é como se as disparidades entre os dois modos de vidafuncionassem como um gatilho para a sua fúria que se materializa em atos de violência.Esse aspecto será melhor tratado no tópico seguinte.

    4. A VIOLÊNCIA MARGINAL: CENAS BRUTAIS E DETALHISMO AGRESSIVO 

    Como já dissemos anteriormente, para Rubem Fonseca o interessante em suescontos é registrar através da linguagem literária o cotidiano violento das grandes cidades

     brasileiras. Cardoso (2000) dizia que, na verdade, Rubem Fonseca queria “por a nu osdramas humanos desencadeados pelas ações transgressoras da ordem”.

     No conto em analise, esse desejo de desnudar a realidade do submundo da

    criminalidade é comprovado, posto que o autor narra, meticulosamente, cenas de crimes bárbaros cometidos por seus personagens, onde o que impressiona não é o crime em si,é a frieza e a perversidade dos criminosos. Tanto é assim que os escritos de RubemFonseca foram batizados por Alfredo Bosi como brutalista e é desta forma que sãorotulados na literatura os textos que seguem essa mesma linha.

    O narrador-personagem de “Feliz ano novo” reage com violência a todas asdisparidades que ele percebe entre os elementos de seu mundo suburbano e o mundo

     burguês. E quando falamos em violência, queremos dizer todo tipo de ação que visa àdesordem, ou ao mal de outro indivíduo. Assim, as ações marginais vão desde cenasinusitadas e, até certo ponto, hilárias, com quando o narrador-personagem sobe aoquarto da casa que estava assaltando e defeca sobre o lençol de cetim da cama, até cenas

     brutais com quando o narrador arranca o dedo de uma senhora à dentadas para roubar-lhe um anel.

    Analisemos a primeira cena citada acima: na casa rica onde estava acontecendoo assalto o narrador-personagem percebendo o ambiente limpo e cheiroso do quarto,cheio de luxos tem o ímpeto de defecar sobre a cama:

    Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei acolcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando.Terei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muitolegal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci(FONSECA, 1994, p.18, grifos nossos).

    Ao perceber o contraste entre o quarto de seu apartamento (cujo banheiro erasujo e fedorento) e o quarto de uma casa rica o narrador-personagem tenta condensarsua frustração causando dano àquele ambiente. Retomando as palavras de Mangueira(2002), o narrador-personagem tem inveja dos ricos e quer tudo o que eles têm, quandonão consegue encontra uma maneira de se autorecompensar, no caso em tela, deixandosujo e mal cheiroso o ambiente burguês da casa. Depois de realizar a agressão o

     personagem se sente “aliviado”, uma expressão simbólica, que significa tanto o alívio pelo ato de defecar, quanto pelo ato de sublimar suas frustações.

     Na segunda cena temos a senhora dona da casa, chamada de “a gordinha”,que subiu as escadas com Pereba e que acabou sendo morta no corredor:

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    Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis,tinha um anel que não saia. Com nojo, molhei de saliva o dedo davelha, mas mesmo assim o anel não saia. Fiquei puto e dei umadentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha.[...] (FONSECA, 1994, p.18).

    Mais uma vez se percebe o detalhismo do autor, que se torna agressivo pornarrar os por menores de cenas brutais como essa. Neste trecho nos chama atenção afala do narrador-personagem quando ele diz que “com nojo” molha de saliva o dedo dasenhora para tentar tirar o anel. Novamente destacamos a simbologia de um termo, nocaso em tela “nojo” significa: 1) o nojo pelo ato de por o dedo de outra pessoa na boca e2) o nojo de por o dedo de um burguês na boca. A inveja do narrador-personagem emrelação aos burgueses é tanta que ele diz ter “nojo” dessa gente, isso se confirma emuma passagem que segue a essa primeira, confira: “Não vais comer uma bacana destas?,

     perguntou Pereba. Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas.Só como mulher que eu gosto” (FONSECA, 1994, p.18).

     Nesses dois recortes que analisamos acima podemos perceber outro tipo deviolência: a violência da linguagem, que chega a ser tão forte a ponto de agredir o leitor. Nos dizeres de Cardoso (2000):

    A linguagem violenta tem uma função definida frente ao seu leitor: ade presentificar a violência de modo a que ele não tenha maiscondições de questioná-la. Entretanto, somos acostumados a abrandar,através de mecanismos vários (como o silêncio, por exemplo), o efeitodo que tem que ser dito pelo modo de o dizer, ficamos surpresosdiante de uma linguagem tão avessa a atenuações (CARDOSO, 2000, p. 04).

    A autora supracitada sublinha a relação entre violência e linguagem destacandoque a hostilidade de Rubem Fonseca em relação ao seu leitor se verificar em aspectosformais do texto (estilo áspero e seccionado, períodos com frases curtos) e em aspectossemânticos, ligados ao conteúdo das palavras proferidas pelos personagens em cenas detensão como as citadas anteriormente.

    E tudo isso para quê? Essa agressão vocabular é gratuita? Obviamente que não.Se a Rubem Fonseca interessa narrar representando literariamente a violência dasgrandes cidades desnudando as mazelas periféricas, está claro tratar-se de um processode desmistificação. E se assim é, o primeiro âmbito a ser desmistificado é o dalinguagem, que está na base de tudo. Desta forma, palavras banidas do âmbito literário

    que eram tidas como de péssimo gosto ganham relevo na obra fonsequiana pela suatríplice funcionalidade: desmistificar esse tipo de linguagem, chamar a atenção do leitore caracterizar o mais fielmente possível o ambiente marginal.

    4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

    O conto “Feliz ano novo”, do escritor Rubem Fonseca, é uma obrarepresentativa de um tipo de literatura conhecida como brutalista, dado a falta deatenuações com a linguagem empregada na narração e ao detalhismo meticuloso que

     junto com o uso de narradores-personagens, caracterizam esse tipo de obra. Neste trabalho buscamos evidenciar a identidade marginal dos personagens de

    Rubem Fonseca no referido conto, esmiuçando suas principais nuanças, tendo com baseteorias comportamentais e psicanalíticas. Na voz de um narrador-personagem subjazem

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     projeções, sublimações entre outros ranços freudianos que culminam num quadro de psicose.

    O narrador-personagem se constitui como um sujeito perturbado psicologicamente que tem visões distorcidas da realidade, de si próprio e dos demais personagens. Percebemos nessas nuanças a constituição da identidade de um sujeito que

    tenta a todo custo fugir da miséria e da marginalidade contraditoriamente se envolvendocom atitudes marginais e extremistas, tais como roubos, estupros, e assassinatos comrequintes de crueldade, sem com isso serem atormentados por nenhum tipo de remorsoou culpa.

    Demonstramos também que a linguagem marginal reproduzida fielmente noconto analisado, não é gratuita, tem toda uma importância dentro da narrativa marginal,onde o autor pretende fazer releituras dos submarinos das grandes cidades. Por fim,esperamos ter cumprido com o objetivo a que nos propomos.

    REFERÊNCIAS 

    CARDOSO, F. Rubem Fonseca: violento, erótico e, sobretudo, solitário. PublicaçõesUNICAMP, 2000.Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/r00004.htmFREUD, S. Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In: .Obras completas. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1996.MANGUEIRA, J. V. Identidade e narrativa: a construção da identidade cobradora. In: Letr@ Viv@ V.4, n.1. João Pessoa: Ideia, 2002.MUSSI, A. B. I. A ideologia com função estética no conto “Feliz ano novo”, de RubemFonseca. Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 2, número 2, Jan./Jul. 2002.Disponível em: http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0202/05.htmFONSECA, R. Feliz Ano Novo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.SOUZA, A. O. Crítica psicanalítica. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. (orgs.). TeoriaLiterária – Abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem,2009.

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    A FIGURAÇÃO DO GROTESCO NA OBRA A MULHERQUE ESCREVEU A BÍBLIA, DE MOACYR SCLIAR  

    Kalyn Kégia Cardoso BezerraRayane Kely de Lima Fernandes

    INTRODUÇÃO 

    O presente trabalho1 tem como objetivo analisar as características do grotesco naobra A mulher que escreveu a Bíblia (1999), de Moacyr Scliar. Analisaremos algumascaracterísticas do grotesco como a estética, a animalidade, o horror, o feio e o riso que

     podem ser observadas na obra, mais especificamente presentes na constituição da personagem principal (a feia).

    De acordo com Regina Zilberman (2013), a obra em questão foi publicada em1999. Para escrevê-la, Scliar baseou-se na hipótese do crítico norte-americano HaroldBloom, de que uma mulher teria sido a autora da primeira versão da Bíblia, escrita noséculo X a. C. O referido romance de Scliar possui uma linguagem que alterna entre aelevada dicção bíblica e o mais baixo calão que relata ficticiamente a história de umamulher anônima que, há três mil anos, torna-se autora da primeira versão da Bíblia.

    De acordo com Victor Hugo (2002), o grotesco se manifesta de várias formas,tanto na arte, como na literatura, em histórias em quadrinho, desenhos animados eoutros gêneros. “No pensamento dos Modernos, o grotesco tem um papel imenso.Aí está por toda a parte; de um lado cria o disforme e o horrível; do outro, o cômico eo bufo” (HUGO, 2002, p. 30-31). E ainda o grotesco é “um tipo de criação que às vezesse confunde com as manifestações fantasiosas da imaginação e que quase sempre nosfaz rir” (PAIVA; SADRÉ, 2002, p. 19).

    A obra de Moacyr Scliar estará repleta de várias características do grotesco, queserão suscitadas conforme mencionamos acima.

    1. 

    O ESCRITOR E A SUA FICÇÃO 

    Moacyr Jaime Scliar nasceu em Porto Alegre (RS), em 23 de março de 1937.Seus pais, José e Sara, eram europeus que migraram para a América em busca demelhor sorte. Passou a maior parte da infância no Bom Fim, um dos bairros porto-

    alegrenses. A partir de 1943, cursa a Escola de Educação e Cultura e em 1948,transfere-se para o Colégio Rosário, onde conclui o ensino médio. Durante esse períodoganha seu primeiro prêmio literário, mas profissionalmente dedica-se à medicina e em1962, ano em que conclui a faculdade e lança seu primeiro livro Histórias de um médicoem formação. 

    Sua obra consiste de contos, romances, ensaios e literatura infanto-juvenil.Também ficou conhecido por suas crônicas nos principais jornais do país. Scliar

     publicou mais de setenta livros. Seu estilo leve e irônico, altamente humanista, o torna

    1 Este trabalho foi apresentado como requisito da disciplina “Teoria do romance”, ministrada pela Profa.Drª. Antonia Marly Moura da Silva no Curso de Especialização em Estudos Literários (CEEL), da

    Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

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    dono de valores universais. Em 2003, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras,tendo recebido antes uma grande quantidade de prêmios literários dentre eles, o Jabuti,de acordo com Zilberman (2013):

    Scliar conquistou diversos prêmios literários, como, por exemplo: três

     prêmios Jabuti (nas categorias “romance” e “contos, crônicas enovelas”); o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, em1989, na categoria “literatura”; e o Casa de las Americas, em 1989, nacategoria “conto”. Seus livros foram traduzidos em inúmeros países,como Inglaterra, Rússia, República Tcheca, Eslováquia, Suécia, Noruega, França, Alemanha, Estados Unidos, Holanda, Espanha, entreoutros.

    Suas obras frequentemente abordam a imigração judaica no Brasil, mas tambémtratam de temas como o socialismo, a medicina (área de sua formação), a vida de classemédia e vários outros assuntos. O autor já teve obras suas traduzidas para doze idiomase é um dos doze escritores brasileiros mais lidos no estrangeiro. Sua presença no cenárioliterário nacional é notória através de várias obras:

    [Em]  A mulher que escreveu a Bíblia, de 1999, Os vendilhões dotemplo, de 2006, e Manual da paixão solitária, de 2008, Scliar afirmasua contribuição definitiva à literatura brasileira de temática judaica.Esses romances constroem-se a partir de personalidades paradigmáticas da Bíblia: Salomão, Jesus e Onam. Mas essas figuras,de passado histórico ou mítico, não protagonizam os enredos;retomando processo narrativo experimentado em Sonhos tropicais e Amajestade do Xingu, Scliar apresenta-os de modo colateral, sob oolhar de um outro, muito mais próximo do leitor (ZILBERMAN,

    2013).

    Embora, não seja tão estudado na academia como são outros escritores do nossocânone literário, Moacyr Scliar possui várias obras que fazem parte do nosso cenárioliterário contemporâneo.

    2. 

    ALGUNS ASPECTOS 

    Uma das categorias do romance de Scliar mais interessante é o enredo, a históriade uma mulher (anônima) ajudada por um ex-historiador que se converteu em“terapeuta de vidas passadas”, essa mulher descobre que, no século x a. C., foi uma das

    setecentas esposas do rei Salomão — a mais feia de todas, mas a única capaz de ler eescrever. Encantado com essa habilidade inusitada, o soberano a encarrega de escrever ahistória da humanidade — e, em particular, a do povo judeu —, tarefa a que uma juntade escribas se dedica há anos sem sucesso.

    A obra de Scliar é narrada em primeira pessoa, pelo terapeuta “Muita gente pergunta por que me dedico a terapias de vidas passadas [...]” (SCLIAR, 2012, p.15) e posteriormente pela protagonista (a feia): “É feia, esta que vos fala. Muito feia. Feiacontida ou feia furiosa, feia envergonhada ou feia assumida, feia modesta ou feiaorgulhosa, feia triste ou feia alegre, feia frustrada ou feia satisfeita - feia, sempre feia”(SCLIAR, 2012, p. 17).

    Quanto ao tempo, este é psicológico, haja vista que existe uma convergência detempos, a narrativa encontra-se no presente, porém o passado interfere, e ainda podemosobservar que a narrativa também se remete para o futuro, fato que possibilita recuos e

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    avanços no tempo. Por sua vez, o espaço é constituído pela aldeia, onde ela morava como pai antes de casar com o rei e a cidade de Jerusalém “[...] uma grande e bela cidade,um lugar onde se vivia intensamente. A cidade real; a cidade do tempo” (SCLIAR,2012, p. 39).

    As personagens presentes na obra são a protagonista, uma mulher muita feia,

     porém letrada; o terapeuta que é um ex-historiador; O pastorzinho Era um “belo rapaz,alto, forte” (SCLIAR, 2012, p. 33). Pastor de cabras que morava na mesma aldeia que afeia, apaixona-se por sua irmã com quem tem um romance e ao ser descoberto éapedrejado e expulso da aldeia. O pai; a mãe e a irmã da feia; além do o rei Salomão umhomem bonito “rosto longo, emoldurado por uma barba negra (com fios prateados),olhos escuros, profundos, boca de lábios cheios, nariz um pouquinho adunco [...]”(SLIAR, 2012, p. 45); a rainha de sabá “Uma negra, alta, esbelta, com um rosto de

     belíssimos traços, grandes olhos, boca cheia, sensual, sensual – lindíssima”. (SCLIAR,2012, p. 134) e ainda as mulheres do harém (700 esposas, 300 concubinas e aencarregada do harém); os escribas do palácio, estes eram anciãos encarregados deescreverem a bíblia, tarefa a que se dedicavam há anos sem êxito.

    3. 

    FIGURAÇÕES: UMA LEITURA POSSÍVEL DO ROMANCE 

     Na obra em análise, a protagonista é enfatizada como uma mulher feia, queaparentemente não tem identidade, mas somente feiúra. Dessa forma, é apresentadacomo uma mulher “anônima”, já que seu nome não é mencionado na obra. Ela surgecomo pertencente a um grupo subjugado da população; assim, representaria as camadas“marginalizadas da população”, um grupo “repreendido” por aqueles que prezam certos

     padrões, como acrescenta a própria narradora “eu era a feia, a marginal” (2012, p. 126).Essa “cosmovisão carnavalesca, em sua ambivalência, aparece como umas dascaracterísticas essenciais do grotesco, em que a vida, a terra, o corpo, o mais baixo

     plano, têm um sentido universal, pois exclui a identidade, o sujeito e coloca emevidência partes do corpo” (ESQUIVEL, 2009, p. 26).

    Ao olhar-se no espelho pela primeira vez (nunca o tinha feito, pois todos lhesescondiam e poupavam dessa situação), a moça percebe o quão é feia:

     Não havia ali nenhuma simetria, naquela face, nem mesmo a temívelsimetria do focinho do tigre; eu buscava em vão alguma harmonia [...]havia um conflito naquele rosto, a boca destoando do nariz, as orelhasdestoando entre si. E os olhos, que poderiam salvar tudo, eramestrábicos, um deles mirando, desconsolado, o espelho, o outro com oolhar perdido, fitando desamparado o infinito, talvez para não ter de

    enxergar a cruel imagem. Em resumo, o que via era “a) assimetriaflagrante; b) carência de harmonia; c) estrabismo (ainda quemoderado); d) excesso de sinais. Falta dizer que o conjunto eraemoldurado (emoldurado! Essa é boa, emoldurado! Emoldurado,como um lindo quadro é emoldurado! Emoldurado!) por uns secos eopacos cabelos, capazes de humilhar qualquer cabeleireiro”(SCLIAR, 2012, p. 20-21).

     Na descrição de sua fisionomia é possível identificar a presença de marcas dogrotesco que permeiam toda a obra e que estão relacionadas à essa imagem assimétricada personagem, “assustadoras assimetrias” (SCLIAR, 2012, p. 25), o que está fora dos

     padrões de beleza (impostos pela sociedade). Dessa forma, pode-se afirmar que a feiúrada personagem é acentuada essencialmente pela assimetria de seus traços, das suas

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    formas, segundo a mesma, ela não tinha um rosto e sim uma ofensa; era um acidente,um bagulho.

    A personagem é animalizada, a sua feiúra causa estranhamento, para Kayser(2003) o estranhamento é uma característica do grotesco. E de acordo com Freud (1919,

     p. 277), “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de

    velho e há muito familiar”. Para ele o estranho relaciona-se com o que é assustador, provocando medo e horror.Esse estranhamento pode ser percebido quando a encarregada do harém a viu,

    estranhou e logo disparou “Deus, é feia essa aí, é a mais feia da safra” (SCLIAR, 2012, p.43). Já um dos escribas a designou como “[...] um bagulho, um monstro de tão feia”(SCLIAR, 2012, p. 109). A própria personagem não “economiza” adjetivos em suadescrição, que a põem como feia, para ela o rei Salomão quando viu seu rosto pela

     primeira vez:

    Estremeceu [...] de espanto, de horror, de tudo. Expressão do seurosto traduzia claramente o que estava pensando [...] Deus o que é isso

    aí, o que é essa cara, essa mulher não pode ter sido destinada ao harémreal, deve ter havido algum engano (SCLIAR, 2012, p.43).

    Como se sabe o padrão de beleza seria como um fio condutor que na sociedade,nos leva a fazer distinções entre o feio e belo. A esse respeito, Hugo afirma “que tudona criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme pertodo gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”(HUGO, 2002, p. 26), dessa forma, observa-se uma oposição simétrica entre essasdicotomias, o que empreende-se que o feio só existe diante do belo. O autor aindaacrescenta que

    O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-senecessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário,que o grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada. (HUGO, 2002, p. 33).

    Assim, observa-se o contraste existente entre o belo e o feio presente na obra,que pode ser observado através da comparação entre a moça feia, cuja a mesma decreta“Não havia ali nenhuma simetria, naquela face, nem mesmo a temível simetria dofocinho do tigre; eu buscava em vão alguma harmonia [...]”. (SCLIAR, 2012, p.20) eem contraponto a rainha de Sabá “Que mulher linda, santo Deus. Que mulher linda.

    Uma negra, alta, esbelta, com um rosto de belíssimos traços, grandes olhos, boca cheia,sensual, sensual – lindíssima”. (SCLIAR, 2012, p. 134), descrita como a “perfeiçãoabsoluta” (SCLIAR, 2012, p. 142).

    Acerca do belo, Hugo acrescenta:

    O belo tem somente um tipo; o feio tem mil. É que o belo, para falarhumanamente, não é senão a forma considerada na sua mais simplesrelação, na sua mais absoluta simetria, na sua mais intima harmoniacom nossa organização. Portanto, oferece-nos sempre um conjuntocompleto, mas restrito como nós. O que chamamos o feio, aocontrário, é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e

    que se harmoniza, não com o homem, mas com toda a criação. É porisso que ele nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, masincompletos (HUGO, 2002, p. 36).

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    O grotesco tido como o feio, no entanto, pode-se afirmar que trata-se narealidade da distorção do belo. À luz dessa perspectiva observa-se que o grotesco atuacomo contraste ou ainda, como uma negação do belo. As características da moça violamos padrões de beleza, assim ela se identifica como uma mulher feia: “É feia, esta que

    vos fala. Muito feia. Feia contida ou feia furiosa, feia envergonhada ou feia assumida,feia modesta ou feia orgulhosa, feia triste ou feia alegre, feia frustrada ou feia satisfeita -feia, sempre feia” (SCLIAR, 2012, p. 17)

    A feiúra da personagem também provocava o riso, uma outra característica dogrotesco, Mijail Bajtin (1987), enfatiza que o grotesco se encontra diretamenterelacionado ao riso popular ao passo que o integra como oposição ao sublime, que ficaexplícito ao passo que a personagem torna-se motivo de escárnio e zombaria, “as outrasmeninas da aldeia, bonitas em geral, relutavam em brincar comigo; quando eu aparecia,davam um jeito de escapulir, rindo à socapa” (SCLIAR, 2012, p. 17).

    Quando a feia chega ao harém e se depara com as belas mulheres do reiSalomão, estas também zombam e riem dela “puseram-se a rir. Olhavam-me, olhavam

    minha cara e - de onde saiu essa coisa? - riam. Risinhos, a princípio risinhos, logo,cacarejos gargalhadas - deboche escarrado, total desrespeito, solidariedade, çavasans-dire, nenhuma”. (SCLIAR, 2012, p. 47)

    Quanto a isso, Kayser (2003, p.40) ressalta que “o mundo do grotesco é o nossomundo – e não é. O horror mesclado ao sorriso [...]”. E o autor ainda nos diz que adeformidade, o bizarro, também aparecem como características do grotesco.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 

    O grotesco é um tema de estudo amplo por tal motivo precisamos recortá-lo eanalisar apenas alguns dos aspectos, poderíamos ter analisado vários outros, buscamosapenas alguns deles que foram ressaltados e analisados, os que suponhamos maisrelevantes para nossa análise, porém caso aprofundemos esta pesquisa posteriormente,iremos tentar suscitar os demais a nossa leitura do romance. Moacyr Scliar representaem seu romance as relações cotidianas da contemporaneidade, com uma linguagemerudita/popular alternadamente, constrói um enredo muito instigante, que prende o seuleitor a leitura da obra. E podemos encontrar o grotesco impregnado por toda a obra.

     Na leitura do romance A mulher que escreveu a Bíblia, encontramos as marcasdo grotesco presentes, principalmente na descrição da protagonista, rotulada como afeia. Essa fealdade a tornava “vítima” da ridicularização, provocava o riso, oestranhamento, o desprezo, sorte a sua, que era letrada. O escritor constrói uma

     personagem sem nome, cuja identidade constitui-se por sua feiúra, que a faz sofrer. Suafeiúra a faz acreditar que nunca será amada por ninguém; tudo em sua vida “seriacondicionado por essa feiúra. Homem algum gostaria de mim. Homem algum cantariaminha beleza em traços líricos” (SCLIAR, 2012, p.27). Mesmo assim tornou-se esposado rei Salomão (a mais feia), (SCLIAR, 2012, p.43)

    Enfim, a fealdade, característica do grotesco causa desde estranhamento até oriso, a zombaria, a exclusão e a marginalização. Vale ressaltar que o feio só existediante do belo assim como o grotesco diante do sublime.

    Ao eleger o feio, Scliar parece suscitar uma reflexão sobre os aspectos de belezaque ditam a sociedade atual, a ditadura da beleza, das cirurgias plásticas, da maquiagem,dos procedimentos estéticos em geral. Uma sociedade onde o belo é o padrão de beleza,

    quem não se enquadra neste padrão, normalmente não é aceito, e quase sempre“marginalizado”, hostilizado, tal qual foi a protagonista da obra que analisamos.

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    REFERÊNCIAS 

    BAJTIN, Mijail. La cultura popular enlaEdad Media y en el Renacimiento. Madrid:Alianza Editorial S.A., 1987.

    ESQUIVEL, Talita Gabriela Robles. Corpo grotesco. [Dissertação] Florianópolis: UDESC, 2009.FREUD, Sigmund. O estranho (1919). In: . Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969. Vol. XVII.HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Prefácio de Cromwell. Trad. CéliaBerrettini. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.KAYSER, Wolfgang Johannes. O grotesco: configurações na pintura e literatura. SãoPaulo: Perspectiva, 2003.PAIVA, Raquel; SADRÉ, Muniz. O império do grotesco. Rio de Janeiro: MAUAD,2002.SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. 1. ed. São Paulo: MEDIAfashion,

    2012. (Coleção Folha. Literatura ibero-americana; v. 15).ZILBERMAN, Regina. O escritor. 2013.Disponível em < http://www.scliar.org/moacyr/sobre/o-escritor/>Acesso em 05 de março de 2014.

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    TEATRALIZAÇÃO DA IDENTIDADE NOS PERSONAGENS DOS CONTOSDE A VIA CRUCIS DO CORPO, DE CLARICE LISPECTOR  

    Maria da Luz Duarte Leite Silva

    INTRODUÇÃO 

    A literatura lispectoriana se apresenta como uma ficção que dá margem àrepresentação simbólica, pois seus personagens, em sua maioria, se veem diante desituações que, na busca de seu eu, conflitam com o “poder”, o “saber” o “prazer” e o“corpo”. Ao considerar que a identidade do sujeito é produzida desde a mais tenrainfância, pela sociedade de controle e, sobretudo, controlada por uma ordem socialnormalizadora; entendemos que a leitura de Michel (1998, p.48), sobre o “prazer”, o“poder”, o “saber” e “corpo”, possibilita a efetivação desse estudo, pois para o filosofo,

    “poder” e “prazer” não se anulam; não se voltam um contra o outro; seguem-se,entrelaçam e se relançam. O “corpo” é visto como fonte de “saber” e “prazer” pararealização dos sujeitos.

    Assim sendo, se trata, portanto, de uma pesquisa que toma como matéria deinvestigação a ideia de “poder”, “saber”, “prazer" e a influência do “corpo” naconstrução da identidade dos personagens, nos contos – “Explicação”, “Miss Algrave”,“O Corpo”, “Via Crucis”, “O homem que apareceu”, “Ele me Bebeu”, “Por Enquanto”,“Ruído de Passos”, “Antes da Ponte Rio-Niterói”, “Praça Mauá”, “A Língua do ‘p’”,“Melhor do que arder” e “Mas Vai Chover”; integrantes do livro “ A Via Crucis doCorpo” (1998), de Lispector. O livro  A Via Crucis do Corpo apresenta ser um desafio

     para a escritora, visto que já no prefácio – Explicação – se vê uma Clarice diferentedaquela com que os seus leitores conheciam desde sua primeira obra  Perto do coração

     selvagem, de (1974). A autora de certa forma afronta os limites morais da época; pois anoção de indecência é deslocada para uma nova realidade que caracteriza os contos daobra em questão, pois suas narrativas em grande maioria apresentam um estilo maisdepurado e enxuto; além de tratar de fatos corriqueiros, não polêmicos diferentementede  A Via Crucis do Corpo, em que apresenta na construção da identidade de seus

     personagens o corpo nos seus desarranjos pulsionais, na tirania de seus desejos, nos seusêxtases.

    Desde já se justifica a necessidade de uma análise de viés comparativo, dos trezecontos, seja pela necessidade de realizarmos um paralelismo, e, através da literatura,

    conhecermos a temática em questão, recuperando dispositivos metodológicos comoinstrumento de análise, seja pela dimensão e alcance da proposta desse projeto, que vemafirmar o interesse pelos contos selecionados de Clarice Lispector.

    JUSTIFICATIVA 

    Alguns critérios específicos justificam o presente estudo: a qualidade formal eestética, que constitui o conjunto das narrativas que fazem parte dessa análise; aimportância da temática na construção da identidade na pós - modernidade; e a escassezde análise crítica referente à constituição identitária considerando o “poder”, o “saber”,o “prazer” e o “corpo” em contos de Clarice Lispector; e, por fim, as contribuições da

     pesquisa aos estudos acadêmicos, na área de literatura brasileira, e à formação crítica doleitor.

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    Em se tratando do primeiro critério, destacamos a riqueza estética e poética noscontos que pretendemos estudar, qualidades que estão presentes tanto na forma quantono conteúdo. Nesse sentido, atentamos para o que é relevante nas questões da relação“poder”, “prazer”, “saber” e o “corpo” na constituição do eu dos personagens dasnarrativas escolhidas. Acerca do segundo critério, é notório que esse trabalho se propõe

    ampliar a discussão de um tema relevante em torno da literatura de Lispector, haja vistaque são poucos os estudos sobre a construção da identidade dos seus personagens e suarelação com o “prazer”, “poder”, “saber” e o “corpo”, na literatura brasileira, conformeo que se pôde perceber no mapeamento realizado em banco de dados de programas eórgãos da CAPES1 (Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de Nível Superior).

    Uma pesquisa dessa natureza se fundamenta pela relação literatura e cultura, pois, ambas servem de representação dos sistemas sociais, simbólicos, valores econvicções importantes na manutenção e transformação dos discursos dos sujeitosfictícios ou não. O que de fato importa, nesse projeto, é a escolha de narrativassignificativas ao estatuto estético, como são as de Lispector, que revelam uma escritaatenta tanto ao aspecto artístico quanto ao social. Além de possibilitar ao pesquisador

    desconstruir suas narrativas para construir na perspectiva escolhida, pois suas obras aoiniciar e encerrar com incertezas caracteriza-se como uma escrita performativa. O quenos faz lembrar Beigui (2011), quando apresenta que a escrita performática na literatura

     pode ser considerada como uma “desaprendizagem”, por permutar citaçõesaparentemente desarmônicas, por isso é pouco compreendida pela crítica da tradição do“belo” e da “forma”; o que vem ajudar a compreender a formação do sujeito social.

    Outro critério considerado nesse estudo diz respeito ao que a literatura brasileiraapresenta aos leitores contemporâneos como a possibilidade de percepção da literaturacomo material simbólico e, sobretudo, social. Logo, esta pesquisa buscará sustentar aideia de que a literatura de Lispector está constituída de manifestações discursivas,quebrando velhos paradigmas impostos pela sociedade burguesa. Pois o próprio modode ver a mulher pela burguesia difere de como a autora representa; não mais umamulher submissa, mas uma pessoa que também possui o “poder”. Outra questãointeressante na narrativa da autora é o fato de sua escritura não ser mais vista só comoforma de deleite, mas também como denúncia social.

    A partir do discutido, consideramos o momento oportuno para analisarmoscrítico-analiticamente a literatura de Lispector; interesse que nasce do contato com aobra da autora, especificamente A Via Crucis do Corpo, em 2010, durante a escolha deobras que iria trabalhar na dissertação de mestrado. Como não foi possível estudar essatemática na dissertação, considerando as categorias “prazer”, “saber”, “poder” e“corpo”, ao término do mestrado intensificamos as leituras a esse respeito, e, na

    oportunidade, percebemos a presença de indícios fortes das categorias ora propostas para desenvolver esta pesquisa. Portanto, o propósito desse estudo é reforçar o interesse pelas narrativas da escritora elencada e pela temática em questão, bem como propornovas discussões sobre a temática em evidência de modo a ampliar os horizontes dalinha Poéticas da Modernidade e da Pós-Modernidade do Programa de Pós-Graduaçãoem Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Temos como objetivo geral analisar a teatralização na construção da identidadenos personagens em contos de  A Via Crucis do Corpo, de Clarice Lispector,identificando a presença do saber, poder, prazer e corpo nessa constituição. Eespecíficos entender como se dá a constituição da identidade dos personagens na prosa

    1 Disponível em: www.capes.gov/brservicos/banco-de-dados. Acessado em Setembro de 2013.

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    ( A via crucis do corpo) de Lispector e sua relação com o poder; compreender como sedá a constituição da identidade nas personagens da prosa de Lispector e sua relação com

     prazer; verificar a relação do saber na construção identitária das personagens nos contosescolhidos; compreender como se dá a constituição da identidade nas personagens da

     prosa de Lispector e sua relação o corpo; e contribuir para uma leitura crítica das

    narrativas de Lispector no que tange às questões do poder, do saber, do prazer e docorpo na constituição da individuação dos personagens.Quanto às questões de pesquisa, como entender a constituição da identidade dos

     personagens na prosa ( A via crucis do corpo) de Lispector e sua relação com o poder?De que forma se dá a constituição da identidade nas personagens da prosa de Lispectore sua relação com prazer? Qual a relação do saber na construção identitária das

     personagens nos contos escolhidos? Como se dá a constituição da identidade nas personagens da prosa de Lispector e sua relação o corpo? Como podemos contribuir para uma leitura crítica das narrativas de Lispector no que tange às questões do poder,do saber, do prazer e do corpo na constituição da individuação dos personagens?

    FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 

    O conceito de “poder” faz parte das teorias filosóficas, particularmente asfoucaultianas, e das ciências sociais e humanas. Em uma perspectiva filosófica ediscursiva, destacamos as seguintes contribuições, tais como:  História da sexualidade:a vontade de saber I (2011);  História da sexualidade II: o uso dos prazeres (2010);

     História da sexualidade III: O cuidado de si (2011);  Microfísica do Poder (2009), deMichel Foucault; Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão (2012) e

     Foucault: conceitos essenciais (2005), Vigiar e Punir (2009) e  Estratégias Poder –Saber (2012). Contribuindo com explicações das categorias de análise desse estudo,temos também Hall (2006), que apresenta que na atualidade as identidades dos sujeitossão marcadas pelo caráter de esfacelamento e fragmentação; Bauman (2005), que

     proporciona reflexão sobre, às dificuldades de relacionamento com o outro, comocaracterística típica de uma sociedade individualiza. Recorremos a Derrida (1971) portratar da marginalização aqui entendida como descentramento, contribuindo de formasignificativa neste estudo, pois as personagens lispectoriana encontram-se descentradas,e Beigui (2011), por discutir a  performance na escrita literária. De modo particular, ateoria de Foucault ganha especial importância para os propósitos dessa pesquisa, umavez que discute o “poder”, “saber”, o “prazer” e o “corpo” enquanto categoriasepistemológicas e simbólicas; isso aponta princípios norteadores para a compreensão daconstituição da identidade dos personagens nas narrativas escolhidas.

    Ao procurarmos analisar as relações entre os sujeitos e seu corpo, a partir dos personagens de Lispector, percebemos que a sexualidade reprimida pela sociedademoderna está intimamente relacionada aos dispositivos de “poder”; se expandindocrescentemente, a partir do século XVII; o que observamos é que a sexualidade está,

     pois, também, ligada ao “corpo”, à sua valorização como componente do “poder”, bastalembrar que, nas narrativas elencadas nesse estudo, o “poder”, o “prazer”, o “saber” e o“corpo” expressam nos personagens a necessidade, simultaneamente, de repensar aconstituição da sua identidade e de simbolizar diferentes formas de constituir o simesmo ultrapassando o discurso moderno caminhando para ideologia pós-moderna,

     pois os personagens lispectorianos externalizam o seu eu. Já dizia Moriconi (apudOGLIARI, 2011) que a ficção brasileira pós-moderna se define a partir de alguns

    escritores, dentre eles está Clarice Lispector.

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     Neste sentido, se faz importante, também, considerarmos a  performance como paradigma norteador desse estudo, pois esta é uma cultura que se materializa, e só podeser aprendida no espaço. O que nos faz perceber que tanto na vida, como no teatro, a

     performance precisa do espaço para concretizar a afirmação do sujeito com seus habituse pensamentos. E como o corpo é o veículo dessa concretização, o sujeito se constitui

    muitas vezes refletindo sobre o seu corpo; e como percebemos que as figuras dramáticasdos contos de  A Via crucis do corpo, de Lispector, apresentam a construção daidentidade a partir da reflexão de si mesmos - seus corpos, se aproximando do ato

     performativo, isso é entendido, por ser a  performance um processo geral que atendetodos os campos antropológicos, que constrói as operações sobre os corpos sociais eorgânicos da sociedade. Tanto a performance como a encenação são meios concretosque a sociedade se apropria para expressar os seus corpos no cotidiano e no social.

    Assim sendo, percebemos que é, no discursivo ambivalente, performático, queas narrativas clariciana se apresenta-encena, de forma a demonstrar no narrar, alinguagem como instrumentos insidiosos de representação-apreensão da realidade. Nocaso de Clarice, analisar os contos do livro  A via crucis do corpo sob o prisma da

     performance é uma das possibilidades de interpretação dessa obra e da produção daautora, que permite vislumbrar o texto como um espaço performático em que autorempírico, autor textual, narrador, personagem, leitor operam na atribuição de sentidosdo narrado (REGUERA, 2006). 

    Com a pretensão de analisarmos os contos do livro  A Via Crucis do Corpo,considerando as categorias de análise já citadas, numa perspectiva performáticaapresentaremos dois textos dos treze que compõem a obra, como possibilidade deapresentar que é possível a realização dessa pesquisa, pois os contos escolhidos parecem“corporificar” estratégias discursivas e temas que se destacam e se reiteram na prosa deClarice: “Melhor que Arder” e o “O Corpo”. 

     Neste último citado, presenciamos a história de um triângulo amoroso que a princípio se ver bastante estável. Xavier, comerciante bem sucedido, vive, na mesmacasa, com duas mulheres que se respeitam e que aceitam a situação com bastantenaturalidade. A estabilidade das relações amorosas entre Xavier, Carmem e Beatriz érompida quando elas descobrem que existe uma outra mulher na vida do amado; uma

     prostituta que ele visitava periodicamente. A partir do discutido, Carmem e Beatriz vãose afastando – pouco a pouco – de seu esposo, ao mesmo tempo em que vão se tornandomais unidas. A monotonia do cotidiano aliada à decepção sofrida pelas duas mulheresfaz com que supostamente, elas depois de uma reflexão sobre a impossibilidade detranscender a morte, decidam antecipar o inevitável, e terminam por deliberar a mortede Xavier – plano executado pelas próprias mulheres. Quando planejavam a morte do

    esposo as protagonistas encontram-se teatralizando o que nos leva a recorrer aos postulados de Beigui (2011, p. 30) em relação a escrita literária, pois presenciamos a “invasão de aspectos da teatralidade e da oralidade” das protagonistas em suas decisões.“– um dia nós três morreremos. Beatriz retrucou: [...] Acho que devemos as duas dá um

     jeito. Ligaram o rádio de pilha e ouviram uma lancinante música de Schubert. [...] Asduas estavam suadas, mudas, abatidas” (LISPECTOR,1998, p.24-25).

    Depois de alguns dias do desaparecimento do cônjuge, a polícia é chamada edescobre que ele fora enterrado no jardim de sua própria casa. Surpreendentemente, os

     policiais decidem que o melhor a fazer é esquecer tudo aquilo e sugerem à Carmem eBeatriz que arrumem suas malas e se mudem para o Uruguai. O que nos leva a entenderque, hipoteticamente por trás da atitude dos policias em não levar Carmem e Beatriz

     presas pelo assassinato, pode advir do preconceito que a sociedade tem com as lésbicas,talvez por isso, acharam melhor esconder o caso que puni-las. Pois talvez naquela época

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    um caso de relacionamento com o mesmo sexo era bastante polêmico. Nesse fato presenciamos o “saber” e o “poder” vigente na sociedade preconceituosa.

    A construção da identidade das personagens Carmem e Beatriz parece ocorrer por meio de oposições, bem como, através do processo epifânico, (revelação) muitoexpressivo nas narrativas lispectoriana. Tal fato sugere a ideia de complementação. A  

     princípio as personagens eram mulheres que se interessavam pelo sexo oposto – Xavier. Mas depois de vivenciarem o sexo – elas mesmas – iniciam um processo de conhecer-se. Esse fato possibilita vermos a questão do “saber”, do “poder” e do “prazer”

    intercruzando a vida das protagonistas, o que se faz necessário citar o que postula  (Foucault, s/d 445) que: “Hoje em dia já não se pode pensar no vazio senão do homemdesaparecendo”. As esposas não viam mais dependência a Xavier, ele sugestivamente,

    estava desaparecendo da vida delas. Elas descobriram que para terem o “prazer” não precisavam mais dele. No inicio da história os três pareciam formar uma unidade que

    foi ameaçada com o aparecimento do quarto elemento: a prostituta. Tal figura é a personagem que desestabiliza o triângulo e, consequentemente, ajuda a constituição daidentidade das protagonistas. A prostituta não é aceita por Carmem e Beatriz, que entre

    si não tinham ciúmes, mas não toleram um elemento alheio ao triânguloharmoniosamente constituído. A ideia de harmonia entre os três amantes permaneceu

     por muito tempo, isso é visto no momento em que foram os três para a cama: “Na noiteem que viu o último tango em Paris foram os três para a cama: Xavier, Carmem eBeatriz;” (LISPECTOR, 1998, p.21). Mas essa harmonia durou até aparecer a prostituta.

     Nesse conto também vemos o “corpo” como importante na construção da identidadedas protagonistas. Sendo apresentado no próprio título dessa narrativa, “O Corpo”, otermo também representa a aparência física das mulheres, pois até certo momento

    eram as esposas de Xavier e após a descoberta do “prazer” entre as duas fica a lacuna. Aidade das duas é exposta quase como se só isso fosse importante para descrever uma

    mulher. O conto apresenta descrições físicas de cada mulher e não há uma descrição psicológica delas. Beatriz e Carmem não tinham uma relação fora do triângulo

    amoroso; talvez por isso, são reprimidas, permanecendo à disposição das necessidadesdo esposo e delas entre si. Apesar de serem usadas pelo suposto amado, ele tinha a

    obrigação de sustentá-las; representando nesse fato o “poder”, o “saber”, o “prazer”e o “corpo”. Ambas obtinham de Xavier benefícios sexuais e também

    econômicos, mas para libertarem-se da relação a quatro, incluindo a prostituta, elas rompem com a tensão que as afligem, e a tragédia tem que acontecer para poderemvivenciar o “prazer” entre ambas.

    Beatriz e Carmem hipoteticamente, por meio do “saber” colocam em prática o“poder”, pois se libertam através de seus prazeres, nutrindo-se de amor entre elas,

    embora talvez, não sejam homossexuais. O que percebemos é que são motivadas poruma tensão entre elas, e decidem acabar com a vida do companheiro, saindo do crimeimpune pela sociedade. O que nos faz recorrer aos postulados foucaultianos (2004),quando apresenta que o “poder” não é onipotente, onisciente, mas sim, as relações de

     poder produzem formas de inquirição dos modelos de “saber”.Observamos nessa narrativa que o homem mostra seu “poder” e virilidade,

    dominando e utilizando as mulheres como objetos sexuais. Sugestivamente, o interessede Xavier pelo sexo oposto pode ser puramente sexual, insensível, animalesco; pondoem evidência a que as personagens femininas são submetidas: ao sofrimento, a dúvidase anseios, colocando a mulher diante de situações humilhantes. Assim, essa narrativa

     permite percebermos que as protagonistas (Carmem e Beatriz), ao longo da história, não

    se contentam mais com os papéis estabelecidos pela personagem masculina,transgredindo a ordem estabelecida pelo universo patriarcal, pois quando munidas do

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    “saber” seus corpos, sua erotização, não mais estão presas às normas sociais e/oureligiosas, mas transbordam no sofrimento e se transformam no “poder” de viver osseus desejos sexuais sem recalques. Elas se libertam para agirem conforme seusimpulsos. O que nos faz lembrar mais uma vez dos postulados de Foucault (2009, p.08), no seu livro  Microfísica do poder quando apresenta que: “O que faz com que o

     poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como umaforça que diz não, mas que de fato, produz coisas, induz ao ‘prazer’”.Em se tratando do conto “Melhor do que Arder”, observamos que é uma

    narrativa que retrata uma personagem de nome Clara, que foi obrigada por seus pais a ir para um convento. Com o passar do tempo, essa mulher desperta para o desejo sexual,ou melhor, o “prazer” da carne. Com isso, a vida da protagonista torna-se uma tortura.Então, resolve pedir conselho ao padre. Verificamos que sugestivamente, o sonho da

     protagonista está arraigado ao modelo de felicidade patriarcalista, visto que ela, para serfeliz, precisava apenas casar e procriar. A personagem se mostrou uma mulherdecidida/obediente. Esse fato ocorreu ao “saber” que tinha se tornado uma pessoa que,mesmo ardendo de desejo sexual-prazer, teve o cuidado de só se realizar quando

    atendido os preceitos da religião, principalmente a católica; mostrando, também o“poder”, visto que ela conseguiu agir de maneira controlada - patriarcalismo paraalcançar o seu objetivo.

    O “corpo” nesse conto também é essencial na constituição da identidade da protagonista, visto que ela era uma moça charmosa, amável e expressiva, criativa e umtanto curiosa. Mas não aguentava mais conviver só com mulheres. “Mulheres, mulheres,mulheres” (LISPECTOR, 1998, p. 71). Nesse fragmento presenciamos a angústia deClara. Hipoteticamente, é como se ela estivesse ardendo de verdade, sabia que precisavade homem. Uma amiga que escolheu como confidente lhe dera o conselho de mortificaro corpo. “– Mortifique o corpo.” (LISPECTOR, 1998, p.71). A mortificação do corpoaqui significa castigar o corpo com penitência. A personagem seguiu o conselho daamiga, mas não conseguiu suportar tanto desejo. O ritual de mortificação do corpo deClara marca nitidamente a  performance, conforme apresenta Beigui (2011, p. 32), jáque “a performance sempre esteve relacionada ao ritual.”

    Clara não desistiu de encontrar sua felicidade, por isso resolveu contar tudo quesentia ao padre. Este propôs a ela que continuasse a mortificar o corpo, mas não resolviaessa moça continuava a arder cada vez mais. O seu fervor sexual era tanto, que nãoconseguia nem mais se aproximar do padre para receber a hóstia. “Mas na hora em queo padre lhe tocava a boca para dar a hóstia tinha de se controlar para não morder a mãodo padre.” (LISPECTOR, 1998, p.71). A protagonista parafraseando os postulados deFoucault (2009) procurava encontrar a sua individualidade, usando do “poder”, pois,

     para o filósofo o indivíduo é construção do “poder” e do “saber”. Assim sendo, o queobservamos é que a protagonista em toda narrativa está em uma busca incessante pelafelicidade a partir do “prazer” sexual.

    Vale lembrar que, mesmo almejando a felicidade a partir do desejo carnal, a personagem mostrou que os saberes de seus patriarcas estavam bem arraigados em sua personalidade. É tanto que: ”Rezava muito para que alguma coisa boa lhe acontecesse.Em forma de homem. E aconteceu mesmo” (LISPECTOR, 1998, p.72). Nesse momentoem que a protagonista está em oração confirma mais ainda a forte presença dos saberesreligiosos na vida dessa mulher. Toda história é permeada por cunho religioso e pelos

     preceitos do sistema patriarcal. O modo de agir da protagonista faz-nos relacionar o queretrata Foucault no livro Estratégias Poder – saber (2012, p. 140): “ O poder não é uma

    estrutura, não é uma potencia de que alguns seriam dotados: é um nome dado a umasituação estratégica complexa numa sociedade determinada”. É tanto que a sua família

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    não queria aceitar a sua decisão. A protagonista, por não encontrar uma saída imediata para sua realização começou a definhar-se. “Um dia no almoço, começou a chorar. [...]Apesar de comer pouco, engordava, mas tinha olheiras arroxeadas. (LISPECTOR, 1998,

     p. 72). Percebemos que a personagem estava descentrada, não sabia mais como proceder para encontrar a sua felicidade, existiam muitas barreiras: sua família, a missão

    de ser freira, os preceitos da religião, e do sistema patriarcal, dentre outros. Mas Claranão desistiu de saciar sua fome. A felicidade dessa mulher era tudo, por isso, nãodesistiu de sua busca casamento- desejo. “Mas madre Clara foi firme; queria sair doconvento, queria achar um homem, queria casar-se.” (LISPECTOR,1998, p. 72). Então,ser feliz para a protagonista, era o desejo carnal /prazer.

    Como já visto, o “saber” religioso de Clara parece estar nítido nesse conto, vistoque, ao sair do convento, a madre continuou rezando e vivendo de modo simples, vestia-se compostamente. “Os vestidos de manga comprida, sem decote, abaixo do joelho.”(LISPECTOR, 1998, p. 72). Se a protagonista não fosse uma moça de personalidade -caráter religioso poderia talvez procurar, de imediato, ou sem pensar, a busca dasatisfação sexual de qualquer maneira, mas colocou-se como uma moça de respeito.

    Talvez as palavras do padre dirigidas a Clara fossem embasadas nas palavras de Paulo,escritas no livro de Coríntios. “É melhor não casar. Mas é melhor casar do que arder”(LISPECTOR, 1998, p. 72). Nesse fragmento, observamos que para o vigário, é precisocasar para se ter a felicidade (o prazer sexual). Mesmo assim, sugestivamente, a

     personagem ao atender aos conselhos dos mais experientes, vivia, de maneirainconscientemente, no pecado, pois chegou a não conseguir ver a imagem de Cristo nu.“Não podia mais ver o corpo quase nu de Cristo” (LISPECTOR, 1998, p.71).

    A protagonista, assim como muitas pessoas no mundo são repletas de preconceitos sofrem na constituição do si mesmas, e de sua felicidade. O caminho dafelicidade dessa mulher é repleto de obstáculos, pois vivia em função de escolhasimpostas, primeiramente por sua família e, posteriormente, pela religião. Por isso, a

     protagonista possuía o “saber” do que era pecado ou não, isso de acordo com a igreja eseus familiares, pois ao se deparar com uma outra realidade (o homem tão almejado),conteve-se e realizou o seu grande sonho, que era casar-se e deixar de arder. “Ela voltougrávida, satisfeita, alegre. Tiveram quatro filhos, todos homens, todos cabeludos.”(LISPECTOR, 1998, p.73). Essa moça ardia tanto de “prazer” sexual que acabava porficar desnorteada, descentrada. Todas essas evidências vêm comprovar hipoteticamente,o “poder” da carne em relação ao espiritual. Nem a dedicação da protagonista aossaberes da religião conseguiu fazê-la deixar de arder. “A superiora pediu-lhe queesperasse mais um ano. Respondeu que não podia, teria que ser já.” (LISPECTOR,1998, p.72). Ou seja, a sede de sexo era tanta que Clara não conseguia mais suportar

    tanto desejo. O fogo e o calor do desejo que a protagonista sentia era exacerbado, poisfez várias tentativas para abrandá-lo, e não conseguiu, sendo vencida por ele. “–Mortificava o corpo. Passou a dormir na laje fria. E fustigava-se com silício. De nadaadiantava.” (LISPECTOR, 1998, p.71). Esse exemplo evidencia algumas das tentativasda personagem para superar aquela ardência sem tamanho/o prazer do sexo. O que nosfaz lembrar o que Beigui (2011, p.29) elucida sobre a escrita performática literária que“[...] o horror, a violência, a dormência dos sentidos, a importância do Estado em suasdiferentes frentes de atuação e, principalmente, a conquista da ética” é vista comoúltimo contorno redentor dos sujeitos. Talvez o horror e as tentativas de Clara em saberusar o “prazer”, o “poder” e o “corpo” na hora certa venha possibilitar sua redenção.

    E de posse do “saber” madre Clara encontrou como única saída sair do

    convento, e se casar, enfim, saciar o seu desejo (o desejo carnal). Conforme os preceitosreligiosos, supostamente, devido essa moça ter sido tão religiosa, conheceu um belo

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    homem, além de ter como nome Antônio, nome bíblico. Hipoteticamente, todas essascaracterísticas do cônjuge de Clara pode ter contribuído para a aproximação de ambos,visto que essa moça estava de posse do “saber”/conquista. Prova disso, é que não sedeixou levar apenas por impulsos sexuais, mas teve o cuidado de analisar a melhor saída

     para saciar o que tanto lhe ardia. Dessa forma, presenciamos que Clara passou por

    momentos em que quase fraquejou, mas talvez tenha percebido que sexo é coisa boa, precisa ser feito com jeito, deve ser visto como algo, como afirma Foucault (1988), queserve de remédio para que se tenha vida longa, livrando-se assim, do aniquilamento docorpo/alma. Entendemos, a partir do exposto, que no momento em que o sujeito se sentefeliz e satisfeito, se distancia da morte. A protagonista não era uma madre, mas sim,uma mulher normal, que queria realizar-se, casar, ter filhos, ser dona de casa e,sobretudo, ser feliz. Por isso, resolve procurar a sua felicidade lá fora; e,consequentemente, conseguir viver o seu eu, sua identidade: “Pediu uma audiência coma superiora. Mas Madre Clara foi firme; queria casar-se. A superiora pediu queesperasse mais um ano. Respondeu que não podia. Que tinha que ser já. Arrumou a

     bagagem e deu o fora. [...] A família não se conformava” (LISPECTOR, 1998, p.72).

    Observamos que a protagonista se não fosse uma moça munida de “saber”, poderia morrer de dois tipos de fome: a do sexo e a de falta de alimentação, pois os seus pais só resolveram continuar bancando sua filha sob pena da moça destruir-se porcompleto. Por fim, a felicidade que a personagem procurava estava no outro, no caso, ohomem (sexo), levando- nos a entendermos que o “prazer” sexual se reflete no “corpo”,e na alma do sujeito, possibilitando-o transitar entre a essência e a aparência. Por isso, a

     protagonista conseguiu se transformar de uma pessoa infeliz para uma moça realizada,feliz, pois encontrou o seu homem e, também o sexo. O que nos possibilita fazermos um

     paralelo do problema de Clara com a fala de Foucault (2012, p. 14) quando se refere aos problemas do homem na atualidade: “[...] seu problema verdadeiro é o de todo mundona atualidade: o ‘poder’”.

    PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: DELINEAMENTO DA PESQUISA 

    Antes de tecer algumas formulações teóricas para esse estudo, iniciaremos comalguns esclarecimentos: os postulados teóricos aqui apresentados não são consideradoscomo corpo teórico estanque, mas sugiram durante o andamento da pesquisa, sobretudo,das considerações que necessitam de uma revisão cuidadosa – as de “saber”, “poder”,“prazer” e do “corpo”; também é fruto dos encaminhamentos tomados a partir das

     primeiras leituras que fazem parte do campo de estudo.A composição de uma bibliografia em torno dos interesses de pesquisa, etapa

    inicial de elaboração desse estudo, divide-se em dois momentos: Inicialmente, será feitaa seleção de textos críticos em torno das obras da escritora escolhida, porque nelas seencontra o ponto de partida para a elaboração do estudo das obras em questão. Osegundo momento da primeira fase se constitui da seleção e leitura dos textos do aparatoteórico. Apesar deste aparato teórico já estar constituído para efeito da elaboração desse

     projeto, não é algo fechado, pois, necessariamente, outros textos poderão e sem dúvida,deverão vir a ser incorporados, assim como é possível que alguns textos citados aquisejam desconsiderados, se assim for necessário mediante as definições resultantes desua incorporação na Linha de Pesquisa Poéticas da Modernidade e da Pós-Modernidade,

     bem como no projeto de pesquisa já em andamento.Como a obra literária constitui o corpus dessa pesquisa, essa investigação

     pressupõe leituras dos textos literários, da fortuna crítica de Lispector, de textos sobre

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    os temas “poder”, “saber”, “prazer” e “corpo”, na constituição da identidade dos personagens, e assuntos a estes relacionados, bem como textos de teoria da literatura.

    O corpus da pesquisa compõe-se dos treze textos – “Explicação”, “MissAlgrave”, “O Corpo”, “Via Crucis”, “O Homem que Apareceu”, “Ele me Bebeu”, “ PorEnquanto,” “ Dia após dia”, “Ruído de Passos”, “Antes da Ponte Rio-Niterói”, “Praça

    Mauá”, “A Língua do ‘p’”, “Melhor do que arder” e “Mas Vai Chover” –, integrantesdo livro  A Via Crucis do Corpo (1998). Assim, a tese será, pois, possivelmente umaanálise de fatos conflitantes da obra  A Via Crucis do Corpo de Clarice Lispector, paratanto, consideraremos as categorias de análises elencadas nesse projeto para chegarmosao alcance da pesquisa ora proposta.

    CONSIDERAÇÕES PARCIAIS 

    Ao considerarmos as questões identitárias das narrativas elencadas neste estudo, procuraremos ressaltar o caráter crítico dos treze contos da obra A Via Crucis do Corpo,com o propósito de buscarmos aproximar ao que postula Foucault (1999, p. 59), “[...]

     passou-se a uma literatura ordenada em tarefa infinita de buscar, no fundo de si mesmo,entre as palavras, uma verdade que a própria forma de confissão acena como sendoinacessível”. Os postulados foucaultianos levam-nos a refletir sobre se a literatura

     possibilita a busca de uma verdade que pode ser considerada inacessível. Afinal decontas, observamos que muitas são as estratégias que a literatura proporciona aoentendimento do ficcional e do real, o que reforça a validade da escolha dos contosnessa pesquisa, pois Clarice mesmo não apresentando narrativas lineares utiliza váriasestratégias para apresentar a construção da identidade de seus personagens, inclusive,

     buscando entender a repercussão dos fatos das suas figuras dramáticas indo ao encontroda ideia elencada por Foucault (1999), pois, a autora busca a compreensão dos seus

     personagens por meio do seu íntimo.

    REFERÊNCIAS 

    BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi Tradução de Carlos AlbertoMedeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.BEIGUI, Alex. P. C. Performance da Escrita. Cadernos ALETRIA/UFMJ, Rio de Janeiro,v. 21, n. 01, p. 27-36, jan./abr. 2011.DERRIDA, Jacques. A Escrita e A Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.FOUCAULT. Michel. A Ordem do discurso. Aula Inaugural no Collége de France. SãoPaulo: Edições Layla, 1998.

    . Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36ª ed.Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

    . História da Sexualidade I: A vontade de Saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2001.

    . História da Sexualidade II: O uso dos Prazeres. Rio de Janeiro, Edições Graal,2010.

    . História da Sexualidade III: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009.

    . Microfísica do Poder: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011.

    . Estratégias, Poder – Saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Forence Universitária, 2012.GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003.HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva,Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

    LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

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    MEMÓRIA E IDENTIDADE NO CONTO “A SAIA ALMARROTADA”,DE MIA COUTO 

    Maria da Luz Duarte Leite Silva

    INTRODUÇÃO 

     Neste trabalho temos como objetivo analisar o conto “A Saia Almarrotada”, deMia Couto, que faz parte do livro O fio das missangas,  por percebermos a presença damemória na constituição da identidade da protagonista. Além disso, pudemos refletirsobre o sujeito, especificamente o feminino imerso em uma realidade desumana, e

     preconceituosa.Percebemos também que, o autor parece postular que grande parte dos contos

    que fazem parte deste livro apresenta o universo feminino como sendo reprimido.Assim sendo, a voz daqueles (as) a quem a sociedade obrigou a silenciarem na narrativa

     podem de alguma forma exteriorizar sua angústia. Por isso, a escolha do conto “A saiaalmarrotada” por ser representativo das categorias de análise escolhida. Vemos que, éuma voz feminina que narra a sua própria vida, enfatizando uma saia que ganhou de

     presente de seu tio. Intercalados na narração percebemos lembranças da dura realidadena qual a personagem vive. A protagonista, em uma revelação um tanto quantochocante, nos apresenta: “Nasci para a cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tantavergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha” (COUTO,2009, p. 29). Esse trecho é representativo do papel restrito da mulher. Com base noexposto podemos perceber, sugestivamente, a importância de analisarmos a narrativa

     proposta, enfocando a memória na constituição da identidade da protagonista.

    A SAIA ALMARROTADA 

    O conto “A saia almarrotada” retrata a trajetória de opressão e submissão damulher, e os meios utilizados pela protagonista na tentativa de libertação. A histórianarrada em primeira pessoa serve como testemunho/memória da condição feminina,discriminada, marginalizada marcando a exclusão da protagonista no que se refere a suaimersão na sociedade patriarcalista.

     Nesse conto presenciamos uma história de uma jovem que perdera sua mãe no

    nascimento, que foi criada por seu pai e seu tio, vivendo com seus irmãos, em umuniverso em que o falocentrismo perdura. Assim sendo, vemos que o testemunho dacondição vivida é apresentado pela própria protagonista. A sua vida era cheia deexclusão, discriminação, atitudes “policiadas”, pelo pai, até mesmo depois de morto.Contudo, hipoteticamente vemos nessa narrativa a imagem de uma jovem mulher, quetambém exerce suas ações controladas, especificamente pela figura masculina. Por fim,“A saia almarrotada”, trata da opressão sofrida por uma mulher, e tem a história narrada

     pela personagem (mulher) oprimida.Dessa forma, supomos que o papel estabelecido à figura feminina é de

    discriminação, a casa é mais uma vez o espaço em que a mulher deve prevalecer. Isso éevidenciado no conto; as atitudes vividas pela protagonista parecem implicar

    diretamente no seu comportamento, e na crise de identidade que é rememorada pelanarradora protagonista. Esta se apresenta sempre sentindo-se à margem da sociedade em

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    que vive. Além disso, o ambiente fechado e discriminado em que vive a personagem parece agregar, também características de sua memória, ocasionando na figuradramática a construção de uma identidade esfacelada, presa numa clausura dentro de simesma, e dentro da própria sociedade e dos mandos e desmandos do homem. Vemostambém, hipoteticamente, que toda atitude da personagem está atrelada a memória da

    mesma, ocasionando o desenvolvimento de uma personalidade e sentimentos confusos,como vergonha, prazer, sendo a culpa integrada ao pudor, sentimentos esses dasociedade patriarcal.

    MEMÓRIA E IDENTIDADE NO CONTO “A SAIA ALMARROTADA”, DEMIA COUTO 

    Ao analisar o próprio título vemos que o neologismo – almarrotada – poderepresentar que a saia e/ou a vida da personagem está Amarfanhada, (significandomachucada). Quando a personagem diz: “Nasci para cozinha nos remete a entender arepressão sofrida por essa moça”. Bem como o espaço restrito da mulher na sociedade

    (esposa e dona do lar).A partir do discutido sobre como se sente essa mulher, parece que ela vive a

    margem da sociedade, perpassada pela repressão. A título de exemplo citamos:

     Na minha vila, a única vila do mundo, as Mulheres sonhavam comvestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. Amim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa. Maisque fechada, me apurei invisível, eternamente noturna (COUTO,2009, p. 13).

    Vemos nesse fragmento, sugestivamente, que a personagem revela uma vida

    reprimida, triste, de exploração, de renúncia e maus tratos, invisível para muitos.Quando a protagonista apresenta: “Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calouno meu primeiro choro” (COUTO, 2009, p. 13). Nessa passagem, também podemossugerir que a privação da mulher está representada a partir da mãe da protagonista, poisquando diz que a mãe se calou no primeiro choro dela, implicitamente a repressão éexpressa. Para Bosi (2006, p. 68), “A narração da própria vida é o testemunho maiseloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar: É sua memória.” A protagonistarelata em toda história sua memória possibilitando-nos conhecermos o si mesma.

    Outro fato que merece destaque é a ausência do nome, podendo, tantorepresentar a sensação de não pertencer à sociedade, e, sobretudo, o poder do

     patriarcalismo, pois para Bosi (2006, p. 18), o sistema patriarcalista vem “Destruindo os

    suportes da memória, a sociedade capitalista bloqueou os caminhos da lembrança,arrancou seus marcos e apagou seus rastros.” A partir da fala de Bosi podemos sugerir oquanto a protagonista sofreu para viver em uma sociedade discriminativa. Mas, o fatoda figura dramática rememorar sua vida pode propor sua diferença. Para Ecléia Bosi(2006, p. 18), “O simples fato de lembrar o passado, no presente exclui a identidadeentre as imagens de um e de outro e propõe a sua diferença.” Assim, podemos sugerirque a personagem parece ser diferente das moças de sua vila:

     Na minha vila, a única vila do mundo, as Mulheres sonhavam comvestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. Amim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa. [...]

     Nasci par cozinha, pano e pranto (COUTO, 2009, p.13).

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    Assim sendo, ela que não fora acostumada a receber elogios, a se arrumar, perante o presente do vestido - presente do tio, a personagem deixa transparecer ainsignificante vida, pois nem inveja tinha das moças que faziam o que não lhe era

     permitido, parecendo uma certa mortificação do seu eu.

    [...] fiquei dentro do meu ninho ensombrado. Estava tão habituada anão ter motivo, que me enrolei no velho sofá. Olhei a janela e espereique, como uma doença, a noite passasse. [...] e nem inveja sentiria(COUTO, 2009, p. 13).

    Contudo, por sua vez, a protagonista, sugestivamente, sentia-se solitária,diferente das demais moças de sua vila. “[...] fui cuidada por meu pai e tio. Eles mequiseram casta e guardada [...]” (COUTO, 2009, p. 13). Enquanto as outras moçassaiam de vestidos novos para serem abraçadas. Mas, como é o narrador que apresenta amemória da personagem, podemos sugerir que quando a protagonista rememora suavida pode essa lembrança representar a reconstrução, o repensar da sua vida, visto que:

    “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado.” (BOSI, 2006, p. 55).Quando a personagem dialoga logo no início do conto que “O morto apenas não sabe

     parecer viver. Quando eu morrer quero ficar morta” (COUTO, 2009, p.12), leva-nos aentender que de certa, forma ela está morta no sentido de não poder viver de acordocom sua vontade.

    Como já dito, a personagem em toda narrativa conta sua vida, apresenta que eraa única menina entre muitos filhos, e que foi criada por seu pai e tio subordinada aos

     preceitos dos mesmos, principalmente de seu pai que mesmo morto exerce poder sobreela: “Chega – me ainda a voz de meu pai como se ele estivesse vivo.” (COUTO, 2009,

     p. 14). Essa voz paterna tão forte na memória da figura dramática pode representar o

     poder da memória, bem como o poder da cultura falocentrica, ou mesmo do sistema patriarcal em que o homem é quem decide, é o dono da voz na família. Schneider (2008, p. 37) apresenta que: “[...] as relações de poder, na sociedade patriarcal, são desiguais porque o homem não apenas assume que detém uma condição econômica, mas quedetém tudo o que essa condição pode manter”. A protagonista nesse conto apresenta-seem um espaço de submissão, isso posto, pois desde a infância, apresentara consciênciade que o amor lhe seria impossível, juntamente com a vaidade. “E assim se fez: desdenascença, o pudor adiou o amor” (COUTO, 2009, p. 13).

    Outro fragmento que merece destaque no conto é quando o narrador apresenta:“A meu tio, certa vez, ousei inquirir: quando secar o rio estarei onde? E ele merespondeu: o rio vive dentro de você” (COUTO, 2009, p. 14). Aqui percebemos, talvez,

    o quanto a vida da protagonista era vazia, sem sentido; pois rio aqui pode significar algosolitário no tempo, que atinge conhecimento à custa de suas fontes que deságua, numtrabalho ininterrupto, ou seja, algo que está sempre passando. Quando a personagemdiz: “[...] posso agora, meu pai, agora que eu já tenho mais ruga que pregas tem ovestido, posso agora me embelezar de vaidades? Fico a espera de sua autorização,enquanto vou ao pátio desenterrar o vestido do baile que não houve” (COUTO, 2009,

     p.15), vemos que parece que a personagem mesmo, depois de velha, lutava para viver.Isso nos faz recorrer aos postulados de Bosi (2006, p.18), quando apresenta: “Que é servelho?, pergunta você. E responde: em nossa sociedade, ser velho é lutar para continuarsendo homem.” O que parece se perceber