De escritores, personagens & pseudônimos

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Geraldo Magela Ferreira __________________ DE ESCRITORES, PERSONAGENS, & PSEUDÔNIMOS Edições QuartzMinguante 2015

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Coletânea de minicontos escritos nos anos 90 e 2000 e publicados em 2015

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Geraldo Magela Ferreira

__________________

DE ESCRITORES, PERSONAGENS,

& PSEUDÔNIMOS

Edições QuartzMinguante

2015

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Narrativas minúsculas escritas nos anos 90 e meados de 2000

“Eu não acredito em personagens fictícios com vida própria, mas que

eles existem, existem!”

(Mercius de Capricórnio, pitonisa)

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Literatices

Beraldo Bezerra, escritor/personagem beatnik, nordestino, quarenta

anos, um tanto frustrado, porém bem humorado, desapareceu de um

romance pós-moderno sem deixar pistas do seu paradeiro.

Abandonou a narrativa bem no meio da trama.

Na realidade, a sua presença não era assim tão necessária, já que em

um romance experimental os personagens pouco importam. Aliás,

nem mesmo o enredo importa muito.

Mas o sumiço repentino de Bezerra deixou o seu escritor angustiado,

pois não era a primeira vez que uma das suas insólitas criaturas o

deixava na mão.

Tempos depois, para a surpresa e ódio do seu criador, Beraldo

reapareceria em um miniconto fantástico de um cultuado escritor de

Minas Gerais.

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Quase

Aldon Almeida, escritor de uma única novela ficou famoso ao escrever

e publicar a mesma obra de ficção por doze vezes. Publicou, em vida,

doze livros diferentes, porém quase idênticos.

O “quase” no caso é o fator determinante na descoberta do talento

literário de Aldon. O enredo, a narrativa, o estilo e os personagens de

sua obra são sempre os mesmos. Mas, como todo grande mestre na

arte da repetição, ele fez uso de alguns truques para atrair e aguçar a

curiosidade dos leitores.

Vejamos: o enredo tem, obviamente, doze títulos diferentes e as

frases finais do capítulo XV e do epílogo da obra jamais se repetem. É

aí que reside a sutileza do autor. Contudo, é bom ressaltar que para

o leitor compreender totalmente a trama ele deverá adquirir todos os

volumes, seguindo a cronologia correta das publicações.

É aí que reside a causa do enriquecimento do escritor. Aldon Almeida

faleceu milionário e deixou inacabado o décimo terceiro livro da

famosa série.

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Ficção barata

Mandrake Zake, poeta pós-alguma coisa, descobriu que a poesia,

assim como todo tipo de literatura, a exemplo da música, está

esgotada. O que existe na realidade é um mero exercício de

repetição, devidamente legalizado e de domínio público.

Angustiado, M. Zake parou de escrever (repetir). Mergulhado na

densa solidão do seu quarto e na boa companhia de João Cabral,

Bandeira e Leminski, ele chegou a uma conclusão drástica: o seu

cérebro estava intoxicado de versos plagiados. E a sua alma também.

Numa demonstração de que os poetas continuam nada originais, ele

cortou a veia poética e ficou na banheira aguardando a morte.

Meses depois teve gente do meio literário jurando que viu Mandrake

Zake tentando vender, por antecipação, exemplares do seu último

livreto de poemas. Além disso, segundo os mais íntimos, ele não

tinha nenhuma banheira em casa.

O suicídio teria sido pura “literatura”.

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Pseudônimo à procura de autor

Birdes Fontaine, pseudônimo à procura de autor. Vocação terrível.

Mas ele vivera tempos de glória nos concursos literários municipais e

regionais, assinando contos escritos sob a influência do realismo

fantástico.

Depois disto, somente decepções, fracassos, desistências...A prosa se

tornara um exercício impossível para o aprendiz de Murilo Rubião,

que preferiu optar pela síntese poética.

O rompimento não fora nada fácil. O autor, agoniado, havia destruído

manuscritos originais, xerox e anotações, todas contendo a presença

metafísica do pseudônimo.

Birdes então o abandonou. Virou free lancer. Segundo comentários

levianos no meio literário, ele anda atualmente de parceria com uma

estudante de letras, gordinha de belíssimo rosto, que escreve sob a

sagrada influência de Garcya Marquez.

Amor à primeira frase.

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Crime passional

“Manoel Bandeira Pereira, o Bandeira, nome de poeta, vida de

bandido, morto de ciúmes de Gracy Jones Silva, uma deliciosa

passista da Escola de Samba Unidos do Bicho Pegou, esvaziou a sua

submetralhadora de uso exclusivo das Forças Armadas no corpo

franzino de Roberto Carlos Silva, nome de cantor, vida de cachorro.

Como dizem os turistas europeus, o povo dos trópicos tem o sangue

muito quente.

Manoel Bandeira, ao contrário, tinha o sangue bastante frio.

( ... )

( Miniconto de Antônio Scliar )

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Inutilidade

Clementes Mendes, poeta parnaso talvez até um simbolista, foi o

único que teve coragem suficiente para escrever um épico sobre a

cidade, narrando as glórias e decadências do lugar. Versos pomposos,

estrofes gigantescas marcavam a obra metricamente bem construída.

Poetas como Clementes adoram construir textossauros que ninguém

terá paciência para ler. Em todo caso, o poema foi muito bem

recebido pelos críticos que dão plantão na cultura local. Ficaram

admirados com a “beleza lírica, a estrutura, a densidade dramática da

obra”.

Mas como beleza lírica, estrutura e densidade dramática não enchem

a barriga de ninguém, a cidade não ligou bulhufas para o textossauro

de C. Mendes. O episódio só serviu para confirmar a maldita tese

defendida pelos nossos avós:

“Literatura não leva ninguém a nada!”

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Escatologia

Dorico Vilibaldo, pesquisador de estilos, foi excluído do quadro de

honra da Academia de Letras e Artes depois que escreveu e publicou

um livro sórdido.

O trabalho intitulado “Fezes” (Edição do Autor-1994), continha os

resultados de vinte anos de pesquisas realizadas nos mais variados

sanitários do país. Além de trazer narrativas fidelíssimas a respeito

do tamanho, cor e odor das protagonistas ( leia-se fezes ), o livro

exagerava nas minúcias, beirando ao mau gosto de relatar

manchinhas de merda no fundo de vasos turcos.

Dorico expulso da A.L.A e com mais de mil exemplares do livro

encalhados, amaldiçoou seus colegas de fardão, mandando-lhes à

merda.

Literalmente.

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O bufão

Florêncio Bueñaventura, O Camaleão, apelido carinhoso dado pelos

habitantes do lado escuro da metrópole, possuia o dom natural da

metamorfose, podendo se transformar em mais de uma centena de

tipos e personalidades diferentes.

Levava uma vida divertida e, paralelamente, divertia uma platéia de

párias com a sua “mágica”. Ora era Hamlet, Dom Quixote, Madame

Bovary, Romeu e Julieta, Peri, etc. Para as crianças adorava ser

Teleco, O Coelhinho e, encerrando o espetáculo, virava Getúlio

Vargas suicidando-se, deixando comovidos os espectadores mais

idosos.

Apesar do tom lúdico da sua metamorfose, uma certa crise

existencial rondava Florêncio, pois ele tinha dúvidas a respeito da sua

própria identidade e tampouco se lembrava do seu caráter.

Amargurou-se com o passar do tempo, mas continuava a divertir o

povo.

Tragicamente, ao final de um espetáculo de Natal, O Camaleão,

encarnando Getúlio, detonou um tiro de verdade no peito e pôs um

fim à sua agonia. A platéia, tomada pela comoção já peculiar,

aplaudiu de pé o “realismo”da cena.

Florêncio Bueñaventura, morto, parecia ser apenas mais uma das

suas próprias facetas.

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O silêncio

Procópio P, repórter/personagem sempre nutriu grande fascínio pelos

desertos. Em 1984 empreendeu uma longa viagem pelos desertos da

África e escreveu uma reportagem a respeito, sob o agradável

formato de uma crônica, da qual capturamos este pequeno trecho:

“... e o dia estava quente. Quente demais. No horizonte, o deserto

traiçoeiro e um ponto escuro, distante. Com o passar das horas, o

ponto se transformou em traço verticalizado, sem foco. Miragem? Um

beduíno perdido? O dia claro. Claro demais para as minhas retinas

sensíveis. Não se via mais o traço desfocado e dançante. Somente o

horizonte branco. E o silêncio. Silêncio... Silêncio... Silêncio...

Restava-me somente a certeza de que aquela cena se repetiria no dia

seguinte. No deserto as coisas sempre se repetem, inclusive o

silêncio...”

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Gêneros

Wanda Wasíllis, uma escritora polêmica publicou um livro estranho.

Estranho no que dizia respeito ao gênero literário que deveria

pertencer a obra. Conto, novela ou romance?

Para o ex-contista Antônio Scliar, a estória era uma novela e ponto

final. Já o novelista Sérgio Simulacros considerou o trabalho um

romance moderno, “apesar de ter certas afinidades estruturais com o

conto”, frizou. Mas o romancista Machado de Queiroz também tinha

opinião divergente. Para ele, não havia dúvidas de que Wanda

Wasíllis escrevera um conto. “Um pouco longo demais, mas não deixa

de ser um legítimo conto”, dissertou o velho mestre.

Dos cinquenta escritores convidados para analisar o caso, dezessete

disseram que se tratava de conto; outros dezessete afirmaram ser

uma novela e dezesseis taxaram a obra de romance. A discussão

chegou às páginas dos suplementos literários e foi objeto de teses e

ensaios enormes e pedantes, mas até hoje ninguém conseguiu

chegar a uma conclusão definitiva.

Se é que isto realmente interessa aos leitores.

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Pirataria

Baltimore Batista, pirata das letras, confessou na Comissão Literária

de Inquérito da Associação Brasileira de Escritores Desconhecidos que

o personagem Florêncio Bueñaventura fora roubado de um livro de

estórias extraordinárias do século XVIII, de autoria anônima.

Era o típico produto para a ação de um pirata da qualidade de

Baltimore, famoso pelas suas incursões secretas no Arquivo Público e

nas bibliotecas, sempre à caça de algum tesouro desprotegido. Ele

roubava personagens e os transformava em outros com

características parecidas, dando uma nova condução ao enredo, cuja

idéia original também era produto de furto.

A comissão considerou Baltimore culpado do crime de pirataria

premeditada, mas como o livro era de autor desconhecido, e não

havendo nenhuma queixa registrada, ele acabou sendo liberado. O

personagem Florêncio Bueñaventura foi apreendido e cassado pela

CLI, enquanto o vilão saía da audiência com um novo plágio na

cabeça: reescrever o seu próprio depoimento, agora na condição de

vítima de um escritor pirata do século XVIII...

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Intestinos

Magrelo Mouse, grafiteiro e desenhista de HQ, rato das bienais

nacionais e internacionais, roedor solitário de obras e instalações

contemporâneas, havia devorado alguns artigos assinados pelo crítico

de arte Pereira Gullag, onde o ex-guerrilheiro das vanguardas

arrasava a chamada arte experimental. “A vanguarda das vanguardas

não existe”, sentenciava o crítico nos textos.

O estômago de M. Mouse, acostumado aos mais ecléticos restos

mortais da última bienal internacional, parecia ter aceitado bem as

argumentações de Gullag, mas os intestinos nem tanto. Magrelo

acabou borrifando com merda estética todo o decente sanitário da

Fundação. O produto acabou se tornando objeto da pesquisa sórdida

realizada por Dorico Vilibaldo na criteriosa composição do seu livro

“Fezes”. E o banheiro se transformou em mais uma instalação

inusitada de arte experimental.

Pura ironia do destino. Ou dos intestinos.

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Vazio

“a memória é tudo o que nos resta,

mínima luz, fio de neblina pela fresta.

a memória é tudo o que nos resta,

mínima luz, fio de neblina pela fresta.

a memória é tudo o que nos resta,

mínima luz, fio de neblina pela fresta.

a memória é tudo o que nos resta,

mínima luz, fio de neblina pela fresta.

a memória é tudo o que nos resta,

mínima luz, fio de neblina pela fresta.

a memória é tudo o que nos resta,

mínima luz, fio de neblina pela fresta.

a memória é tudo o que nos resta,

mínima luz, fio de neblina pela fresta...”

(Peça integrante do inquérito que apura a falta de

produtividade poética de Mandrake Zake, poeta moderno ou pós-algo)

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Filosofia

Horacius H., pensador insignificante passava os dias enfiado na

Biblioteca Pública à procura de alguma filosofia ainda não deflorada

pela sua gula intelectual incurável.

Platão, Aristóteles, Sartre, Kant, Shopenhauer, Hegel, Rousseau,

Kierkegaard, Marx, Benjamin, Engels, todos lhe interessavam. Para

não falar dos contemporâneos. Entre eles, um lhe atraia cada dia

mais: Rhussardo Ruivo, o ideólogo do suicídio santificador.

Envolto numa atmosfera de solidão e silêncio, entre muralhas de

livros, Horacius H. devorava o pensamento escrito de R. Ruivo. Não

cessava de refletir sobre a teoria defendida pelo mestre de que “o

autosacrifício nos leva à santidade absoluta”.

“A morte, devidamente provocada, purifica a nossa alma e nos

conduz à vida eterna”, ensinava o filósofo suicida.

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Poder paralelo

Because Forevis, habitante dos morros íngremes, vinte e seis anos de

pura prosa, era suspeito de tráfico ilegal de trechos de livros.

Tal atividade criminosa consistia no seguinte: escritores de

laboratório fabricavam, clandestinamente, fragmentos, trechos e até

páginas inteiras de material literário, repassando a muamba para os

traficantes venderem no mercado editorial. A rede do tráfico era

formada por profissionais da ficção desempregados e até por autores

respeitáveis, além de ex-escritores.

O material era vendido a editores de péssima reputação e escritores

de best-sellers, inclusive esotéricos de qualidade duvidosa. Segundo

a imprensa marrom, até mesmo alguns intelectuais conceituados

faziam uso da mercadoria de primeira qualidade fornecida por

Because e sua gang.

O comércio ilegal de trechos de livros ia bem, com a devida propina

paga às autoridades, até o dia em que os personagens de um

romance regionalista morreram de overdose, provocada pelo excesso

de detalhes contidos em mais de cem páginas sobre a saga dos

seringueiros do Acre.

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Inédito

Trecho do livro inédito “O Extrato do Cotidiano”, de Beraldo Bezerra,

escritor beat sem nunca ter sido:

( ... ) Pernas femininas. Diversas. Me rodeiam. Passo o cartão

magnético do lado errado de novo. Não aprendo estas coisas. Refaço

a operação. A minha cabeça leve está sempre no mundo torneado

das pernas femininas. Digito a senha. Não perco de vista as pernas.

Sou um discreto observador de pernas. Talvez alguém mais já tenha

registrado o fato de que a maioria das mulheres consideradas

“feias”possuem pernas interessantes. Corto o papel do extrato,

enquanto as minhas mãos percorrem pernas inatingíveis. Saio do

banco para cair novamente no mundo das pernas ( ... )

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Depoimento

“Certa vez, uma amiga me perguntou sobre o por que de todos os

personagens das minhas obras serem do sexo masculino. Não soube

responder, pois confesso que jamais ter pensado nisto. A partir de

então comecei a refletir. Seria algum tipo de preconceito implícito?

Comecei a pensar, ininterruptamente, em criar um personagem do

sexo feminino. Não precisava ser exatamente uma mulher, no sentido

mais radical. Poderia ser uma cadela, uma máquina, um andróide ou

uma boneca eletrônica. Nada, não conseguia criar nenhum

personagem feminino, ou efeminado.

Depois de meses consegui pensar num protótipo inconsistente

denominado Helga Coolgate, cantora lírica que sobrevivia cantando

jazz em New Orleans no início do século.Achei melhor, para o bem da

dita cuja, destruir a idéia antes que ela se consolidasse em algum

conto ou novela, sei lá.

O estranho é que no dia seguinte, em frente à minha velha

Remington, espólio do meu avô, me veio de estalo mais um

personagem macho:

Horacius H., pensador insignificante... ( ... )

Mais um pênis na minha literatura de terceira, pensei eu,

conformada...”

( Depoimento de Wanda Wasíllis, escritora polêmica e

premiada )

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Caça ao tesouro

( A cidade continuava desmemoriada )

Até aí nada demais. Assim eram todas a cidades de igual tamanho.

Mas o pesquisador H. W. Silveira, incansável descobridor de tesouros

inúteis, resolveu penetrar no interior da cidade, chefiando uma

pequena expedição científica.

Como de costume, não encontraram grande coisa. Algumas ossadas

centenárias de escravos e uma múmia, identificada como a do

suposto pioneiro que, segundo registros precários, fundara a cidade.

Os “tesouros” encontrados foram entregues às autoridades que os

colocaram junto a uma forja catalã e um punhado de ferro retorcido,

expostos à visitação pública.

H.W. Silveira morreria esquecido, segurando nas mãos o diploma de

cidadão honorário que recebera da Câmara Municipal. O seu nome foi

citado também no poema épico de Clementes Mendes.

Mas a cidade continuava – absurdamente - sem uma história

confiável.

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Trópicos

Carlos Drumond da Costa, o Drumond, nome de poeta, vida de

gangster pé de chinelo, doente de ciúmes de Grace Kelly Pereira,

deliciosa mulata da Escola de Samba Unidos do Já Vem, descarregou

a sua pistola automática importada no corpo musculoso de Manuel

Bandeira Pereira, o Bandeira, nome de poeta, vida de traficante.

Como dizem os turistas americanos, o povo dos trópicos tem o

sangue muito quente. Drumond, na realidade, tinha o sangue

bastante frio.

( Miniconto assinado por Baltimore Batista, cuja idéia original

foi roubada de Antônio Scliar )

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Sensualidade

“Ela possuia uma beleza hedionda...

Os olhos negros, enormes, uns cílios imensos e olheiras falsas de

ressaca. Pescoço comprido, quilométrico mesmo, chamando a

atenção de excitadas bocas alheias. Um perfume estranho, longínquo.

Artificial.

Aliás, ela era toda artificial. Os braços finos. As pernas grossas, mais

grossas do que poderiam imaginar os investigadores de corpos. Tudo

nela era paradoxal. Belo, mas, incoerentemente, desumano.

O andar silencioso. Esqueleto maleável. O vestido lembrava um

modelo europeu daqueles desfiles do canal GNT. Algo nela lembrava

a Naomi Campbell. Talvez a boca...Os quadris cindycrawfordianos.

Ela quase não falava. Apenas monossílabos. Vagos. Mas tudo nela era

terrivelmente sensual. Um suplício de mulher perfeita.

E inatingível, diria o míope Querêncio Borba. “

( Depoimento do grafiteiro Magrelo Mouse, viajando no retrato falado de Helga

Coolgate feito por Baltimore Batista, ladrão de personagens )

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Esoterismo

O novelista Sérgio Simulacros pagou uma nota preta à pitonisa

Mercius de Capricórnio para que ela lhe mostrasse o caminho do

sucesso literário.

A pitonisa acendeu um havana, meditou alguns segundos e chegou a

uma conclusão insólita: Sérgio S. teria de mudar de nome. O novo

nome deveria ter as iniciais em Z.

A vidente, em transe perpétuo, disse ao novelista fracassado que ele

também deveria abandonar a ficção urbana e experimentar o

caminho da literatura esotérica, uma verdadeira mina de ouro.

Sérgio deixou a tenda mística disposto a mudar de nome pela décima

vez. Tinha até uma idéia em Z: “Zé Zen”, curto, rápido e original.

Difícil seria mudar de gênero. Logo ele, que nunca acreditou em

duendes e gnomos, fadas e bruxas, ou magia de espécie alguma.

Como poderia ter o estímulo necessário para escrever livros

esotéricos? Afinal, pensava ele, o escritor precisar acreditar naquilo

que escreve.

Resolveu então ir novamente atrás de Mercius para pedir um

conselho extra. Tarde demais, a pitonisa já havia desmontado sua

tenda e partido sem deixar poeira cósmica para trás. Sérgio

Simulacros teve a estranha sensação de que havia sido vítima de

uma picaretagem mística.

O curioso é que, meses depois, apareceu nas livrarias um livro

intitulado “As Aventuras da Cigana Cósmica de Capricórnio”, de um

autor estreante chamado Zé Zen.

Sérgio S. jurou que era pura coincidência.

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O suicida

“Tudo o que é sólido desmancha no ar”.

Depois de ficar com esta frase na cabeça por vários meses, Horacius

H., suicida dialético praticante, resolveu pular do último andar do

prédio onde morava.

Pulou mesmo.

No meio da sua viagem para a morte inevitável, Horacius sentiu um

frio intenso e cortante. Talvez fosse a tal sensação de

desmanchamento.

Uma espécie de transição do estado sólido para o gasoso, deve ter

pensado, antes de se esborrachar na via pública.

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Trocadilho

“Alguns seres humanos nascem para praticar o mal. Às vezes, até de modo

inocente... E a sua ingenuidade chega a sugerir uma espécie de cinismo

insuportável”. (Anônimo do século XI)

Jezebel Junkle, uma bela jovem que estava aprontando horrores na

nova safra de escritores brasileiros, falava deste tipo de homens e

mulheres em suas famosas e curtas fábulas urbanas.

“Com apenas vinte e um anos, Jezebel e a sua narrativa pós-

rubensfonsequiana chegaram para ficar e impor o seu estilo, ou a sua

própria falta de estilo”, diziam os críticos mais avançadinhos.

Mas, contrariando leitores e críticos entusiastas, J. Junkle resolveu

parar de escrever logo depois de publicar o seu segundo livro de

contos... Ou melhor, fábulas.

Ela declarou aos poucos amigos do meio literário que com os seus

dois best-sellers recebeu apenas uma mixaria, enquanto as editoras

ganharam “fábulas”.

(...) Um trocadilho imperdoável para uma mente tão privilegiada (...)

escreveu um jovem articulista do caderno de cultura de um jornal de

tiragem nacional.

Page 26: De escritores, personagens & pseudônimos

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Erotismo

( ... ) Era virgem ainda. O umbigo, a sua principal zona erógena.

Quando a conheci não permitia que ninguém o tocasse. Subiria pelas

paredes, dizia, numa mistura de timidez e desejo reprimido, quem

sabe.

Seios minúsculos. Nádegas rígidas...

Até hoje me arrependo de não ter ultrapassado tal limite com a

língua. Na minha fantasia, o seu umbigo seria uma espécie de

antecipação do clitóris.

( ... )

( Fragmento de um conto erótico encontrado em poder de Because Forevis,

traficante de textos inéditos )

Page 27: De escritores, personagens & pseudônimos

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A pantera

Durante o III Congresso Internacional dos Escritores Desconhecidos,

realizado em Nairobi, algo terrível aconteceu.

O ex-contista, agora ensaísta, Antônio Scliar, ficou conhecendo a

poeta Botukú Buto, uma negra esguia e sedutora. “Pantera Negra”,

apelidou-a de cara o ex-contista, numa alusão óbvia à personagem

felina de uma das estórias em quadrinhos do grafiteiro Magrelo

Mouse.

Depois de um prolongado debate sobre o sexo na poesia etrusca,

Scliar e Buto foram para a cama. Após esta noite de amor, os dois

não foram mais vistos no Congresso, tendo ambos desaparecido

misteriosamente.

Estão trepando há dois dias seguidos,sentenciou o novelista Sérgio

Simulacros.

Haja energia, admirou o cronista míope Querêncio Borba.

Estou achando tudo isso muito estranho, desconfiou Mário Maltês,

escritor de romances policiais.

Resolveram então investigar, começando pelo quarto de Scliar e,

para o horror de todos, descobriram o corpo do ex-contista e agora

ensaísta pendurado no armário, já em processo de degeneração. O

pescoço dele estava destroçado, como se tivesse sido atacado por

algum tipo de felino de grande porte.

A “Pantera Negra!” Gritaram todos ao mesmo tempo.

Page 28: De escritores, personagens & pseudônimos

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Outsiders

Gato Tom, bandido dos esgotos costumava freqüentar um bar

sombrio, a Taverna do Corvo Poe, também preferido pelos poetas

Mandrake Zake e Clementes Mendes, além do escritor/personagem

Beraldo Bezerra, de gêneros distintos, mas dotados do mesmo

prazer. Ou seja, passar a noite em longas bebedeiras, acompanhadas

de conversas bem humoradas.

Tom era um sujeito sem rumo, sem documentos ou quaisquer

compromissos burocráticos com o mundo civilizado. Bebia às custas

dos literatos que admiravam o seu modus vivendi e se divertiam com

as suas odisséias marginais, enquanto tomava conhecimento de

coisas inatingíveis para um bandido como ele:

Multimídia, animação gráfica, árias, óperas secas, simbolismo,

geração beat, Hamlet e Castro Alves, tudo numa única salada

cultural. E tome porre. Após a bebedeira, o quarteto se dissolvia,

cada um em busca do seu lugar nenhum...

Pareciam personagens em fuga, dizia sempre o gordo Edgar, dono do

bar sombrio.

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Concurso literário

Após o terrível assassinato do ex-contista Antônio Scliar, a Associação

Brasileira dos Escritores Desconhecidos, sob a presidência do míope

Querêncio Borba, resolveu instituir o Prêmio Nacional de Literatura

Antônio Scliar. O concurso envolveria as categorias de poesia, conto e

romance, sendo destinado somente a escritores desconhecidos ou

quase conhecidos, sem fama ou mal afamados.

O poeta parnaso/simbolista Clementes Mendes presidiria o júri de

poesia; o romancista bem conservado Machado Callado fora escolhido

para presidir a comissão julgadora dos romances e o contista picareta

Baltimore Batista presidiria a comissão encarregada dos contos.

As escolhas dos presidentes provocaram protestos violentos por parte

de Mandrake Zake, Sérgio Simulacros e Beraldo Bezerra que se

recusaram a participar do evento, taxando-o de “farsa montada para

premiar dinossauros fossilizados, representantes de uma literatura

pré-histórica”.

Apesar dos protestos e boicotes, o concurso recebeu mais de seis mil

inscrições no total, sendo a maioria para a categoria poesia, como já

era esperado. Três meses depois, as comissões anunciaram os

resultados.

Infelizmente, em obediência ao regulamento do concurso, os nomes

dos vencedores não puderam ser divulgados, mantendo assim o

critério de anonimato dos escritores.

Page 30: De escritores, personagens & pseudônimos

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Vingança

Diz a lenda que antes de morrer, Aldon Almeida, escritor de um livro

só, que na verdade eram doze, ou vice-versa, sentado à sombra dos

floridos arvoredos da sua aconchegante casa de campo, fez um

último pedido ao seu amigo inseparável, Jorge Sande.

Pediu ao amigo que colocasse fogo, ou consumisse de alguma outra

forma eficaz, todos os manuscritos e anotações inéditas que se

referissem ao seu décimo terceiro ( e único ) livro.

Jorge Sande, uma bicha cultíssima, lembrou-se do episódio em que

Franz Kafka, no leito de morte, fez um pedido idêntico ao amigo Max

Brod. Este, sabedor do talento genial de F.K. não atendeu ao pedido

do amigo moribundo. Seu gesto transformou o escritor tcheco em um

dos grandes gênios da literatura mundial.

Sande, ao contrário de Brod, após a morte de Aldon, atendeu de

imediato o pedido dramático do amigo e botou fogo em tudo,

deixando os editores da rendosa obra de A. Almeida enfurecidos. Na

verdade, o gesto de Jorge S. também tinha outro motivo especial:

Vingança!

Meses atrás, os mesmos editores haviam recusado a publicação de

uma antologia contendo os poemas pornobarrocos de Sande.

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O roubo

“ Numa tediosa tarde de domingo, na falta do que fazer, resolvi

roubar aquele protótipo de personagem feminino chamado Helga

Coolgate, a cantora lírica, jazzwoman por acidente, criado pela

escritora Wanda Wasíllis.

Helga me pareceu uma presa fácil, mas acho que me enganei.

Coloquei a pobre cantora numa mini-novela erótica, daquelas de

subir o intelecto de qualquer leitor.

Ela aparecia em duas ou três linhas imitando a Billy Holliday,

enquanto duas lésbicas se lambiam... Parei aí mesmo. Decidi tirar a

Helga da estória. Mas as tais lésbicas, para o meu castigo,

continuavam se lambendo, lá na minha imaginação perversa.

Ao som da Billy, naturalmente.”

( Trecho das confissões de Baltimore Batista perante a

Comissão Literária de Inquérito )

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Romantismos

Numa das conversas regadas a álcool na Taverna do Corvo Poe,

Beraldo Bezerra resolveu falar sobre a paixão mortal de Querêncio

Borba, O Escrevinhador Míope, por Eleonora Del Jaspe, moça

delgada, branquinha, maluca de pedra e possuidora de um par de

olhos traiçoeiros.

Dona de lábios finos e de uma fina ironia, Eleonora deixava os

homens enlouquecidos. O escrevinhador foi apenas mais uma das

inúmeras vítimas do veneno da serpente Del Jaspe que colecionava

zumbis apaixonados.

Tempos mais tarde, Eleonora, A Maluquinha, se casou com um

comerciante abastado e mudou-se para o interior. Querêncio parece

ter se conformado com a situação após escrever uma série de odes,

cantos e poemas que foram parar na lata de lixo, para o bem da

humanidade.

Mas o maior arrependimento de Q.Borba, segundo Beraldo Bezerra,

era o de nunca ter experimentado tocar naqueles seios branquinhos,

levemente sardentos, que davam um toque de mistério ao corpo

delgado de Del Jaspe.

Após ouvir a estória, Tom Cat disse uma frase célebre:

- O romantismo não vale mesmo a pena!

Page 33: De escritores, personagens & pseudônimos

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Sangue frio

Em recente entrevista à revista CAOSTIDIANO, nº 2, a escritora

Wanda Wasíllis confirmou friamente o suicídio do atormentado

Horacius H., personagem inédito da sua última coletânea de contos

psicóticos.

Segundo ela, Horacius foi criado para viver pouquíssimo, pois não

possuia personalidade forte o bastante para suportar as durezas da

vida normal.

O entrevistador perguntou a W. Wasíllis se ela não sentiu remorsos

por ter atirado o pobre personagem do último andar de um prédio. A

escritora deu uma resposta convincente: “Alguns personagens

nascem para viver nos esgotos, como o Tom Cat, outros para pular

de um prédio!”

Sobre a possibilidade de ela vir a processar o ladrão de personagens,

Baltimore Batista, que tentou lhe furtar Helga Coolgate, ela deu outra

resposta interessante: “Alguns escritores servem para tentar roubar

Helga, outros, como eu, para atirar Horacius do último andar. Tudo é

uma questão de índole!”

Page 34: De escritores, personagens & pseudônimos

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Vestígios

Até os dias de hoje Magrelo Mouse não acredita que a Pantera Negra

tenha realmente matado Antônio Scliar.

Para ele, a estória não passa de ficção barata fabricada pela mente

viciada em crimes hediondos do romancista Mário Maltês que, diga-se

de passagem, estava presente no local do crime.

Mouse jura que a Pantera Negra, na data do assassinato, participava

de uma aventura nas selvas do Quênia, juntamente com o seu

parceiro e amante Lorde Lerdo. Magrelo denuncia a “utilização da sua

personagem como pivô de uma trama criada pelo debilóide Maltês”.

Segundo Mouse, o ex-contista Scliar foi vítima de um crime passional

cometido por um dos muitos amantes de Botukú Buto, que teria

utilizado uma espécie de garra de leopardo para destroçar o pescoço

do escritor. Sobre o sumiço de Buto, ele alega que a poetiza deve

estar escondida em algum país africano temendo ser envolvida no

assassinato.

A única coisa que Magrelo Mouse não sabe explicar é o intrigante

sumiço da sua personagem bem no meio da tal aventura nas selvas

do Quênia. A Pantera Negra só retorna à estória em quadrinhos

citada por ele umas seis páginas adiante e com marcas de sangue

nas suas imensas garras.

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Obra sem fim

Mestre Machado de Queiroz morreu aos noventa anos, deixando uma

obra imensa, entre crônicas, ensaios e, principalmente, romances

regionalistas, volumosos e detalhistas ao extremo. Deixou também

um livro inacabado. Ele costumava definir tal livro como

“interminável”. Com o título provisório “Do Gênesis ao Apocalipse -

Uma Aventura Lírica”, a obra poderia ser classificada como um

romance histórico/biográfico.

Machado começou a escrevê-lo aos dez anos de idade, dando

continuidade ao trabalho todos os dias da sua vida, sem a menor

preocupação de publicá-lo. Às vezes escrevia dez linhas, dez

palavras, uma página, tudo dependia do momento. Somando todas

as anotações, na data da sua morte, o livro já contava com mais de

vinte mil páginas, segundo cálculos dos parentes mais próximos.

Apesar dele mesmo se considerar um escritor medíocre, Machado

morreu feliz, acreditando ter chegado à metade daquilo que ele

acreditava ser um livro interminável. Ou insuportável, como queiram

os aficionados pela síntese.

H.W.Silveira Filho, historiador e pesquisador de aberrações culturais,

pela relação de amizade que mantinha com o mestre teve acesso aos

manuscritos e os considerou um “verdadeiro achado literário”, depois

de ter lido apenas as quinhentas páginas da introdução.

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Vida mansa

“Na literatura, o crime compensa!”.

Assim escreveu em suas memórias o dublê de ficcionista, Birdes

Fontaine. Vejamos:

Because Forevis, traficante de textos, contraventor desinibido, jamais

chegou a ser preso. Morreu de velhice, lendo Jorge Luiz Borges, em

uma estância confortável nos pampas gaúchos, comprada com o

dinheiro ganho em suas atividades ilegais.

Gato Tom, personagem/bandido, assassino de aluguel, partiu desta

para uma melhor, quando participava de um carteado na Taverna do

Corvo Poe, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Morreu

gargalhando depois de saborear a última anedota contada por

Beraldo Bezerra.

Baltimore Batista, escritor pirata, um dos mais terríveis gatunos que

a literatura universal já conheceu, teve morte tranqüila à beira do

mar do Caribe, durante viagem turística paga com o dinheiro obtido

no XXXIII Concurso de Contos do Amapá. Ele ganhou o primeiro lugar

do concurso utilizando como se fosse seu um miniconto inédito do

saudoso Antônio Scliar.

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Os falsos profetas do escritor fracassado Beraldo Bezerra

Beraldo Bezerra morreu em uma tarde fria e cinzenta de junho, no

ano de 2005, pouco lembrado pelos críticos e nem um pouco notado

pelos leitores mais exigentes. Foi um escritor medíocre, é verdade,

mas tinha estilo, conforme atestou mais tarde em sua lápide o

pesquisador e descobridor de talentos H.W da Silveira em 1907. O

abnegado Silveira, após remexer os entulhos de manuscritos

deixados por Bezerra, e desprezados pelos parentes mais próximos,

descobriu no meio de um monte de escritos e narrativas imprestáveis

algo que lhe deixou bastante excitado. Uma narrativa intitulada “Os

falsos profetas”, que mesclava fatos da história humana com

picaretagens diversas praticadas por alguns personagens, que

poderiam realmente ter existido, ou não. Além de curiosas, essas

narrativas eram bastante divertidas e possuíam uma dose de ironia

que impressionou o incansável pesquisador, que as divulgou sob a

forma de um livreto. O livreto foi descoberto em um sebo por Birdes

Fontaine, pseudônimo à procura de um autor, que nas linhas abaixo

dá ciência do fato a quem interessar possa:

“ Os falsos profetas, creio eu, foram apenas oito em toda a extensão

da humanidade:

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Dico Zunindo, 910 – 1010.

Dico Zunindo viveu exatos 100 anos e foi o mais rebelde dos

profetas, optando por contrariar as sagradas escrituras invisíveis e

preferindo viver entre os povos bárbaros que habitavam as planícies

da Alta Mongólia.

Dico levava uma vida desregrada. Participava dos combates

sangrentos entre as tribos bárbaras, matando e saqueando sem

nenhum escrúpulo. Possuía um harém de cinquenta esposas e

cinquenta amantes. O número 50 para ele era sagrado. Tanto que

construiu cinquenta ídolos de barro e os espalhou pelas imensas

planícies da sua terra.

Todos os ídolos tinham a sua fisionomia, pois ele se considerava, não

apenas um profeta, mas sim uma espécie de deus. Apesar dos seus

delírios passou a velhice pregando para os seus netos sobre a

existência de um semideus, que teria morrido numa cruz.

Ao falar da cruz, ele sempre desembainhava as suas duas espadas

ainda manchadas de um sangue antigo e as cruzava, numa espécie

de desenho gótico, berrando palavras incompreensíveis. As crianças

riam muito e ele então dormia feliz.

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Ypsolum, 1277 – 1297.

O profeta Ypsolum aproveitou pouco a sua vida terrena.

Segundo as antigas escrituras, nunca confirmadas pela Igreja Oficial,

ele morreu com tenros e puros 20 anos atravessado pelas impiedosas

espadas dos infiéis quando tentava roubar na antiga Jerusalém uma

réplica do Santo Graal , durante uma das suas peregrinações.

Conforme as suas visões de homem santo, a mencionada réplica seria

a mais perfeita e a mais “verdadeira” de todas as centenas de

perdoáveis falsificações do cálice sagrado espalhadas pelo mundo

conhecido.

Ypsolum morreu casto e imaculado. Não chegou a se deitar com

nenhuma mulher. Por isso, logo após o seu enterro, algumas

mulheres vestidas somente com uma tira de pano negro e com as

faces cobertas por véus violaram o seu túmulo e deceparam o seu

órgão genital virgem.

Embalsamaram-no utilizando essências aromáticas e o guardaram em

local tão secreto que jamais foi encontrado.

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Beto Belezura, 1300 – 1600.

Profeta sem pátria, sem eira nem beira, Beto Belezura viveu no auge

das Grandes Navegações. Possuía uma temida caravela, denominada

de Ave de Rapina dos Mares Desconhecidos, armada com cem

canhões, que ele utilizava para transportar escravos aprisionados ou

comprados nas ilhas distantes localizadas no Continente Negro.

Depois de enfrentar tempestades terríveis e demais navios piratas

que infestavam os mares despejava os seus escravos numa ilhota

pequena localizada no Mar dos Destinos Perdidos, na costa norte,

onde ele erguera um templo sinistro, que possuía um gigantesco altar

de sacrifícios. Ali, milhares de homens e mulheres foram imolados a

um deus do qual nunca ouviram falar.

Belezura era um guerreiro destemido e audaz que viveu por três

séculos. Os povos antigos contavam que a cada cem anos ele trocava

de pele, igual às serpentes. Daí o segredo do seu rejuvenescimento.

Apesar da fama de belicoso era um homem atraente. Possuía dezenas

de escravas sexuais, todas elas negras e belas, escolhidas a dedo.

Conseguira o título de profeta depois de ter profetizado que o mundo

passaria por um período de cem anos de fome, miséria e de peste.

Tal profecia nunca foi testemunhada por ninguém, mas não havia

nenhum louco vivo para desmentir o sanguinário.

Dizem as lendas que ele foi morto a machadadas por um escravo

rebelde quando se preparava para se hibernar e trocar de pele pela

quarta vez.

Do contrário, ele teria atravessado os séculos imune à justiça dos

homens.

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Delirado, 333 – 337.

O profeta Delirado, segundo as antigas escrituras jamais encontradas

por algum ser mortal, mas que foram devidamente decoradas por Zé

do Pastéu, poeta errante que atravessara os sete desertos da antiga

África cantando as suas canções incompreensíveis, viveu somente

quatro anos mortais. Isto, na literatura dos pagãos, significava pelo

menos uns quarenta anos metafísicos. Mas em apenas quatro anos

mortais ninguém conseguiria mesmo fazer nada de realmente útil e

concreto. Apenas delirar.

E foi o que ocorreu com este pobre e anônimo profeta precoce, que

morreu de uma febre terrível que o fez delirar durante quarenta dias

e quarenta noites. Durante todo este período, o profeta apenas

balbuciou palavras estranhas e ao dar o seu último suspiro repetiu

por várias vezes:

- O deserto, o deserto, o deserto...

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Zé Confuso, 612 – 700 .

Este talvez tenha sido o mais esquisito de todos os santos homens da

Velha Terra. Em todos os pergaminhos encontrados pelos

arqueólogos e pesquisadores ingleses nas gigantescas pirâmides

circulares do deserto de Io, as referências a esse sacerdote eram

simplesmente confusas.

Num sarcófago modesto, a múmia de Zé Confuso descansou em paz

durante séculos, até ser encontrada por um estagiário curioso que

penetrou nos subterrâneos de uma das pirâmides para dar uma

trepadinha rápida com uma das assistentes da equipe de arqueologia

da Universidade de Hera.

No sarcófago estavam diversas inscrições que, após serem

traduzidas, resultaram em uma conhecida história confusa e que

provocou diversas dúvidas a respeito da sua autenticidade entre os

pesquisadores.

Com um grupo de historiadores defendendo a sua autenticidade e

outro grupo de cientistas afirmando que tudo aquilo não passava de

um blefe egípcio, a coisa esquentou e virou uma guerra.

Após profundos e morrinhentos debates, teses sonolentas e pinimbas

das mais variadas espécies, o sarcófago de Zé Confuso foi lacrado

definitivamente pela Vigilância Sanitária e não se falou nunca mais

naquela confusa descoberta, fruto de um acaso sexual.

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Zacarias Iscariol, 1600 – 1689.

Zaccarias Iscariol foi o principal tradutor das sagradas escrituras

invisíveis, que só quem possuía o coração puro e a alma santificada

tinha condições de enxergar.Ele usava um manto esfarrapado e um

lenço sujo cobrindo os ralos fios de cabelo branco e atravessava os

desertos do norte africano apoiado em seu cajado em forma de

serpente com olhos de rubi.

Excomungado e expulso pela Igreja Ortodoxa, ele vagava cegamente

pelo mundo levando os ensinamentos sagrados para os nômades e

beduínos, bandoleiros e saqueadores de templos pagãos soterrados

pela areia cruel do deserto. Todos eles seres amaldiçoados, assim

como o pobre profeta.

Quando Zaccarias Iscariol bateu as botas, debaixo de uma tenda feita

de molambos, após uma refeição de tâmaras e uma tempestade de

areia, os nômades juraram que viram surgir, entre relâmpagos

rápidos, uma luminosa mão que executou uma série de gestos

indescritíveis no firmamento.

Quando souberam do acontecido, três sábios do Oriente Distante

peregrinaram pelo deserto e, bondosamente, embalsamaram o corpo

do profeta maldito e o enterraram no deserto, dirigindo seus olhares

piedosos para o céu infinitamente azul e dizendo:

- Em verdade, em verdade, vos digo, este homem era filho de Deus!

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Baby da Babilônia, data desconhecida.

A única profetiza reconhecida pela História Negra foi a enigmática e,

segundo os pergaminhos secretos, mortalmente sedutora, Baby da

Babilônia. Fêmea fatal, dotada dos instintos mais selvagens, Baby

chegou a ser considerada por alguns historiadores anônimos como

uma mulher capaz de cometer atos terríveis, como o canibalismo.

Ela teria, inclusive, certa preferência por genitais masculinos fritos,

grelhados, ou cozidos com legumes. Toda vez que a profetiza

capturava um espécime do sexo masculino em suas muitas batalhas

empreendidas contra as tribos selvagens que habitavam as Grandes

Colinas, ela chegava a apalpar com carinho desmedido a volumosa

genitália do macho escravizado.

Seus olhos brilhavam um brilho intenso, num misto de crueldade e

gula, enquanto o pênis acariciado com tanta má intenção crescia

assustadoramente na sua pequenina e sangrenta mão branca.

“Hoje teremos um banquete especial”, festejavam os generais do seu

imenso exército de fanáticos seguidores que não comiam carne

humana, é certo, mas que gostavam de se masturbar assistindo sua

profetiza devorar gordos testículos de guerreiros mortos.

Baby teria sido morta em uma batalha, mas o seu corpo jamais

chegou a ser encontrado. Depois disto, seus guerreiros se

dispersaram e tornaram-se pastores de cabras na Judéia.

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Abdias Bitola, 1100 - 1201.

Abdias Bitola foi um ermitão idiota e mesquinho que habitou as

montanhas intransponíveis e a árida terra do hoje Turcomenistão.

Não tinha discípulos, nem mulheres e muito menos filhos ou parentes

que o acompanhassem. Ninguém suportava viver ao seu lado por

mais de alguns minutos. Ele era simplesmente odioso.

Segundo os manuscritos encontrados às margens do Mar da China,

ele viveu odiado e desprezado pelos seus discípulos durante 101

anos.

Morreu depois de jejuar trinta dias e trinta noites sem dizer o motivo

do sacrifício. A última de suas muitas grandes bobagens, disseram os

seus contemporâneos desrespeitosos, ao deixarem o seu corpo

apodrecer solitário no deserto.

Diz a lenda que nem mesmo os abutres e os ratos do deserto

quiseram devorar a sua carcaça imunda.”

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Contatos do autor

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