Inverno Púrpuro

113

description

Coletânea de contos feitos por Lucas de Melo Bonez.

Transcript of Inverno Púrpuro

CopyrightAuthor

Lucas de Melo BonezEditor

Editora IndependenteCopyright © 2013 Lucas de Melo Bonez

First Published using Papyrus, 2013

ISBN : [Enter ISBN here]

This book may be purchased for educational, business, or sales promotional use.Online edition is also available for this title. For more information, contact ourcorporate/institutional sales department: [51-91237699] or[[email protected]]

While every precaution has been taken in the preparation of this book, thepublisher and authors assume no responsibility for errors or omissions, or fordamages resulting from the use of the information contained herein.

2

Sobre o livroSempre fui de escrever.

Desde a época de escola escrevia textos, tanto para jornal do Colégio Sévignéquanto para manter guardado. Sempre gostei disso.

Textos escritos aos dezetantos, aos vinte-e-poucos, aos quase trinta. Tudo compõeeste inverno que lerás em breve.

Em meados de maio de 2012, depois de algum tempo sem escrever, criei um blogpara expor meus textos. Inverno Púrpuro nasceu ali, com cerca de vinte textos,que hoje também compõem o dito livro.

Nesta obra, coletam-se textos de assuntos cotidianos. Dia a dia é foco presente,que faz com que muitas identificações sejam possíveis por parte dos leitores.

Que tua leitura seja agradável!

Um abraço,

Lucas

3

Praça

“Pai, por que me deixaste aqui? Eu não queria vir pra areia…”

Foi o primeiro pensamento que tive naquele dia. Era um domingo ensolarado,numa praça vasta em área verde flamejante, rica em saúde e ornada por belasvioletas roxas num canteiro muito bem cuidado. Havia um banco de areia, no qualos brinquedos que eu mais gostava estavam. Escorregador, trepa-trepa, balanço,gangorra. Era sempre divertido ir pra praça: o Tito e a Lívia sempre estavam lá nomesmo horário. Acho que nossos pais combinavam. Eu chegava lá e o pai já diziapara eu me cuidar, não falar com estranhos, brincar tranquilo com meus amigos.

A Lívia era legal. Gostava de brincadeiras com bola. Jogava futebol conosco. Tinhaum chute potente, de bico – quando acertava a bola. Coitada – coordenação nãoera seu ponto mais forte nesse esporte. Ela levava as bonecas, sempre com roupasajustadas, além da escova de cabelo escolhida a dedo para pentear suas Barbies.Não se importava de sujar suas roupas de marca e seus cabelos loiros eencaracolados na areia bruta de lá. Era muito legal a Lívia.

O Tito tinha problemas, era certo. Ele sempre vinha com um carrinho. Um porsemana, diferente. Os domingos eram divertidos quando ele estava de bemconosco. Quando eu perguntava sobre o carrinho da semana anterior, ele ficavabrabo. Não falava. Encolerizava-se. Ficava vermelho. Muito vermelho. Berrava e eunão dizia nada. Achava estranho. Era muita gritaria para tão pouco.

“Pai, por favor. Me tira daqui!”

4

Quando nos juntávamos, era bom. O Tito, apesar da tenra idade, era afixionadopela Lívia. Ele era maior que eu. Bem magro. Juntando com as atitudes estranhasdele, parecia um mongoloide em grau elevado de alguma síndrome, tal era o jeitoque ele a olhava. Eu me enciumava um pouco, mas acho que era mais por nãosaber o que fazer – parecia que ele queria se adonar dela. Eu caminhava rumo aobalanço, enquanto os dois ficavam lá. Ela, com a Barbie; ele, com o carrinho, massem movê-lo, apenas observando a menina.

Começava a balançar. Devagar, visto que minhas pernas ainda não era muitofortes. Aos pouquinhos, ganhando impulso, ganhava altura. Pensava em fazer avolta por cima da barra. Loucura, eu sei. Mas pensava. Nunca fiz. Nesse espaço detempo eu pensava nos meus brinquedos. Via que meu pai conversava com a mãede Lívia, segurando minha bola. Às vezes eu os achava muito próximos, mas nuncadei bola realmente. Preferia cuidar da minha amiga. Eu gostava dela. Era muitolegal.

“Me segura, pai! Não me deixa aqui!”

Quanto mais alto eu ia, mais eu olhava pra cima. O céu, naquele domingo, ficounebuloso. Escureceu. Ouvia meu pai me chamar para ir pra casa. Eu queria ficar ali,voando cada vez mais. A Lívia e o Tito ainda estavam ali embaixo, então pra queme preocupar? Fiquei ali. O pai não falou mais nada. Quando olhei para o lado, elecaminhava com a mãe da Lívia, conversando. Parecia feliz. Enquanto isso, eu mebalançava – olhava o céu. Aquela nuvem parecia um algodão gigante. Era que nemo algodão que minha mãe passava em minhas pernas quando me arranhava todonas brincadeiras da escola – o piso de concreto não favorecia qualquer queda.Ardia. “Vai sarar”, ela dizia, “para quietinho”. “Dói, mãe, para”, eu reclamava. “Guribobo! Isso é para teu melhor”.

5

Aquele algodão todo se agigantava. Ainda não escurecia, mas era branquinho.Passei a me lembrar que sempre que a mãe me levava pra praça, eu ganhavaalgodão-doce. Era bom. Um tinha gosto de morango, parecia. Apesar de que, aoperder a cor, o gosto parecia partir também. Sei lá. Era bom. Enquanto o balançodescia, lembrava da minha boca se enredando no algodão; quando subia, todo elena minha boca. E eu ia e vinha, comendo aquele algodão. Terminei o algodão emdoses curtas, bem aos pouquinhos. Só que, ao ver o palito, ele estavaensanguentado.

“Pai!”

Um grito. Volto meus olhos para o chão. Lívia caída. Sangrando. A cabeçaenterrada na areia. Crianças correndo por todos os lados. Um adulto amedrontavaquem ficou por ali. Eu não sabia quem era. Não sabia como era. Não vi seu rosto.Eu só me balançava. Até a hora em que ele me pegou e saímos de lá. “Pai, me tiradaqui!”, eu clamava. “Quieto!”, ele dizia.

Saí do banco de areia. Eu queria ter ficado em casa naquele dia. O videogame eratão bom. Meu pai insistiu demais, querendo que eu visse a Lívia. Eu não sabia omotivo. Nunca soube. A mãe dizia pra eu ir, pois meu pai argumentava que era promeu bem sair para outro lugar que não fosse a escola durante a semana. Eusempre acreditei neles. A mãe fazia umas caras estranhas pro pai, mas assentia eíamos. No caminho, o pai falava no quanto a Lívia era boa comigo. Sempre gostavade saber disso, pois quando brincávamos não parecia tão assim. Ouvi um tiro. Eoutro grito.

Lívia morta. Era estranho pensar nisso. Nunca soube o que era a morte e ela sóparecia dormir com molho de tomate na cabeça. Só que não era tão simples. E euestava saindo da praça, carregado por aquele homem sem face. Eu tentava olhá-lo, contudo ele me pegou de um jeito que não me fazia sequer levantar a cabeçadireito. Sentia um braço forte cruzando minha barriga, enquanto ela se contorcia.Sentia vontade de exalar odores. Flatulência ficou muito forte. É engraçado isso,estava nervoso demais e meu estômago atacava. Que eu faria? “Me solta!”, eudizia. “Vai comigo, guri!”

6

“Pai, por que tu sumiste? Eu só queria que me levasses de lá! Pra que nós fomos,pai?”

Subia ruas e descia. Entrava em lugares estranhos – uma casa velha numa ruasilenciosa; um quarto sujo numa pensão mal cuidada; uma rua estreita, semqualquer pessoa. Becos, buracos, nada. Lugares-nada. Ninguém vivia neles. Eu nãovia ninguém. Ninguém com cara, com jeito de gente. Eu só via o chão, carregadodaquela maneira. “Vou te largar aqui”, ele disse. “Por quê?” – Barulho de sirene. Ohomem queria fugir. Eu via seu nervosismo, se virava muito para trás no decorrerdo caminho. O que será que ele queria? Por que a Lívia tinha morrido? Por que eunão via nada? Eu queria algodão doce naquela hora, só isso. Queria minha mãe porperto.

Caí e ele se foi. Minutos depois, a polícia me achou. Levaram-me de volta à praça,não sei por quê. Eu queria ir pra casa, ver minha mãe, contar o que aconteceu,saber de meu pai. Ele me deixou lá! Eu não o vi mais depois que estavaconversando com a mãe da Lívia, feliz. Eu também estava feliz, mas pelo algodãoque eu via no céu. Não queria mais saber do Tito e da Lívia. Nada daquilo.

Ao chegar na praça, o local estava interditado. O banco de areia ainda tinha ocorpo de Lívia ensanguentado. O Tito não estava mais lá. Era um silêncio mortal navolta onde eu estava. Aproximei-me mais das pessoas que estavam conversando.Olhei de novo pra Lívia. A boneca dela estava lá, toda suja. Senti nojo. Olhei denovo pra cabeça de Lívia enterrada na areia e não quis olhar mais. Não era umacena legal. Não era nada bom.

“Filho!”, surgiu minha mãe.

7

Abraçamo-nos. Abraçamo-nos em meio ao silêncio horrorizante da praça. Silênciomórbido, de castas almas perdidas numa areia coberta de sangue e dor. De fora,almas impuras observavam com pavor mortal o resultado dos acontecimentosdaquela hora. Eu disse que queria ir pra casa. Minha mãe, chorando, dizia prairmos, mas que eu ficaria com minha avó, pois precisaria resolver problemas.Perguntei por meu pai. Ela não me disse nada, apenas para ir.

Cheguei em casa e minha avó estava arrasada. Dizia pra eu tomar um banho,depois conversaria comigo. Obedeci. Era tudo que eu precisava: um bom banho,deitado naquela banheira, com aquele pato que sempre me fez companhia. Patoque meu pai me dera. E meu pai, onde estaria?

Tantos anos se passaram. Tanto tempo se foi. Um desejo incólume me penetrouas lembranças, anos atrás. Eu não queria repetir meu pai. Eu não queria repetirtudo que acontecera para ter um final como aquele. Amo minha esposa. Desejo-aardentemente, noite e dia. Não quero saber de qualquer coisa que seja diferentedisso. As consequências podem ser totalmente descabidas por um ato simples,modesto, despretensioso. Imagine quando fosse por algo que realmente abalassea integridade de um homem. Nunca mais as coisas seriam como um diapareceram. Muito menos aquela praça.

8

Amantes

O dia de chuva dificultava seu retorno para casa. O trânsito parado irritariaqualquer pessoa que estivesse há cerca de duas horas tentando apenasreencontrar seu lar, organizado, limpo, com comida pronta – era o dia em que adiarista o visitava. Com as duas mãos no volante e o olhar perdido num horizontenebuloso, observando a luz vermelha do carro em sua frente, pensava no tempoperdido. “Que porcaria”, era a única expressão que saía de seus lábios.

Observa o relógio. São quase 19h30. A Marisa, sua faxineira, preparava tudo comcarinho: “Seu Antônio, não deixa a comida esfriar. Fica ruim”, dizia. Ele apenasapartava os pensamentos em meio ao mau humor que lhe consumia a face. Oscarros adiante andam um pouco. Ele também. Aumenta a velocidade: 5km/h,10km/h, 20km/h. Para de novo. Buzinas. “Seu Antônio, tua roupa já tá no armário,dobradinha”, Marisa falar-lhe-ia, se chegasse a tempo de encontrá-la. Irritação.“Saco”, pensa. Buzina também. “Seu Antônio, seu café acabou. Precisa ir nomercado”. Fecha os olhos.

Observa Marisa chegando, no primeiro dia em casa. Era uma mulher robusta,baixa, amorenada pelo sol, volumosa em todos os sentidos. “Essas são asmelhores, meu filho”, dizia sua mãe. Aceitou-a tranquilamente. Trabalhadora, nosprimeiros dias transformou o pandemônio em um céu azul: toda a desarrumaçãodo homem se viu tragada pela mão carinhosa e organizada de Marisa. Foi-se umprimeiro ano exitoso: ele mesmo se sentia melhor no meio da arrumaçãopromovida pela mulher. “Muito me agrada trabalhar pro senhor, Seu Antônio”,dizia ela, ao final do dia, véspera de Natal. Ele a pagou e ainda deu um presente:uma cesta com guloseimas variadas, vinho, castanhas. Coisas que Marisa nuncapensou em comprar. “Minha filha vai amar, Seu Antônio! Muito agradecida!”

9

Uma filha. Marisa não era sozinha no mundo. Nunca tivera a curiosidade deconhecer parente de subalterno. Já havia sido assim quando morava com a mãe,abastada pela pensão que recebia devido à morte do pai, funcionário do governofederal. “Não quero brincar com ele”, dizia, quando a empregada levava o filhopara sua casa. A mãe o observava, seca, sem dizer sim ou não. Saía de perto evoltava ao quarto, para lá passar muito tempo sem dar sinal qualquer de vida.

Abre os olhos. Ainda parado, vê novamente o trânsito se adiantar mais à frente.Ainda assim, o carro adiante não anda, nem o posterior, nem o outro. Trânsitototalmente parado. Já bastante indignado, tira o cinto, bem como descansa asmãos nas pernas, sem pensar mais no volante. “Banho. É só o que preciso”,pensava. Observa as mãos novamente, semi-suadas, ordem de um trabalho durocomo o do dia. Observa as mãos e lembra de Domi.

Dominique. Linda. Quando a conheceu, ela tinha vinte anos. Exuberante: morenajambo, cabelos lisos, ondulações corpóreas que fariam enlouquecer qualquerbeato. Olhos verdes. Contraste amazônico com a serra gaúcha. Exótica. No dia queela chegou na sua casa, quase não acreditou no que viu. “Seu Antônio?”, elaquestionou. “Minha mãe ficou muito agradecida pelo presente”, dizia,timidamente. “Nós não temos como presentear o senhor, mas como gosto muitode escrever, eu te trouxe isso”. Estendeu a mão. Um envelope, meio amassado,como que trazido nas mãos o tempo inteiro para que não perdesse. Sensibilizadopor aquilo, sabendo que a menina havia viajado de sua casa até a residência delede ônibus, num dia quente, convidou-a para entrar. “Não quero incomodar osenhor”, ela dizia. “Não será nada disso”, responde.

Ela adentra o apartamento e se deslumbra com o que vê. “É tudo culpa de suamãe”, brinca. “Ela é muito caprichosa mesmo, né? De vez em quando eu a ajudo,quando necessário”, ela afirma. O homem a observa com outros olhos. “Não creioque precises te desgastar na minha casa. Não é muito grande”, sente-se. “Mas ébonita. E tem livros”, diz Dominique, observando a estante de livros do dono dacasa. “Fica à vontade”, ele diz, apontando para os livros. Ela sorri e segue até lá.

10

Antônio senta no sofá, defronte à biblioteca. Observa as costas de Dominique.Estava de short jeans. Branco. Uma camiseta um tanto surrada, mas aindaapresentável, azul clara, com alguns dizeres na frente. Não havia prestadoatenção. Distribuída em uma altura mediana, seu peso era proporcionalmentedisposto pelo corpo. “Ah, Seu Antônio, aquele livro ali de cima… As “Cartas” daMariana… Adoro!” – quando ela fala nisso, põe-se na ponta dos pés. Percebe oquão rijas eram aquelas pernas, torneadas – seriam aulas de educação física ou otrabalho que fariam-nas? “Lindas demais”, pensava.

Aproxima-se e pega o livro para que ela veja sua edição. “Linda capa”, diz a ele. “Hámuitos livros que poderias ler, caso tenhas interesse”, ele sugere. “Não, SeuAntônio, já tomo muito de seu tempo. Vou pra casa agora”, ela diz. “Tu quemsabes”, responde, “mas leve esse livro contigo” – aponta para “Lolita”.

Ela leva o livro consigo. Olha para trás, ao sair do apartamento de Antônio. “Osenhor é gentil”, ela diz. “Mandarei o livro pela minha mãe, tá?”. Ele a observa comcandura e diz: “Quando quiseres”.

Dominique. Linda. Filha da diarista. Quem diria.

Os carros andam mais um pouco. Agora, parece avançar bastante. A chuvaincessante teima em continuar, fazendo com que seu para-brisas comece a rangera borracha contra o vidro. Consegue avançar ao ponto de sair docongestionamento. Desvia para uma rua paralela, o que o coloca a 10 minutos decasa. Dominique. Morena linda. Como queria vê-la novamente. Ver aqueles olhosverdes, aquele cabelo liso, a pele achocolatada com altas doses de leite. Haviamuita vontade.

Chega em casa. Aliviado. Finalmente: casa limpa, comida feita, banho para tomar.Desce do carro. Pega seus pertences e sobe. Os degraus que levam à sala de casaeram poucos, mas pareciam uma eternidade depois de tanto tempo sentado. Pegaa chave. Enrola-se. Cai o molho. “Droga”, murmura. Pega as chaves, pondo asmãos direto na que lhe interessava. Abre a porta.

11

A luz está acesa. A televisão da sala, ligada. Larga suas coisas no sofá, defronte àbiblioteca, milimetricamente organizada. Sua esposa, que havia feitoBiblioteconomia, fez questão de reorganizar tudo, texto por texto, desde osmanuais acadêmicos, as apostilas, os livros infanto-juvenis, até a literatura adulta,teórica, referencial. Vai até o quarto. Despe-se. Separa uma roupa para pôr após obanho. De repente, sente que uma mão quente lhe envolve o tronco.

“Cansado, meu amor?”, ela pergunta. “Sim. Preciso de um banho”, ele responde.“Ah” – Faz com que ele se vire de frente para ela. “Olha pra mim”, ela diz. “Vim sópra te ver”. “E tu sabes que sou sempre todo teu”. “Me mostra”.

Ela se despe. Linda. Aquele corpo amorenado. Aquelas ondulações perfeitas. Umsorriso maravilhoso. Entrega-se.

Acorda no outro dia. Tudo arrumado. A cama, os livros, a sala. Café da manhãposto. Um recado, numa pequena folha: “Meu poema até hoje não foi lido. Só quejá li toda tua vida”.

Sagacidade: eis seu nome.

12

RedençãoÀs 7h, caminhava tranquilo. O parque, em meio às brumas, resplendia umasensação silenciosa de magia. A rua não lhe era tão atraente quanto o que haviaao lado: pessoas, correria, fumaça humana, barulhos, locomotiva social. Seriamelhor se fosse “loucomotiva”, para ele. Por que tinha de viver tudo aquilo? Porque não viver a bruma daquela gélida manhã? Resolve atravessar a rua.

Adentra o parque. Num misto de folhas e galhos, os raios de sol emanam calor naterra úmida do local. Ele sente o aroma de tranquilidade, mesmo com as nuvensque se formam pela sua respiração. “Há quanto tempo, amor”, ele pensa. “Háquanto tempo quero te encontrar”.

Invade os ambientes mais comuns do parque: praça com brinquedos infantis, oantigo zoológico, a zona dos pipoqueiros, o bar flutuante. O parque se faz maisnebuloso, quanto mais internamente. Ele para. Observa. Silêncio. Ninguém ali.Ninguém fala. Ninguém ruge. Ouve-se apenas o vento, que insiste em resfriar osolhos do homem, secá-los a ponto de ter de fechar a cada segundo para mantersua lubrificação. Inspira. Sente o ar gélido lhe consumir. Fecha os olhos. Conta atéoito. Solta. Ainda de olhos fechados, inspira novamente. Segura o ar. Cospe-lhe,quando houve o grito.

“Gente aqui?”, estranha.

Caminha em direção à névoa. Ao lado da lagoa, apesar de pouco visível, tudoparecia tranquilo. Avança, aproximando-se da fumaça. O ambiente, aos poucos,vai escurecendo pelo baixio das árvores, pelo enredar dos galhos. Um túnel verde,denso, belo e nebuloso em sua frente. Sente não estar sozinho. Olha para trás,mas nada vê. Não há ninguém. Há o silêncio novamente. O ar gelado. Volta-separa frente. A névoa não baixa. Resolve avançar igual.

13

As passadas são lentas, cuidadosas. O giro pelo local o assusta. O vento bate e asfolhas estremecem. “Droga”, pensa. “Isso é normal?”, murmura. Olha para os lados.Névoas. Olha para trás. Névoas. Mexe-se em torno de si. Nuvem, névoa, serração,brisa pesada. Arte da natureza, como é arte do homem sumir no nada. É arte dohomem mexer-se entre as nuvens, a ponto de formar uma moldura de beleza ecalor. No caso dele, de frio. Muito frio.

Quando tudo parecia mais calmo no interior do parque, um novo grito lhe chama aatenção. Não escutava mais nada que não fosse isso. Mais nada vinha das ruas.Nada vinha das árvores. Nada vinha de pessoas ou animais ou insetos ouqualquer outro ser vivo. Nada. Aquele grito corroeu-lhe a mente. Pareciaconhecido. Parecia já tê-lo escutado em outra ocasião.

“Não”, ele pensa. “Não pode ser”, murmura.

Chega à zona aberta, quase ao centro do parque. O clarão do sol o cega por algunsinstantes. Em meio ao silêncio e à cegueira, vê sua vida caminhando de frente paratrás: o dia de ontem, o ocorrido da semana passada, o elogiou do mês passado, aluta do ano passado, a morte dela no retrasado. Embriagado, abre os olhos. Aindavê pouco. A grama muito verde. Os caminhos arenosos ainda úmidos. Seus pésmolhados pela brisa. Suas mãos geladas, tão geladas que mal as move. Levantaum pouco os olhos e vê à direita uma árvore mais próxima, balançando por umvento que não existe. Um silêncio que se faz presente.

“Não pode ser”, fala.

Observa-a, sentada ao lado da fonte central do parque. Linda. Cabelos negroscomo o ébano, pele clara como a neve. Aproxima-se lentamente. Os olhoscastanhos observam a água que pouco se move. “Não”, ele se inquieta. Move-semais rapidamente. Observa seus lábios, sorrindo. Lábios vermelhos como osangue. Lábios vermelhos de sangue. Névoas que não aparecem fisicamente, masque envolvem os pensamentos dele. “Não é verdade”, ele deseja. Ainda assim,aproxima-se mais.

14

Para. “Morta”, ele pensa. O fim da moça já era consumado. Volve. Fecha os olhos.Respira fundo – e um grito vem novamente. Assusta-se. O grito foi muito maispróximo. Acolhe os dedos entre si. Nervoso, começa a se virar. Percebe o silêncionovamente. A menina não está mais na fonte. Encontra-a na árvore que observaraanteriormente. De costas.

O ambiente se fecha. As nuvens ganham densidade. O céu não é mais azul, nem osol esquenta um mínimo que fosse. Faz frio. Gela o ambiente. E o ensurdecedorsilêncio novamente é presente nos pensamentos do homem.

Resolve se aproximar. Ainda está de costas. “Não”, ele murmura. Aproxima-se aospoucos. O corpo dela está parado. Percebe-se levantando um braço para tocá-la.Recua a mão. “Não”, lacrimeja. Para. Observa. Volta-se para os lados novamente esó vê a bruma enredar-lhe seu espaço e sua mente. Encoraja-se. Pensa uminstante. Avança. Avança sem medir causa ou consequência. Avança num estadode nervos aflorados pela impaciência daquela situação. Era ela de novo. Na suafrente. Sua pequena Snow-White. Sua linda Schneewittchen. Seu amor, Branca deNeve.

Às costas dela, estica o braço, põe a mão sobre seu ombro. É fria. Imensamentefria. Perde a coragem. Não quer observá-la. Tira a mão devagar. Não querincomodá-la. Já o fizera uma vez. Duas vezes. Três vezes. Até o momento em quenunca mais fez – até hoje. Sai devagar, caminhando de costas. Eleva-se. Sente queo ar não lhe é mais tão gélido. Fecha os olhos novamente. Quer sentir o calor lhepenetrar o corpo. Em vão.

Ao se virar e sair, ele ouve. Ela se virou. Agora de costas, não quer mais ver. Nãoquer mais se aproximar. Não tem coragem. A culpa é a maior de todas asdesculpas. E a mais verdadeira também. “Não”, ele pensa. “Não vou fazernovamente isso contigo”, fala baixinho. “Sou único hoje. Não há mais redençãopara um amor já perdido”.

15

De repente, o sol lhe ilumina a face. Esquenta-se. Devagar, o corpo vai perdendo ogelo que se transformara. Caminha lentamente rumo ao caminho de saída doparque. Estala os dedos, esfrega as mãos. Fecha os olhos. Silencia. Pode escutar oque acontece fora do parque. Não está mais sozinho. Caminha. Para. Olha paratrás. Ela não está mais lá. Partiu.

Alivia-se por saber que é vivo, por saber que é mais do que um passado nebuloso,coberto de dores e antigos amores. Amores partidos, de um tempo em que nãosentia vontade de estar com alguém. Tempo em que apenas sua Branca de Neve ofazia feliz, num ambiente de desregramentos e congestão social. Num ambienteque só os insanos seriam bem-vindos. Como ele. Como ela.

Nunca mais esqueceria aquele dia. Principalmente quando o grito retornava.

16

Véu

Olha para o relógio pela última vez. É quase hora. Para quem receia, para quemseduz, para quem ama. O céu era encoberto por espessas nuvens quebloqueavam a beleza do céu – mas não a força do raio solar. Descia com furor,queimando a pele de quem insistia em sair à rua naquela tarde. Olha para orelógio novamente. Preocupa-se. Há pessoas demais caminhando por lá. Ela ali,estagnada.

Corou-se ao perceber que já passava meia hora. Meia hora! Imagine: sentadadefronte à loja, numa cafeteria que expusera suas economias a um enterro,encalourada por um mormaço extasiante. E nada. Espera que chegue logo. Meiahora ainda é um prazo aceitável. Mexe novamente a colher de plástico na xícarade chá. Frutas vermelhas, seu preferido. Bebe um gole, dois. Repousa a xícara nopires. Cruza os braços sobre a mesa e espera novamente.

A discussão da noite passada foi difícil. Colocou-se na situação dele. O ciúme delafoi desmedido, inconsequente. Tanto era verdade que ela passara a noite todarepensando no ocorrido. “Aquela puta deveria saber que a gente noivou poracaso?”, “Aquela anta não sabe se colocar no próprio lugar?”, “Estrume humano!Ela que vá à merda com esses desejinhos de felicidade pra gente! Eu sei que ela tequer!”, “Tu não vês nada, seu idiota, mas eu vejo! Eu sei de tudo! Manda essamulher à puta que pariu!”, entre outras falas, era o que desejava esquecer. Só derelembrar do rosto dele, marejando entre tristeza e raiva, sentia seus olhosincharem. Sentia que o erro foi dantesco. Afinal, aquela mulher era só colega detrabalho dele. Só amiga dos dois. Há quase dez anos. Para que aquele ataquetodo?

17

A loja permanece aberta, mas o tempo passa. O véu é tão lindo. Exposto na vitrina,o vestido de noiva dos sonhos dela estava disponível para enfim realizar seusonho. Ambos saindo da igreja, com chuva de arroz e diversos gritos de “boasorte”, “até que a morte os separe”, “que não seja logo”. Via-se com um véu járetirado, recebendo um beijo estonteante de seu amor, de seu agora marido.Marido. Essa palavra soava tão bem no seu ouvido. Marido. Queria tanto ter um.Ser a senhora-de-alguém. Ser importante para alguém. Mas o tempo passava e elenão vinha nunca.

Uma hora de espera. Teria acontecido alguma coisa? Ela preferia nem pensar. Eleficava louco depois que discutiam. Saía, batia a porta de casa, entrava no carro episava fundo no acelerador. Cheiro de pneu queimado era uma rotina nessescasos. Urrava expressões de descontentamento, de dor, de raiva, dedistanciamento. Horas depois, ligava para saber se estava tudo bem. Assim, seucoração sempre se acalmava. Ontem ela passara dos limites. Sabia que eleapareceria uma hora.

Enquanto isso, o tempo passando. Enquanto isso, o vestido de noiva. Enquantoisso, o véu lhe tapava a face. Via tudo sem foco, enuviado. Ele se aproximava. Elanão via sua face direito. Não sabia se ria ou se chorava. Sabia que estava em suafrente, mas era diferente. Era nebuloso. Não era ele. Ao menos achava que não.Sentia a observação mais próxima, mas não via olhos, nariz ou boca. Que bizarraessa imagem! Logo atrás, ela. Aquela maldita. Sabia que estavam juntos! Só vê aloirice de seus cabelos. Mal se vê o penteado chanel. Mal se vê se ela o toca.Apenas vê seu ciúme entrevendo através do véu. O véu era lindo. Não queria maisvéu: via pouco de seu mundo.

18

Via pouco de seu mundo. Há anos não parava para pensar nisso. Tanto queria algoque lhe cobria a visão. Não queria ver a realidade? Não queria saber se ambostinham um caso? Não buscava entender por que ele não vinha? Por que tudo eratapado em sua mente? Piscou os olhos e mais tantos minutos haviam passado.Anoitecia. O chá já havia acabado. Pediria outro? Queria. Ele apareceria? Olha paraos lados novamente. Procura em meio ao movimento do crepúsculo encontraraquele por quem dedicou seu amor, sua ternura, seu ciúme, seu medo. Pelaesquerda, pessoas atravessando a rua; pela direita uma rua deserta, tranquila, deum comércio já fechado em época de difíceis vendas.

Olha para o relógio. Agora é a última vez. Com toda a certeza. Pede a conta. Deixao que lhe restava de salário como gorjeta para o garçom. A loja de vestidoscomeça a fechar. Ela observa como se se despedisse de uma parte sua. As luzes seapagam aos poucos. As da cafeteria seguem acesas. Muitas pessoas entram esaem, bebem seus cafés, seus chás, degustam suas tortas, seus doces, seussalgados. As luzes da loja baixaram. “É hora de acender a minha luz”, ela pensa.“Nada mais de véu cobrindo meu rosto”. E sai, rumo ao além.

Do outro lado da rua, a loja se fecha. Não sem antes a vendedora retirar o véu domanequim.

19

EstranhoPega a chave. O molho tilinta pelos dedos. Não encontra de imediato aquela queabriria seu aconchego. Ou seu desespero. Não sabia mais. Tilintam as chaves e aluz é baixa. Uma dor silenciosa começa a lhe acometer a mente. “Não me escuta”,ele pensa. Só quer chegar quieto e invadir seu quarto. Dormir é a única solução. Anoite lhe chama para uma recaída doce e duradoura – não trabalharia no outrodia.

Encontra a chave. Coloca no local devido. A maçaneta gira e a porta abre. Silêncio.Escuridão. Fecha a porta. “Será que ela não está?”, pergunta-se. Não conseguialembrar direito daquele rosto. Era esguio ou cheio? Pálido ou saudável? Novo ouvelho? Não sabia mais. Eram anos sem observar. Ia lá quase todos os dias. Evitava-a a todo custo. Horários difíceis, ruins de haver um encontro. Eram 3h37.

Avança pelo corredor que dá de frente para o quarto de sua mãe. Não pensa duasvezes em correr direto para o quarto. Olha para os lados, como se algo oprocurasse. Como se precisasse fugir. Ao dar o primeiro passo, tranca: umaimagem lhe surge. Alva, cabelos brancos, boca entreaberta; rugas, palidez, olharperdido. Não poderia ser. Não era. Fecha os olhos. “Não!”, pensa. “Não!”, clama.“Não!” – abre os olhos. A imagem continua ali, estática. Dá um segundo passo – aimagem se aproxima.

20

Lembra da mãe no dia em que ele quebrou o braço na escola. Ela veio buscá-lo.“Não te cuida, moleque!” – e levava um tapa na orelha. O braço latejando de dor.Mal movia os dedos. Agora, a orelha doía. Baixara a cabeça e passou a observá-lapouco. Quando lhe oferecia comia, mal respondia à progenitora. “Não seja maleducado, moleque!” – e recebia um tapa no rosto. Silêncio. Quieto. Raivoso. Na idaà festa na casa da primeira ficante, pega carona com seu melhor amigo. Onervosismo faz com que briguem durante horas. Ela não pode resistir aos ataquesdo filho, acovardado pelas ameaças esdrúxulas de agressão da já cansada mãe.“Não me atrapalha”, ele pedia, “eu só quero que tu fiques longe de mim um tempo.Sai”, gritava. Ela o observava estática. Num surto momentâneo, foi à cozinha. Umgarfo. “Não… Fala assim… Comigo, seu moleque!” – Silêncio.

Dá outro passo. A vontade é de seguir sem medo, mas receia. Aquele dia marcoudemais sua vida. Não sabia como proceder perante a imagem. Quer falar, mas osilêncio é melhor resposta. Quer sonhar, mas o pesadelo é o maior momento.Avança contra a imagem. Observa como se fosse o último mito a ser descoberto –só que os outros ainda nem foram tocados. Avança e grita: “Sai da minha vida!”

O sol pede licença: é hora de acordar. Uma brisa gostosa invade o quarto e elesente dominar-lhe o corpo uma vontade grandiosa de sentir o dia. Abre os olhos.O quarto arrumado. O sol ilumina a escrivaninha, que há anos não recebe umtexto em papel. Um notebook se faz presente, mas desligado. Pensa se deve sairda cama agora ou esperar. “É cedo demais”, murmura. Estica-se, espreguiça-se.Sente o braço doer. “Maldita”, pensa. A dor da garfada na noite anterioramaldiçoou sua vida. Açoitou um desejo rubro de vingança. Ele tinha de voltar umdia de outra forma.

“Café?”, ela pergunta.

Silêncio. Pensa. Não deve responder. O que ela fez foi além de qualquer açãonatural. Boçal.

“Não”, ele diz.

21

Levanta da cama. Abre o roupeiro e tira uma mala. Joga roupas, cuecas, meias,livros, doces, estojo, cadernos, DVDs. Pega as cartas da namorada. Tudo dentro damala. Abre a janela. A mala cai do terceiro andar e repousa como pluma, depois deamortecer nos fios de luz e na lona do bar que ficava no térreo. Abre a porta doquarto e sai. Não mais a encontra. Sai pelo corredor, invade a sala. Porta da rua.Adeus.

“Por que voltou?”, ela diz.

“Para nunca mais te ver”.

Saca a tesoura. Primeiro, na orelha; depois, no rosto; mais profundamente,retalha-lhe o braço. Os gritos são mudos para ouvidos surdos de dor, de horror, devergonha, de vingança. O rosto da velha mãe não se parecia em nada com aqueleque pariu a criatura que hoje exterminava com sua vida. Hoje, para nunca mais,seu filho deixava aquela casa de sofrimento. Hoje, para sempre, a culpa deixara deser dele: abandonou o silêncio para que os gritos ensurdecedores da idosa odominassem por completo. Sentia, no entanto, uma dor agridoce, uma mescla dealívio com arrependimento. Matara seu berço, enfim.

Anoitece. A porta da residência estava aberta. O vento invadia e saíatranquilamente, enquanto fazia a porta bater-se levemente no seu marco.Continuava a escuridão. Continua o silêncio. Agora, para sempre.

22

BailarinaFim de expediente no trabalho. São 18h e ela quer correr. Correr ao longe, aodistante do mundo vivenciado até então. São 18h. Às 20h seu sonho finalmente seconcretizará. Agora falta tão pouco… Pega a bolsa: canetas, caderneta, figa, celular,bombom, tudo guardado. Passa no banheiro. Arruma o coque. Observa-se. “Éhoje”, ela pensa. Criadas as mil expectativas, sai e busca novamente a bolsa naescrivaninha. Despede-se dos colegas mais próximos. “Adeus, tudo!”, comemora.

Desce as escadas do modesto prédio. Avança pelo meio da multidão na rua,alvoroçada por finalmente poder voltar para casa. “Não quero casa!”, ela sonha. Viaas pessoas caminhando rapidamente e via-se lenta entre todos: caminharvagaroso, quase mal tocando o chão, numa dança contemporânea de movimentoscrus e significados avassaladores. Cria que finalmente era sua hora. E realmenteera: o ônibus chegou. Resolve acelerar, apertar o passo. A porta se fecha. Ela dáuma batida de leve, suplica sua entrada. O motorista, observando o coque e amaquiagem feita, sente que a menina carecia de certa atenção. Mesmocontrariado, abre a porta e permite a subida dela. “Obrigada”, ela diz, “pois mesalvou. Não posso me atrasar!”

Percorria a zona central da cidade naquele coletivo dotado de tipos diferentes.Havia quem conversava sobre futebol, quem ouvia rádio com dificuldade, quem seaborrecia pelos movimentos exagerados de alguns, quem se excitava por ver suacasa mais próxima. Havia, entretanto, uma curiosa conversa, da qual ela não tiravaos ouvidos de sua atenção: “É hoje, então, amiga?”, questiona a primeira, queprontamente recebe a resposta – “Às 20h!”.

23

Seu rosto avermelha-se. Veriam-na! Que felicidade! Pessoas que ela nunca viu navida veriam sua apresentação, preparada a duras penas, num palco delicadocoberta por uma nuvens de flores vermelhas. Os movimentos fariam com que asrosas subissem e descessem, num desencantar da natureza platônica queenvolveria a plateia. “Meu público”, ela pensa. “Aplaudirão minha dança”, eladeseja. Queria ser algo além do que seus próprios pensamentos: queria ser suarealidade nua, aberta a todos. Aplausos, abraços e autógrafos: tríade sonhada hátantos anos.

Aproxima-se do Centro Cultural. Desce, e ao perceber a chegada de sua mãe ospequenos olhos enchem-se de lágrimas. “É hoje, mãe”, ela chora. Não sabia o quefazer. A mãe, acometida por um silêncio divino, acaricia a nuca da filha, os ombros,os braços. Afasta-se, observando-a de frente. Beija-lhe a maçã do rosto e fala: “Étua noite, minha vida. Será a noite dos teus sonhos, depois de tantos anos.” –Assim, fez com que a filha lembrasse da clausura, da impotência, da tristeza depoisdaquele acidente. Anos e mais anos sem fazer o que mais gostava. Anos e maisanos sem poder levantar uma perna à altura dos joelhos. Anos até fazer com queseus braços se levantassem ao extremo. Nunca mais queria lembrar. Nunca maisesqueceria. Nunca mais aprenderia tanto quanto nesse tempo.

Adentra o recinto e chega ao camarim. Uma chuva de aplausos rasga a emoção damoça. “Linda”, lhe diz um. “Finalmente”, lhe diz outra. “Nervosa?”, pergunta aamiga. “Um pouco”, o mais cheio de receio que poderia ser dito, fora exposto porela. Ria por dentro. Queria manter-se controlada por fora. Só não sondava falhas.Concentrava-se como há anos gostaria de fazê-lo. As inúmeras noites no hospitallhe foram resguardadas pelas lembranças de um futuro que ainda não lhe eraconcreto. Apesar disso, o tempo e a força de vontade lhe fez investir alma ecarinho em cada movimento de sua recuperação. Lembrava-se dos fisioterapeutasorgulhosos, da técnica de enfermagem que sempre lhe sorria um generoso bomdia todas as manhãs, da enfermeira que lhe era carinhosa, dos dois médicos que atrataram como se fosse filha. “Será tudo por vocês”.

24

Chega a hora da apresentação. Nervosismo. Ansiedade. Insegurança. Sorriso.Necessidade. Vontade. Paciência. Trabalho. Amor. Segurança. Calma. Feixes doacidente lhe tornam à face. Toca o primeiro sinal. A queda do carro em meio àmata, o desaparecimento, o silêncio, a noite. Toca o segundo sinal. Para diante darua pela qual entraria no palco. O rosto dele deformado. A imagem do paramédicoapós ser acordada. A entrada na ambulância. A sapatilha perdida e os sonhosesvaídos. Toca o terceiro sinal. Escuridão. Silêncio no público. Barulho de queda.

De repente, as pétalas começam a dançar. O mundo recomeça a girar. O sonhorenasce ao brilhar forte neste noite. Era tempo de voltar. Era tempo de a bailarinaacordar. Era hora de dançar.

25

Telefonema

Chegou em casa. A roupa fora do lugar, comida sobre a mesa. Nenhum sinal deque alguém tivesse passado lá. Observa o telefone e vai até ele. Ao dar quatropassos, pisa num inseto.”Nojo”, pensa. Retira o sapato e leva à área de serviço.Deixa-os lá e, como se previsse o ocorrido, coloca os pés no chinelo que já haviacolocado na peça. Retorna à sala e vê as sobras do bicho morto. Resolve voltar àárea e pegar materiais de limpeza. Pano, rodo, desinfetante. Joga o líquido nochão, enrola o pano no rodo e começa a limpar. A espremer, apertar. Ânsia. Limpacom mais intensidade. Lembra da casa toda com coisas para fazer. Aperta aindamais. “Nojo!”, grita.

Larga o material de limpeza e caminha ao quarto. Cama desarrumada. Sapatos nosdevidos lugares. Caminha de um lado a outro da cama, encostando os pés paraque a barra do lençol não ficasse tão esparsa. Sobre a cama, migalhas do café damanhã sendo vorazmente devorada pelas baratas presentes. “Merda!”, pensa alto.Não contava com isso. Pega a roupa de cama, joga-a para o lado; depois, ostravesseiros. Tira o colchão, deixa-o em pé. Bate com força. Pensa nadesarrumação da casa. Precisa dar um jeito em tudo. Joga o colchão contra aparede. Bate com raiva. “Droga! Por quê?!”, chora.

Após colocar o colchão de volta na cama, vai à sala. Lembra de conferir aschamadas. Antes, no entanto, é açoitada pela barriga, que geme de fome. Vai àgeladeira e pouco encontra: requeijão, margarina vencida, ovos de duas semanas.Abre a dispensa: biscoito salgado apenas. “Azar”, fala. Abre o pacote. Pega orequeijão. Come biscoito a biscoito como se fosse o melhor prato que pudessepreparar. A fome era muita. Delicia-se com cada mordida, cada mastigação. Oalimento, no entanto, descia com dificuldade pela garganta. “Água, ao menos”, elapensa. Só na torneira. Pega um dos últimos copos ainda limpos e serve-se. Bebe.Sente o gosto do cloro, que a faz enjoar. Esquece. Termina de comer.

26

No meio de tanta bagunça, finalmente resolve ir ao telefone. Quatro chamadasnão atendidas. Pensa que é a mãe a incomodando. E se não fosse? E se ele tivesseligado? Precisava tanto dele por perto. Não sabia o que faria se ele continuasseainda longe. Ligou durante a semana, sem o retorno devido. Mas agora poderiaser ele. Ela queria que fosse ele. Ela necessitava de que fosse ele. Não queria sedecepcionar mais uma vez, mas teria de ver se a ligação desejada constava entreas quatro que lá estavam.

Olha a primeira: mãe. Olha a segunda: pai. Olha para a terceira: filho. Olha para aquarta: ele. Emociona-se. Uma emoção vil, simpática, mas dolorida. Deveria ligarde volta? Deveria realmente saber por que ele retornou? Tentara tantas vezes enenhuma ligação de volta antes. Não sabia o que fazer. Ria. “Ele!”, ria mais. A risadatomou forma engraçada. Ria como se fosse uma piada perfeita, contada pelo maishábil piadista. Ria de contrair o corpo. Ria tanto que foi ficando doentia. De tãodoentia, pôs-se ao chão. Ria muito. Lágrimas lhe escorriam a face, subjugadas àsevera avaliação do tempo. Um riso forte e falso se instaura. Ria sem mais quererrir. Ria sem alegria. Ria por rir.

Quando se dá por si, levanta-se. Percebe tudo mal colocado em sua volta. Sujeira,desarrumação, desalegria, desamor. Observa-se. Ainda não é velha o suficiente. Asmãos têm marcas temporais, mas ainda trabalham; o corpo tem maior camada degordura, fruto do sedentarismo dos últimos anos, mas ainda pode ser trabalhado.Observa-se no espelho e nota que os olhos ainda não perderam o brilho. O cabelo,apesar de emaranhado, ainda pode ser tratado. As rugas, infelizmente, não aabandonarão mais, mas pode suavizar as próximas. “Eu posso”, ela pensa. “Eudevo”, ela quer.

Pega o telefone. Titubeia antes de começar a discar. Começa. É hora de ligar para ofilho.

27

PerguntasWhere did we come from?

Why are we here?

Where do we go when we die?

What lies beyond

And what lay before?

Is anything certain in life?

They say, “Life is too short,”

“The here and the now”

And “You’re only given one shot”

But could there be more,

Have I lived before,

Or could this be all that we’ve got?

(John Petrucci)

Caminhava naquela manhã. O céu encoberto pelas nuvens densas delineava comoseria o dia dos homens. O silêncio nas ruas cobrava sua armada: medo, receio,morbidez. Caminhava, apenas. Um ritmo lento e dissoluto, capaz de um slowmotion parecer mais rápido do que qualquer passada. Criava temas geniais emseus pensamentos: “Como faria pra avançar por cima de um prédio? E se aqueleFusca fosse uma nave? Qual seria a cor das pessoas se viéssemos do magma? Quepreconceitos teríamos de todos fôssemos iguais?” – mas nunca dizia respostaalguma. As perguntas eram muito mais favoráveis à imaginação.

28

Num determinado momento, a loja em que trabalha estava próxima. A músicamelodiosa de guitarras irritadas fazia sua trilha sonora. Observa a palma da mão eescolhe não abrir a porta. Só que ela abre de qualquer forma, bastando seaproximar. Por que ainda trabalhava lá? Por que ainda buscava um sonho que nãomais existia? O emprego não lhe era saudável, muito menos o que desencadeavadele: irritação, desejo de sair, mazelas. Fruto de um amor proibido em umainfância de dissabores militares, ele ressalta as qualidades da mãe, trabalhadoraconstante, que viu sua casa emergir e imergir em poucos anos, graças ao fim deum período tenebroso na história nacional. Ele, no entanto, sofreu as artimanhasdesse tempo: estudo técnico, falta de emprego, economia abalada.

Virou vendedor. O que faria se não isso? Uma loja de grandes marcas, bastantepopular. Vendia quantidades de televisores, aparelhos de som, autorrádios,leitores de blu-ray, telefones sem fio, CDs e DVDs virgens, jogos para PlayStation 3e XBox 360, uma infinita geração de mercadorias que não terminavam suarecriação. E ele ouvindo walkman. Seu MP3 havia estragado. Não podia pagar oconserto. Não recebia comissões. Não batalhava por elas. Tinha lábia, desejo ecuriosidade para com os compradores. Assim ele a conheceu. Assim conheceu aoutra. Assim ele ficou sozinho.

Veste-se com o uniforme. Camiseta rota dos anos de trabalho. “Se eu continuarassim, anda sozinha”, ele pensa. Lembra do dia em que ela adentrou o recinto eprocurou por um celular novo. “O meu caiu no chão e parte das teclas nãofunciona mais! Preciso do aparelho pro meu trabalho, moço” – foi a explicação delaao encontrá-lo. Ele ofereceu um aparelho mediano, com rádio e MP3, lanterna euma câmera de definição baixa. Era o que ela podia pagar. Comprou à vista. “Umdia te chamo por aqui”, ela dizia, “pois teu atendimento foi excelente”. Ligou doisdias depois.

29

Era dia de saldo. Muitas pessoas que nunca haviam visitado o estabelecimentoaparecem. Ele vende tudo que pode. E seu salário não muda. Ele repassa maistelevisores, máquinas de lavar, aquecedores, fornos elétricos. E seu saláriopermanece igual. E ela nunca mais apareceu. A outra volta e meia ia à loja, masironizava sua presença. Nem a outra compareceu nesse dia. E o salário igual. E apalma da mão estendida. Não abrir a loja era solução. E a vendagem ser esquecida– último sinal de união de suas vontades. Desistira. Mas a mão continuouestendida, desejosa, arrogante, ambiciosa. Queria saber onde ela estava. Queriasair de lá.

Foi para o vestiário. Tirou o uniforme. Indignado, põe a camiseta de antes. Chega acheirar a camisa do uniforme, que joga no cesto de roupas sujas do local. Fereseus sentimentos novamente ao pensar nela, linda, formosa, adentrando a lojapela última vez, jogando o celular nele como se fosse o único culpado por nãoterem dado certo, enquanto a outra ria sendo atendida ao fundo. Fica rubro. Ligao walkman e sai.

Caminha novamente. “Por que tudo é assim?” – foi o primeiro questionamento. Elequeria mais. Desejava mais. Seria mais. Dependia apenas de si. Caminhavalentamente, pensando no dia de trabalho. “Se a televisão fosse gente, que notíciasela me traria? E se o aquecedor fosse um vulcão? Talvez a máquina de lavarreclamasse de tanta roupa suja…” – iam e vinham pensamentos surreais. Chegaperto de casa e nota que está mal trancada. A mão espalmada. Não quer abrir aporta. Mas a abre. Chega em casa.

30

As horasObservando o relógio, João esperava o trem. “Tá atrasado”, pensava. Caminhavaem torno de uma lixeira, em que ao lado estava Maria. “Ele tá atrasado”, elasondou. Buscava identificar aquele rosto tão conhecido, tão charmoso. Era ummistério, de qualquer forma. Queria vê-lo melhor, mas a barba mal feita não faziacom que ela o reconhecesse. “Ele não era assim”, pensava. João, observando aolonge um resquício de vinda do trem, parou de se preocupar de repente. “Já era”,pensou. Maria, ao vê-lo baixar a face, notou uma marca em sua nuca. “É ele”, falou.

Ela se aproximou. Passaram-se 60 anos. Três em casa passo dado por si. João, quenão notara sua aproximação, observou novamente o relógio. “Porcaria”, dissebaixinho. Maria pensou se deveria parar seu trajeto, desviando o passo. Ele ficaraincrivelmente abalado quando o deixou: depressão, álcool, limbo. Ela, casada, feliz.Por que ela se aproximaria, então? Que coisa estúpida… Tantos anos passados eessa admiração por revê-lo. João vira para o lado, mas não a vê: ela haviacaminhado até o bar da estação. Pediu um copo de suco, mais barato. Pensava sea filha iria gostar de saber disso.

O trem se aproxima. Maria o observa, com a tez aliviada: “Finalmente”, elemurmura. Ela se desespera. “Precisava vê-lo”, pensa. O trem chega devagar. Aspessoas se aproximam das zonas das portas. Ele se vê empurrado, mas não dábola. Murmura um palavrão, que não é escutado. Ela o observa com uma calmatristeza. As portas abrem e muitos se jogam para dentro do vagão. João entra eprocura o banco dos idosos. Já há dois sentados lá. As portas se fecham.

Maria observa a partida do trem, mas algo lhe chama a atenção. Observa o rostode João sem reconhecê-la. Nota que ele franze a testa, como se estranhasse algo.No paradouro, no mesmo local por onde João entrou no trem, um papel roto, malcuidado e amarelado estava estirado. Maria pensou não ser dele. “Porcos”,pensou. Saiu daquele ambiente, pensando como teria sido se houvesse faladocom ele. Ela não tinha mais dúvidas: deveria tê-lo interrompido.

31

Algum tempo depois, faxinando a estação, uma mulher observa o papel no chão.Antes de jogá-lo no lixo, abre-o: “Eu te amo, João”. “Casais idiotas”, ela pensa. Socao papel no lixo.

32

SilêncioVi-a no canto. Sentada, em silêncio. Seus olhos marejavam um mar depensamentos rotundos, indignos de suas qualidades. Medo. Receio. Raiva de si.Raiva dos outros. Raiva de tudo. Penetravam-lhe a mente mórbidas ações. Era umcéu negro, uma nuvem densa, carregada das mais potentes lágrimas. Queria omundo acabado naquele instante.

A notícia surgiu como uma bomba. O que faria agora? O que seria dela? Imagineique transpor ao público seu pensamento não seria um agrado, mas um durogolpe: expor emoções ainda não sentidas. Que mais de terrível poderia acontecerdo que se expor? Que dúvidas malignas fariam ela desistir?

Fui até ela. Ela me desviou o olhar. Evitou-me. Desviou o olhar. Não me permitiuaproximação. O que eu poderia fazer? Senti-me nulo. Uma amiga a acolheu. E eulá, em pé, em transe. Quieto. Agitado. Que eu faria? Nada. Que eu faria? Nada. Eela lá, aos prantos. Que eu faria? Ela falando com a amiga. Eu eu lá. Que eu faria?Nada. Abraçou-a, chorando. E eu lá. Que eu faria? Abraçaria? Calaria? Saí de lá.

Dói-me a imagem. O silêncio, mais ainda. Que maldita alma saberia o que sepassou naquele coração? Era o que a minha ansiava saber. Prestou carinhoalguém distante. Eu, o próximo, me tornei o distante. Tudo isso devido ao silêncio.

33

A opção

O grito de dor de Leco fora escutado num raio de um quilômetro de distância. Ocarrinho do volante da equipe adversária, um touro travestido de gente, encontroua canela de seu jogador. Um inchaço que logo se tornou uma imensa bola desangue era formada na região. Os gritos tornaram-se uivos. O árbitro se aproximae, como se visse um morto, gesticula em desespero para fora do gramado, a fimde que chamassem um médico. Não bastasse o profissional da saúde, umaambulância precisou ser acionada: a fratura estava exposta.

O técnico não sabia o que fazer. Espantado com a cena, precisava decidir se poriaalguém que já estava em campo para chutar a cobrança de falta – de extremoperigo para o goleiro adversário, diga-se de passagem – ou se colocaria em campoDuda, o único da mesma posição que Leco, mas que ficara na reserva por totalindisciplina. Colocá-lo em campo seria privilegiar a problemática, esquecer asolução. Mas a solução agora era a entrada desse jogador – ele sabia que Dudaresolveria. Ele não merece. Colocar ou não colocar?

O árbitro pede a imediata substituição. Olha para o banco de reservas. Duda estáeufórico, praticamente pulando com os olhos, queimando em vontade de estar nogramado. O técnico pensa em sua filha – não deveria fazer isso. Sente raiva. Olhapara os demais: Érico, Magro, Sansão, Guto, Serginho e Vasques. Nenhum daposição. Terá de ser o Duda. Levanta os olhos para o céu e pensa em Leco. O jogoestá nesse pé por ele.

Abre mão de seus valores. A torcida, impiedosos 700 elementos sentados, masvibrantes no estádio de Santa Tereza, quer a vinda de Duda. Ele o manda aquecer.Pensa na filha novamente: o rosto inchado pelo excesso de lágrimas, o desejo deacabar com quem a desonrou. A filha não era mais imaculada. Sente calafrios –brisa dos nervos já à flor da pele. Duda aquece.

34

Chama-o. O garoto se aproxima, ávido pela possibilidade de jogar novamente,depois de meses. Chega sorrindo para o treinador, que lhe diz para se acalmar,pois logo entraria. Olha fixamente para os olhos do jogador. Fulmina-os. Lembrada filha. “Destrua o goleiro do outro time”, ele orienta. Duda entende o recado evai ao campo. A torcida o ovaciona.

Na única chance de gol que tiveram depois, seu time converteu um gol. Venceu. Aequipe dos presidiários se lança às costas do treinador. Eram campeões depois detrês anos de espera.

35

ReminiscênciaAqueles cinzentos dias foram os mais claros de nossa vida. Caminhei durantemuito tempo após o final da apresentação. Eu não tinha para onde voltar. Minhaspernas me levavam para onde bem entendessem. Ah, valorosas pernas, já diriaMachado, que seria do avanço da humanidade sem sua existência? A noite serenaabrandou os ânimos do povo que corria desesperado, de um lado ao outro,tentando fugir ou entender o ocorrido. Rostos de desespero, incrivelmentefatigadas por uma situação não vivenciada. A arte, meu caro, não se faz com meiaspalavras.

Hoje, escondido neste porão de onde falo, lembro-me que mal havia alguém parame ver. Quem fui naquela apresentação senão o disparatado que atingiu oprotagonista com uma lança de aço? Quem sou senão um ator real, umpersonagem célebre das páginas policiais? Nunca minha vida foi tão perfeita. Peçoapenas que esse momento de realeza só termine quando eu gozar de todos osmeus prazeres, já que nunca os tive noutros momentos.

Firmei o passo para levantar. A fome me consumia lentamente. Havia um punhadode bergamotas e uma série de pedaços de pão. Migalhas, sobras, sujeira. De ondeconseguiria mais comida? Mais um roubo, um furto bem sucedido? Um silênciomalicioso de vontades enormes de comer. Simplesmente de comer.

Não sei que será de mim amanhã. Preciso de comida. Água eu acumulei com achuva. Preciso estar forte para minha próxima investida. A lança apunhalada nopeito do protagonista é meu quadro mnemônico. Quero-te novamente, ó rei daexistência! Apunhalá-lo-ei novamente, cravando com força e coragem o fim dapobreza em teu reino. Quero-te em sangue, dor, lágrimas e aplausos. Aplausospara mim. Ovação plena. Apenas do público. De ninguém mais.

36

Longe daliNada como um novo dia para abrir a mente. O caminho percorrido no meio damadrugada fizera com que João perdesse qualquer crença em algo maior: nada dereligião, nem de seitas, nem de qualquer outro movimento. Nada de campanhas,nem de tentações. Tudo passou. Aquele tiro nunca mais faria com que ele fosse omesmo.

Caminhando pela estrada bloqueada por uma reforma, via sua casa à distância.Era como o reencontro com a tentação perdida, com o desejo recorrente de umamelhor compreensão de tudo. Era sua casa, afinal. Aos escombros, destruída pelabandidagem, João a percebe perfeita: ainda tem paredes, tem teto, tem sua cama.Aproxima-se e a vê. Colchão, lençol. Criado-mudo. A foto de Ana. Ana, Ana: nãofossem aqueles malditos, tu não serias tão distante de mim, ele pensava. Os olhoscastanho-claros num universo de amor intransponível – imagem clara na mente dosofrido homem. Preciso de ti.

Ao acordar. Percebe o problema: sem janelas, portas ou qualquer meio que oproteja, lá estão eles, prontos para levá-lo. Ainda na cama, observa o homem queencabeça seu martírio: o cabelo aloirado não esconde a pobreza de sua face e deseu espírito. Ele aponta a arma em direção aos olhos de João. Eu só quero a Ana,pensava. O outro dizia para que ele levantasse. Mãos na cabeça. Os demais iam aoseu lado, um de cada, como se evitasse a fuga do sequestrado.

Ao sair de casa, ainda pelas frestas observa a foto de Ana, caída ao lado da cama.Olha para o chão, move a cabeça para frente. É hora de pensar em nada. É tempode esquecer tudo, todas as crenças, todas as campanhas. É hora de buscar algonovo. Mas o quê?

37

Na descida

Quando o homem observou a bela loira com quem desceu do ônibus, questionouseus desejos. Era isso que realmente queria? Um rosto ornado pelas mais carasmaquilagens, contrastando com a forma pela qual se viram pela primeira vez?Uma tez ariana, um corpo longilíneo, sapatos de salto em uma envergadura dedesejo e cobiça? Que dom é esse de buscar modelos exteriores, vulgos roedoresde uma sociedade cega para o que se sente?

A última pergunta fê-lo lembrar daquela menina. Sentada ao seu lado, ouvindomúsica no celular. Um olhar cálido, puro encantamento numa redoma de pureza etimidez. Os olhos mal levantavam, mas ele os sentia observá-lo. Que efeitocuriosamente doce fora provocado… Pensar numa menina, tão mais nova, numuniverso cheio de mulheres encantadoras e constantemente pueris em sua vida?

Já não era mais ele. O ele-exterior partia. Despedia-se opaco, dando espaço a umincrível grito de euforia pela chegada do subjetivo. Sente o peito estufar, umsorriso lhe desenhar a face. As primeiras rugas ganham contorno de felicidade emmeio ao rosto rude. Não mais seria observador. Não mais procuraria belezas. Areal beleza acabara de passar por si.

Não mais pensa: o ônibus está na outra parada. Arreda o terno, põe a mochila nascostas: é hora de pegar um táxi. Para onde? Para sempre tê-la em seu abraço.

38

EncantamentoUma abelha repousa sobre um lírio fadigado. Ao acoçar-lhe o pólen, o lírio seretrai.”Deixa-me beijar tuas entranhas”, sugere a abelha. “Não devo”, respondetristemente o lírio. “Por que estás assim?”. “Em breve partirei, sem deixar qualquervida ao meu lado”. A abelha observa as redondezas. Margaridas, rosas,crisântemos, violetas. Nenhum lírio.

Resolve sair de perto da pobre flor. Aproxima-se da rosa e ela, sorridente, pedesua aproximação. A abelha estranha, mas se junta. “Queres meu pólen? É todoseu!”, diz a expansiva rosa. “Por que eu deveria querer?”, questiona a abelha. “Soua mais bela, a mais doce, a mais amada das flores”, vangloria-se. A abelha vê-senuma situação constrangedora: ela é a dominadora, não deveria ser a dominadaneste momento. Observa o reclinar das pétalas róseas, num excitante jogo decensura. Estranha. Afasta-se.

Tenta entender o que há. Por que o lírio ficou isolado, tão triste? Por que a rosaproliferou, tão fogosa? Tão belo o lírio, encantadoramente triste num instante deamor; tão desesperadoramente excitante a rosa, quente como uma chama deprazer. A abelha para de pensar e sair da floricultura, em busca de um novoespaço para amar.

39

Um caminho para o futuro?Avançava pela rua em busca de seu caminho. Olhava para os lados e nadaencontrava. A rua transversal era silenciosa como a noite em que pensava. Amelhor das noites: ele, um copo de uísque, um bar vazio, sem atendente, semdono, só. A televisão desligada, para onde olhava e via seu reflexo. Rosto limpo,banho tomado, cabelo bem penteado. As roupas, infelizmente, não colaboravam:tênis de pano engomado, bermuda jeans suja do tempo sem lavar, camisetabranca em gola V, mas totalmente rasgada. Era um trapo ambulante. O que via debom naquela tevê? Não sabia: o caminho não exigia o pensamento. Seguia semprereto, sem qualquer dúvida. Silêncio intenso. 3h47. Dá mais três passos. Para. Naoutra esquina, movimentação. Deve se aproximar? E se o encontrarem?Finalmente havia escapado de tudo… Agora não era hora para ser encontrado! Deque adianta a caminhada se é para ser interrompida? “Vou para casa”, pensa. Nãodeveria ter ido: viram-no. “Droga”. Corre. Mal dá dez passos: os tiros ecoam pelasolidão da rua. As costas, as pernas e a cabeça: rio de sangue em meio à sujeiraestrumecida da calçada. Não mais pensa. Verte lágrimas. Começa a chover.

40

ConfissõesÉ, meu amor... Os dias finalmente passaram! A primavera finalmente floresceu, ocalor cedeu, a chuva voltou. Belos como o pôr do sol, como as violetas quebrotaram, os dias têm sido de intensa felicidade. Pena que ainda não nos revimos!Mas isso é questão de tempo...

Ontem, lembrava de tua mão acariciando minha face. Tua tez expressiva, o olharfulminante, apenas a refletir meu sorriso sincero. Teu corpo perto do meu, comose fossemos anjos de uma só asa. Completamo-nos em todos os sentidos.Inclusive naquela vez em que fomos ao Morumbi, ver o jogo da Seleção contra oParaguai. Pegaste na minha mão, me levaste para lá, me fizeste assistir algo quenunca foi de meu feitio ver. Beijava-me a todo instante, ora nem observando ojogo, ora vibrando com cada lance. Mas eu também te fiz passar por mausbocados, eu sei... Ou seriam bons bocados? Lembras quando estávamos no Pinhal,naquela noite em que partimos a Cidreira, ficando vendo a apresentação do TchêBarbaridade? Eu sempre soube que tu não gostavas de música gaudéria, apesarde seres um gaúcho legítimo. Entretanto, também sabias que minhas veias deprenda não me separavam de um CTG. Dançaste comigo. A noite toda. Te ameidemais naquela noite. Observava teu rosto refinado com meu olhar apaixonado.Sentia teu peito encostado a mim como um colosso inabalável. Sim, eu te queromuito, meu amor...

Naturalmente, não apenas de alegrias vivemos nossos grandes momentos, não é?Ainda ontem, eu falava com a Clarissa a respeito daquele conflito que tivemos porcausa dela. Lembro-me da terribilidade que fora. Tudo por causa de seu primeironamorado! Com certeza, suas vestimentas nunca foram algo que agradasse a mim,menos ainda a ti, mas só por causa disso não seria motivo para debatesininterruptos e agressivos. Ficaste furioso excessivamente quando ela disse queassumira o namoro com aquele rapaz. Aliás, sabias que eles estão juntos até hoje?Realmente parece que a decisão deles não foi precipitada... E, até hoje, remetoapoio incondicional.

41

Quando partiste, pensei que nos encontraríamos em breve. Porém, parece que otempo não quer colaborar com nossa vontade. Ao menos, com a minha, não.Espero que ainda seja essa a sua. Faz-me tanta falta, amado... Tuas decisões, teucomportamento elevado, superior... Tua alma próxima... Nossa áurea junta...Somos como estrelas de uma constelação, meu amor... Formamos ela apenasjuntos. E, junto a ti, continuo querendo ter pelo resto de minha vida. Longa vida.

A Oswaldo Aranha não tem a mesma graça contigo distante. O União, tambémnão. Os passeios pela Redenção parecem-me vazios. O Praia de Belas anda semgraça. Nosso casebre no Belém Velho nunca mais foi visitado. Nem nossa origem,Nova Petrópolis. Que saudades daquele restaurante em que nos vimos pelaprimeira vez. Sempre íamos lá. Sempre continuamos indo lá. Nossas visitas à SantaCatarina. Tuas viagens de negócios que eu sempre tive o prazer de te acompanhar,fosse em São Paulo, Buenos Aires, Medellín. Nossa primeira e única viagem para oOriente. Taiwan, China, Hong Kong, Tailândia, Japão. Culturas belíssimas. Nãocomo as nossas, mas eram muito belas. Mas tudo, para nós, sempre foi nossacapital. Nossa casa no Jardim Lindóia. Teu trabalho no Centro, o meu na Azenha.Tudo saia bem aqui. Problemas? Quando? Para quê tê-los, não é? Ninguém sabiacomo nossa vida era tão cheia de ventura. Ah, mas isso tudo foi porque soubemosconstruir...

Agora, ando só. Por que ficas tão distante? Por que não me deixas aproximar de ti?Ou será que sou eu mesma que não permito? Quero estar junto a ti em todos osmomentos, todas as situações, todas as alegrias, todas as tristezas. Permita comque eu chegue a... Hm?

- Vovó, hora de irmos, tá tarde...

- Eu sei, minha querida... Ajude-me, por favor...

E assim foi. Saíram do cemitério sem previsão para volta. A doce senhora aindaobserva novamente o jazigo do fiel amado, que dorme em paz. Uma lágrimaresvala o rosto. Ela se vira. E sai caminhando. Lentamente.

42

AssombraçãoJulia era uma menina simples. Morava no Jardim Leopoldina, em Porto Alegre;tinha 15 anos; estudava no Dom Bosco; era tímida, fechada, mas muito queridapor quem lhe circulava. Porém, ela tinha uma deficiência: Era surda. Umadeficiência relativamente comum, mas para ela não. Parecia ser uma marcagrotesca em sua vida, não deixando com que nada se aproximasse dela.

Ela vivia em casa, não gostava de sair para a rua. Bonita, tinha medo que mauselementos percebessem sua surdez e começassem a tentar algum tipo de contatofísico. Nas poucas vezes que saiu, ia para o Centro da cidade, onde ficava naspraças, contemplando sua visão com o lindo pôr-do-sol do Guaíba, apreciando umbom café com chantilly servido na confeitaria Matheus, na Borges, sempre muitobem atendida por um doce rapaz. Sempre sonhou com ele. Ela era magra,mediana e muito bonita. Olhos cor de mel, cabelos castanhos claros e uma bocacarnuda, suavizada pela saliva que ela tinha mania de passar nos lábios, com alíngua. Traços bem definidos que contrastavam com a deficiência que elaclassificava como “horrorosa”. Por nunca querer sair de casa, Julia ganhou de seuspais um computador com Internet, a fim de que pudesse ter contato com outraspessoas. No início, ela não gostou da idéia, mas aos poucos foi se acostumando,lendo sites, descobrindo novas idéias e novas visões de mundo. Começou a entrarem chats, descobriu novas pessoas, pessoas como ela. Construiu amizades, sentia-se mais livre, à vontade. Tudo mudava na vida da garota.

43

Certa vez, um moço resolveu conversar com ela. Um cara que não tinhadeficiências. Até então, Julia não falava com esses garotos, mas resolveu arriscardessa vez. Rafael tinha 18 anos, era morador da Cidade Baixa, na capital do RioGrande, estudante do Júlio de Castilhos. Conversavam muito bem, discutiam sobrevários temas, contavam até seus segredos. Julia resolve pedir uma foto do rapaz.Ele manda. Acha-o muito bonito, parecendo conhecê-lo. Resolve mandar sua foto.Acha-a uma gata. Assim, foram se conquistando aos poucos. Depois de cerca dedois meses de conversa, Rafael apresenta à Julia sua proposta: Gostaria de seencontrar. O coração da menina bate mais forte, afinal, seria a primeira vez queela conheceria alguém que começou a conversar pelo computador. Ela não pensaduas vezes e aceita a proposta. Seria dentro de dois dias, no Shopping Iguatemi. Ocoração da garota acelerava a cada dia.

Na noite anterior ao encontro, dúvidas aparecem na mente de Julia. “E se ele nãogostar de mim?”, “e se ele ver que sou uma idiota?”, “e minha surdez?” – Lembrouque não havia contado para o garoto que era surda. Sentiu receio e não contou.Fica agoniada, não consegue dormir. Chora. “Ele vai achar que sou uma idiota”,pensa novamente. Ainda mais que era seu primeiro encontro sozinha, pois apenassaia com os pais. Logo mais, ela dorme. Até que o novo dia chega.

Eram 14h e Julia estava se arrumando. Enchera-se de coragem na manhã eresolveu ir ao encontro, cujo faltava uma hora para acontecer. Trajou-se de calçajeans preta, uma básica azul-claro e salto 6cm, para ficar um pouco mais alta, jáque seus 1,62m não proporcionavam tal coisa. Pegou um ônibus e dirigiu-se parao shopping. No caminho, Julia tremia, tremia muito. Olhava para os lados eobservava várias bocas em movimento. Ora pensava que ele não estaria lá. Orapensava no internauta a seu lado, falando meia dúzia de palavras que ela nãoconseguiria entender, mais uma serie de coisas. Começa a sentir medo. As pernastremem, os lábios também. Sente vontade de chorar, mas evita. Mais um pouco eela estaria no local do encontro, não queria estar mal.

44

Julia sempre foi pontual e chegou às 15h no shopping, exatamente. Foi até o localaonde iriam se encontrar. Ainda não havia ninguém lá. Senta-se no primeiro bancoque vê e fica. Não ouve nada. Olha para os lados e apenas vê corpos emmovimento. De repente, avista um, estagnado em posição retilínea à ela. Eraaquele rapaz que atendia ela no Matheus. Era Rafael. O coração de Julia palpitaainda mais forte. Ela se levanta, caminha em direção do rapaz. Ele abre um sorrisoe pergunta: “Tu que és a Julia?” – Ela, num impulso, fecha seu lindo rosto, escondeseu sorriso e sai correndo. Rafael berra, pede para que ela espere. Julia não ouvenada. Corre até o ponto do ônibus e já não avista o garoto. Sente-se triste, masaliviada. Rafael não descobrira sua surdez. Porém, teria que contar.

Ela chega em casa e os pais perguntam o que aconteceu. Julia apenas corre para oquarto e se tranca lá dentro. Num gesto de imposição, o pai coloca um bilhete pordebaixo da porta do quarto de Julia, dizendo que irá cortar a Internet no diaseguinte e que só sairia acompanhada, novamente, pelos pais.

Chega a noite e Julia resolve mandar um e-mail para ele. Conta toda a verdade, nosmínimos detalhes. Pede desculpas, diz que nunca mais irá falar com ele, devido àvergonha que ficou. Disse que deveria ter contado sobre seu problema, mas que avergonha falou mais alto. Ela não esperava que o menino fosse responder, poisdeveria estar irritado com ela. Mas ele respondeu.

O e-mail de Rafael chegara bem à noitinha, por volta das 23h. Ele começa falandoque nunca pensara que se encontraria justamente com a menina que ele atendiana confeitaria, cuja qual ele dizia ser a “mulher de seus sonhos”. Disse, também,que não se preocupara com a reação dela, já que ele conhecia e sabia de seuproblema. Disse que sua surdez nunca atrapalharia nada, pois ele tinha um irmãosurdo e sabia como tratá-lo. Diz que quer continuar falando com ela, vê-la, poisachou ter descoberto seu grande amor.

45

Julia fica pasma ao ler isso. Enche seu coração com a ternura das palavras deRafael, mas esvazia-o com o sentimento de culpa que brotara em sua mente.Agora estava tudo terminado. Quem sabe um dia voltaria lá na confeitaria, pararever aquele moço que ela sempre sonhava. Aquele que virou seu amigo virtual.Aquele que virou seu amor real. A assombração das dúvidas, dos problemas,culminou numa única e verdadeira assombração: A assombração de que afelicidade esteve, por alguns instantes, frente a frente a ela.

46

Jogo de CartasO verão sempre foi rotulado como a estação do ano que traz grandes viradas paraas pessoas. É a estação do amor, estação do sol, das ondas, dos protetores solares,cachorros na rua, frutas, etc. Quem diria, também é a estação das cartas. As cartasde jogo mesmo.

Em Atlântida Sul, Júlio tinha sua casa. Não muito grande, mas suficientementeconfortável. Alguns cômodos, banheiros, cozinha, área de serviço. Mas ele tinhaalgo especial: a garagem. Pois é, a garagem. É que lá sempre rolavam os jogos dafamília. Várias madrugadas em claro, apenas jogando. Sejam cartas, seja tabuleiro,seja videogame. Sempre havia alguma disputa por lá.

Logo após o Ano Novo, Júlio, de Porto Alegre, partiu para o litoral. Lá, já estavamsua mãe e seu irmão mais velho. Levou com ele sua namorada, Ana Clara, e seuamigo do peito, Fabrício. Chegando a casa, foram se ajeitando em seus cantos.

Os primeiros dias de verão (afinal, só agora eles estavam de férias, podendo-sedizer isso) foram daqueles bem comuns: caminhada na praia de tardinha, saídas ànoite, dormir tarde, acordar tarde. O Fabrício já estava começando a se sentir umtanto deslocado, pois, como a Ana estava sempre com Júlio, mal podia trocaralgumas idéias com o amigo. Apenas enquanto ela tomava banho. Isso quandoJúlio não levava a toalha para ela.

- Meu, na boa, to começando a me achar meio desentrosado... - desabafa o amigo.

- Ah, guri, não te sinta assim! Quando começarmos nossas disputas à noite, não irámais querer sair! Hehehe

- E isso vai demorar, por acaso? - questiona, ironizando.

- Ah, é só o tempo dos guris chegarem aí...

Alguns dias se passaram e os tais guris chegaram. Os famosos “amigos da praia”.Todos eram vizinhos, criados juntos desde pequenos. Eram três: o Zeca, o Kiko e oJoca. E eram muito parecidos. Baixos, medianos, morenos, olhos escuros. O quediferenciava eram apenas os traços. Nada mais.

47

Chega a primeira noite de jogatina. “Finalmente”, pensava Fabrício. Começara a seentediar na casa do amigo. Mas isso logo mudaria.

- E aí, qual a pedida de hoje? - pergunta Zeca.

- Bah, eu tava pensando num fliperama. Não são parceiros de ir até o centrão? -responde Kiko.

- Não sei... Não to muito a fim de pegar o carro agora... - replica Júlio.

- Mas se for por isso, eu dirijo! - treplica Joca.

- Que tu achas, Fabrício? - lança Júlio.

- O que vocês quiserem fica bom pra mim...

- Ah, deixa disso... És nosso convidado, mas não precisa ser submisso...

- Então, sugiro que façamos algo em que nós cinco sejamos colocados na mesmasituação.

- Beleza. O quê?

- Conhecem Dorminhoco?

- Evidente... Vamos jogar?

Todos concordaram e sentaram-se à mesa. Pegaram a tampa de uma garrafa devinho para fazer de “paga-prenda”. Começaram a jogar. Joca movimentava a carta,que chega às mãos de Zeca. Observa as suas e repassa outra para Júlio. O meninopega a carta, faz uma cara de desconfiança e relança para Kiko. Este a pega, trocacom outra carta, troca com outra e manda para Fabrício. O convidado relança acarta, que não lhe interessava. Assim se sucedeu por alguns minutos, até que Jocadeixa com que suas cartas caiam. Os outros vêem, menos Júlio, que esperava pornova rodada. A rolha foi queimada na ponta. Levou tinta no rosto. Nas rodadasque se sucederam, risadas, técnicas, olhares desfilavam sobre aquelas folhasplásticas. Isso até a Ana Clara chegar na garagem e perguntar se poderia entrartambém. Porém, após ver o rosto manchado de todos os garotos e a tampa devinho em cima da mesa, fala:

- Acho que tua mãe tá me chamando, Julinho...

48

Os dias que vieram foram de plena diversão. As noites eram repletas de risadas,gargalhadas monumentais. Até que Fabrício diz:

- Pior... Até deu pra esquecer a Amanda...

- Que é isso, guri! Vai ficar lembrando dessa aí agora?

- Justamente... Esqueci!

- Assim que se fala! Voltemos ao jogo!

Fabrício namorara durante quatro longos anos com ela. Porém, ao final dosegundo ano, explodindo de amor pela menina, ela o trai com Gil, amigo deles.Agora, não mais. Desde aquela data. Continuaram namorando, pois ele ainda nãosabia do acontecido. Apenas Júlio. Relutou em contar, não queria ver a cara dearraso do amigo. Mas não resistiu por muito tempo. Já tinham três anos denamoro, quando contou. Fabrício não creu. Apenas um ano depois se convenceude tamanha farsa da amada.

Na manhã da quinta-feira posterior, Júlio levantou cedo da cama. A mãe noticiaraque seus primos de Tapejara, Augusto e Scheila, estariam na praia dentro de doisdias. O garoto alto, de olhos azuis, não demonstrou muita felicidade ao receber anotícia, mas Ana Clara abriu um enorme sorriso ao saber que sua amiga dointerior estava por vir.

Na noite da sexta, os seis resolveram ir para uma festa em Capão da Canoa. Muitomovimento, muitas pessoas estavam por lá. A Praça Central do município lotarapara ver as apresentações que se dariam. Divertiram-se muito. Joca, inclusive,acabou por conhecer uma menina, Lia, que foi convidada a comparecer nobalneário onde veraneavam.

Chega, então, o sábado. Dia quente, cerca de 35°C. Abafado. Propício a um banhode mar. E é o que o pessoal da casa faz.

Enquanto Júlio mergulhava na verde água, Ana Clara conversava com Fabrício,demonstrando toda sua gratidão por ter vindo junto deles ao litoral:

49

- Nossa relação anda meio desgastada... Entendes, né? Começam aquelas brigasbobas, tudo mais... Achei que seria ótimo ter tua presença aqui... E realmente estásendo!

- Deixa disso, Aninha... O Júlio te ama...

- Eu sei que ama... Mas era melhor para nós darmos um tempinho, mesmojuntos... Eu sei o que ele faz, ele sabe o que faço, mesmo que não estejamosgrudados, como antes... Está melhorando a coisa...

- Se você diz... Que ótimo!

- Bah, cara, tu sabe quanto eu te admiro... E te admiro ainda mais por seres omelhor amigo do Julinho... Mas há algo nos teus olhos que traz uma certatristeza...

As lembranças de Amanda voltaram à tona. Fabrício desvia a atenção e vai ao mar.Mergulha bastante. Vai ao fundo. Ana olha para os dois juntos. Ambos com omesmo calção preto. Júlio, branco como requer a ascendência de um alemão.Fabrício, moreno claro, alto, físico malhado. Logo regressam, pingando como setrouxessem o mar com eles.

- Olá!! - alguém diz.

- Scheilinha!! - grita Ana Clara.

Os parentes haviam chegado. Fabrício parece ter um lapso. Apenas observa. Júliocumprimenta os primos. Em seguida, os apresentam ao amigo:

- Cara, esse é meu primo Augusto, baita figura! Beberrão até não poder mais!Hahahaha!

- Prazer, cara! - educadamente, diz Augusto.

- Prazer... - responde Fabrício.

- Bem, e esta é minha prima querida... Scheila!

- Oi... Muito prazer! - timidamente indaga ela.

- O prazer é meu... - mais timidamente ele responde.

50

- Bah, to louco pra tomar um banho! Vamos nessa, primo? - questiona Augusto.

- Ah, vou dar um tempo aqui, recém saí d’água...

- Ah, tão tá... Vamos, Scheila?

- Vamos sim... Nos acompanha, Aninha?

- Claro!

E partiram os três para dentro do mar. Júlio, sentado ao lado de Fabrício, comenta:

- Bah, meu... Fazia tempo que eu não reparava como a Aninha é linda... Estamosjuntos há quase três anos e fui capaz de deixar isso passar... Sempre gostei demenina loira... Ela tem isso... Tem um corpo lindo... Parece feito sob medida...Adoro o caminhar dela, como ela fala, a delicadeza dos braços, a ternura do beijo...

- Oh... Já podes virar poeta! Hehehe

- Pior... hehehe... Mas é sério... Amo-a de verdade...

- Tenho certeza que ela também...

Mas Fabrício não se concentrava na conversa. Apenas em Scheila. Observava cadadetalhe. Desde o biquíni listrado em amarelo e azul claro; o tom avermelhado docabelo; a pele clara, mas já bronzeada pela força dos raios solares; a tez nua, como sorriso que destacava as belas maçãs da face. Encorpada, mas sem nenhumdestaque. Perfeita. Seu sonho. Sua vista.

- Ela tem 23 anos...

- Como?

- A Scheila tem 23 anos, cara... Ela é mais nova que você, mais chances... hehehehe

- Eu falei que queria algo com ela?

- Teus olhos já disseram tudo, parceiro...

51

E tinham dito mesmo. Estava encantado pela beleza da interiorana. Eles regressamdo mar e logo foram para casa.

Fabrício passou o dia todo cuidando a menina. Como ela se movimentava, o queconversava, o que fazia. Pode ouvir que era acadêmica de Geografia da UPF, dePasso Fundo. Estava no penúltimo semestre, formar-se-ia ao final do ano.Professora. Era seu grande sonho profissional. Morava apenas com o irmão, emsua cidade, pois os pais haviam se separado há anos. Com isso, o pai se mudoupara Santa Catarina e a mãe, após os filhos terem começado a trabalhar, resolveucomeçar a vida novamente com outro homem, para os lados da fronteira com aArgentina. Falava muito de novelas, filmes, livros. Lia muito Machado de Assis. Erafã de The Clash, Heart e Boston. Estava sabendo bastante.

Após tomar seu banho, o convidado percebeu que não havia ninguém dentro decasa, mas que movimentações aconteciam nos fundos. A mãe e o irmão de Júliohaviam saído, rumo a Porto Alegre, para ver se descobririam o porquê de o irmãomais novo ainda não ter rumado para a praia. Fabrício sai de casa e vê o portão dagaragem aberto. Lá estavam eles.

Zeca e Kiko animavam-se no videogame. Joca, ao lado de Lia, que fora visitá-lo,conversava com Júlio e Ana, que logo diz:

- Aí está o menino do banho demorado!

Ele fica meio sem jeito, mas se aproxima do pessoal. Cumprimenta os guris e lançaum olhar para Scheila. Esta não percebe o ocorrido e permanece sentada na mesa,falando ao celular. Pergunta a Júlio:

- E o Augusto?

- Foi com a mãe e o mano pra Porto. É muito estranho não ver o Heitor aquiainda... Acabou preocupando-se e se ofereceu para dirigir, já que o Jacques tá como pé torcido...

52

Desse jeito, era como se o caminho estivesse totalmente livre para que ele tivesseuma conversa mais íntima com a prima do amigo. Lança mais um olhar para ela,que já havia desligado o telefone. Ela percebe, mas sente-se encabulada. Um levesorriso.

Já era 1h, quando Júlio resolve gritar:

- Hora do jogoooo!!

E assim foi. Sentaram-se todos a mesa. Ana, Júlio, Zeca, Scheila, Joca, Lia, Kiko eFabrício. Propuseram uma partida de Mau Mau. Na concordância de todos,resolveram começar. As cartas eram postas à mesa. O jogo rolava. Quem ficassecom a maior pontuação nas cartas deveria pagar uma prenda.

- Mau mau! - diz Ana.

- Não, meu bem, pega uma mais. - fala Júlio, após colocar um nove na mesa.

- Mau mau! - também diz Zeca.

- Ih, meu Deus... Preciso de mais uma carta... - diz Scheila, rabiscando um olharpara Fabrício.

- Certo... Vamos dar mais emoção a isso... - Propõe Joca, ao lançar um sete sobreas cartas.

- Mais sete, então! - diz Lia.

- Putz... Pobre Fabrício! - ironiza Kiko, colocando outro sete sobre a mesa.

- Bah... Que droga! - esbraveja Fabrício, em meio às gargalhadas dos amigos e oolhar tímido de Scheila, pegando suas nove cartas do baralho.

- Mau mau de novo! - diz Ana.

- Mau mau! Só mais uma carta! - coloca Júlio.

- Vai essa... Mau mau! Venci! - vibra Zeca.

- É, vamos contar os pontos... Mas acho que ficará a decisão entre o Fabrício e aScheila, sobre quem tem mais pontos! - ironiza Júlio, olhando Fabrício com umcurto sorriso.

53

Contaram e recontaram os pontos, um a um. No fim, empataram. Fabrício eScheila teriam que pagar um vale. Ou uma prenda.

- Vão lá fora e decidam o que fazer! - dispara Ana.

Fabrício fica extasiado. A menina vai até ele, pega-o pela mão e o leva para fora.Quando saíam da garagem, Scheila rouba-lhe um beijo. Fabrício achou estranha aatitude da moça, que permanecera tímida até então.

- Bah, cara, desculpa... Não consegui mais controlar... - fala ela.

- Não te preocupas... Eu já estava querendo isso mesmo...

E beijam-se novamente. Dessa vez, um caloroso e longo beijo. Mal haviam trocadopalavras, durante o tempo em que estavam juntos. Um “com licença para cá”, “porfavor” para lá, olhares profundos, tímidos, mas com um único ideal: a conquista dopróximo. Adoraram-se desde o primeiro momento em que se viram. E, pelo jeito,continuariam se adorando.

De repente, Ana Clara sai da garagem para saber por que demoravam tanto paravoltar. Logo, vê a bela cena. Pensa consigo:

- É, Fabrício... Estamos em pleno veraneio... Deixa a Amanda congelar num invernodistante... Mantenha-se nesse novo fogo, pois o verão ainda te trará tudo quemereces.

E assim foi. Dias e dias passaram e a conquista tornou-se realidade. Ambos juntos,aproveitando o tempo que tinham. Pouco tempo. Fabrício deveria voltar para acapital, enquanto Scheila teria de retomar estudos e contato com os pais emTapejara. Quando da despedida, tristeza. Mas uma tristeza feliz: Fabrício pôdelivrar-se do fantasma de Amanda e descobrir que uma nova conquista é dadaquando fazemos algo por tê-la e, assim, poder se aproximar do próprio ideal defelicidade.

54

À Santidade

Sorrir. Era olhar para um lado, para outro, e a encontrava. Sorrindo. Sempre. Oolhar brilhante, a voz em suave calmaria, serena. Explanar a paixão que sentepelas coisas que faz não é uma tarefa simples para os seres humanos. Para ela,isso era singelo.

A professora expelia palavras encorajantes. Essa sua coragem de mostrar o rosto,deixá-lo descoberto para as surras que levaria pela vida foi sua marca maisevidente. O gosto doce de suas idéias apaixonava seus alunos que se sentiam cadavez mais envolvidos pelas idéias convictas e relevantes dela. Convicção era suaSuperiora. A descrença, o inferno.

Certa vez, um sonho lhe desperta. Uma luz, umas pessoas voando, camisolas,penas. É. Talvez retocasse seus líricos pensamentos com pinceladas de magia,inigualáveis pensamentos que a tornariam uma pessoa que, se não atingisse aperfeição a todas as vistas, atingiria sua opção maior: ser feliz.

Foi quando o sonho se tornou realidade. Os pensamentos voaram. Tomaramforças colossais e fizeram brotar um desejo jamais imaginado. Aquela criaturalúdica, crente de si, crente da vida, crente de suas idéias, agora era crente. Um marde lágrimas brotou por seus olhos. Era o reinício de uma caminhada que traria suafelicidade suprema, sua tranqüilidade eterna.

Chega em sala de aula, comunica seus alunos. O espanto é tal que faz com queeles fiquem boquiabertos. E a singeleza ainda imperava. Um tanto abalada devidoà emoção, mas continuava intacta. Dissertou sobre o porquê daquela decisão quesoava como fantasmagórica aos pupilos, mas que logo foi entendida. Ela queriaapenas encontrar sua felicidade.

55

Como em todos os momentos em que esteve com eles, a professora proferiu seuemocionado e ideológico discurso, carregado de beleza humana e palavrasartísticas: “Vocês não podem ser apenas professores de gramática normativa, aliás,não devem: devem criar, buscar o novo, ousar! Utilizar a posição de vocês, comoprofessores, não para imperar e dizer o que é certo e o que é errado, mas paraestimularem seres pensantes! Trazer à essas pobres criaturas, que hoje sãoesmagadas pelo sistema, um conhecimento que lhes sirva para a vida, não para omecanicismo...” - e, após alguns segundos de silêncio, diz: “Espero, apenas, quevocês sejam educadores de verdade”.

A despedida emocionada seguiu-se, com o forte abraço e o carinhoso beijo quecada um de seus futuros colegas (que, talvez, não mais seriam) lhes deram. Aretribuição vinha em lágrimas, mas lágrimas de alguém que lutou por um idealque, em sala de aula, com seus estudantes, via ser atingido. Era uma despedidafraterna, tão meiga que nem o mais duro dos doutores ousaria evitar seemocionar.

Foi então que, nessa hora, alguma luz, de muito distante, brilhou para aprofessora. Uma luz de intensidade enorme, mas só ela via. A luz de que omomento de sua decisão final estava de fronte a si. Era a luz da decisão. Decisãotomada. Ela se dirigiu para a janela, ainda com os acadêmicos na sala. E, bembaixinho, com o reflexo da luz no olhar, pôde dizer: “É isso, sim”.

Todos foram embora. Apenas ela ficou lá, relembrando seus momentos de alegriaintensa, de trabalho intenso, de harmonia intensa entre si e seus colegas de sala.De súbito, uma sombra vem à porta e fala: “Vamos! O céu não pode mais esperar”.

Feliz, ela sorri. Estende a mão para que seja levada por esse alguém até seudesejado lugar. Não lhe busca. Levanta-se, caminha em direção à saída da sala. Vêque a faculdade ainda tem pessoas circulando. E vê que a luz não pára de brilharpara si. Volve, arruma seu material e vai embora. Embora. Simplesmente embora.

56

Chega em casa, um pouco cansada. Já tinha preparado quase tudo. Faltou apenasguardar o material que usara para trabalhar no dia, na estante da sala de suaresidência. Todo seu material, seus anos de trabalho, alojados naquela estante. Vêtudo aquilo e pensa: “Valeu a pena mesmo”.

Pega as malas, curva-se em direção à porta. O filho, não mais em casa, deixa-lheum bilhete dizendo “com carinho, seu filho”, apenas. Sorrindo, guarda o bilhete esai. Ainda olha para dentro, buscando algo que talvez tenha deixado para trás.Nada mais havia. Apenas as lembranças. Que também levava junto.

Ao colocar seu pequeno pé na rua, sente uma estranha sensação. Uma sensaçãode medo, de perda. Mas também era uma sensação de ternura, de felicidade, devida. Principalmente de vida. Às entranhas deleitando a noite, via com o olharbaixo que estava fazendo a coisa certa, mesmo que incerta. E foi nesse momentoque ela começou sua caminhada, a mais longa de toda sua vida.

A luz novamente brilhou. Agora, com mais intensidade. Viu tudo embranquecerperante suas vistas. E a voz clamou: “Vamos! Está na nossa hora!” - E, lá de cima,provido da infinitude do céu, a luz em forma de braços gigantes desceu sobre aTerra, estendendo suas palmas para que ela, cada vez mais feliz, pudesse deitarseu corpo, sendo levada para lá. De súbito, a luz apagou. Apenas as estrelas maisbrilhantes permaneceram acesas. O clarão baixou. A rua silenciou. Voltou-se aonormal.

É. Eu tive um sonho. Um sonho em que todas as pessoas conseguiam suafelicidade plena. Um sonho em que o mar banhava as belezas marinhas eterrenas; em que o céu brilhava na escuridão mais profunda; em que a Naturezasublimava encanto pelo mundo a fora. Mas só ela teve seu sonho realizado.Porque soube sempre o que quis. Porque soube sempre qual era seu ideal. E era,singelamente, ser feliz.

57

Noite no terraço

Certa noite, quatro amigos resolveram se reunir na casa de um deles. Levaramviolão, guitarra e um pandeiro. O pandeiro era do Toledo, o único que não tocavanada. Buscou nesse pequeno instrumento aliviar seu ego que o fazia menosprezarfrente aos próprios amigos. Bobagem, mas não se sentia bem. O violão era doBola, famoso por suas milongas fronteiriças, mas que há um tempo não asensaiava mais. Por fim, a guitarra era do Jorginho, cara meio metido, achava quetudo que fazia dava certo. Coitado.

A casa do Dina era na Cidade Baixa. Dina, pois seu nome é Jesper Scholasen,dinamarquês por natureza, vindo de lá quando tinha seus seis anos de idade. Amãe fora tentar a vida na Europa, depois de fracassar no primeiro casamento,também com um estrangeiro. Acabou como empregada doméstica da casa do paido garoto. Depois de tudo que se pode imaginar, vieram para o Brasil em busca deadaptar o filho a uma vida menos fria, menos restrita.

Chegaram os três na casa do amigo, sendo recepcionados depois de longos dezminutos tocando no interfone. Estava sozinho em casa, com os pais tendo ido parao litoral. Logo, subiram todos para o apartamento.

- Bah, meu, beleza... Vamos chamar umas minas!

- Nem pensar... Já pensou no que os vizinhos vão dizer, Bola? - retrucou Dina.

- Ah, mas não ia ser uma má idéia, né? - replica o menino.

- Por enquanto, não creio que será algo agradável. Pensemos nisso outra hora.

O Dina era gozado pelos outros guris porque aprendeu o português gramatical,usando-o para a fala. Toledo tentou fazer com que ele aprendesse as gírias maisusadas, mas não surtiu efeito.

- Mas então, o que tocaremos hoje, pessoas? - questiona Jorginho.

- Cara, eu tava pensando em tocar um pouquinho de Rush! O show foi tão bom,quase não agüentei em pé... Uma hora deu um empurra-empurra, ninguém quasese segurava... Bah, muito show... - responde o Bola.

- Qual do Rush tu nos propõe?

58

- Hmmm... Que tal Time Stand Still?

- Putz... Não sei tocar essa. - retruca Toledo.

- Que tal tocarmos alguma música nacional? - fala Dina.

- Boa idéia. Qual?

- Boemia... A que me tem de regresso...

- Bah, que é isso! Música de velho! - ataca Jorginho.

- Ah, isso não era - fala Toledo - mas que tal tocarmos uma música que todossaibamos?

- Hehehe... Se isso for possível! - ironiza Dina.

- Tá, espera aí... Vocês conhecem aquela música do Angra, Reaching Horizons? Ésuper bonita...

- Conheço sim. - responde Jorginho, meio enojado.

- Eu também! - fala Bola.

- Ótimo, todos conhecemos! - diz Dina.

- Certo, vamos todos juntos então! Um, dois, três...

E começam. Tocam os primeiros acordes, até que as primeiras palavras saem:

Rainy cloudes covered up the sunny sky

Now I know I’ll sleep alone tonight

Tears and preyers will be taken by the rain

Fear and loneliness in my dreams

(...)

Fly high reaching skies

Two eagles flying to be free

Moments of madness will be left behind

59

The same horizon but in different lands

- Ah, que bala, meu... Essa ficou muito show! - alegra-se Bola.

- Demais. - pondera Jorginho.

- Vocês já pensaram na possibilidade de termos uma banda? Imagina que legal! Euna vocal, o Bola no baixo, o Jorge na guitarra...

- E a bateria? - questiona Bola, ao Dina.

- Se o Toledo se puxasse um pouco...

- Ih, então tamo mal!

- Hahahah... Pobre Toledo! - agride Jorginho.

- Bah, Jorginho, na boa, essas tuas palavras soaram piores que as do Bola!

- Sentiu a facada, parceiro?

Começam a se desentender. Um festival de palavreados desfere-se dos lábios deambos meninos. Dina tenta apartar a discussão. Bola apenas ri. Mas logo terminaa malcriação dos garotos. Tentam tocar algo novamente.

- Vocês já viram algum show do Satriani? Que homem que sabe tocar! - elogia Bola.

- Bah, um amigo meu, uma vez, alugou um DVD do cara... Achei fantástico! Aliás, obaixista da banda parecia muito com o Bola! Alemãozão assim, bem fofo... hehehe

- Sem graça, Toledo, sem graça... - novamente fala Bola.

- Ah, mas vamos tocar algo que possamos cantar! - implora Dina.

- Bem, vejamos... Que tal Alan Parsons?

- Ótimo, Toledo... Fall Free?

- Excelente!

Todos concordam e começam a tocar e cantarolar:

60

What’s the use of worrying

If we’ll be here tomorrow

All we need to be is here today

Don’t care if you’re rich

Or if you have to bag and borrow

You can always find a way

Dive and breakaway

(...)

Fall free

Freedom’s in the air

It’s calling you

Your heart is there

Fall free

Blaze across the sky

The perfect fall

The perfect high

- Eu falo, caras, deveríamos ter uma banda!

- Agora podemos ter... Até tá falando “caras”! hehehe - responde Jorginho.

- Ah, mas se eu tivesse a voz daquele vocalista do Queen...

- Quem? O Freddy Mercury? Tu sabe de quê ele morreu?

- Não... Como?

- Dizem que foi por causa da AIDS, tudo mais... Não sei bem qual a causa, masacharam espermatozóides no estômago do cara...

- Que nojo...

61

- Blergh! Porra, Jorginho, eu recém jantei, mala! - explode Bola.

- Tá, vamo pará com isso! Quem sugere outra música? Essa não ficou tão boa...

- Bah, deixa eu ver... Calling Dr. Love, do Kiss?

- Seria uma bela pedida! - responde o Dina ao Bola.

- Ah, mas essa eu não sei tocar... - fala Jorginho.

- Na real, nem gosto de Kiss. - desabafa Toledo.

- Bom, vamos tomar alguma coisa. Vocês querem cerveja?

- Ceva! Beleza! - responde Bola ao Dina.

Foram os quatro meninos para a cozinha. Abriram suas latinhas e tomaram.Abriram outras. E cada um tomou ainda mais uma.

Jorginho, que era meio fraco para bebida, começou novamente com aquele velhaidéia:

- O meu, vamos chamar umas putas!

- Cara, não começa... - fala Toledo.

- Pior que já estou achando uma ótima idéia... - dispara Dina.

- Tão vendo? Tão vendo? Eu sei o número de uma mina lá...

- Ih... Lá vem o golpe! Hehehe - preocupa-se Bola.

- Peraí... Acho que é 9045-7767.

- Não tens aí no celular?

- Calma aí...

Procurou no seu Startac e encontrou o nome da prostituta. Márcia. Ligou:

- Ah, por favor, é Márcia? Oi, meu bem... Eu queria saber se tu tá livre agora? Quebom... E tem mais algumas amigas? É que estamos em quatro aqui... Certo... Sim...Show de bola... Aham... Tá, é aqui na Lima e Silva, perto da escola... Essa mesma...Ok... Certo, em meia hora te espero... Um beijão, gata...

62

- Pô, tá íntimo da mina, hein, tarado? - fala Toledo.

- Ah... Algumas vezes, sabe...

- Aham, to sabendo... Tu nem discou o número no telefone, cara!

- Que o quê! Espera meia hora pra ti vê, otário...

- Hahaha... Quero vê!

- Cara, já são 2h da matina. Vamos nos organizar.

- Peraí... Deixa eu pegar outra ceva... - diz Bola.

- Não te embebeda, meu...

- Vou tentar! Hehehe

- Ok, acalmemos... - começa Dina - Aqui no terraço tem dois lugares quepoderemos ficar. Lá embaixo, tem meu quarto, que eu vou ficar. Eu não queriaque o quarto de meus pais fosse ocupado. Sobra o banheiro, a cozinha, a sala... Ouse alguém quiser ficar ao ar livre, tem o patiozinho... O que vocês querem?

- Posso ficar com a salinha da esquerda? - pergunta Toledo.

- Claro.

- Eu quero ficar aqui mesmo. - propõe Jorginho.

- Ok, você quem sabe...

- E eu? - questiona Bola, chegando da cozinha.

- Terás que ficar na sala, ali embaixo, ou ao ar livre...

- Deve ser bala comer uma mina ao ar livre!

- Então fica aqui em cima, do lado de fora...

- Beleza!

Então, resolvem esperar pelas meninas. Não demorou vinte minutos após aligação e elas chegam, ofegantes. Tocam o interfone:

- Oi! Aqui é a casa do Jorginho?

63

- Na verdade, é do Jesper, mas ele quem te ligou...

- Ai, que ótimo! Podemos subir?

- Evidente...

E as quatro moças sobem. Ouve-se um barulho infernal de tamancos batendo nochão, no hall de entrada. Pegam o elevador, marcam o sexto andar. Logo, chegamno apartamento do dinamarquês.

- E aí, gatinho? - dispara uma das meninas ao Dina.

- Oi... Entrem... - responde docemente o menino.

A tal Márcia era uma loira alta, com 19 anos, cerca de 1,75m, com coxas roliças eglúteos empinados. As outras trabalhadoras eram esplendidamente bonitas.Marcela, com seios estupidamente grandes, mas proporcionais, tinha estaturamediana, com pele morena-índia, devendo ter uns 20 anos. Outra moça, a Babi,tinha a mesma altura da Marcela, mas sua beleza prendia-se a sua tez, destacadapelos olhos azuis claros, sorriso de menininha, nariz pontiagudo. Já a mais nova,com 17 anos, Heleninha era uma mulher feita. Cabelos castanho-claros, olhos corde mel, barriguinha lisa, malhada, pernas fortes, bumbum cheio e seiosestonteantes. Elas estavam prontas para iniciar seu árduo trabalho.

Jorginho logo chama Márcia, penetrando a língua pelos lábios da mulher. Leva-apara o andar de cima. Já Dina, mais comedido, fica com a Babi. Primeiramente,uma pequena conversa, logo beijando-a. A belíssima Marcela foi a tentação deToledo, que também subiu com ela. Então, sobraram Bola e Heleninha. O garotoficou tão pasmo com a beleza da guria que ele mal se movimentava.

- Oi, oi, oi... - fala suavemente Helena.

- Ahn... Oi...

- Hmmm... Estás me parecendo tímido...

- Eu acho que bebi demais...

64

- Hmmm... Que nada, não tens odor algum... Deixe-me ver na sua boca...

E disfere-lhe um beijo que, ao invés de fazê-lo fechar os olhos, os arregala aindamais.

- Nossa... Fazia tempo que não me beijavam assim! - relata ele.

- Hehehe... Isso porque tu não tocaste um dos meus pontos de prazer...

E ela pega a mão do gordinho e leva até seu seio. Pressiona-o contra. Faz cara deprazer. Muito prazer. O cara geme. Ela também. E ambos correm para o terraço.

Chegando lá, os dois casais já chegaram aos finalmentes. Jorginho e Márcia jáestavam nus, trepando lenta e carinhosamente. O Toledo ainda estava de calça,com a menina fazendo um strip para ele. Bola e Heleninha correm para o terraço.

- Cara, sempre sonhei com sexo ao ar livre! - berra ele.

- Nunca fiz isso... Deve ser o máximo, ainda mais contigo...

- Vamos lá, então, guria... Ora de botar a maquina para aquecer!

Ela vai abrindo a braguilha da jeans do menino. Abaixa a cueca. Manuseia o órgão.Ele geme como se nunca houvesse mexido. Abre a boca. Ela penetra a língua nele.Despem-se. Transam.

Nessa altura, o Jorginho já estava em fase final de relação com sua garota. Toledopenetrava com receio em Marcela. Pensava toda hora se ela não estaria com AIDS.E também estava com medo de uma ejaculação precoce. Concentrou-se.

Já Dina parecia passar as melhores horas de sua vida. Penetrava na menina comgosto, orgulhando-se de quem escolheu. Analisava cada movimento da garota,cada suspiro, cada gemida. Parecia ter se apaixonado. Um bom tempo depois,após sua gostosa transa, Dina pergunta à menina:

- Como pode uma beleza de pessoa como tu estares metida nesse meio?

- É meu único modo de pagar a faculdade... Só assim dá...

65

- Que tu cursas?

- Fisioterapia.

- Nossa, que legal. Faço Enfermagem na Federal.

- Que ótimo! Poderemos um dia trabalhar juntos!

- Com todo o prazer... Aliás, se quiseres estudar biologia e anatomia comigo, tereiprova dentro de duas semanas... Adoraria tua presença...

- Eu também iria adorar, mas esse meu trabalho me impede.

- Não fale assim. Se eu pudesse, te tiraria dessa vida.

- É... Infelizmente não é assim que a coisa acontece...

- Mas por que tu escolheste fisio... Que barulho é esse?

- Parece som de telefone.

- Mais especificamente o interfone! Quem será essa hora?

O dono da casa sai da cama, correndo para atender o aparelho, ainda nu:

- Meu, isso aqui tá muito booooooooom!! - berra Toledo, na extensão.

- Ah, cara, não me atrapalha! - retribui Dina.

Ele volta para o quarto, não antes de ouvir os gemidos de Bola e Heleninha noterraço. A única coisa que não queria eram problemas.

No andar de cima, Jorginho estava esgotado, caído por cima de Márcia.

- Hmmm... Adorei, Jorge! Você foi muito bom... Jorge? Jorginho?!

66

E o cara estava desmaiado. A bebida consumida em excesso, além do esforçodemasiado resultaram no cansaço da figura, que ficou estirada no carpete dapequena sala, enquanto Márcia vestia-se. A garota de programa olha para asalinha ao lado e vê Marcela colocando a cabeça de Toledo entre seus seios.Observa as movimentações do lado de fora e vê Heleninha em posição decachorrinho, com o Bola por cima. Mas, de súbito, ambos param. Márcia resvala oolhar para outro lado. E o interfone toca novamente. Dina sai correndo do quartode novo, depois de conversar longamente com Babi, estando vestido. Atende ocomunicador. Era a polícia:

- A vizinhança está reclamando do barulho que está saindo desse apartamento.Gostaria de poder averiguar o que ocorre.

E o Dina, ainda imaturo para essas situações, deixou com que os policiaissubissem. Não sem antes de perguntar.

- Tem algum menor de idade aí?

- Eu! - grita Heleninha, fadigada.

- Puta merda... Estamos ralados! A polícia está vindo!

Um múltiplo “o quê” é dito por absolutamente todos os presentes no apartamento.Em pouco tempo, soa a campainha. Todos se vestem enquanto Dina vai abrir aporta.

- Boa noite, policiais.

- Boa noite, rapaz. Antes de mais nada, qual sua idade?

- Vinte e um, senhor.

- Certo. Depois peço seus documentos. Gostaria de saber o que se passa nesselugar.

- Nada demais, senhor, apenas uma festinha para poucos convidados.

- Pelo que me relatou sua vizinha do 501, o barulho era de festona.

- Creio que ela exagerou.

67

- Não foi o que disse o senhor do 403.

- Aquele senhor é um velho rabugento...

- Comporte-se, guri! Vamos entrar e verificar o que ocorre.

- Não, não...

Mas não consegue impedir. A polícia entra no apartamento e revista o andar debaixo. Encontra Babi sentada na cama de Dina, comportada. Olha-a. Sai emseguida. Resolve subir as escadas que dão na cobertura.

Lá, Jorginho havia sido retirado e colocado no banheiro. Marcela ainda não haviase trajado e Heleninha e Bola estavam totalmente nus. Correram para trás daporta que dá acesso ao pátio, mas deu tempo apenas para colocarem as roupasíntimas. Os policiais já estavam lá em cima.

- Eu te conheço, mocinha! - apontando o dedo para Márcia.

- Desculpe-me, mas não lembro do senhor.

- Pois eu sim. Voluntários da Pátria, 6 de dezembro de 1999. Porte de drogas.Liberada por falta de provas. Por favor, posso verificar sua bolsa?

- Ela não está aqui.

- Não me faça de palhaço. Dê-me!

Ela observou a bolsa, mas o policial deu um pulo sobre ela e a apanhou. Tirou aidentidade da menina, viu que tinha 19 anos. Tirou a carteira escolar, dinheiro,anti-concepcional, camisinha, agenda e um saquinho plástico. Abriu-o. Pó. Póbranco.

- Dessa vez, gata, foi em flagrante. Façam o teste nessa gurizada toda. Se ninguémtiver se drogado, só vou levar essa doida. A única prova é contra ela.Aparentemente o saco tá fechado. Vamos!

Assim, os dois acompanhantes fazem a revista. Começam por Toledo, vêem aidentidade, não encontram drogas nem demonstra ter ingerido. Faz um pequenoteste e confirma. Logo, faz o mesmo com Marcela. Mesmo encantado com aquelesseios incríveis, o policial faz tudo corretamente.

68

Enquanto isso, Heleninha acabava de se vestir e Bola permanecia apenas de cueca,olhando pela fresta da porta, para ver o que ocorria. Nesse tempo, um dospoliciais entra no banheiro. Encontra Jorginho desmaiado. Chama o policialresponsável. Ele vê a situação e encaminha o garoto para o Pronto Socorro. Logo, oajudante sai da sala, vai para o terraço e não vê nada. Quando se vira, sente quehá algo (e grande) atrás da porta:

- Ora, ora... Vejamos isso! Um gordinho e sua bela acompanhante!

O guri fica vermelho, tamanha vergonha. Ele é revistado e nada demais encontram.Já na rapariga, atesta-se sua baixa idade. É encaminhada à Fase. De lá, seriam seuspais avisados sobre a situação.

Ao final, Jorginho, Helena e Márcia foram levados. Cada um para um lugar. E nemdesconfiaram que as meninas que restaram também eram prostitutas. Aliás, nemdescobriram que as outras eram. Babi e Marcela olharam para seus parceiros elogo dispararam:

- E nossos cachês, little boys?

Dina e Toledo empalideceram. Não sabiam nem quanto deveriam pagar. Sabiam,apenas, que aquela tinha sido uma noite que nunca iriam esquecer, tamanhaloucura fora. Apesar do infeliz final, foi uma noite de intenso prazer. De muitamúsica. De belas garotas. E de uma grande dívida.

69

Paciência de anosEra uma calorosa tarde de domingo e Natasha estava lá, na frente de seucomputador, datilografando um trabalho para a faculdade de Ciências Sociais, cujafazia há três anos. Ela, esbanjando seus vinte e oito anos com muita saúde, nãoesperava que aquele dia mudaria para sempre sua vida.

Toca a campainha. Ela sai do quarto, atravessa o apartamento situado na BelaVista e vai atender a porta. Era Bruno, um homem alto, esbelte, encorpado queNatasha não via a cerca de dez anos. Seu grande amor do passado. Ele pede paraentrar e ela não lhe responde, mas logo dá a trégua. Sentam no sofá da sala,conversam por alguns minutos. Bruno fala que esteve fora do Brasil por cincoanos, pois fora trabalhar com seu pai numa empresa agronômica argentina, quelhes remuneravam muito bem. Porém, Natasha não se dá por satisfeita e indaga ohomem:

- Mas e o que você sentia por mim, Bruno? E o q eu sentia por você? Onde ficou?

- Continua nos nossos corações, Natasha...

- Não, não pode ser... Sumiste por dez anos!

- Eu queria ficar...

- Saia já daqui, Bruno!!

70

Ela se levanta e abre a porta da rua. Bruno, num gesto que jamais houvera feito,tira a mão da mulher da maçaneta, bate a porta. Ela, já irritada, tenta se soltardele, mas a força do homem não permite que ela consiga tal coisa. Pararepreendê-la, ele a deixa contra a parede, segurada pelos pulsos. Foi a primeira vezque ficaram tão próximos como em anos anteriores. Ele se aproximava mais, elase acalmava. De repente, o beijo. Aquele beijo tão doce, tão meigo que nãoacontecia há anos. As línguas se entrelaçavam, os lábios se grudavam, o beijoquente causava-lhes muito tesão. Ela desprende os braços das mãos de Bruno e oabraça com força, queria mais do que estava acontecendo. Beijava seu pescoço;era beijada no mesmo lugar. Bruno a apertava, sentia a mulher que ele sempreamou, passava a mão em todos os lugares possíveis. Quando ele chegou na virilha,a mulher foi o empurrando aos poucos e, em seguida, joga-o na cama. Ele quer selevantar, mas Natasha vai em cima dele, beija seu peitoral musculoso, suas formasgritantemente definidas. Ele sente muito tesão; ela também. Bruno já está numarespiração ofegante, rápida como requer a situação. Foi então que ela sentou porcima dele e tirou sua camisa. Os seios dela estavam expostos a ele, aquele par deseios que mais pareciam duas laranjas, de formas tão perfeitas e definidas. Ela cainovamente por cima dele, mas ele se vira e também tira a camisa. Logo, as calças,as meias. Ela também já está nua, desfilando seu corpo perfeitamente moldado,traçado a olhos de deuses, devida perfeição que era aquele corpo. Então, fazemamor. Transam, transam tanto que ela berra como uma louca; ele vibra como umaconquista. Ficam tempos e tempos lá, até que a mulher pára, olha para ele e diz:

- Nada mais é como fora um dia...

Bruno, indignado, sai da cama e se veste. Ela fica inerte em sua posição, masqueria dizer algo que não saia de sua boca. Ele se vira para ela e fala:

- Tu foste a única que eu amei nesses anos todos. Era só você que eu sempre quis.

71

E sai da casa. Fecha a porta, talvez a porta de seus corações. Ela chora, lacrimejabastante. A boca trêmula não permite que ela diga uma única palavra. Vai até afrente de casa e vê Bruno saindo com seu Palio azul metálico. Ela, sem muitasalternativas, fica lá, deita-se na cama e chora a ida de seu mais perfeito amor. Nãoteve paciência para suportar a pressão que sua voltaria o faria.

72

Caixinha de música

Abre-se a porta. O vento ecoa através das frestas da janela da sala. Ele penetra emseu apartamento, pega alguns restos de jornal e tenta fazer com que o silênciopredomine. Em vão. A força da natureza é mais forte que a vontade do homem.

Ao entrar em seu quarto, despe-se. O paletó, a gravata, a camisa. A cinta, as calças,as meias. Deita-se. Sente o corpo flutuar na cama, como se há anos não deitasse.Liga o rádio, ouve algumas notícias, mas logo enoja do que escuta. Inflação, dólarem alta, desemprego; guerra, assaltos, assassinatos. Desliga o rádio. Levanta-se,abre a porta do armário, olha-se no espelho. Vê a barba crescer, sem querer cortá-la. Ou sem força para tal. Declina a cabeça, volve. Vai para a cozinha. Atravessa ocorredor escuro até lá chegar. Onze da noite. O telefone parece tocar. Mas nãotoca. Abre a porta da geladeira. Vazia. Contém apenas uma garrafa d’água e unsdocinhos que sua mãe deixara em sua última visita. Há um mês. Resolve beliscaralguma coisa. Mas os doces já não prestavam. Cospe tudo, bota para fora. Umagota de sangue. Sente o palato machucado. Um arranhão. Nada demais. Limpa aboca na própria cozinha, após alguns gargarejos. Retorna ao quarto.

A vida de Marcelo tornou-se um grande tédio. O trabalho, a faculdade. Dois anosseparado da ex-esposa. Desde então, sozinho. Não tiveram filhos. Ela sonhava. Elenão quis. Pensava apenas no trabalho, na faculdade. E no corpo da Amélia. Anasabia de seu tesão pela colega, mas nunca deu importância. Até o momento emque os pegou juntos em pleno lar. No dia seguinte, o crepúsculo da tristeza. Quese arrasta até esse dia.

No quarto, encontra um osso de frango. Roído. Deveria ser bastante velho, pois oToby saiu de casa com a Ana. Velho Toby, deveria estar com seus 13 anos quandoele o viu pela última vez. Adorável.

De repente, um ruído. A porta abre-se. Sem tocarem-na. Marcelo levanta-se, vaiaté a entrada de casa e nada vê além de um vulto negro descendo as escadas dopequeno edifício. Deveria ser seu vizinho do apartamento defronte ao seu, umhomem trabalhador, que construiu a vida a duras penas. Gostava muito dele.

73

Após fechar a porta, retorna, novamente, ao quarto. E, no auge da solidão, eleprocura algo que lhe afague. Computador, televisão, música, filme. Nada. Nada lheatrai. Nada o faz concentrar-se. Abre o guarda-roupa, revira, tira suas roupas,busca algo que nem ele sabe o que é. Durante essa tentativa desesperada, caemduas prateleiras do móvel. Algo bate com força no chão. E uma música começa atocar. E, de súbito, o ambiente torna-se ainda mais melancólico. Ele, estagnado emsua posição, sente o desespero subir pelas entranhas. Olha para o chão. Umatampa de um lado. A caixa de música do outro. Então, inclina-se. Pega a tampa,com a borda quebrada. Ali, continha um espelho. Agora, um espelho rachado. E sevê, em dimensões distintas. De um lado, aparecia a testa, lisa e sem qualquermarca da idade; do outro, a sua barba por fazer, a boca rosada, um tantoavermelhada pela mancha de sangue que ficara. E, próxima, a caixinha de música,com um protótipo de casal recém casado dançando sobre essa. Marcelo deixa atampa cair no chão, concretizando o estilhaçar do espelho. Observa a caixa. Sentea música entrando em seu ouvido. Uma lágrima lhe escorre o rosto. A dor enlaçaseu coração. Era como se uma nuvem cinzenta pairasse sob a residência dodesiludido homem. E ele não tinha mais saídas.

Levanta-se do chão, pega o objeto sonoro e arrebenta-o contra a parede. Mas amúsica não pára. Pega-o novamente e joga-o pela janela. Mas a música não pára.Ele quer sair, ele quer correr, mas ele não escapa. Não escapará.

Ainda sob forte emoção, veste-se. Meias, calça, cinta. Camisa, apenas. Traja ossapatos. Lava o rosto. Mais uma gota de sangue acaba por sair de sua boca. Nãodá a mínima importância. Limpa na camisa. Pronto, abre a porta de casa. Esquece-a aberta. Desce as escadas. E, desde então, nunca mais se tiveram notícias.

74

Asas da realidadeLevantar de manhã e, muitas vezes, não ver o sol, apenas a escuridão da noite.Levanta-se cedo para continuar nossa rotina, permanecer na nossa realidade. Sairda cama, ir até o banheiro, fazer todas as necessidades. Sair, vestir-se, ir à cozinha,preparar um lanche, um café, um suco. Ouvindo os noticiários no rádio, lendo umjornal. Depois de tudo pronto, rumamos, todos nós, para um mesmo lugar: ocolégio. Ao dar a primeira pegada na rua, sabendo que nunca mais faremos omesmo percurso, um aperto no coração me corrói. Caminhando pela rua, aslembranças me são presentes, como se recém tivessem acontecido. Os desejos de“bom dia”, “boa aula”, nesses dias são mais presentes do que nunca. Ver que tudoisso está próximo de acabar, faz com que todas aquelas lágrimas conservadasdurante anos para esse momento, comecem a brotar, escorrer-me o rosto. Essedia trará nossa nova realidade.

Chegando ao colégio, nosso local de estudo, de trabalho, de amizades, de amores,a saudade passa a bater como se já tivesse acontecido. Entrando lá, o primeiro“bom dia”. Retribuímos, normalmente. Mas era a ultima vez. Subindo as escadas,percorrendo os corredores, lembro-me de cada passo dado aqui dentro. Desde ojardim A1, lá nos nossos princípios da vida, quando ainda tínhamos nossos 3, 4anos de idade. Brincando pelos pátios, correndo pelos corredores como criançasque fomos e eternamente seremos. Buscando atravessar barreiras que nemsonhávamos que existia. Anos maravilhosos que se foram, e não voltam mais.Passando por todas as séries, atravessando o A2, o Jardim B, entrando no 1º grau,na 1ª serie, indo para a 2ª, passando para a 3ª, chegando na 4ª serie. Esses temposque nos mostravam as primeiras brigas, os primeiros desafetos, mas que traziama realidade de termos amigos, aqueles que nós sempre poderíamos contar.Nossas primeiras saídas com eles, indo a parques, indo a festas de aniversario,indo jogar futebol, indo na casa de um ou de outro jogar videogame. Nessa época,até nossos primeiros amores aconteciam, aqueles platônicos, em que você queriaalguém que não lhe queria, que queria seu melhor amigo, cujo amigo queria umaoutra, que era apaixonada por você. Chegava-se a apostar quem “namoraria”primeiro. A infância, fase maravilhosa, de descobrimentos, de energia, deinocência.

75

Parado em frente à nossa sala, olhando pela janela que dá ao pátio, observo oprédio do 1º grau. Mas agora, pensando na 5ª serie. Estávamos entrando nasegunda fase do 1º grau. Primeira vez que tivemos aulas de matérias, cada matériacom seu professor. Primeira aula de matemática, de português, de ciências, deestudos sociais. Nosso primeiro contato com o descobrimento, de onde o homemsaiu, como a Terra surgiu, nossas origens, nossos futuros. Desta fase, para a 6ªserie, desta para a 7ª. Nesse tempo, muitos de nós descobrimos a arte de beijar,seu gosto, sua beleza, sua sensualidade, seu medo, seu horror, seu nojo. É, nojo.Você lembra do seu primeiro beijo? Pois é, que coisa nojenta aquela língua doparceiro entrando em contato com a sua. Hoje, isso é a coisa mais maravilhosaque podemos presenciar numa relação a dois. Eram tempos cada vez mais novos,perguntas sobre sexo, sobre como beijar, como é o órgão sexual masculino,feminino. Quer saber como se beija? “Treine com uma maçã” – Quem não ouviuisso? Mesmo sendo de uma forma ou outra uma bobagem, testando numa maçã,você sentia o gosto do prazer, despertava cada vez mais à vontade de querer fazeraquilo. Depois de tudo isso, veio a 8ª serie, ultimo ano do 1º grau. Era, também, oultimo ano de muitos de nós. Os pais já diziam para pensar em colégios novos,lugares mais fortes, pois a vida se tornaria vida mesmo, depois que o colégioacabasse. Foi um ano maravilhoso, despertava-se cada vez mais o sentimento pelopróximo. A amizade que nos rondava era cada vez mais firme, mais sólida.Ninguém esperava que tivessem mais do que isso. Pensávamos. Aquele anopareceu-me passar depressa, pareceu tão fácil, normal. Chegando o final do ano,víamos que tudo não seria como era, naquele tempo. Nossa formatura do 1º graufoi, ao mesmo tempo, divertida e comovente, pois alguns de nós nos deixaram,mas vários continuaram. Foi lindo poder ver aquele pessoal chorando, comovidocom a saída do amigo para outro lugar, em busca de novos horizontes, novoscaminhos para o futuro. Abraçavam-se, beijavam-se, como se nunca mais fossemse ver. Porém, a única coisa que mudaria mesmo, seriam seus ambientes. Todossabiam disso. Mas ver aquela pessoa, tão adorada, tão amiga, que esteve comvocê nesse tempo todo, foram cerca de 10 anos de convivência, tudo num mesmolugar, no nosso mesmo céu.

76

Mais um ano passa, ingressamos no segundo grau. É nesse prédio que estouagora, nessas salas que já freqüentei, que todos os grandes momentos da vidaaconteceram. Se não foram os melhores, ao menos foram os mais recentes,recordações mais vivas de nossas mentes. Bate para o primeiro período. Entrandona sala, junto de todos que estavam do lado de fora comigo, passo a me lembrardo 1º ano. Nossa, quanta gente nova! Numericamente, não lembro, mas quefariam parte de nossas vidas, isso sim, fariam com certeza. Naquele tempo,conheci muita gente nova, pois era uma turma nova, onde eu não conheciamuitos, mas os que conhecia sabia que eram meus amigos. Assim foi fácil seenturmar, logo nos primeiros dias, com as gurias que sentavam ao nosso lado.Mais tarde, isso foi generalizando, aumentando cada vez mais. Quando pude ver,já tinha conversado com todo o pessoal. Claro, formação de amizade ainda nãohavia acontecido, mas já era um início. No primeiro ano, começou o maior laço deamizade existente entre todos nós. Já estávamos mais maduros, não pensávamosmais como crianças, mas como adolescentes em busca de nossas conquistas, depermanecer com tudo o que tinha de bom, melhorar cada vez mais. Uma realidadeque atormentava nossos pensamentos passou a existir entre nós: as drogas.Alguns de nossos amigos, que haviam passado por isso, ou estavam passando,não eram mais os mesmos. Isso acabou afastando alguns, atormentando seuspais, deixando até os amigos desgostosos com suas presenças. Houve quemsoube livrar-se desse problema. Há quem permanece até hoje. Mas com isso,também pudemos aprender as conseqüências, os problemas, tudo que envolveesse tipo de coisa. Coisa, isso mesmo. Droga só pode ser tratada como coisa.

77

Na troca de período, já estávamos conversando sobre como foi nosso 2º ano.Nossa turma estava formada, continuaria até hoje. Mesmo existindo muitosgrupos subdivididos dentro de nossa turma, sabíamos que sempre fomos unidos.Ou pensávamos. Esse ano foi de muita luta para alguns, momentos em queamigos precisaram ajudar, de uma forma ou de outra, seu próximo. Muita genteteve seu ano comprometido por se deixar relaxar nessa temporada. Muitos, emrelação aos outros anos, pegaram dependência. Porém, muita coisa acontecianesse ano. Histórias de sexo, drogas, acontecimentos constantes na vida dealguns. Amor nunca foi uma palavra predominante entre nós, mas a cada dia quese passava, podiam-se ver casais rodando nossa sala de aula, a sala dos outros.Acho que, no grupo em que sempre permaneci (e permanecerei eternamente),amizade sempre foi e sempre será a maior constante entre nós. Não vejo muitasperspectivas de mudança, pelo menos agora. Apesar de ter alguns de nós quecontavam altas histórias de relacionamento, nunca nos deixamos de lado. Não queos demais deixassem, mas nunca permitimos que nosso parceiro estivesse emprimeiro plano, relacionado a nós.

78

Chega a hora do recreio. Última vez que desço até o bar da escola, a fim decomprar algum lanche. Um prensado, um cachorro-quente, uma torrada? Não sei,mas será o último que comerei. Chego lá, converso um pouco com o Paulo, maslogo saio, o movimento já aumentava. Na saída do bar, olhei para dentro. Aquelelugar cheio, berros para todos os lados, Vanderlei pedindo organização a todos.Suspirando saia de lá, olhei para a esquerda: o corredor da 6ª série, futuro docolégio. Olhava para a escada, gurias conversando. No corredor, no caminho quedava acesso ao pátio, a gurizada da 8ª série, da 7ª, do 1º ano. Riam, conversavam,gargalhavam, berravam. Era tudo a última vez. Fui até o pátio, sentei-me no bancoda primeira galeria do ginásio, junto ao pessoal. Uns com os olhos fixos no chão,outros conversando animados. Eu com meu lanche. Ao tocar o sinal, naquela hora,acho que todos nós tivemos a mesma impressão: era o último dia de aula. Nós,alunos do último ano do colégio. De repente, ouve-se um suspiro. Logo outro.Viro-me e vejo duas amigas se abraçando. Agora sim, era o início do fim, fim deuma história que iniciou 13 anos atrás. Em seguida via-se um grupo junto, olhandocom caras de surpresa, de medo, de insegurança, de inocência. Eu estava entreeles. Tentava esconder os olhos vermelhos, já lacrimejados, mas era difícil. Aquelacena comovia demais meu coração. Consegui me conter. Pelo menos nessa hora.

79

Soou o sinal, era hora de voltarmos para sala. Alguns chorando, outros rindo,demais sérios. Eram os três últimos períodos. Logo, entramos em aula. Nessetempo, resolvemos relembrar todo nosso ano, esse ano, no ano 2000, éramos osformandos do último ano do século, início do novo milênio. Centenário de nossoambiente, a escola. Era o ano em que o Sévigné completava 100 anos. No início doano, caras novas, iam entrando de tempos em tempos. Até em agosto entravagente. Novos amigos? Não sei. No mínimo, seriam novas pessoas que iriamdesfrutas de nossa hospitalidade, de nossa amizade, de novos seres humanos. Foium ano de muita dificuldade para muitos, dentro dos estudos, incluindo-me entreestes. Talvez esse ano fique marcado em todos nós por termos feito das colasnossos estudos, atingindo nossos objetivos. Trapaceamos, é verdade, mas todossabiam e ninguém impediu nossa conquista. Foi um ano de muitas revelações.Pessoas que pensávamos não ser de um jeito, eram assim. Este ano, com certeza,foi o ano em que todos nós soubemos expor nossos sentimentos, explicitar essasmarcas que temos dentro de nossos corações que fazem as pessoas humanascomo são. Brigamos e nos ajudamos, colocamos tudo o que pensávamos a flor dapele, nunca hesitamos em dizer “sim” ou “não”. Mostramos ser homens e mulheresde verdade ao expor nossos pensamentos, ao dizer o que vinha na cabeça.Mostramos que, definitivamente, não éramos mais crianças. Em muitas atitudes,seremos até o fim da vida, mas em pensamento, nunca mais seremos assim. Essefoi o ano de completa união, se não entre todos, entre a grande maioria.

Soa o sinal, é o último período. Acho que todos haviam assimilado bem que era ofinal. Fim do colégio, não o fim de nossas vidas. Mais 50 minutos e seríamoscandidatos a uma vaga num vestibular. Mais uma vez, junto à janela, olho o pátio,mas não antes de olhar o céu, ver aquele azul claro maravilhoso, sem nuvens,tendência de um dia perfeito. Observando o horizonte, o que cada um de nósseriamos. Advogados, médicos, professores, administradores, economistas,artistas, biólogos, matemáticos, mas acima de tudo, homens e mulheres. No pátio,uma turma de 1º ano jogando futebol. Era aula de Educação Física. De repente, umdos garotos pela a bola, dribla 4, 5, 6 colegas e faz o gol. Queria poder ter feito isso,mas nunca tive habilidade para tal. Agora nem tempo tenho mais. Mas um dia, seDeus quiser, voltarei.

80

Entramos para o último período. A passos lentos, entramos sala adentro. Muitoscabisbaixos, outros normais, como se fosse um dia como outro qualquer, mesmosabendo que não seria assim. A professor discursa, diz o quanto foi bom trabalharconosco, ter-nos como alunos. Logo, chega a coordenadora, emocionada. Soltandolágrimas, ela fala, discursa, faz com que cada um de nós deixe escorrer seu choro.Ninguém teve vergonha, mostraram o que realmente eram: humanos. Emseguida, se ouviu o choro desesperado de uma amiga. Por traz de mim, sintoalguém me cutucar. Um amigo, chorando, sem mover os lábios, abre os braços eos envolta por detrás de mim. Encosto minha cabeça no seu ombro e chorotambém. Quando me separo dele, olho para os lados e vejo aquela multidão.Multidão de pessoas? Não. Multidão de amizade, de amor, de tristeza, de agonia,de desespero, de saudade. Era o fim. Faltavam poucos minutos. A professoradespede-se de nós, deixa-nos em sala de aula, curtindo nossos último momentos.Soa o sinal. Ficamos em aula. Passavam as pessoas, olhavam para dentro de nossasala, viam-nos abraçados, chorando, emocionados. De repente, um aplauso. Logoem seguida, outro. Assim foi indo. Quando ficamos atentos a isso, uma multidãonos olhava, alguns sorrindo, outros chorando, muitos mesclando ambas coisas.Acho que eles notaram o quanto nós éramos importantes para nós mesmos.Assim, começamos a sair. Eu ainda não havia arrumado meu material, aindadeveria fazer isso. Todos saíram. Sobraram algumas almas além de mim. Elesforam saindo, fiquei lá dentro. O último que saia, antes de desaparecerdefinitivamente, questionou-me: “Não vais?” - respondi-lhe que fosse, eu já iria.Mas não foi o que aconteceu. Sentei-me na classe, fitava os olhos em meucaderno, lembrava cada vez mais de todos os momentos em que passamos juntos.Folhava o caderno, via a matéria de biologia, as Leis de Mendel; passava pelamatemática, deparei-me com as pirâmides; passei pela química e vi a cinética;física, encontrei a queda livre; historia, achei as revoluções chinesa, cubana, quedado socialismo; português, vi uma das matérias que mais odiei, o período misto.Assim foi. Levantei-me, olhava para o quadro negro. Procurei um giz. Encontrei.Um giz branco. Não hesitei em escrever o que me veio na cabeça naquele instante:

81

“Asas da realidade

Levante-me cada vez mais e mais

Mostre-me um caminho para ser

Livre, eternamente com vocês

Acho que encontrei esse caminho

A cada dia, crescendo forte

Mas ainda há muito para dizer

Além de muito o que fazer”

Agora todos nós nos perguntamos: Realmente valeu a pena? Internem-me caso eudiga que não. Claro que valeu, e muito. Descobrimos o real sentido da vida,descobrimos que sozinhos não somos ninguém. Descobrimos que a cada dia quepassar, teremos que mostrar a nós mesmos o que somos, a que viemos, o queseremos. Agora, somos futuros universitários, primeira fase de nossas vidastermina aqui. Começaremos tudo de novo, a partir de agora. Para mim, escritordessa crônica que trouxe nossa realidade, pôde descobrir uma coisa que levareicomigo até os últimos dias: Homem que é homem chora, não prende o choro,mostra e diz com orgulho que pode fazer parte da trajetória de vida de alguém.

82

CrepúsculoI

- Ó, vê se tá bom...

- Vejamos...

Estavam os dois sentados em cadeiras de plástico, daquelas de praia, separadospor uma mesa de madeira reclinável. Ela observava-o atenta, olhando dentro deseus olhos, amedrontadamente curiosa por uma resposta que ele desferiria. Bom?Ruim? Mais ou menos? Não, é bom ou ruim! Mais ou menos, não! Mas ela apenasqueria saber o que se passava na cabeça do moço.

- Olha, meu bem, temos algumas coisa para retocar aqui... Alguns pontos, vírgulas,ortografia... Mas na questão estrutural, tá ótimo! Acima disso, teu texto temcoesão, é coerente, muito bem tecido... Segue assim!

- Capaz... Tá bom mesmo? Eu pensei que tava uma porcaria...

- Não, não... Muito bom! Mas tu deves abrir os olhos para esses errinhos aí quepodem acabar te comprometendo.

Ela estava prestes a fazer vestibular. Seria seu primeiro. O nervosismo tomaraconta dela dias antes. Pegava os livros, lia e relia, muitas vezes sem mesmoentender. Questões de biologia, geografia, espanhol, química, matemática,história, física e português. Fazia. Refazia. Fazia de novo. Acertava. Errava.Acertava. Acertava. E assim ia.

Poucos dias faltavam para o vestibular e, depois de inúmeros sábados com a ajudadele, ela já conseguia fazer redações de teor bastante interessante, de qualidadeboa, expressando sua visão perante qualquer fato. Receava apenas o tema dessaque cairia na prova.

- Bah, imagina se cai aquela maldita que eu não conseguir nem pensar direito!

- Calma, não se aquela... Vai ser uma bem simples, que tu já fizeste, que tupoderás, quem sabe, lembrar dela... Verás, não há de ser nada impossível!

- Bah, Deus te ouça... Mas se cair aquela, juro que pulo dessa sacada!

83

- Hehehe... Calma, não será necessário...

Algumas vezes, as palavras do moço soavam com tanta suavidade que elaaquietava os nervos. A idéia do concurso, de ser aprovada no curso desejado, nãosaia de forma alguma da cabeça dela. Mas era amenizada com a presença, com aspalavras, com o carinho daquele que ao seu lado ajudava. Ora paravam ecomeçavam a conversar. Ela contava sobre a filha de sua prima Elaine, a Bi. Porvezes, ficava vermelha ao demonstrar tanto carinho que sentia pela pequena.Contava de suas facetas, de suas belezas e brincadeiras, até a hora que vinham aslições:

- Mas teve uma hora que eu não agüentei mais... A guria, deitada na minha cama,com aquele tamanho mínimo, me tirava todo o cobertor! Acredita? Vou te contar...E ainda por cima reclamava quando eu puxava um pouquinho para mim... Umpouquinho! Aí acabei me indignando, fiz ela acordar e se colocar no lugar... hehehe- falou, sempre num tom irônico e descontraído.

- A Bi é a coisa mais querida... O sorrisinho que ela abre quando nos referimos aela! Muito doce...

- Ela tá aprendendo a ler sabia?

- É mesmo? - Indaga-a.

- Aham! Ela já consegue ler uns nomes, algumas placas nas ruas... Até pegou umarevistinha que eu tinha quando pequena e leu, aquela safadinha...

- Ah, que legal! Vou dar um livro para ela, então!

- Ah, não precisa se incomodar...

- Capaz, que incômodo o quê... Vai ser um prazer ver essa menininha lendo!

84

Ela abria um sorriso, fitando os olhos dele. Se conheciam há mais de dois anos.Porém, numa situação adversa foram apresentados. O modo de como se acharamtornou-se comum de uns anos para cá: internet. Alguns meses falando-se por e-mail, até o dia em que resolveram se encontrar. Sendo que ela comentava, aosdomingos, quando se falavam pelo computador: “passei aí na frente da sua casahoje”. Moravam muito próximos e nunca haviam se cruzado. Duas quadras dediferença. A melhor amiga dela era praticamente vizinha dele. Nem assim. Porém,alguma obra do destino os botou lado a lado. E, numa tarde ensolarada de quarta-feira, ambos se encontraram. O moço saiu de casa, todo arrumado e foi até a casada menina. Passara por lá muitas vezes, nunca pensou que seria o recanto da docemenina. A mãe a acompanhou até a saída do edifício, talvez para saber quem erao tal elemento que a filha iria sair. Visto quem era, concedeu à filha o direto deseguir com ele. E foram, caminhando, rumo ao shopping próximo do centro dacidade. Papo vai, papo vem, sorrisos aparecem, atenções dobradas. Chegam aolocal, percorrem sua extensão, entram numa livraria e lá buscam algo que nemeles sabiam o que era. O carinho entre os dois aumenta, até a hora em que dão-seas mãos, quando viam os cd’s. Ao saírem da loja, uma conversa séria. Umaindecisão. E um beijo. Um beijo terno, acariciado pelos lábios, nutrindo um carinhodesigual um pelo outro. No restante do tempo juntos, beijos e mais beijos. Semprecom alguma palavra.

Os dias se sucederam e, numa certa vez, uma inesperada “aula de Literatura”surgiu. Ela tinha uma prova. Ele tinha desejo. De vê-la. De ajudá-la. Mas, acima detudo, de beijá-la. A situação não permitia qualquer tipo de movimento, afinal,estavam na casa dela, debaixo dos olhos da mãe da menina. Ele conheceu o irmãoda guria naquele dia, uma figura bastante interessante, tímida, mas sempre comolhos de bom-amigo. A mãe era uma pessoa extremamente querida, dedicada,apoiadora e incentivadora de que os filhos tivessem um futuro perfeito. Nãopermitia heresias nem excesso de divertimentos: queria sim, filhos educados efeitores de grandes ações, o que os tornasse dignos de suas palavras, de seusobjetivos e de seus sonhos. E aquela primeira impressão foi a que ficou. E foi a quese comprovou no decorrer do tempo.

85

Ambos não continuaram juntos. Ele queria. Ela não. Ela tinha seus motivos que,apenas meses depois, ele viria a entender. Chorou, sonhou que seria com ela queviveria seus belos momentos. Mas tudo isso poderia vir. Um dia.

Dois anos depois, reencontraram-se. Internet foi novamente o ponto de encontro.Ela, chateada, saída de uma relação que lhe causara muito desconforto. Traída. Eleabandonara a namorada há quase oito meses, dizendo que seus gênios não maiscompetiam, que sua vivência não era mais bem vinda. Ela formara-se no colégio,vinha fazendo cursinho pré-vestibular junto com a cunhada. Ele vinha de um 5ºsemestre hesitante na faculdade, notas altas e quase certeza de um belo futuroacadêmico. Resolveram se ver. Na casa dela.

A manhã daquele dia não poderia ser mais agitada. Ele levantou-se cedo, preparoualgumas coisas que deveria levar para a faculdade, tomou banho. Perto do meio-dia estava pronto. Ela levantara-se um pouco tarde, tomou seu banho, cuidou desua face e seu cabelo. Unhas. Preparou-as. Ele ajeitou seu cabelo, apenas aopente. Ela escovou seu cabelo, colocou a roupa. Prontos. Ele sai de casa.

86

No meio tempo em que não se viram, ela mudou-se para um bairro distanciado docentro. Pouco tempo depois, devido às dificuldades que enfrentaram por aquelasbandas, regressaram. Mesmo assim, a distância entre ambos praticamente nãodiminuíra: aumentou meia quadra. Assim, em cerca de 5 minutos, ele chegou àcasa da moça. Tocou o interfone. “Quem?” - ela pergunta. “Sou eu, o Bobo” -responde. Ela diz que já iria descer. Ele fica nervoso. Alguns segundos mais e amaçaneta da porta do edifício é girada. E ela surge. “Oi, menino!” - cumprimenta,com seu encantador sorriso exalado pela face. A Gi já tinha seus 18 anos, era umamenina-moça das mais belas. Seu olhar penetrante, de preciosas pedras ocularesem um verde-castanho vivos. O cabelo longo, fino, de um brilhante castanhoescuro. O nariz cintilante, destacado pela beleza. As maçãs róseas, mais vistas dequando sorria. E o sorriso. Aquele sorriso lindo de outrora estava cada vez maislindo. A boca de carne massuda, de dentes alvos, numa mescla que só poderiaresultar num sorriso como aquele. Havia ela atingido o auge da beleza femininaaos 18 anos de idade? Com certeza não. Prolongar-se-ia por uma centena demilhares de anos-luz, ou o tempo de sua sobrevivência. Ela convida-o para entrar esobem até seu apartamento.

Gi observa os passos do amigo. A calça escura em contraste com o sapato bege. Amagreza que lhe era comum não mudara. A delicadeza pela qual a tratavatambém. O cabelo castanho-negro um tanto compridos, os olhos expressivos, deum castanho-mel pouco visto. Um projeto de barba que lhe nascia pelasentranhas. A camisa verde que destacava como estava fisicamente. Bem, parecia.Numa mão, a pasta em que levava seu material para a faculdade. Na outra, um talbônus que ele conseguiu para que ela se inscrevesse no vestibular da faculdadeque estudava com bom desconto. Ela aceitou e, dias depois, se inscreveu lá.

87

Aquele dia foi bastante interessante. Puderam se observar, num jogo óptico devalor desconhecido. Buscavam na face, nas mãos, nos braços, as formas disformesde tempos atrás. Porém, acima disso, puderam comprovar algo que, naquelemomento, parecia não importar: ambos haviam crescido. Bobo passou porsituações importantes para sua vida. Ela também. Pelo pouco tempo que tiveram,puderam ao menos observar-se. E já valeu muito. Combinaram de se ver no finalde semana, para que o garoto a ajudasse com redação pro vestibular. E assim foi,nos finais de semana que se sucederam:

- Vi um livro, lá na Feira de Canoas, que - acho - a Bi vai gostar! - comenta Bobo.

- Hmmm... Que bom!

- Vou ver se compro semana que vem, pois quero encontrar algumas coisas paramim, também...

- Tá certo... - e sorria.

Logo, a mãe chama:

- Vocês não querem tomar um café? Está servido!

II

Sentados à mesa, põem-se a servir. Café, chá, refrigerante, pão, bolo, bolachas,manteiga, doces, tudo com suas variações. A sala cheia. Ou melhor, a mesa.

Seu Cacá sentou-se na ponta. O patriarca da família era um homem grisalho, desorriso sempre colado ao rosto. Dona Vevê questionava:

- Não conhecias o Cacá, né, Bobo?

- Não, não...

- Pois é... Quando morávamos lá na outra rua, tu nos visitaste e não se pechoucom o meu velho...

- Pois é... Mas cá estamos nos conhecendo! Hehehe - replica, sorrindo.

- É... Uma hora tinha de ser! Hehehe

88

- Bom, mas meu irmão tu já conhecia... E a Terezinha não... - fala Gi, apontandopara cunhada.

- É verdade... Mas que bom que sempre há tempo de poder conhecer todo mundo!

- Concordo - fala Seu Cacá - ainda mais quando sabemos que é gente de bem, quenão tem intenções maléficas, não concordas?

- Claro... - responde Bobo.

- Mas ai... Esse vestibular tá nos matando, né, Gi? Eu to que não agüento maispegar nos livros... - fala Terezinha.

- É - responde a cunhada - também ando muito cansada... Ainda bem que faltapouco tempo para fazer esta prova, ir bem, passar, comemorar... hehehe

- Vocês vão passar, sim... E comemorar também! Ou o Bobo tá vindo aqui à toapara ajudar com redações, Gi? - questiona ironicamente a matriarca.

- Claro, né... E tá ajudando sim! - fala, olhando para Bobo, tendo este respondidoapenas com um sorriso e um olhar bem na pupila da amiga.

- Só não inventem de ficar nervosas no dia da prova, hein? Isso vai estragar vocês. -relembra o irmão, o Fê.

- Ah, nem inventa! Nem me fala nisso que já vou ter que levar comprimidoscomigo! - releva Gi.

- E o Gardenal também... hehehehe

- Ah, abobado!

E todos riem. Naquela mesa, o que não transparecia de modo algum erainfelicidade. Todos bem, dispostos, sempre querendo lutar pelos objetivospretendidos. Cada um com o seu. A Gi queria ingressar para faculdade deFisioterapia; A Terezinha, para de Nutrição. O Fê trabalhava e estudavaEngenharia, queria manter-se e poder aumentar sua poupança. Dona Vevê, donade casa, e Seu Cacá, chefe de manutenção de um hospital conceituado da cidade,queriam poder administrar a família e viver bem. Já o Bobo, esse queria se formar,entrar em curso de pós-graduação.

89

Enquanto o lanche da tarde caminhava para seu final, Dona Vevê lança uma idéiana mesa:

- Se vocês realmente forem aprovadas no concurso (que Deus queira isso), achoque vocês poderiam sair para fazer uma festa, descansar um pouco, abandonar aidéia de ficar estudando toda hora, todo tempo... Vocês têm que se divertir umpouco!

- Hmmmm... Gostei da idéia! - disse Gi, sabendo que é difícil a mãe mencionar taispalavras.

- Tu as acompanharias, Bobo? - pergunta a mãe.

- Claro... Será um prazer!

- Então, estando vocês aprovadas, poderão festejar!

- Aeee, mãe! - vibra a doce filha.

Ficara acertado. No fim de semana posterior ao da prova do vestibular (ou aindano próximo), comemorariam. A essa altura, Bobo já era considerado por DonaVevê como um tipo de membro da família. Ele achava essa idéia um tantoestranha, tendo em vista que era amigo da Gi, até então. Mais tarde, o tempo lhemostraria que muito ainda iria acontecer, e que essa idéia não mais seria errônea.

III

Vestibular. Domingo de manhã todos acordam. Dona Vevê prepara o café. Asgurias já estavam acordadas, mas ainda deitadas. Seu Cacá chama-as para tomarum banho, acordar definitivamente. Terezinha se joga ao banheiro e lá fica por uns30 minutos. Nesse meio tempo, Gi ajuda a mãe a colocar a mesa. Terezinha sai, oscabelos encaracolados umedecidos, traja-se. Entra a cunhada, que fica por umcerto tempo. Logo sai ela, direto para o quarto, onde escolhe sua roupa e se veste.Sentam-se todos a mesa, com o Fê recém levantando, e tomam o alimentomatinal. Não tocam no assunto da prova. Terezinha treme com a xícara na mão. Giainda estava um tanto abatida pela noite pensativa. O café reforçado chega aofinal quando são 11h. Então, às 11h15, o interfone soa:

90

- Oi, sou eu, Bobo!

- Peraí que to abrindo a porta para ti! - fala Seu Cacá.

O homem desce a passos largos, abre a porta, e sobem os dois. EncontraTerezinha praticamente pronta para a saída; Dona Vevê de casaco, falando todahora que enviaria energias positivas, que oraria por elas, ajudaria de todas asformas alcançáveis. Sai Gi, sorridente, mas nervosa. Quando Dona Vevê seaproxima da filha e lhe deseja sorte, a guria destina em choro. Emoção. Muitonervosismo. O irmão relembra do Gardenal, Lexotan, água de Melissa, tudo que étipo de calmante. Deixa-a mais nervosa. Manda-o para todos os lugares possíveis.Relaxa, seca as lágrimas e saem. Saem rumo ao destino vitalício daquelemomento.

Caminham até a estação de trem, pegam-no e seguem. Durante o caminho,conversam, riem. Gi, Terezinha, Seu Cacá e Bobo. Os quatro rumo à prova. SeuCacá acompanhando as meninas vestibulandas. Bobo trabalharia como fiscal desala. Entreolham-se toda hora. Entram pessoas no trem. Mais gente que prestariavestibular. Só de pensar nisso, a agonia tomava conta da mente de Gi. Terezinhaapenas olhava pela janela. Logo, chegam à estação desejada. Chegam muitopróximos do local da prova. E lá já estavam. Bobo despede-se dos três, desejandosorte às meninas. Mais alguns minutos e a prova começaria.

Soa o primeiro sinal. Gi e Terezinha em sala de aula. Bobo trabalhando. Cada umem uma sala. E começa o vestibular.

91

As gurias respondendo as questões. O guri cuidando da prova. Ela pensava se eleviu qual era o tema da redação. Sorrindo. Num momento de completa calmaria nasala, Bobo resolve ver qual foi o tema da dissertação. E viu. Sorriu. Daria tudocerto para ela. Era um dos temas pela qual ela havia se saído bem com ele.Começou a contar o tempo, esperar os minutos passarem. E passaram. Rápidos.Uma prova de vestibular, para quem trabalha, parecia rápida. Eram 18h30 quandoa última candidata de sua sala lhe entrega a prova. Neste mesmo instante, Gi dáum toque no celular do garoto, que conclui suas atividades e vai ao seu encontro.Ela dizia que estava no bar. Ele vai em direção a um bar, mas no decorrer docaminho encontra Terezinha, que diz que é noutro bar em que estavam Seu Cacá eela. Um tanto vermelho, dá meia volta e acompanha a outra menina. Encontram-se. Gi demonstra estar feliz, sonhando ter feito uma boa prova. É o que dizTerezinha também. Seu Cacá, satisfeito, paga um lanche às meninas. Bobo nãoaceita, diz que usaria seu dinheiro. Comem por lá mesmo, conversando sobre aprova.

- Viu só, Bobo, caiu aquela redação que tu achaste legal!

- É, eu vi quando estava lá em cima... Te falei que não seria um tema muitocomplicado? Hehehe

- É... Mas ai, como eu iria saber que cairia justo esse, né? Hehehe

- Hehehe... É... Mas eu te dizia que não precisavas te preocupar, que independentedo tema te sairias bem...

- É... Isso é...

Logo, regressam à casa em que Dona Vevê esperava, ansiosa.

No caminho de volta para lá, soa um sinal. Eram 19h30. O gabarito da prova estavaliberado para ser visto. Bobo avisa Gi, que diz que seria a primeira coisa a verquando chegasse em casa. Exaustos, a conversa no caminho fora diminuída,abatida. Em breve saberiam o resultado que chegaram.

Abrem a porta. Chegaram. Dona Vevê querendo saber como a filha foi. Terezinhavai direto falar com o namorado, dizer mais de seu cansaço do que da prova. Emseguida, Gi chama Bobo para verem o resultado do vestibular:

- Eu vou te dizendo as questões e as letras. Anota, tá? - diz Gi.

92

- Pode começar! A caneta tá meio falha, mas tudo bem... hehehe

- Hehehe... Tá legal... Olha... 1, C; 2, E; 3, C; 4, A;...

E contou tudo. Viu e reviu. Contou os pontos. Pouco. Baixa pontuação. Gi ficanervosa. Não acredita no que vê:

- Sabe quantas eu acertei em Biologia? Duas! E em química? Duas! Ai, Bobo, assimeu não vou conseguir passar...

- Te acalma, primeiro; depois, tu não sabes como a maioria do pessoal dessevestibular foi... Há muita gente que consegue ir pior do que imaginamos! Tu estáste colocando como a última, né?

- É...

- Mas tu não és a última... Não serás a primeira também, mas isso não quer dizerque esse resultado não lhe assegure um lugar na faculdade... Eram oito questõesem cada prova... Algumas tu ficaste perto do máximo! Pense nisso!

- Mas Bobo, o que mais importa para entrar em cursos como o que quero ébiologia, química, português... Só em português dá para dizer que fuirazoavelmente bem...

- Eu sei, minha querida, mas não podes apenas pensar que estás mal...

De repente, Dona Vevê surge no quarto:

- Gente, vamos parar de pensar um pouquinho nessa prova... Preparei umlanchinho para nós... Vem, Gi; vem, Bobo... Vamos...

- Vamos, Gi? - questiona Bobo.

- Ah, espera aí... - fala a menina, com a cabeça entre as mãos.

Bobo levanta-se da cadeira em que estava, aproxima-se e senta ao lado de Gi,sobre a cama.

93

- Não adianta ficares com esse teu rostinho... Apenas despurifica tua beleza... Aprova agora já passou e tu tens que pensar adiante... É aguardar o resultado... -fala ele e, de súbito, dá-lhe um beijo na sua maçã. Ele levanta, estende a mão e diz:- Vamos?

- Vamos...

Ela levanta, mesmo com o rosto fechado. Os lábios apertados, intenção de choro.Mas resiste. É forte a menina. E vão os dois para a sala, onde comem mais umpouco. Em seguida, Bobo vai para casa, sentindo que a situação de Gi era umpouco complicada, mas confiante de que ainda poderia dar tudo certo.

IV

A semana posterior foi cheia de telefonemas. Era Gi ligando para Bobo; Boboligando para Gi. Muitas dúvidas circulavam a cabeça da menina. Bobo ajudava domodo que podia. Trabalhando dentro da Instituição, poderia saber de algo maispara colaborar com a amiga. Um dia antes de ser divulgado o listão dos aprovados,ela liga para o cara e questiona:

- E aí, Bobo, já descobriu como a Terezinha e eu fomos?

- Bah, ainda não consegui nada, meu bem... Eu to abrindo a página da faculdadetoda hora, mas só mostra que será divulgado em breve o resultado... Já to maisnervoso que tu! Hehehe

- Hehehe... Capaz! Tu não imaginas o tremelico que eu to tendo toda hora... Nãoagüento mais, eu quero saber se vou ser tua coleguinha a partir do próximosemestre...

- To torcendo muito por ti, tu sabes... Mas vamos aguardar mais um pouco, derepente, já saberemos o resultado!

- Tá certo... Me desculpa te atrapalhar, viu?

- Capaz, nunca é incômodo falar contigo... - diz, suavemente, Bobo, que desliga otelefone.

94

Aquele dia foi bem assim. Sentado na frente do computador, trabalhando em cimado que o chefe exigia, Bobo dividia o tempo entre o trabalho pedido, as conversascom os colegas de sala e a página da faculdade. Toda hora era atualizada, masnunca com os resultados do vestibular. Imaginava Gi, esperando pela hora em queveria seu resultado, sua aprovação. Mas pensava no contrário também, nadesilusão da menina, como ela se sentiria frente ao resultado. Preferia sercomedido, não exaltar-se. Então, toda vez que ela ligava, a resposta sucediasempre igual: “calma, vamos aguardar o listão”. Ela sempre pensando no queacontecera para ir mal na prova. Pensava, matutava, falava, mas não chegava àconclusão alguma. Queria ver a lista, apenas. Deixou de pensar nisso e sonhavacom a lista, ver seu nome lá, ser uma aluna universitária. Mas os minutos nãocolaboravam, nem as horas, quanto menos os dias. Olha o telefone. Já ligou paraele hoje. Já pensa que o incomodaria. Prefere não ligar.

Já é noite. Cerca de 23h. O celular da menina toca:

- Oi, Gi, sou eu!

- Oi, Bobo! Novidades?

- Nenhuma, meu bem... Liguei para te dizer que vou ficar atento aqui em casa, quequalquer coisa eu te ligo, ok?

- Tá certo... Pode ligar qualquer hora!

- Certo... Mas não quero te incomodar, se tu fores dormir, nem ligo...

- Não ouse! Hehehe Liga sim, quero saber de tudo!

- Hehehe Então tá... Vou entrar lá e ver o que tá dando...

- Obrigada, Bobo... Tens sido maravilhoso...

- Nada que eu não pudesse fazer por ti, né, Gi? Tenhas bons sonhos...

- Você também... Até mais...

- Até...

95

Desligam. Tomada pelo sono e pelo sonho, Gi se deita. O celular ligado. Esperapela ligação do moço dos olhos castanho-mel. O tempo vai passando e nada deligação. Quando chega pelas 00h30, o celular toca novamente:

- Gi, desculpa ligar essa hora...

- Capaz, Bobo...

- Mas é para te dizer que não saiu mesmo... Da outra vez, os caras penduraram alista de madrugada, mas agora não tem nada lá... Acho que só amanhã mesmo!

- Tudo bem...

- Te acordei, Gi?

- Não, não... Mas eu to com sono mesmo...

- Então vou te deixar dormir... Amanhã a gente se fala sobre essa coisarada aí dafaculdade... hehehe

- Hehehe... Tá ótimo...

- Boa noite, Gi! Durma bem!

- Boa noite, Bobo...

E desligam novamente. A moça desliga seu telefone e deita-se, agora para dormir.Ele ainda tenta mais algum tempo, mas não obtém sucesso no site. Logo, dormetambém.

O dia raia belo na manhã seguinte e, quando eram cerca de 10h, Bobo resolveverificar se nada havia mudado. E nenhuma mudança. Nem ele agüentava maisaquela indefinição sobre os aprovados no vestibular. Ligou para Gi e perguntou sehavia saído alguma coisa no jornal, já que ele não era mais assinante há algumtempo. Ela respondeu que não. Então, Bobo resolve ligar para a faculdade edescobre que a lista de aprovados sairia dentro de duas horas. Liga novamentepara a menina e esta dá um pulo de nervosismo, agradecendo pela notícia.

Quando Bobo preparava-se para almoçar, recebe um telefonema. Era Gi,naturalmente. E ela questiona:

96

- Tenho uma notícia boa para te dar! Queres saber?

- Claro!

- Fiquei na lista de suplência da Fisioterapia!

- Olha, que bom... Para quem pensava que tinha feito uma péssima prova, já foium resultado significativo, hein?

- Pois é... A Terezinha também ficou de suplente!

- Que beleza! Agora vamos ver se vocês vão ser chamadas pras vagas!

- É... Será que vamos ser, Bobo?

- Olha, não sei... Tudo depende das pessoas que se inscreverem pras vagas, entreos aprovados...

- Ai, Bobo... Mas eu posso ter esperança?

- Deves ter sempre! Confie que serás chamada! Tenho certeza!

- Não vais dizer para esperarmos a lista de novo? Hehehe

- Vou... hehehe Esperemos a lista dos suplentes que serão chamados!

- Hmmm... Tá certo... Mais um tempinho de nervosismo, então... hehehe

- É, terá de ser... Mas logo passa, vais ver...

- É mesmo...

- Bom, vou para o trabalho... Qualquer coisa te avisarei sobre as matrículas, tá?

- Tá bom... Não esquece de me ligar!

- Ok... Ótimo dia para ti, querida! Nos falamos! Um beijo!

- Outro, Bobo... Até mais!

E foi-se. Passaram-se dois dias em que apenas trocaram alguns toques no celular.Um sempre pensando no outro, em que faria no dia seguinte.

97

Veio o dia das matrículas. Bobo havia sido dispensado do trabalho justamente nodia em que falou pela última vez com Gi. Ganhara férias. Voltou à faculdade parabuscar o dinheiro extra por ter trabalhado no dia da prova do concurso. Assim, foibuscar algumas informações. Como já estava terminando o período dasmatrículas, Bobo foi até o setor de apoio da faculdade saber alguma coisa. Lá,falou com uma das funcionárias, que disse não ter a informação, mas que avisariaassim que soubesse o número de vagas que sobraram, afinal, eles tinham acesso atais informações. Bobo foi para casa descansado, sabendo que algo teria aindahoje para dizer à doce menina. Até que, por volta das 20h, soube tudo: sobraram10 vagas no curso de Fisioterapia. A Gi era a 12ª da lista. Tensão. Apreensão. Ligarou não ligar? Ligou.

- Gi, tenho notícias!

- Ai, fala! Soubeste algo?

- Aham... Sobraram 10 vagas para Fisioterapia!

- Capaz!

- Sério!

- Ah, meu Deus! Será que eu to dentro?

- É só aguardar o listão... Mas já dá para dizer que sim!

- Ah, Bobo, nem me fala... Eu não agüento mais esperar listas!

- Calma, será a última... Tu estás praticamente dentro!

- Que bom, Bobo, que bom! To muito feliz!

- E é para estar, afinal, agora és uma universitária, uma menina de gabarito...hehehe

- Aiiiii... hehehe E tu sabes como a Terezinha foi?

- Bah, nem acabei procurando... Fiquei entretido procurando informações para tique nem lembrei dela! Mas eu tava achando a situação dela meio difícil, né...Afinal, a posição dela ficou bem baixa... Mas vamos todos esperar a lista, deve sairentre amanhã e depois, daí saberemos se vão as duas ou se vai só tu...

- Tá legal, Bobo... Adorei a notícia!

98

- Capaz... Competência sua!

- Hehehe Tá bom... A gente se fala logo mais, então?

- Claro!!

- Boa noite, Bobo! Beijo!

- Outro, Gi!

E, na internet, passaram uma parte da noite trocando mensagens, discutindosobre as possibilidades do que poderia acontecer. No dia seguinte, saiu a lista.Ambas estavam sendo chamadas, Gi e Terezinha. Felicidade geral na residência doSeu Cacá. Foi apenas esperar o fim de semana passar e, na segunda-feira, foramse inscrever. Bobo foi convidado para acompanhá-las e foi. Acompanhou asmeninas em todos os momentos. Passou na casa delas, foram até a estação, puraalegria. Chegaram à faculdade, eram apenas sorrisos. Dia chuvoso. Mas nem achuva estragou a felicidade estampada no rosto de Gi, que olhava para cima eagradecia a alguém por tudo aquilo ter acontecido e tê-la tornado acadêmica deFisioterapia.

V

A calmaria voltara à residência onde morava aquela família. Fê ia para seu trabalhocalmo, como sempre. Seu Cacá ganhara férias e ficava em casa, ajudando suaesposa no que precisasse. Momentos de lazer não faltavam para os dois.Caminhadas no parque, um bom filme juntos, suas leituras. E as gurias felizes davida. Até a pasta de cada curso elas haviam ganhado. E o Bobo estava lá no dia emque adquiriram suas ilustrações de passaporte de curso. Sempre ele.

Nos dias subseqüentes, já saiam um pouco da história do vestibular; entravam nahistória das aulas. Mas isso ficou para segundo plano, tendo em vista que aindatinham cerca de dez dias de férias. Papo ia, papo vinha, e uma lembrança lhesocorreu:

- Agora é hora de comemorar, né, Gi? - lembra o menino do cabelo negro.

99

- Pois é... Eu até tenho que ver com a mãe isso... Tu lembras que ela prometeu, né?

- Claro, foi durante o café... hehehe

- Café que tu nem perde, né...

- Pois é... hehehe

- Mas eu vou ver com ela... A gente vai ir lá naquela boate mesmo?

- Claro! A não ser que tu queiras ir a outro lugar... Até há lugares melhores, masbem mais caros também...

- Melhor irmos lá mesmo! Hehehe

- Tá certo... hehehe

No outro dia, Gi teve com Dona Vevê. Veementemente, a mãe negou-lhe a saída.Gi relembrou o fato dela ter dito que deixaria ir. “O Bobo vai?” - questiona Vevê. Giafirma positivamente, o que tranqüiliza a mãe, mas que mesmo assim ainda nega-lhe o pedido. A menina apenas pensa que teria que conseguir a ajuda do amigopara comemorar a aprovação. Então, no dia seguinte, Bobo recebe o telefonemada amiga, e diz que falaria com a mãe da bela moçoila. E o fez.

No sábado, dia da festa, Bobo foi à casa de Gi. Conversavam sobre o dia anteriordo garoto, que havia sido um tanto desprazeroso, devido à noite fracassada comos amigos. Foram até uma festa e depararam-se apenas com homens na fila.Saíram de lá e foram a um bar, dos mais conceituados da noite da cidade. Vazio.Resolveram tomar seus rumos para o centro da cidade, onde comeriam um xis eiriam para casa. Fizeram assim, com um certo desgosto.

Gi conta para Bobo a reação da mãe e diz que também deveria falar com seu pai.O cara não vê problemas e aguarda a chegada da mãe dela. Tempos depois, DonaVevê e Terezinha chegam juntas, após uma caminhada na rua. Terezinha seaproxima, conversa com os dois, longo tempo. Em seguida, chega a hora doesperado café. A hora das tratativas.

Todos à mesa. Todos servidos. Dona Vevê tomando seu café e falando:

100

- A Bibi tá uma gracinha... Caiu um dentinho da frente! Tens que ver que coisa maislinda, minha filha...

- Ah, mãe... Ela deve tá muito fofa! Ainda nem vi, mas já to achando isso! Hehehe

- Mas ela tá sim... A mãe dela até já guardou o dentinho de lente dela!

- Bah, isso me faz lembrar dos meus dentes de leite... - recorda Bobo.

- Tens guardados? - diz Terezinha.

- Aham... A mãe colocou num tipo de bauzinho, perto de algumas outras coisas decriança...

- Bah, to meio sem fome... - fala Gi.

Então, aproveitando a deixa da amiga, Bobo resolve dar uma indireta para a mãeda menina:

- Mas se tu quiseres sair hoje, tens que estar bem alimentada!

Gi olha para o amigo com um misto de surpresa e comemoração. Um sorrisotímido lhe cobre os lábios quando a mãe questiona:

- Vais sair hoje, Gi?

- Não sei...

- Tu queres sair?

- Querer eu quero!

- Tu vais, Bobo?

- Claro... Fazer companhia para tua filhota...

- Bom, já que tu vais... Fico mais segura... Sabe como é, essa gurizada bebe, fuma,se droga... Tu eu sei que não és disso... E sabe, eu não me preocupo pelo que a Gipode fazer, mas pelo que podem fazer com ela, entende?

- Claro, Dona Vevê... Não te preocupa que não vou tirar os olhos da tua filha!

101

O sorriso reluzente já estampava o rosto da menina.

- Mas ainda deves falar com teu pai, minha filha.

- Sim, mãe... Aliás, acho que ele tá chegando...

E a porta bate. Era Seu Cacá, chegando do supermercado. Assim que ele larga osmantimentos na cozinha e chega à sala, Dona Vevê introduz:

- Bom, Cacá, tu sabes que eu não sou uma pessoa de enrolar muito, né? Entãovamos direto ao assunto para ver o que temos de fazer: sua filha, Gi, quer sair hojee vai acompanhada do Bobo. Permites?

Seu Cacá, sempre de sorriso estampado, talvez um tanto receoso, apenas grunhe.“Hmmm” para cá; “hmmm” para lá. Ele vai até a cozinha. Dona Vevê dá umaespetadinha:

- Queres ver como voltará com a faca da cozinha? Hehehe

- Ah, não... Se ele vier de faca, eu levo o pote de biscoitos comigo! - ironiza Bobo.

- Hahaha... Nem esquenta, o Cacá não é violento.

E ele volta com a faca.

- Qual era o problema mesmo? - pergunta Cacá, direcionando os olhos para Bobo.

- Cacá - começa Dona Vevê, novamente - os jovens querem sair... Acho que com oBobo não há problema, afinal, sabemos que ele não faz nada demais na noite, éalguém de bem... Não há motivos para que não saiam juntos.

- Se é assim... Também acho que não há problema!

Gi sorri. Deu tudo certo. Ela e Bobo se olham. Objetivo cumprido. Agora eracomemorar a noite, que recém iniciara. Num guardanapo, a pedido de Gi, Boboescreve qualquer coisa. E logo ela lê: “Viu só? Te falei que sairíamos hoje! Agora écomemorar!” - Terminam de tomar o café e começam a combinar como fariam:

102

- Ah, Bobo, vamos de ônibus, né? É aqui pertinho, não tem necessidade de pegarum táxi...

- Concordo, ainda mais que para ali pertinho...

- E que horas tu passas aqui?

- Acho que pelas 23h... Acho que tá bom, né?

- Ótimo... Tens convites?

- Tenho sim, aqueles que tu me deste da outra vez...

- Então tá... Vais precisar pros teus amigos?

- Talvez, ainda tenho que ver quais deles vão... De repente, é capaz de elesquererem ir a outro lugar...

- Ah, não tem problema! As gurias do cursinho estarão lá!

- Opa, ficaremos em grupo, então...

- Isso aí! Acho que sair em grupo é melhor, menos motivo para confusão...

- É, tudo depende do grupo... Não adianta um grupinho de marginais ou de boysmetidos à gente querendo briga unicamente, né...

- Hehehe... Com certeza!

- Vou para casa... Me arrumar, tomar aquele banho, botar um perfume...

- Hmmm... Vai à caça, é?

- Não, não... hehehe Tu sabes que não gosto desse tipo de busca...

- É, eu também... Também sabes... - afirma a menina, com um doce olharpenetrando pelo globo de Bobo.

- Bom, vou lá, então... Às 23h to passando aqui! Esteja pronta! Não dá uma denoiva, viu? Hehehe

- Hehehe... Pode deixar! Até mais!

- Até...

103

E abraçam-se na despedida. Um abraço com aquele sabor especial de umapequena conquista. Uma conquista pífia, talvez, mas que os colocaria juntosdurante aquela noite, uma noite fria de inverno, mas quente na balada.

VI

Eram 23h. O interfone da casa de Gi toca. Bobo a esperava. Ela descia pelasescadas, acompanhada pela mãe. Ouve-se o ploc-ploc dos sapatos de saltobatendo o chão. De súbito, a porta é aberta. Dona Vevê divulga:

- Bobo, te apresento a Gi.

E ela vem. Linda. Muitíssimo bela. A jeans marinha, o sapato alto preto, o casacovermelho com suas mãos no bolso. A maquilagem leve, sem exagero. O sorrisosaindo pelo rosto.

- Vamos? - questiona Gi.

- Vamos! - abobado, ele responde.

Caminham até o ponto de ônibus, conversando:

- Tu acreditas que todos os guris desistiram? Todos! Não vai ter uma alma vivaconhecida lá dentro... hehehe

- Bah! Legais esses teus amigos, hein?

- Ah, muito queridos... Como sempre... hehehe

- Hehehe... A Terezinha ficou se amarrando lá em casa... Provava roupa, nãogostava, dizia não ter o que vestir para ir a festa! Oras, que exagero! Nem precisade tanto... Daí o Fê disse: “Combinou com ele? Então vai, se não tu te atrasa!”.

- É, a Terezinha não tava com uma cara de quem queria dançar hoje... hehehe

- É, depois percebi... hehehe Mas vamos ver, as gurias do cursinho são paraestarem lá! O problema é que liguei para algumas e não consegui falar comnenhuma...

104

- Ah, não dá nada. Se formos apenas nós, aproveitaremos igual! Vais ver!

- Isso aí!

Entraram dentro do coletivo e foram para festa. Lá chegando, uma família enormepara a entrada principal. Mas os convites que tinham lhe dava acesso VIP. Forampara a segunda fila, questionaram o segurança sobre a validação do convite e elepermitiu que passassem. Entraram no local, pegaram suas consumações epartiram para dança. Cerca de 23h30.

Após terem largado seus casacos na chapelaria, foram conhecer o ambiente. Umlugar arejado, meio escuro dentro, mas com uma parte externa cheia de cadeiras emesas. Preferiram ficar lá dentro por causa do vento. Começaram a dançar.

O local enchia. Liberaram o mezanino, pista de música dance. Muita gente. E eleslá, na pista de dança, curtindo a banda que tocava. Toda hora eram batidos ouempurrados, pois ficaram num lugarzinho um tanto indigesto. Bobo não podia semexer: de um lado, a Gi; doutro, uma menina dançando espaçosamente, bêbada;na frente, um casal se beijando calorosamente; atrás, um segurança de braçoscruzados observando o que se passava. Gi estava um pouco mais folgada, com ummínimo de espaço. Quando o problema apertou muito, ela quis subir para pista dooutro estilo. E foram.

105

Chegaram lá, uma parte não muito grande, no segundo andar da casa noturna.Mas a música penetrava pelas entranhas e sentia-se a batida no coração dos dois.Ficaram no meio da pista, dançando. Três horas e meia ininterruptas. Todo tipo desom, dentro do estilo. Coreografavam, dançavam. Ora se olhavam, ora desviavam.Bobo dançava gesticulando muito, um tanto engraçado. Gi dançava à maneiraclássica da noite, balançando todos os ossos, sorrindo, cantando. Olhavam para oslados e sempre viam uma cena funesta. Num dado momento, dançavam felizesquando entra na pista um cara, capengando, completamente embriagado. O olharperdido, fixo numa posição que não observava, as pernas bambas. Uma hora,pára, inclina a cabeça e apoia-a na parede à esquerda dos dois. “Ele vai chamar oHugo!” - afirmava Gi ao Bobo, que só observava o cara. Fazia sinal de negativo,mostrando que nada havia acontecido ainda. E realmente não aconteceu. Oelemento foi encaminhado pelos seguranças, pedindo para que descesse. Riam. Gisó pensava no motivo que fazia esse tipo de cara beber tanto. E Bobo não tirava osolhos da face da menina. Sua beleza cintilava dançando, resplandecia a auranatural e constante daquela que tinha os olhos castanhos esverdeados. Pensouem dar-lhe um beijo. Preferiu o silêncio. Pensou em dançar mais próximo. Preferiudeixá-la à vontade. Pensou muito na felicidade daquele momento.

Desceram novamente. Já eram 4h30. Ao som do pagode, Gi perguntou se ele sabiadançar a dois. Ele disse que aprenderia agora. Chegando na pista, Gi desce oprimeiro degrau e, quando vai descer o segundo, pega na mão de Bobo. Eleapenas sorri, mas não faz nada. Apenas retribui. Gi quase cai ao descer mais umdegrau, apertando ainda mais a mão do tímido menino. Estão na pista. Ecomeçam:

- Assim ó, agora tu vais dois passos para direita e dois para esquerda, ok?

- Vamos lá!

E começaram. Parecia que não iriam engrenar, mas foi apenas o começo. Logo,ambos se adaptam ao passo do outro. Entrosam-se. Dançam mais próximos.Sentem o cheiro, um do outro. A cabeça deles fica por poucos segundos colada,lado a lado. Muda a música. E eles continuam:

106

- Bah, tu não sabias dançar mesmo? - pergunta Gi.

- Pior que não!

- Tu tá ótimo!

- É a minha instrutora que me deixa bem...

Ambos riem. Dançam, dançam. Dançam muito. Até a hora que ela cansa. Ele, numpé que é um leque, querendo continuar, mas ela prefere encostar-se no balcão dobar e dar um tempo. Dançam uma música mais, mas os pés da menina nãoestavam mais suportando os sapatos. Bolhas, bolhas e mais bolhas. Mas ela nãodiz.

Bobo pede uma garrafa d’água para os dois. Bebem, saboreiam a primeira bebidada noite, passando às 5h. O canudo o mesmo, ambos tomando no mesmo.Conversavam, riam, acontecimentos da festa em pauta. Uma hora, a mão de Bobovai pegar a garrafa. E a mão de Gi não a solta. Bobo põe sua mão sobre a de Gi,que não reage. Frações de segundo passam e ela move os dedos. Bobo também.Os dedos se pegam por alguns instantes. Eles pareciam fazer o que a menina e omenino não pensavam para aquela noite. Talvez fosse um prelúdio para uma dataposterior. Um dia eles saberiam.

Quando eram 6h, decidiram ir embora. A festa foi muito boa. Pegaram seuscasacos. Bobo pagou as consumações. Ela pagaria o táxi. Dirigiram-se para casa.Congelantes de frio.

Ao chegarem na rua de Gi, o táxi pára. A menina paga o valor e saem doautomóvel. Bobo resolve acompanhá-la até a porta de casa. Prevenção. Lá,chegando, despedem-se:

- Ah, Bobo, adorei a noite... Obrigada pela companhia!

- Capaz, eu quem tenho de agradecer... Não te falei que sairias comigo hoje?

- É verdade... Adorei o lugar, a companhia...

- Eu também... E adorei teres me ensinado a dançar a dois...

- Tu danças muito bem...

107

- Competência é toda tua...

Abraçam-se. Gi entra no edifício. Bobo vai para casa. Ela sorrindo. Ele também.

VII

A relação dos dois jovens estava consolidada. Era um carinho imenso. Ligavam-se,prestavam-se favores. Riam. Riam-se. Conversavam muitas vezes por semana. Porsemanas. Por tempos. Dona Vevê sempre dizia para que ele aparecesse por lá. Giabria sorrisos sempre. Uma ou outra vez, ela evitou que ele aparecesse, talvezpara preservá-lo. Talvez para preservá-la. Ou, ainda, preservá-los.

Enfim, começaram as aulas. Gi, acompanhada do pai, foi nervosa ao primeiro dia.Na semana anterior, as aulas e o trabalho de Bobo já haviam reiniciado. Ela estavase apaixonando pelo curso. E sentindo algo especial, que não havia sentido antes.Bobo estava sempre presente, conversando, falando bobagens, até pedindoempréstimos de livros para a menina-moça. O laço entre eles cada vez mais seestreitava, mais tênue ficava. Ele até deu um cartão à ela, nesses tempos. Elaretribuiu com seu esplendoroso sorriso. Leu o cartão, tendo este já ido embora.Sorri ainda mais. Pensa em ligar para ele, mas já estaria no trabalho, deixa paraoutra hora. E a vida dos dois continuou, seguiu firme.

Numa tarde de sábado, já na primavera, Bobo vai à casa de Gi. Conversam por umbom tempo. Vêem uma fita, que seu pai alugara. Sentados no mesmo sofá,juntinhos. Riem do filme. Riem do que falam. Riem de si. E o tempo vai passando.Quando chega perto das 17h, Bobo indaga:

- Bah, não tá afim de dá uma saída?

- Onde tu pensas em ir?

- Quem sabe a gente vai lá pros lados do rio? Nessa hora é bem cheio...

- É... Boa idéia!

- Até não sei se há alguma exposição em andamento por lá... Seria interessantever, faz um tempão que não vou numa!

108

- Ah, isso... Tu adoras, né?

- Com certeza! Cultura, né...

- Menino aculturado...

- Hehehe... Um pouquinho só!

- Hehehe... Vou me arrumar!

- Te espero...

Gi foi até seu quarto e trajou-se. Logo, aparece na sala e vão juntos à porta. Elaabre. Ele passa, observando-a, ela retribuindo. Descem as escadas e vão para oseu rumo.

Pelo caminho, observam o céu. Ainda não escurecera, era fim da tarde. As árvoresda rua eram batidas pelo vento, ressoando seu canto de beleza natural. Passavampela rua e as árvores pareciam cumprimentá-los. O sol reluzia a tarde. Até quechegam perto do mar. Havia um local cultural ali, onde entraram e viram aexposição que havia. Quadros, estatuetas, objetos estranhos. Havia também umafeirinha de quitutes coloniais. Compraram um saquinho de casca de laranjaressecada. Uma delícia. Depois, um bolo de milho com cobertura de café.Esbaldaram-se. Em seguida, o convite:

- Vamos ver o pôr-do-sol? - diz ele.

- Já tá na hora?

- Aham, faltam alguns minutos ainda... Temos que ir até o terraço!

- Vamos lá!

E subiram os lances de escada. Chegaram ao terraço, um tanto vazio.

- Acho que as pessoas esqueceram que nossa cidade tem o pôr-do-sol mais belodo país! - fala Bobo.

- É... Tu sabias que nunca vi o pôr-do-sol daqui?

- É mesmo?

109

- É...

- Sempre tem a primeira vez...

- E espero que seja inesquecível...

- Será sim... Verás a luz se apagando lentamente... O céu ficando vermelho... Tuque adoras vermelho...

- Pois é... hehehe

- Tá batendo um ventinho...

- Tá esfriando...

- É... Vamos nos sentar ali naquela rocha?

- É, vamos... Vou congelar as nádegas, mas vamos... hehehe

- Hehehe...

Foram se sentar. O sol se aproximava do rio. E ela reclama:

- Bah, Bobo, tá ficando muito frio!

- Tá me dando uma agonia de te ver dizer isso!

Com esta frase, Bobo eleva seu braço e enlaça a menina pelas costas.

- Coloca teu braço por baixo, fica melhor para ti...

- E para ti?

- Fica ótimo...

Ela, então, coloca seu braço por baixo do casaco do menino, abraçando suascostas, igualmente. Ele questiona:

- Tu sabes há quanto tempo não ficamos assim?

- Desde abril de 2001...

- Lembras?!

110

- Claro... Apesar de não termos ficado juntos naquela vez, guardei aquelemomento para mim...

- Que bom...

- Por mais que eu tivesse voltad...

- Shhh... Não fala... Olha lá...

O sol começava a se pôr. Um momento sublime. A mutação da noite para o dia. Atransformação do carinho pleno em amor nascente. O sol descia o dia e elessorriam. Entreolharam-se. Mais alguns segundos e deram-se as mãos. E, durante ocrepúsculo do pôr-do-sol, o beijo terno emoldurou o início da noite. Seus lábioscolaram-se para que nunca mais se desgrudassem. As mãos apertaram-se. Osbraços deixaram os corpos ainda mais juntos. E o beijo esquentou a face daqueleinício de noite fria na cidade.

Gi tira o rosto, depois de muito beijar. Acaricia o rosto do amado e diz:

- Não pensei que voltaríamos a ficar...

- Não sei se estamos voltando a ficar...

- Não?

- Não... Acho que é um novo início...

- Novo? Início de quê?

- Início de um novo e tenro amor... De um sentimento perfeito... Da união de duaspessoas que sempre se gostaram, mas que agora uniram-se pelo laço do amor...Vês? Esse dia sempre me pareceu que chegaria...

- Eu acho que preciso te dizer uma coisa...

- Eu também...

- É que...

- Eu te amo...

111

Gi pára. Olha para o rosto de Bobo, com a tez expressando toda sua sinceridade.Os olhos lacrimejam, o coração (de tão mole) derrete. Ela abraça-o. Ficam um bomtempo abraçados. E ela, bem baixinho, fala ao rapaz, ao pé do ouvido:

- Eu também...

Choram. Lágrimas de quem perdurou, mas que atingiram seus objetivos. Olham-se novamente, as faces vermelhas. E beijam-se. Beijam-se, para nunca maissepararem-se.

Com isso, o crepúsculo passara. A noite já era plena. E era hora de voltar paracasa.

112

Sobre o autorLucas de Melo Bonez é professor de Língua Portuguesa e Literatura de escolas dePorto Alegre. É diretor da Alma - Ópera Rock, o maior grupo escolar de teatromusical com temática heavy metal do Brasil. Amante dos livros, cria contos epoemas. Dentre seus principais blogs, estão Inverno Púrpuro e Silêncio emPoema.

113