Intervenção estatal e populismo-a Argentina do século XXI.pdf

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INTERVENÇÃO ESTATAL E POPULISMO: A ARGENTINA DO INÍCIO DO SÉCULO XXI

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  • INTERVENO ESTATAL E POPULISMO: A ARGENTINA DO INCIO DO SCULO XXI

  • INTERVENO ESTATAL E POPULISMO: A ARGENTINA DO INCIO DO SCULO XXI

    Raul Velloso1

    Nstor Scibona2

    Enrique Szewach3

    Daniel Oliveira4

    1 Doutor em Economia pela Yale University. 2 Jornalista Especializado em Economia - Colunista do La Nacin. 3 Economista - Presidente da Evaluadora Latinoamericana Calificadora de Riesgo S.A. 4 Doutor em Economia pela London School of Economics and Political Science. !"#$ !"%&&&'(')' *')'

  • INTERVENO ESTATAL E POPULISMO: A ARGENTINA DO INCIO DO SCULO XXI

    Raul Velloso1

    Nstor Scibona2

    Enrique Szewach3

    Daniel Oliveira4

    1 Doutor em Economia pela Yale University. 2 Jornalista Especializado em Economia - Colunista do La Nacin. 3 Economista - Presidente da Evaluadora Latinoamericana Calificadora de Riesgo S.A. 4 Doutor em Economia pela London School of Economics and Political Science. !"#$ !"%&&&'(')' *')'

  • ndice: 1. Prembulo: Argentina e Brasil Rumos Semelhantes? 7 2. Argentina 2003-2013: O Modelo Impossvel 19 3. Poltica Energtica: Intervencionista e Dispendiosa 49 4. Transportes e Comunicaes Polticas Errticas 71 5. Poltica Agropecuria: Matando a Galinha dos Ovos de Ouro 85 6. Poltica Industrial e de Comrcio Exterior 95 7. Concluses Finais 107 8. Referncias Bibliogrficas 115

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    ndice: 1. Prembulo: Argentina e Brasil Rumos Semelhantes? 7 2. Argentina 2003-2013: O Modelo Impossvel 19 3. Poltica Energtica: Intervencionista e Dispendiosa 49 4. Transportes e Comunicaes Polticas Errticas 71 5. Poltica Agropecuria: Matando a Galinha dos Ovos de Ouro 85 6. Poltica Industrial e de Comrcio Exterior 95 7. Concluses Finais 107 8. Referncias Bibliogrficas 115

  • 1. PREMBULO: ARGENTINA E BRASIL RUMOS SEMELHANTES? A evoluo da atual crise econmica da Argentina desperta interesse no Brasil no apenas por ser o seu principal scio comercial dentro do alquebrado Mercosul, mas, tambm, pelos importantes investimentos de empresas brasileiras naquele pas e pela complementao produtiva entre alguns setores, como o caso da indstria automobilstica. Esse interesse surge, ainda, do paralelismo, com maior ou menor distncia, entre as polticas macroeconmicas adotadas nas ltimas dcadas pelos dois pases. Em vrias ocasies, medidas tomadas em um deles produziram efeitos aparentemente espetaculares, que deslumbraram inicialmente os dirigentes polticos, empresariais ou sindicais do outro, assim como levaram tentao de imitar os instrumentos adotados, mesmo que no tivessem consistncia no mdio e longo prazos. Resultaram, ao final do caminho, em desenlaces ao mesmo tempo decepcionantes e previsveis. O entorno econmico global da dcada passada, com a notvel melhora nos termos de troca e nos fluxos de capital, impulsionados pelas baixas taxas internacionais de juros, influiu de forma similar em toda regio, tendo, no entanto, recebido diferentes respostas polticas nos distintos pases. As classes dirigentes, em um sentido amplo, tm demonstrado interesse em comparar as similaridades e diferenas dessas respostas e seus efeitos sobre o crescimento econmico e a prosperidade no longo prazo. Uma boa imagem de comparao entre o Brasil e a Argentina a de dois carros que andam na mesma rodovia a velocidades diferentes. Um segue rpido, mesmo diante de situaes de perigo, realizando manobras arriscadas, sem se importar com os sinais de trnsito. O outro vai em frente com mais cuidado, arrisca-se menos, pratica infraes, mas evita levar muitas multas. Os dois veculos so mal dirigidos e dificilmente atingiro com sucesso o final da viagem, seja pela ocorrncia de fortes acidentes de percurso seja pelo acmulo de impercias na conduo. Ambos os pases adotaram, durante os ltimos 10 anos, modelos similares, baseando seu crescimento econmico em forte acelerao do consumo, sustentado pela expanso do gasto pblico em despesas correntes e pelo incremento do crdito. Puderam, ainda, surfar na boa onda do comrcio

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    1. PREMBULO: ARGENTINA E BRASIL RUMOS SEMELHANTES? A evoluo da atual crise econmica da Argentina desperta interesse no Brasil no apenas por ser o seu principal scio comercial dentro do alquebrado Mercosul, mas, tambm, pelos importantes investimentos de empresas brasileiras naquele pas e pela complementao produtiva entre alguns setores, como o caso da indstria automobilstica. Esse interesse surge, ainda, do paralelismo, com maior ou menor distncia, entre as polticas macroeconmicas adotadas nas ltimas dcadas pelos dois pases. Em vrias ocasies, medidas tomadas em um deles produziram efeitos aparentemente espetaculares, que deslumbraram inicialmente os dirigentes polticos, empresariais ou sindicais do outro, assim como levaram tentao de imitar os instrumentos adotados, mesmo que no tivessem consistncia no mdio e longo prazos. Resultaram, ao final do caminho, em desenlaces ao mesmo tempo decepcionantes e previsveis. O entorno econmico global da dcada passada, com a notvel melhora nos termos de troca e nos fluxos de capital, impulsionados pelas baixas taxas internacionais de juros, influiu de forma similar em toda regio, tendo, no entanto, recebido diferentes respostas polticas nos distintos pases. As classes dirigentes, em um sentido amplo, tm demonstrado interesse em comparar as similaridades e diferenas dessas respostas e seus efeitos sobre o crescimento econmico e a prosperidade no longo prazo. Uma boa imagem de comparao entre o Brasil e a Argentina a de dois carros que andam na mesma rodovia a velocidades diferentes. Um segue rpido, mesmo diante de situaes de perigo, realizando manobras arriscadas, sem se importar com os sinais de trnsito. O outro vai em frente com mais cuidado, arrisca-se menos, pratica infraes, mas evita levar muitas multas. Os dois veculos so mal dirigidos e dificilmente atingiro com sucesso o final da viagem, seja pela ocorrncia de fortes acidentes de percurso seja pelo acmulo de impercias na conduo. Ambos os pases adotaram, durante os ltimos 10 anos, modelos similares, baseando seu crescimento econmico em forte acelerao do consumo, sustentado pela expanso do gasto pblico em despesas correntes e pelo incremento do crdito. Puderam, ainda, surfar na boa onda do comrcio

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    internacional fortemente demandante de commodities agrcolas e minerais. No comeo, tudo pareceu dar certo; alcanaram-se elevadas taxas de crescimento, a inflao permaneceu sob controle e foram gerados altos supervits comerciais. Com o passar do tempo, o mar de rosas foi-se transformando num oceano com fortes marolas ou, mesmo, tempestades. No Brasil, o dinamismo da economia no perodo pr-crise de 2009 transformou-se nos pibinhos dos anos recentes. Apesar de todas as medidas para proteger e incentivar a indstria, este o setor que vem apresentando os resultados mais medocres nos ltimos dez anos, com expressiva reduo de sua participao no PIB. As tentativas de resolver a questo mediante intervenes no mercado de cmbio e redues foradas na taxa de juros no apresentaram resultados satisfatrios. Ao contrrio, recrudesceram as presses inflacionrias e o limite superior da meta s no tem sido ultrapassado em razo do controle artificial dos preos administrados, com fortes repercusses setoriais negativas. A recente mudana de postura do Banco Central um reconhecimento da falncia da poltica que vinha sendo aplicada. No caso argentino, a situao mostra-se muito mais difcil no curto prazo. A estagnao recentemente observada veio acompanhada de um quadro de agravamento da inflao e de arriscada crise externa. De um lado, o governo nunca chegou a acreditar que a inflao fosse uma questo politicamente muito importante, inclusive pela crena, no imaginrio popular, de que polticas de estabilizao so sempre seguidas de forte desemprego; do outro, a suspeio gerada pela adulterao das estatsticas oficiais e a atitude agressiva adotada na renegociao do default da dvida externa, at hoje no satisfatoriamente concluda, fecharam o acesso aos mercados externos de capitais. A perda de confiana dos agentes econmicos, agravada pelas dificuldades de financiar dficits no balano de pagamentos, acelerou o processo de fuga de capitais e de perda de reservas, que culminou com a imposio de severos controles cambiais e o consequente desenvolvimento de forte mercado paralelo de divisas. A recente adoo de medidas corretivas, tais como a significativa depreciao da taxa de cmbio oficial, o aumento da taxa de juros e a diminuio de alguns subsdios no configura o abandono do modelo

    populista de impulso do consumo. O objetivo, no curto prazo, parece ser o de evitar, mediante uma srie de remendos, que ocorra um colapso econmico antes das eleies de 2015. O que vem acontecendo com esses dois pases? As crises so decorrentes de presses externas, como alegam os governos, ou de contradies internas nas polticas econmicas adotadas? Nesta introduo so discutidas as limitaes desse tipo de modelo pr-consumo e as consequncias de intervenes governamentais que atacam os efeitos e no as causas dos problemas encontrados. A hiptese bsica de modelos de sustentao do consumo via elevao das despesas pblicas correntes e do crdito que, uma vez acionados os fatores de impulso do sistema, os investimentos se seguem de forma quase automtica, sem maiores limitaes, e a economia passa a crescer a taxas elevadas e de forma sustentada. A falha principal desse raciocnio que um consumo interno elevado acaba por produzir consequncias negativas sobre a taxa de poupana e o investimento domstico, levando, portanto, a uma produtividade modesta e, ao final, a um menor crescimento do PIB e do consumo, frustrando o objetivo almejado. A falta de perspectiva de uma expanso sustentada do consumo termina criando entre os empresrios um clima negativo que contribui, ainda mais, para a conteno dos investimentos. A absoro de poupana externa pode aliviar a restrio interna durante um tempo, como aconteceu no Brasil, durante o perodo 2003-2008. Essa possibilidade foi muito restrita, no caso argentino, pela sua excluso dos mercados financeiros internacionais. Um dos problemas bsicos desse modelo que, mesmo quando possvel absorver poupana externa, isso tende a ocorrer em detrimento do segmento vulnervel de bens transacionveis com o exterior, ou seja, da indstria, porta de entrada das importaes necessrias gerao do dficit em conta corrente do balano de pagamentos, sem o qual o ingresso de poupana externa no se materializa. Por sua vez, nos segmentos de produtos no comercializveis com o exterior, basicamente os servios, qualquer crescimento da demanda estimula os investimentos, pois no h como atend-la por outra via que no seja a expanso da produo interna. Essas inverses so impulsionadas pelo aumento dos preos relativos desse segmento, em

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    internacional fortemente demandante de commodities agrcolas e minerais. No comeo, tudo pareceu dar certo; alcanaram-se elevadas taxas de crescimento, a inflao permaneceu sob controle e foram gerados altos supervits comerciais. Com o passar do tempo, o mar de rosas foi-se transformando num oceano com fortes marolas ou, mesmo, tempestades. No Brasil, o dinamismo da economia no perodo pr-crise de 2009 transformou-se nos pibinhos dos anos recentes. Apesar de todas as medidas para proteger e incentivar a indstria, este o setor que vem apresentando os resultados mais medocres nos ltimos dez anos, com expressiva reduo de sua participao no PIB. As tentativas de resolver a questo mediante intervenes no mercado de cmbio e redues foradas na taxa de juros no apresentaram resultados satisfatrios. Ao contrrio, recrudesceram as presses inflacionrias e o limite superior da meta s no tem sido ultrapassado em razo do controle artificial dos preos administrados, com fortes repercusses setoriais negativas. A recente mudana de postura do Banco Central um reconhecimento da falncia da poltica que vinha sendo aplicada. No caso argentino, a situao mostra-se muito mais difcil no curto prazo. A estagnao recentemente observada veio acompanhada de um quadro de agravamento da inflao e de arriscada crise externa. De um lado, o governo nunca chegou a acreditar que a inflao fosse uma questo politicamente muito importante, inclusive pela crena, no imaginrio popular, de que polticas de estabilizao so sempre seguidas de forte desemprego; do outro, a suspeio gerada pela adulterao das estatsticas oficiais e a atitude agressiva adotada na renegociao do default da dvida externa, at hoje no satisfatoriamente concluda, fecharam o acesso aos mercados externos de capitais. A perda de confiana dos agentes econmicos, agravada pelas dificuldades de financiar dficits no balano de pagamentos, acelerou o processo de fuga de capitais e de perda de reservas, que culminou com a imposio de severos controles cambiais e o consequente desenvolvimento de forte mercado paralelo de divisas. A recente adoo de medidas corretivas, tais como a significativa depreciao da taxa de cmbio oficial, o aumento da taxa de juros e a diminuio de alguns subsdios no configura o abandono do modelo

    populista de impulso do consumo. O objetivo, no curto prazo, parece ser o de evitar, mediante uma srie de remendos, que ocorra um colapso econmico antes das eleies de 2015. O que vem acontecendo com esses dois pases? As crises so decorrentes de presses externas, como alegam os governos, ou de contradies internas nas polticas econmicas adotadas? Nesta introduo so discutidas as limitaes desse tipo de modelo pr-consumo e as consequncias de intervenes governamentais que atacam os efeitos e no as causas dos problemas encontrados. A hiptese bsica de modelos de sustentao do consumo via elevao das despesas pblicas correntes e do crdito que, uma vez acionados os fatores de impulso do sistema, os investimentos se seguem de forma quase automtica, sem maiores limitaes, e a economia passa a crescer a taxas elevadas e de forma sustentada. A falha principal desse raciocnio que um consumo interno elevado acaba por produzir consequncias negativas sobre a taxa de poupana e o investimento domstico, levando, portanto, a uma produtividade modesta e, ao final, a um menor crescimento do PIB e do consumo, frustrando o objetivo almejado. A falta de perspectiva de uma expanso sustentada do consumo termina criando entre os empresrios um clima negativo que contribui, ainda mais, para a conteno dos investimentos. A absoro de poupana externa pode aliviar a restrio interna durante um tempo, como aconteceu no Brasil, durante o perodo 2003-2008. Essa possibilidade foi muito restrita, no caso argentino, pela sua excluso dos mercados financeiros internacionais. Um dos problemas bsicos desse modelo que, mesmo quando possvel absorver poupana externa, isso tende a ocorrer em detrimento do segmento vulnervel de bens transacionveis com o exterior, ou seja, da indstria, porta de entrada das importaes necessrias gerao do dficit em conta corrente do balano de pagamentos, sem o qual o ingresso de poupana externa no se materializa. Por sua vez, nos segmentos de produtos no comercializveis com o exterior, basicamente os servios, qualquer crescimento da demanda estimula os investimentos, pois no h como atend-la por outra via que no seja a expanso da produo interna. Essas inverses so impulsionadas pelo aumento dos preos relativos desse segmento, em

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    relao aos demais, o que permite, inclusive, absorver elevaes de salrios. O mesmo no ocorre com o setor industrial, onde os preos tendem a permanecer alinhados aos dos mercados mundiais. O efeito China tende a mant-los estveis e em nveis relativamente baixos. Enquanto a produtividade puder aumentar possvel acomodar aumentos salariais na indstria, mas, a partir de certo ponto, isso se torna difcil. Finalmente, o setor de commodities junta-se ao de servios como fonte de atrao de investimentos, pelos estmulos da demanda internacional. Os preos elevados permitem manter a sua rentabilidade, mesmo tendo que absorver custos crescentes de mo de obra. De qualquer forma, o modelo do consumo dificilmente pode ter vida longa como fator de crescimento. Primeiro, porque os fatores de impulso vo-se desgastando. Por exemplo, o aumento de gastos pblicos correntes esbarra, cedo ou tarde, em restries fiscais, e produz, em contrapartida, a diminuio da capacidade de o setor pblico poupar e investir. Isso refora o vis antipoupana e anti-investimento inerentes ao seu funcionamento. Em adio, o governo, preocupado com a falta de dinamismo do setor industrial, termina por adotar medidas compensatrias de socorro aos perdedores, de alto custo para as finanas pblicas e nenhuma garantia de soluo sustentvel, acentuando a tendncia anti-investimento; ou, atrasa processos inevitveis na rea de servios, como o de retomada de concesses privadas, por puro vis ideolgico populista. Nesse contexto insere-se, ainda, o controle de preos bsicos como os da energia, petrleo e tarifas de transporte, numa tentativa de combater a inflao sem dor imediata e de manter-se no poder. Tudo o mais constante, no h como fugir da receita de cortar gastos pblicos correntes, e, assim, aumentar a taxa de poupana pblica, para viabilizar o aumento dos investimentos e do PIB. Ou seja, em algum momento o modelo ter de mudar de foco, passando de pr-consumo a pr-poupana. Esta, no caso, ter de ser pblica, pois a que est ao alcance das polticas governamentais. Apesar da lgica das polticas econmicas da Argentina e do Brasil nos ltimos anos ser muito similar, as condies iniciais eram muito diferentes e a sua aplicao prtica foi distinta em diversos aspectos, principalmente

    no que tange preocupao com a inflao e aos limites institucionais adoo de medidas intervencionistas ad hoc. A corroso inflacionria pode levar, como tem acontecido na Argentina, a uma situao de forte perda de credibilidade e rpido esgotamento do modelo. No Brasil, o desgaste tem sido mais lento e relaciona-se, antes de tudo, com a incapacidade de gerar os investimentos necessrios ao crescimento mais rpido. Tomamos como ponto de partida o ano de 2003, incio das administraes Kirchner e Lula. Ambos iniciaram os seus governos em um ambiente externo muito favorvel, de forte expanso da demanda internacional de commodities, que implicou uma mudana extremamente favorvel nos termos de troca. Se de um lado, o crescimento da China foi o principal responsvel pelo boom das commodities, de outro, ao ofertar bens mais baratos e, gradualmente, de melhor qualidade, deslocou as demandas interna e externa dos produtos industriais produzidos pelos dois pases. Internamente, as situaes dos dois pases eram bastante distintas: a da Argentina era pior, pois vinha de uma sada estrepitosa e traumtica do sistema de currency board, com taxa de desemprego de 22%, queda de cerca de 18% no PIB e baixo grau de monetizao da economia. fato que a administrao Lula comeou em um clima de forte desconfiana, em razo da atitude antimercado at ento adotada pelo Partido dos Trabalhadores. Alm disso, teve que enfrentar o rebrote inflacionrio, iniciado ao final de 2002 e buscar, de imediato, recuperar a credibilidade da poltica econmica. Para a Argentina, a melhor opo a seguir era bastante bvia: praticar uma poltica agressiva de aumento da despesa pblica para impulsionar a recuperao do PIB mediante rpida ocupao da capacidade ociosa. A expanso do gasto pde ser financiada pelo aumento da arrecadao decorrente da prpria recuperao econmica e dos ganhos extraordinrios de receitas advindos da tributao ao comrcio exterior. Paralelamente, o vis ideolgico do governo levou a uma renegociao tardia, incompleta e agressiva da dvida externa em default, afastando o Pas dos mercados financeiros internacionais, situao que perdura at hoje. A retomada econmica, a partir de 2003, foi espetacular, com taxas anuais de crescimento superiores a 8% e concomitante gerao dos famosos supervits gmeos (fiscal e externo). Ainda que tenha ocorrido um

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    relao aos demais, o que permite, inclusive, absorver elevaes de salrios. O mesmo no ocorre com o setor industrial, onde os preos tendem a permanecer alinhados aos dos mercados mundiais. O efeito China tende a mant-los estveis e em nveis relativamente baixos. Enquanto a produtividade puder aumentar possvel acomodar aumentos salariais na indstria, mas, a partir de certo ponto, isso se torna difcil. Finalmente, o setor de commodities junta-se ao de servios como fonte de atrao de investimentos, pelos estmulos da demanda internacional. Os preos elevados permitem manter a sua rentabilidade, mesmo tendo que absorver custos crescentes de mo de obra. De qualquer forma, o modelo do consumo dificilmente pode ter vida longa como fator de crescimento. Primeiro, porque os fatores de impulso vo-se desgastando. Por exemplo, o aumento de gastos pblicos correntes esbarra, cedo ou tarde, em restries fiscais, e produz, em contrapartida, a diminuio da capacidade de o setor pblico poupar e investir. Isso refora o vis antipoupana e anti-investimento inerentes ao seu funcionamento. Em adio, o governo, preocupado com a falta de dinamismo do setor industrial, termina por adotar medidas compensatrias de socorro aos perdedores, de alto custo para as finanas pblicas e nenhuma garantia de soluo sustentvel, acentuando a tendncia anti-investimento; ou, atrasa processos inevitveis na rea de servios, como o de retomada de concesses privadas, por puro vis ideolgico populista. Nesse contexto insere-se, ainda, o controle de preos bsicos como os da energia, petrleo e tarifas de transporte, numa tentativa de combater a inflao sem dor imediata e de manter-se no poder. Tudo o mais constante, no h como fugir da receita de cortar gastos pblicos correntes, e, assim, aumentar a taxa de poupana pblica, para viabilizar o aumento dos investimentos e do PIB. Ou seja, em algum momento o modelo ter de mudar de foco, passando de pr-consumo a pr-poupana. Esta, no caso, ter de ser pblica, pois a que est ao alcance das polticas governamentais. Apesar da lgica das polticas econmicas da Argentina e do Brasil nos ltimos anos ser muito similar, as condies iniciais eram muito diferentes e a sua aplicao prtica foi distinta em diversos aspectos, principalmente

    no que tange preocupao com a inflao e aos limites institucionais adoo de medidas intervencionistas ad hoc. A corroso inflacionria pode levar, como tem acontecido na Argentina, a uma situao de forte perda de credibilidade e rpido esgotamento do modelo. No Brasil, o desgaste tem sido mais lento e relaciona-se, antes de tudo, com a incapacidade de gerar os investimentos necessrios ao crescimento mais rpido. Tomamos como ponto de partida o ano de 2003, incio das administraes Kirchner e Lula. Ambos iniciaram os seus governos em um ambiente externo muito favorvel, de forte expanso da demanda internacional de commodities, que implicou uma mudana extremamente favorvel nos termos de troca. Se de um lado, o crescimento da China foi o principal responsvel pelo boom das commodities, de outro, ao ofertar bens mais baratos e, gradualmente, de melhor qualidade, deslocou as demandas interna e externa dos produtos industriais produzidos pelos dois pases. Internamente, as situaes dos dois pases eram bastante distintas: a da Argentina era pior, pois vinha de uma sada estrepitosa e traumtica do sistema de currency board, com taxa de desemprego de 22%, queda de cerca de 18% no PIB e baixo grau de monetizao da economia. fato que a administrao Lula comeou em um clima de forte desconfiana, em razo da atitude antimercado at ento adotada pelo Partido dos Trabalhadores. Alm disso, teve que enfrentar o rebrote inflacionrio, iniciado ao final de 2002 e buscar, de imediato, recuperar a credibilidade da poltica econmica. Para a Argentina, a melhor opo a seguir era bastante bvia: praticar uma poltica agressiva de aumento da despesa pblica para impulsionar a recuperao do PIB mediante rpida ocupao da capacidade ociosa. A expanso do gasto pde ser financiada pelo aumento da arrecadao decorrente da prpria recuperao econmica e dos ganhos extraordinrios de receitas advindos da tributao ao comrcio exterior. Paralelamente, o vis ideolgico do governo levou a uma renegociao tardia, incompleta e agressiva da dvida externa em default, afastando o Pas dos mercados financeiros internacionais, situao que perdura at hoje. A retomada econmica, a partir de 2003, foi espetacular, com taxas anuais de crescimento superiores a 8% e concomitante gerao dos famosos supervits gmeos (fiscal e externo). Ainda que tenha ocorrido um

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    aumento dos preos relativos de servios e commodities em relao aos de bens industriais, este segmento pde-se beneficiar da propcia situao cambial e da incipiente poltica compensatria na forma de subsdios s tarifas de servios pblicos. Essa fase favorvel prosseguiu enquanto havia capacidade ociosa e possibilidade de gerar um grande aumento dos investimentos (que passaram da mdia de 18,6% do PIB, no trinio 2003-2005, para 23,6%, entre 2006 e 2008). Durante esse perodo de bonana, a expanso monetria foi acomodada sem maiores presses inflacionrias e os ganhos de arrecadao permitiram conciliar a expanso do gasto com a manuteno de supervits fiscais. No Brasil, para restaurar a credibilidade e controlar o ressurgimento inflacionrio iniciado ao final de 2002, foi nomeada uma equipe econmica ortodoxa e reforado o funcionamento do trip que havia sido adotado pela administrao anterior, baseado em um regime de metas de inflao, flutuao do cmbio e controle fiscal. A poltica monetria foi intensamente utilizada para trazer a variao dos preos para o centro da meta. A taxa de inflao entrou em trajetria descendente e a confiana foi rapidamente recuperada. Aps a arrumao de 2003, e com a economia impulsionada pelo crescimento de exportaes, fruto do aumento da demanda e dos preos internacionais das commodities, foi possvel manter um perodo de cinco anos de taxas de crescimento favorveis, com uma mdia anual de 4,8% entre 2004 e 2008. A crise internacional iniciada no mundo desenvolvido, em 2008, provocou uma grande injeo de liquidez nos mercados financeiros internacionais, o que contribuiu para a forte apreciao da moeda brasileira, que teve seu pico em meados de 2011, quando chegou a ser negociada a R$ 1,55 por dlar. A Argentina no passou pelo mesmo fenmeno, em razo do seu afastamento dos mercados financeiros; a apreciao real do peso veio na esteira do sistema de flutuao administrada do cmbio, que no acompanhou a acelerao da inflao interna. Enquanto o preo das commodities subia, o Brasil e a Argentina caminharam de vento em popa. A partir da sua queda, ocorrida em 2009, mesmo com a recuperao de 2010, e posterior flutuao, com tendncia

    ainda indefinida, as economias perderam o dinamismo dos anos anteriores, apesar de os preos terem permanecido em patamares muito elevados. Os equvocos nas polticas econmicas agravaram as crises internas, principalmente a partir de 2011. Desde 2009, o desempenho da economia brasileira vem apresentando resultados medocres, com taxas anuais de crescimento prximas a 2%. A escassez de poupana um fator limitante do lado da oferta, enquanto, do lado da demanda, subsistem dvidas sobre a manuteno do crescimento do consumo. Os atuais problemas fiscais e as presses inflacionrias tm, tambm, provocado forte impacto negativo sobre as expectativas e as decises de investimento dos empresrios. Incentivado pelo vigoroso crescimento do crdito, que dobrou como proporo do PIB nos ltimos dez anos, o endividamento das famlias impe decisivos freios ao consumo. Finalmente, os aumentos salariais, muito influenciados pelo governo, j se refletem em significativas elevaes do custo unitrio do trabalho no setor industrial. A tendncia a que se reduzam os incrementos salariais nos demais setores da economia tende a acentuar-se medida que no possam ser acomodados por aumentos dos preos das commodities e dos servios. Em resumo, os limites ao endividamento e ao crescimento da renda das famlias impem travas ao crescimento do consumo, reduzindo a rentabilidade esperada dos investimentos. Ao mesmo tempo, o atual modelo gera uma baixa taxa de poupana, ou seja, poucos recursos para inverses. Nessas condies, difcil sustentar um ritmo acelerado de crescimento. Ao no conseguir atacar as causas dos problemas da economia, o governo passou a utilizar uma srie de polticas discricionrias para combater seus efeitos indesejveis. Entre as medidas dessa natureza, destacou-se a tentativa de reduzir artificialmente a taxa de juros, o que resultou no aumento da inflao, que passou a flutuar ao redor do limite superior da meta. Para que esse patamar no fosse ultrapassado, adotou-se o controle direto de vrios preos, entre os quais o da eletricidade e o dos combustveis. Essa medida, alm de altamente contraproducente para os segmentos envolvidos, provocou expectativas de maior inflao futura, j que os preos tero que ser eventualmente corrigidos, e de elevao dos gastos

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    aumento dos preos relativos de servios e commodities em relao aos de bens industriais, este segmento pde-se beneficiar da propcia situao cambial e da incipiente poltica compensatria na forma de subsdios s tarifas de servios pblicos. Essa fase favorvel prosseguiu enquanto havia capacidade ociosa e possibilidade de gerar um grande aumento dos investimentos (que passaram da mdia de 18,6% do PIB, no trinio 2003-2005, para 23,6%, entre 2006 e 2008). Durante esse perodo de bonana, a expanso monetria foi acomodada sem maiores presses inflacionrias e os ganhos de arrecadao permitiram conciliar a expanso do gasto com a manuteno de supervits fiscais. No Brasil, para restaurar a credibilidade e controlar o ressurgimento inflacionrio iniciado ao final de 2002, foi nomeada uma equipe econmica ortodoxa e reforado o funcionamento do trip que havia sido adotado pela administrao anterior, baseado em um regime de metas de inflao, flutuao do cmbio e controle fiscal. A poltica monetria foi intensamente utilizada para trazer a variao dos preos para o centro da meta. A taxa de inflao entrou em trajetria descendente e a confiana foi rapidamente recuperada. Aps a arrumao de 2003, e com a economia impulsionada pelo crescimento de exportaes, fruto do aumento da demanda e dos preos internacionais das commodities, foi possvel manter um perodo de cinco anos de taxas de crescimento favorveis, com uma mdia anual de 4,8% entre 2004 e 2008. A crise internacional iniciada no mundo desenvolvido, em 2008, provocou uma grande injeo de liquidez nos mercados financeiros internacionais, o que contribuiu para a forte apreciao da moeda brasileira, que teve seu pico em meados de 2011, quando chegou a ser negociada a R$ 1,55 por dlar. A Argentina no passou pelo mesmo fenmeno, em razo do seu afastamento dos mercados financeiros; a apreciao real do peso veio na esteira do sistema de flutuao administrada do cmbio, que no acompanhou a acelerao da inflao interna. Enquanto o preo das commodities subia, o Brasil e a Argentina caminharam de vento em popa. A partir da sua queda, ocorrida em 2009, mesmo com a recuperao de 2010, e posterior flutuao, com tendncia

    ainda indefinida, as economias perderam o dinamismo dos anos anteriores, apesar de os preos terem permanecido em patamares muito elevados. Os equvocos nas polticas econmicas agravaram as crises internas, principalmente a partir de 2011. Desde 2009, o desempenho da economia brasileira vem apresentando resultados medocres, com taxas anuais de crescimento prximas a 2%. A escassez de poupana um fator limitante do lado da oferta, enquanto, do lado da demanda, subsistem dvidas sobre a manuteno do crescimento do consumo. Os atuais problemas fiscais e as presses inflacionrias tm, tambm, provocado forte impacto negativo sobre as expectativas e as decises de investimento dos empresrios. Incentivado pelo vigoroso crescimento do crdito, que dobrou como proporo do PIB nos ltimos dez anos, o endividamento das famlias impe decisivos freios ao consumo. Finalmente, os aumentos salariais, muito influenciados pelo governo, j se refletem em significativas elevaes do custo unitrio do trabalho no setor industrial. A tendncia a que se reduzam os incrementos salariais nos demais setores da economia tende a acentuar-se medida que no possam ser acomodados por aumentos dos preos das commodities e dos servios. Em resumo, os limites ao endividamento e ao crescimento da renda das famlias impem travas ao crescimento do consumo, reduzindo a rentabilidade esperada dos investimentos. Ao mesmo tempo, o atual modelo gera uma baixa taxa de poupana, ou seja, poucos recursos para inverses. Nessas condies, difcil sustentar um ritmo acelerado de crescimento. Ao no conseguir atacar as causas dos problemas da economia, o governo passou a utilizar uma srie de polticas discricionrias para combater seus efeitos indesejveis. Entre as medidas dessa natureza, destacou-se a tentativa de reduzir artificialmente a taxa de juros, o que resultou no aumento da inflao, que passou a flutuar ao redor do limite superior da meta. Para que esse patamar no fosse ultrapassado, adotou-se o controle direto de vrios preos, entre os quais o da eletricidade e o dos combustveis. Essa medida, alm de altamente contraproducente para os segmentos envolvidos, provocou expectativas de maior inflao futura, j que os preos tero que ser eventualmente corrigidos, e de elevao dos gastos

  • 14

    fiscais para possvel recapitalizao das estatais atingidas (Petrobras e Eletrobrs), entre outros gastos que o governo acabar assumindo. Paralelamente, ao tentar impor preos irreais nos leiles das concesses de servios pblicos, o governo estimulou o aparecimento de comportamentos oportunistas e mesmo a completa ausncia de interessados. Essas polticas tm levado ao atraso dos investimentos em infraestrutura to necessrios eliminao de alguns dos principais gargalos ao crescimento brasileiro. Por ltimo, para compensar os problemas enfrentados pela indstria, decorrentes do cmbio apreciado e do aumento dos custos tributrios e trabalhistas, foram adotadas medidas compensatrias, que, alm dos j mencionados controles de preos administrados, incluram desoneraes tributrias, aumento dos emprstimos subsidiados do BNDES e a alterao da base de incidncia das contribuies previdencirias. O grande problema dessas intervenes pontuais que provocaram distores alocativas, premiaram a ineficincia e ocasionaram elevado custo fiscal. Ao final, acabaram no produzindo os efeitos desejados; a indstria continuou engatinhando, crescendo a taxas inferiores dos pibinhos brasileiros. Na Argentina, j havia sinais, desde 2007, ano de eleies presidenciais, da impossibilidade de se continuar aumentando o consumo e o PIB sem grandes custos. Os investimentos comearam a perder fora e, a partir de 2009, j no tinham o dinamismo necessrio manuteno da expanso do consumo. As presses inflacionrias decorrentes do excesso de demanda agregada e do aumento de custos do trabalho, que j se faziam sentir desde 2006, tornaram-se mais expressivas. Sem vontade de modificar as polticas populistas de sustentao do consumo, o governo optou por tomar medidas discricionrias para combater os efeitos indesejveis do modelo, impondo controles de preos e adulterando os dados de inflao. Seguiu-se a crise com o campo, a expropriao do sistema de capitalizao dos fundos privados de aposentadorias e a crescente utilizao do Banco Central da Repblica Argentina BCRA como caixa do governo. O resultado foi um cenrio de inflao ascendente e de fuga de capitais. A partir de 2011, ano em que foi reeleita Cristina Kirchner, a intensificao da poltica de expanso de despesas e subsdios pblicos, e de aumento

    dos salrios e do crdito para o consumo, a taxas reais de juros negativas, acentuou a deteriorao macroeconmica produzindo uma fuga recorde de capitais. A reao do governo complicou ainda mais esse quadro, com a deciso tomada, ao final do ano, de aprofundar o modelo mediante o recrudescimento dos controles de preos e a adoo de uma srie aes na rea externa. Estas incluram a virtual proibio de remessa de lucros, a diminuio do prazo para os exportadores fecharem o crdito e a necessidade de permisso prvia para importaes no energticas. O resultado dessas intervenes foi o desenvolvimento de um abrangente mercado paralelo de cmbio e o travamento entrada de divisas (por investimentos diretos ou emprstimos s empresas). O atraso cambial e o aumento das importaes, turbinado pelas compras de combustveis, levaram a uma deteriorao do balano de pagamentos que passou a apresentar dficits a partir de 2012. A implementao de polticas heterodoxas foi intensificada, nos ltimos dois anos, com a mudana da Carta Orgnica do BCRA, que possibilitou o uso de reservas para todos os pagamentos externos da dvida pblica e o forte aumento dos limites para financiamento em pesos ao Tesouro. A situao fiscal continuou a deteriorar-se, apesar do aumento da presso tributria, que saltou de 23% do PIB, em 2003, para 40%, em 2013, com um dficit primrio de 4% do PIB. O desequilbrio fiscal passou a ser financiado, basicamente, por forte expanso monetria, em um contexto de taxa de juros reais altamente negativas. O resultado desse conjunto de polticas intervencionistas e do descontrole fiscal e monetrio foi uma completa perda de confiana por parte dos agentes econmicos, o que intensificou a fuga de capitais, levando o nvel das reservas internacionais a cair de US$ 52 bilhes, em 2010, para os atuais US$ 27 bilhes, e provocou uma disparada nas cotaes do mercado paralelo de moedas estrangeiras. As recentes medidas de relaxamento parcial e limitado do controle do cmbio, a forte desvalorizao da taxa oficial, o aumento dos juros e a diminuio de alguns subsdios, dificilmente surtiro os efeitos desejados se no forem acompanhadas de um programa de estabilizao, que inclua um reordenamento fiscal e monetrio.

  • 15

    fiscais para possvel recapitalizao das estatais atingidas (Petrobras e Eletrobrs), entre outros gastos que o governo acabar assumindo. Paralelamente, ao tentar impor preos irreais nos leiles das concesses de servios pblicos, o governo estimulou o aparecimento de comportamentos oportunistas e mesmo a completa ausncia de interessados. Essas polticas tm levado ao atraso dos investimentos em infraestrutura to necessrios eliminao de alguns dos principais gargalos ao crescimento brasileiro. Por ltimo, para compensar os problemas enfrentados pela indstria, decorrentes do cmbio apreciado e do aumento dos custos tributrios e trabalhistas, foram adotadas medidas compensatrias, que, alm dos j mencionados controles de preos administrados, incluram desoneraes tributrias, aumento dos emprstimos subsidiados do BNDES e a alterao da base de incidncia das contribuies previdencirias. O grande problema dessas intervenes pontuais que provocaram distores alocativas, premiaram a ineficincia e ocasionaram elevado custo fiscal. Ao final, acabaram no produzindo os efeitos desejados; a indstria continuou engatinhando, crescendo a taxas inferiores dos pibinhos brasileiros. Na Argentina, j havia sinais, desde 2007, ano de eleies presidenciais, da impossibilidade de se continuar aumentando o consumo e o PIB sem grandes custos. Os investimentos comearam a perder fora e, a partir de 2009, j no tinham o dinamismo necessrio manuteno da expanso do consumo. As presses inflacionrias decorrentes do excesso de demanda agregada e do aumento de custos do trabalho, que j se faziam sentir desde 2006, tornaram-se mais expressivas. Sem vontade de modificar as polticas populistas de sustentao do consumo, o governo optou por tomar medidas discricionrias para combater os efeitos indesejveis do modelo, impondo controles de preos e adulterando os dados de inflao. Seguiu-se a crise com o campo, a expropriao do sistema de capitalizao dos fundos privados de aposentadorias e a crescente utilizao do Banco Central da Repblica Argentina BCRA como caixa do governo. O resultado foi um cenrio de inflao ascendente e de fuga de capitais. A partir de 2011, ano em que foi reeleita Cristina Kirchner, a intensificao da poltica de expanso de despesas e subsdios pblicos, e de aumento

    dos salrios e do crdito para o consumo, a taxas reais de juros negativas, acentuou a deteriorao macroeconmica produzindo uma fuga recorde de capitais. A reao do governo complicou ainda mais esse quadro, com a deciso tomada, ao final do ano, de aprofundar o modelo mediante o recrudescimento dos controles de preos e a adoo de uma srie aes na rea externa. Estas incluram a virtual proibio de remessa de lucros, a diminuio do prazo para os exportadores fecharem o crdito e a necessidade de permisso prvia para importaes no energticas. O resultado dessas intervenes foi o desenvolvimento de um abrangente mercado paralelo de cmbio e o travamento entrada de divisas (por investimentos diretos ou emprstimos s empresas). O atraso cambial e o aumento das importaes, turbinado pelas compras de combustveis, levaram a uma deteriorao do balano de pagamentos que passou a apresentar dficits a partir de 2012. A implementao de polticas heterodoxas foi intensificada, nos ltimos dois anos, com a mudana da Carta Orgnica do BCRA, que possibilitou o uso de reservas para todos os pagamentos externos da dvida pblica e o forte aumento dos limites para financiamento em pesos ao Tesouro. A situao fiscal continuou a deteriorar-se, apesar do aumento da presso tributria, que saltou de 23% do PIB, em 2003, para 40%, em 2013, com um dficit primrio de 4% do PIB. O desequilbrio fiscal passou a ser financiado, basicamente, por forte expanso monetria, em um contexto de taxa de juros reais altamente negativas. O resultado desse conjunto de polticas intervencionistas e do descontrole fiscal e monetrio foi uma completa perda de confiana por parte dos agentes econmicos, o que intensificou a fuga de capitais, levando o nvel das reservas internacionais a cair de US$ 52 bilhes, em 2010, para os atuais US$ 27 bilhes, e provocou uma disparada nas cotaes do mercado paralelo de moedas estrangeiras. As recentes medidas de relaxamento parcial e limitado do controle do cmbio, a forte desvalorizao da taxa oficial, o aumento dos juros e a diminuio de alguns subsdios, dificilmente surtiro os efeitos desejados se no forem acompanhadas de um programa de estabilizao, que inclua um reordenamento fiscal e monetrio.

  • 16

    O panorama econmico que se descortina para a Argentina no nada alvissareiro; inexiste vontade poltica para executar as mudanas de fundo necessrias enquanto as medidas recentemente adotadas so voltadas basicamente para evitar o agravamento da crise do setor externo pela queda nas reservas internacionais. A perspectiva de grande incerteza. Resta saber se a atual administrao estar disposta a aplicar medidas de austeridade fiscal, se conseguir fazer colocaes externas de dvida para suavizar os custos de eventuais ajustes, ou se, alternativamente, tentar fazer novos remendos para ganhar tempo, mantendo latente o risco de nova crise. Concluindo, Brasil e Argentina seguiram, nos ltimos anos, polticas econmicas assemelhadas, baseadas em modelos populistas, pr-consumo, ainda que com grandes diferenas na sua implementao, as quais decorreram no s de pontos de partida diversos, mas, tambm, de preocupaes distintas com determinados problemas, principalmente no que tange insero nos mercados financeiros internacionais e ao tema central da inflao. Ademais, a fragilidade institucional argentina permitiu que naquele pas fosse utilizado um arsenal muito mais amplo de aes discricionrias do que o adotado no Brasil. Nos dois pases, a capacidade de investir e crescer tem sido minada pela falta de confiana dos empresrios em relao ao futuro. O Brasil patina no crescimento baixo, com a taxa de investimento estancada em cerca de 18% do PIB. No mdio e longo prazo tem, ainda, que enfrentar a perspectiva de crescente deteriorao fiscal em face dos efeitos da atual transio demogrfica, com acelerado envelhecimento da populao, sobre as atuais polticas de transferncia de renda. O problema argentino muito mais urgente; o avano da inflao e a crise externa tornaro inevitvel a adoo de um programa de ajustes envolvendo os custos econmicos e sociais inerentes a modificaes bruscas de poltica. Resta saber quando e como sero levadas a cabo as mudanas necessrias. O objetivo deste trabalho descrever o modelo populista de impulso do consumo, com forte participao e interveno do setor pblico, adotado na Argentina a partir de maio de 2003. Pretende-se analisar as causas do seu esgotamento e mostrar que, apesar das correes parciais ocorridas nos ltimos meses, ser necessria uma forte mudana de orientao da poltica econmica. No entanto, no parece provvel que essa alterao

    ocorra antes de dezembro de 2015, quando termina o segundo mandato presidencial de Cristina Fernndez de Kirchner (CFK). Procura-se, ao mesmo tempo, identificar lies sobre a inviabilidade dos modelos econmicos que fundamentam o crescimento na expanso exagerada e artificial do gasto pblico e da demanda interna. Essa estratgia caminha inevitavelmente para o fracasso devido a inconsistncias, que conduzem deteriorao da poupana interna, da taxa real de cmbio, da competitividade, dos investimentos nos setores mais dinmicos e, finalmente, volta da inflao e de restries externas (escassez de divisas) que, em conjunto, reduzem o crescimento potencial do PIB. Sero, tambm, analisadas as consequncias danosas tanto no nvel setorial quanto no nvel macro, de polticas que desconsideram os sinais de mercado e adotam elevado grau interveno estatal, mediante o uso extensivo e intensivo de subsdios e controles de preos e tarifas. Essas prticas incluem, tambm, o descumprimento de contratos, a estatizao de servios e expropriaes em larga escala. O captulo seguinte apresenta a evoluo do modelo implementado na era K, de 2013 at o momento atual, identificando as condies herdadas, as polticas implantadas e a deteriorao econmica que levou atual situao de crise. Os quatro captulos subsequentes examinam as polticas setoriais dos ltimos dez anos, descrevendo e analisando as medidas intervencionistas adotadas. O terceiro trata da poltica energtica, o quarto de transportes e comunicaes, o quinto da agropecuria e o sexto da poltica industrial e de comrcio exterior. As concluses finais so apresentadas no stimo captulo.

  • 17

    O panorama econmico que se descortina para a Argentina no nada alvissareiro; inexiste vontade poltica para executar as mudanas de fundo necessrias enquanto as medidas recentemente adotadas so voltadas basicamente para evitar o agravamento da crise do setor externo pela queda nas reservas internacionais. A perspectiva de grande incerteza. Resta saber se a atual administrao estar disposta a aplicar medidas de austeridade fiscal, se conseguir fazer colocaes externas de dvida para suavizar os custos de eventuais ajustes, ou se, alternativamente, tentar fazer novos remendos para ganhar tempo, mantendo latente o risco de nova crise. Concluindo, Brasil e Argentina seguiram, nos ltimos anos, polticas econmicas assemelhadas, baseadas em modelos populistas, pr-consumo, ainda que com grandes diferenas na sua implementao, as quais decorreram no s de pontos de partida diversos, mas, tambm, de preocupaes distintas com determinados problemas, principalmente no que tange insero nos mercados financeiros internacionais e ao tema central da inflao. Ademais, a fragilidade institucional argentina permitiu que naquele pas fosse utilizado um arsenal muito mais amplo de aes discricionrias do que o adotado no Brasil. Nos dois pases, a capacidade de investir e crescer tem sido minada pela falta de confiana dos empresrios em relao ao futuro. O Brasil patina no crescimento baixo, com a taxa de investimento estancada em cerca de 18% do PIB. No mdio e longo prazo tem, ainda, que enfrentar a perspectiva de crescente deteriorao fiscal em face dos efeitos da atual transio demogrfica, com acelerado envelhecimento da populao, sobre as atuais polticas de transferncia de renda. O problema argentino muito mais urgente; o avano da inflao e a crise externa tornaro inevitvel a adoo de um programa de ajustes envolvendo os custos econmicos e sociais inerentes a modificaes bruscas de poltica. Resta saber quando e como sero levadas a cabo as mudanas necessrias. O objetivo deste trabalho descrever o modelo populista de impulso do consumo, com forte participao e interveno do setor pblico, adotado na Argentina a partir de maio de 2003. Pretende-se analisar as causas do seu esgotamento e mostrar que, apesar das correes parciais ocorridas nos ltimos meses, ser necessria uma forte mudana de orientao da poltica econmica. No entanto, no parece provvel que essa alterao

    ocorra antes de dezembro de 2015, quando termina o segundo mandato presidencial de Cristina Fernndez de Kirchner (CFK). Procura-se, ao mesmo tempo, identificar lies sobre a inviabilidade dos modelos econmicos que fundamentam o crescimento na expanso exagerada e artificial do gasto pblico e da demanda interna. Essa estratgia caminha inevitavelmente para o fracasso devido a inconsistncias, que conduzem deteriorao da poupana interna, da taxa real de cmbio, da competitividade, dos investimentos nos setores mais dinmicos e, finalmente, volta da inflao e de restries externas (escassez de divisas) que, em conjunto, reduzem o crescimento potencial do PIB. Sero, tambm, analisadas as consequncias danosas tanto no nvel setorial quanto no nvel macro, de polticas que desconsideram os sinais de mercado e adotam elevado grau interveno estatal, mediante o uso extensivo e intensivo de subsdios e controles de preos e tarifas. Essas prticas incluem, tambm, o descumprimento de contratos, a estatizao de servios e expropriaes em larga escala. O captulo seguinte apresenta a evoluo do modelo implementado na era K, de 2013 at o momento atual, identificando as condies herdadas, as polticas implantadas e a deteriorao econmica que levou atual situao de crise. Os quatro captulos subsequentes examinam as polticas setoriais dos ltimos dez anos, descrevendo e analisando as medidas intervencionistas adotadas. O terceiro trata da poltica energtica, o quarto de transportes e comunicaes, o quinto da agropecuria e o sexto da poltica industrial e de comrcio exterior. As concluses finais so apresentadas no stimo captulo.

  • 2. ARGENTINA 2003-2014: O MODELO IMPOSSVEL

    As enormes doses de polticas expansivas -- fiscais, monetrias e de rendas -- os subsdios, o intervencionismo estatal e o protecionismo comercial ultrapassaram, nos ltimos anos, todos os limites do razovel na Argentina. A atual inflao de dois dgitos, causada pelos persistentes desequilbrios fiscal, monetrio e externo, por aumentos reais de salrios acima dos ganhos de produtividade e pela elevao dos preos dos servios, s recentemente deixou de ser tolerada pelos argentinos, depois de vrios anos de picos no consumo interno e em viagens internacionais. A fotografia do pas mostra, hoje, uma economia que j no cresce a taxas chinesas. As projees para 2014 da maioria dos analistas apontam em direo recesso. Desde 2011, o setor privado deixou de criar empregos e a taxa de investimento razo investimento/PIB caiu. O setor agropecurio, depois do grande salto tecnolgico da dcada de 90 e do incio do sculo atual, apresenta sinais de estagnao ou, pelo menos, de ter-se desviado de sua tendncia ascendente, a partir da crise de 2008-2009. Nos ltimos dez anos, a produo e explorao de petrleo e gs caram fortemente, tendo o pas passado da condio de exportador de importador lquido de energia, com fortes impactos negativos no balano de pagamentos.

    Fonte: Dados do Instituto de Estadstica y Censos INDEC (2002-2008) e estimativas privadas (2009-2012). Elaborao dos autores. -15

    -10

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    0

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    15

    Porc

    enta

    gem

    Anos

    Grfico 1 - Variao % PIB (Valores Constantes)

    Variao Percentual-

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    2. ARGENTINA 2003-2014: O MODELO IMPOSSVEL

    As enormes doses de polticas expansivas -- fiscais, monetrias e de rendas -- os subsdios, o intervencionismo estatal e o protecionismo comercial ultrapassaram, nos ltimos anos, todos os limites do razovel na Argentina. A atual inflao de dois dgitos, causada pelos persistentes desequilbrios fiscal, monetrio e externo, por aumentos reais de salrios acima dos ganhos de produtividade e pela elevao dos preos dos servios, s recentemente deixou de ser tolerada pelos argentinos, depois de vrios anos de picos no consumo interno e em viagens internacionais. A fotografia do pas mostra, hoje, uma economia que j no cresce a taxas chinesas. As projees para 2014 da maioria dos analistas apontam em direo recesso. Desde 2011, o setor privado deixou de criar empregos e a taxa de investimento razo investimento/PIB caiu. O setor agropecurio, depois do grande salto tecnolgico da dcada de 90 e do incio do sculo atual, apresenta sinais de estagnao ou, pelo menos, de ter-se desviado de sua tendncia ascendente, a partir da crise de 2008-2009. Nos ltimos dez anos, a produo e explorao de petrleo e gs caram fortemente, tendo o pas passado da condio de exportador de importador lquido de energia, com fortes impactos negativos no balano de pagamentos.

    Fonte: Dados do Instituto de Estadstica y Censos INDEC (2002-2008) e estimativas privadas (2009-2012). Elaborao dos autores. -15

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    A variao do ano 2013 corresponde informao do INDEC, corrigida recentemente. (*) Sobre os clculos privados do PIB, ver p de pgina n 15. A taxa de inflao, que h vrios anos supera os 20% anuais, saltou para um novo patamar, estimando-se um piso de 33/34% para 2014. Como consequncia, o salrio real comeou a cair, ampliou-se o fosso entre os setores de rendas altas e baixas e acentuaram-se as desigualdades sociais. De um supervit fiscal primrio por volta de 4% do PIB, em 2005, passou-se a um dficit de cerca de 4%, em 2013, enquanto o dficit nominal se aproximava de 5%, financiado, basicamente, por emisses monetrias do Banco Central (BCRA). Deteriorao similar ocorreu na conta-corrente do balano de pagamentos, agora deficitria em 1% do PIB. As reservas internacionais reduziram-se sistematicamente, passando de um pico superior a US$ 50 bilhes em 2010-2011, para cerca de US$ 27 bilhes atualmente. A partir do final de 2011, temendo o esgotamento das reservas, e na ausncia de financiamento externo, o governo reagiu, introduzindo controles frreos do movimento de capitais, entre os quais a virtual proibio de remessa de lucros pelas companhias estrangeiras, e impondo maiores restries s importaes no energticas. Finalmente, nos ltimos meses, ocorreu forte desvalorizao da taxa de cmbio nominal, da ordem de 55% em relao a fevereiro de 2013, dando lugar a um esquema de taxas mltiplas, estabelecido pelo governo, e ao crescimento do mercado paralelo. Por sua vez, foram-se acumulando dvidas informais com milhares de aposentados e pensionistas que no receberam os reajustes determinados por lei, embora tenham obtido decises judiciais favorveis. J no plano externo, permanecem disputas no resolvidas com empresas internacionais titulares de concesses, cujos contratos foram interrompidos ou violados, muitas das quais contam com sentenas de cobrana do CIADI5, organismo de arbitragem do Banco Mundial. Subsistem, ainda, pendncias com detentores de bnus da dvida pblica, que no aceitaram as reestruturaes ps-default (ocorridas em 2005 e 5 Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas.

    2010) e com os pases integrantes do Clube de Paris, por crditos oficiais concedidos antes da grave crise poltica e econmica de 2001-2002. Finalmente, apesar das grosseiras distores das estatsticas oficiais, os indicadores referentes distribuio de renda e pobreza no melhoraram de forma condizente com a forte expanso prvia da economia, nem pela aplicao dos chamados planos sociais -- transferncias monetrias diretas do setor pblico a desempregados e trabalhadores informais --, nem com a poltica distributiva baseada em subsdios ao consumo. A atual crise da economia argentina no resultou de um choque externo inesperado, como argumenta a administrao de CFK, apesar das recentes mudanas nas condies globais. Pelo contrrio, a mudana de preos relativos a favor da produo de commodities exportveis (agrcolas, pecurias, energticas e minerais) e a exploso de liquidez global, que predominaram na dcada passada, foram extremamente favorveis evoluo da economia argentina, cujo PIB registrou, no perodo 2003-2011, um crescimento anual mdio de quase 7%, segundo dados oficiais. Na realidade, a deteriorao atual o resultado esperado de uma poltica econmica inconsistente e incompatvel com o novo panorama do comrcio internacional; de um modelo impossvel que somente pde demonstrar resultados inicialmente muito favorveis, mas insustentveis no mdio e no longo prazos, graas a uma combinao favorvel da situao externa com as condies iniciais herdadas da crise de 2001-2002. Apresenta-se, a seguir, uma descrio geral e alguns exemplos particulares de polticas que demonstram a inevitabilidade da crise, apesar de alguns resultados iniciais espetaculares. 2.1 Ponto de partida: a herana ps- crise de 2001-2002. Nstor Kirchner tomou posse em meio grave crise poltica, econmica e social, iniciada em 2001, que precipitou a queda do governo de Fernando de la Ra e a adoo de drsticas medidas, em 2002, por seu sucessor, Eduardo Duhalde.

  • 21

    A variao do ano 2013 corresponde informao do INDEC, corrigida recentemente. (*) Sobre os clculos privados do PIB, ver p de pgina n 15. A taxa de inflao, que h vrios anos supera os 20% anuais, saltou para um novo patamar, estimando-se um piso de 33/34% para 2014. Como consequncia, o salrio real comeou a cair, ampliou-se o fosso entre os setores de rendas altas e baixas e acentuaram-se as desigualdades sociais. De um supervit fiscal primrio por volta de 4% do PIB, em 2005, passou-se a um dficit de cerca de 4%, em 2013, enquanto o dficit nominal se aproximava de 5%, financiado, basicamente, por emisses monetrias do Banco Central (BCRA). Deteriorao similar ocorreu na conta-corrente do balano de pagamentos, agora deficitria em 1% do PIB. As reservas internacionais reduziram-se sistematicamente, passando de um pico superior a US$ 50 bilhes em 2010-2011, para cerca de US$ 27 bilhes atualmente. A partir do final de 2011, temendo o esgotamento das reservas, e na ausncia de financiamento externo, o governo reagiu, introduzindo controles frreos do movimento de capitais, entre os quais a virtual proibio de remessa de lucros pelas companhias estrangeiras, e impondo maiores restries s importaes no energticas. Finalmente, nos ltimos meses, ocorreu forte desvalorizao da taxa de cmbio nominal, da ordem de 55% em relao a fevereiro de 2013, dando lugar a um esquema de taxas mltiplas, estabelecido pelo governo, e ao crescimento do mercado paralelo. Por sua vez, foram-se acumulando dvidas informais com milhares de aposentados e pensionistas que no receberam os reajustes determinados por lei, embora tenham obtido decises judiciais favorveis. J no plano externo, permanecem disputas no resolvidas com empresas internacionais titulares de concesses, cujos contratos foram interrompidos ou violados, muitas das quais contam com sentenas de cobrana do CIADI5, organismo de arbitragem do Banco Mundial. Subsistem, ainda, pendncias com detentores de bnus da dvida pblica, que no aceitaram as reestruturaes ps-default (ocorridas em 2005 e 5 Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas.

    2010) e com os pases integrantes do Clube de Paris, por crditos oficiais concedidos antes da grave crise poltica e econmica de 2001-2002. Finalmente, apesar das grosseiras distores das estatsticas oficiais, os indicadores referentes distribuio de renda e pobreza no melhoraram de forma condizente com a forte expanso prvia da economia, nem pela aplicao dos chamados planos sociais -- transferncias monetrias diretas do setor pblico a desempregados e trabalhadores informais --, nem com a poltica distributiva baseada em subsdios ao consumo. A atual crise da economia argentina no resultou de um choque externo inesperado, como argumenta a administrao de CFK, apesar das recentes mudanas nas condies globais. Pelo contrrio, a mudana de preos relativos a favor da produo de commodities exportveis (agrcolas, pecurias, energticas e minerais) e a exploso de liquidez global, que predominaram na dcada passada, foram extremamente favorveis evoluo da economia argentina, cujo PIB registrou, no perodo 2003-2011, um crescimento anual mdio de quase 7%, segundo dados oficiais. Na realidade, a deteriorao atual o resultado esperado de uma poltica econmica inconsistente e incompatvel com o novo panorama do comrcio internacional; de um modelo impossvel que somente pde demonstrar resultados inicialmente muito favorveis, mas insustentveis no mdio e no longo prazos, graas a uma combinao favorvel da situao externa com as condies iniciais herdadas da crise de 2001-2002. Apresenta-se, a seguir, uma descrio geral e alguns exemplos particulares de polticas que demonstram a inevitabilidade da crise, apesar de alguns resultados iniciais espetaculares. 2.1 Ponto de partida: a herana ps- crise de 2001-2002. Nstor Kirchner tomou posse em meio grave crise poltica, econmica e social, iniciada em 2001, que precipitou a queda do governo de Fernando de la Ra e a adoo de drsticas medidas, em 2002, por seu sucessor, Eduardo Duhalde.

  • 22

    Para compreender melhor o auge e a posterior deteriorao da economia argentina imprescindvel rebobinar o filme e enumerar as condies iniciais herdadas em 25 de maio de 2003 pelo novo presidente: Taxa real de cmbio muito elevada - A queda do regime de conversibilidade, depois de dez anos de paridade fixa, gerou uma exploso da taxa de cmbio, que passou de 1 a 4 pesos por dlar em seis meses, at cair um tanto e se estabilizar em torno de 3,30 pesos, no incio de 2003. Por sua vez, o repasse relativamente baixo da desvalorizao aos preos, dado o quadro de alto desemprego e de elevado grau de capacidade ociosa, implicou uma desvalorizao abrupta na taxa de cmbio real, tornando a produo local altamente competitiva e gerando uma barreira natural s importaes. x Alto desemprego e baixos salrios reais - Diante da crise, o desemprego atingiu 22%, taxa indita na histria argentina, ao mesmo tempo em que caam os salrios reais, especialmente quando medidos em dlares. x Capacidade ociosa - Em contraste com o desempenho favorvel dos investimentos e da produo da fase precedente, a economia argentina amargou uma queda acumulada do PIB ao redor de 18%, no perodo 1998-2002, gerando significativa capacidade ociosa, particularmente na indstria de transformao. x Sobreinverso em infraestrutura e energia Em face de demanda reprimida, de margens favorveis de rentabilidade e de obrigaes regulatrias, o processo de privatizao, desregulamentao e concesso de servios pblicos impulsionou, nos anos 90, uma importante onda de investimentos privados, internos e externos, em infraestrutura. Ocorreram avanos significativos nas telecomunicaes, na gerao e distribuio de eletricidade, nas autoestradas de acesso cidade de Buenos Aires e arredores, na construo de portos privados para agilizar a sada da maior produo agrcola, na modernizao e adaptao do porto de Buenos Aires para containers, no crescimento da produo e explorao de petrleo e gs, entre outros. Dado esse cenrio prvio, a recesso e a crise mencionadas no pargrafo anterior deixaram um rastro de elevado grau de capacidade ociosa nesses setores.

    x Desmonetizao e baixo volume de depsitos e crditos - A crise bancria e cambial do final de 2001 reduziu fortemente o grau de monetizao da economia e a operacionalidade do sistema financeiro. x Expressivo crescimento da produo agrcola - A introduo da soja transgnica, em meados da dcada de 90, associada a tcnicas de plantio direto e a novas tecnologias de cultivo e colheita permitiram praticamente triplicar a produo agrcola, justamente no momento em que mudaram os preos relativos internacionais a favor das commodities. x Regime mineral - A desregulamentao da atividade mineradora, tambm ocorrida nos anos 90, permitiu um boom de inverses no setor e o surgimento de uma crescente exportao de minrios, at ento praticamente inexistente. x Default da dvida pblica externa - Declarado ao final de 2001, permitiu, pelo menos no curto prazo, reduzir a um mnimo os compromissos de pagamento dos servios financeiros em moeda estrangeira. x Supervit comercial - A desvalorizao do peso e a melhora estrutural dos termos de troca aumentaram as receitas das exportaes, ao mesmo tempo que a desvalorizao cambial e a recesso reduziam substancialmente as importaes, dando lugar a um importante supervit comercial, da ordem de US$ 17 bilhes, em mdia, no perodo 2002-2003. Em resumo, o governo Kirchner herdou, em 2003, uma situao inicial caracterizada por taxa real de cmbio desvalorizada, baixos salrios, desemprego recorde, alta capacidade ociosa, supervit fiscal e comercial, sobreinverso em infraestrutura e boom na produo agrcola. O processo de melhora dos termos de troca, que se definem pela razo entre os preos de exportao e de importao, manteve-se at a ecloso da crise financeira global. Desde ento os termos de troca sofreram fortes oscilaes, passando a patamares mais elevados, conforme se v no grfico abaixo.

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    Para compreender melhor o auge e a posterior deteriorao da economia argentina imprescindvel rebobinar o filme e enumerar as condies iniciais herdadas em 25 de maio de 2003 pelo novo presidente: Taxa real de cmbio muito elevada - A queda do regime de conversibilidade, depois de dez anos de paridade fixa, gerou uma exploso da taxa de cmbio, que passou de 1 a 4 pesos por dlar em seis meses, at cair um tanto e se estabilizar em torno de 3,30 pesos, no incio de 2003. Por sua vez, o repasse relativamente baixo da desvalorizao aos preos, dado o quadro de alto desemprego e de elevado grau de capacidade ociosa, implicou uma desvalorizao abrupta na taxa de cmbio real, tornando a produo local altamente competitiva e gerando uma barreira natural s importaes. x Alto desemprego e baixos salrios reais - Diante da crise, o desemprego atingiu 22%, taxa indita na histria argentina, ao mesmo tempo em que caam os salrios reais, especialmente quando medidos em dlares. x Capacidade ociosa - Em contraste com o desempenho favorvel dos investimentos e da produo da fase precedente, a economia argentina amargou uma queda acumulada do PIB ao redor de 18%, no perodo 1998-2002, gerando significativa capacidade ociosa, particularmente na indstria de transformao. x Sobreinverso em infraestrutura e energia Em face de demanda reprimida, de margens favorveis de rentabilidade e de obrigaes regulatrias, o processo de privatizao, desregulamentao e concesso de servios pblicos impulsionou, nos anos 90, uma importante onda de investimentos privados, internos e externos, em infraestrutura. Ocorreram avanos significativos nas telecomunicaes, na gerao e distribuio de eletricidade, nas autoestradas de acesso cidade de Buenos Aires e arredores, na construo de portos privados para agilizar a sada da maior produo agrcola, na modernizao e adaptao do porto de Buenos Aires para containers, no crescimento da produo e explorao de petrleo e gs, entre outros. Dado esse cenrio prvio, a recesso e a crise mencionadas no pargrafo anterior deixaram um rastro de elevado grau de capacidade ociosa nesses setores.

    x Desmonetizao e baixo volume de depsitos e crditos - A crise bancria e cambial do final de 2001 reduziu fortemente o grau de monetizao da economia e a operacionalidade do sistema financeiro. x Expressivo crescimento da produo agrcola - A introduo da soja transgnica, em meados da dcada de 90, associada a tcnicas de plantio direto e a novas tecnologias de cultivo e colheita permitiram praticamente triplicar a produo agrcola, justamente no momento em que mudaram os preos relativos internacionais a favor das commodities. x Regime mineral - A desregulamentao da atividade mineradora, tambm ocorrida nos anos 90, permitiu um boom de inverses no setor e o surgimento de uma crescente exportao de minrios, at ento praticamente inexistente. x Default da dvida pblica externa - Declarado ao final de 2001, permitiu, pelo menos no curto prazo, reduzir a um mnimo os compromissos de pagamento dos servios financeiros em moeda estrangeira. x Supervit comercial - A desvalorizao do peso e a melhora estrutural dos termos de troca aumentaram as receitas das exportaes, ao mesmo tempo que a desvalorizao cambial e a recesso reduziam substancialmente as importaes, dando lugar a um importante supervit comercial, da ordem de US$ 17 bilhes, em mdia, no perodo 2002-2003. Em resumo, o governo Kirchner herdou, em 2003, uma situao inicial caracterizada por taxa real de cmbio desvalorizada, baixos salrios, desemprego recorde, alta capacidade ociosa, supervit fiscal e comercial, sobreinverso em infraestrutura e boom na produo agrcola. O processo de melhora dos termos de troca, que se definem pela razo entre os preos de exportao e de importao, manteve-se at a ecloso da crise financeira global. Desde ento os termos de troca sofreram fortes oscilaes, passando a patamares mais elevados, conforme se v no grfico abaixo.

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    Fonte: Dados do INDEC e BCRA. Elaborao dos autores. As condies iniciais ps-crise 2001-2002 e o boom dos preos das commodities, permitiram ao novo governo implementar um modelo de conotao nitidamente populista, voltado para a expanso do consumo, com forte interferncia do Estado e baseado no crescimento do gasto pblico, sem maiores impactos desfavorveis. Para isso, contribuiu o fato de Nstor Kirchner, que havia ascendido Presidncia com apenas 23% dos votos no primeiro e nico turno eleitoral, -- ante a desero do ex-presidente Carlos Menem no segundo turno -- ter adotado medidas voltadas expanso consumo de setores de renda mdia e baixa, como forma de aumentar a sua sustentao poltica. 2.2 A primeira etapa do modelo pr-consumo: 2003-2006

    2.2.1 O regresso normalidade A adoo do modelo de crescimento baseado na expanso do consumo foi levada a cabo, inicialmente, sem presses inflacionrias ou gargalos importantes do lado da oferta.

    90,0 100,0 110,0 120,0 130,0 140,0 150,0 160,0 170,0

    ndi

    ce: 1

    993

    = 10

    0

    Perodo

    Grfico 2 - Melhora nos Termos de Troca

    O setor pblico teve um grande aumento de receitas derivado da recuperao dos impostos incidentes sobre o consumo interno6 e da arrecadao dos impostos sobre o comrcio exterior, condizente com a subida no preo das commodities e com o aumento do volume das exportaes. Ao mesmo tempo, aprimorou-se a eficincia arrecadadora do Estado e ocorreu paulatina normalizao da economia privada formal, em que, nas etapas de recesso e crise, havia aumentado a evaso fiscal. A melhora da receita permitiu a expanso sistemtica do gasto estatal, principalmente em emprego pblico, salrios, aposentadorias e penses. Foi adotada, desde 2006, uma generosa moratria para trabalhadores e donas de casa com idade para se aposentar, que no haviam feito contribuies ao sistema de seguridade social, o que resultou num aumento de 2,6 milhes de beneficiados. Proporcionado por maiores arrecadaes, esse aumento de despesas no ameaou, inicialmente, a obteno de supervits primrios razoveis que, mesmo tendo comeado a decrescer, mantiveram-se elevados durante grande parte do perodo. Do mesmo modo, o default e a primeira reestruturao da dvida, em 2005, reduziram os juros devidos e, portanto, o componente financeiro do gasto pblico. A volta situao de normalidade permitiu forte expanso do salrio real, a partir dos generosos aumentos nominais acertados em convenes coletivas de trabalho (paritrias). A acomodao de maiores salrios na gesto financeira das empresas foi possvel graas ao crescimento da produo e das vendas, e aos significativos ganhos de produtividade resultantes do maior uso da capacidade instalada. Enquanto se caracterizava como uma etapa de recuperao dos nveis de produo, consumo e investimentos pr-crise, o perodo 2003-2006 testemunhou uma fase de modesta entrada lquida de capitais na presena de um baixo grau de monetizao da economia. Foi graas ao overshooting da taxa de cmbio que se deu uma significativa acumulao de reservas e a reoxigenao do sistema financeiro sem maiores presses inflacionrias. Apesar de ter tido acesso quase nulo ao crdito internacional devido ao default da dvida, o setor pblico pde se financiar, em boa medida, na 6 A alquota do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) mantida em 21% h mais de 15 anos; os combustveis so taxados em 66% do seu preo final e, desde 2001, aplicado um imposto de 0,6% s movimentaes bancrias, existindo, ainda, vrios gravames provinciais e municipais ao consumo.

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    Fonte: Dados do INDEC e BCRA. Elaborao dos autores. As condies iniciais ps-crise 2001-2002 e o boom dos preos das commodities, permitiram ao novo governo implementar um modelo de conotao nitidamente populista, voltado para a expanso do consumo, com forte interferncia do Estado e baseado no crescimento do gasto pblico, sem maiores impactos desfavorveis. Para isso, contribuiu o fato de Nstor Kirchner, que havia ascendido Presidncia com apenas 23% dos votos no primeiro e nico turno eleitoral, -- ante a desero do ex-presidente Carlos Menem no segundo turno -- ter adotado medidas voltadas expanso consumo de setores de renda mdia e baixa, como forma de aumentar a sua sustentao poltica. 2.2 A primeira etapa do modelo pr-consumo: 2003-2006

    2.2.1 O regresso normalidade A adoo do modelo de crescimento baseado na expanso do consumo foi levada a cabo, inicialmente, sem presses inflacionrias ou gargalos importantes do lado da oferta.

    90,0 100,0 110,0 120,0 130,0 140,0 150,0 160,0 170,0

    ndi

    ce: 1

    993

    = 10

    0

    Perodo

    Grfico 2 - Melhora nos Termos de Troca

    O setor pblico teve um grande aumento de receitas derivado da recuperao dos impostos incidentes sobre o consumo interno6 e da arrecadao dos impostos sobre o comrcio exterior, condizente com a subida no preo das commodities e com o aumento do volume das exportaes. Ao mesmo tempo, aprimorou-se a eficincia arrecadadora do Estado e ocorreu paulatina normalizao da economia privada formal, em que, nas etapas de recesso e crise, havia aumentado a evaso fiscal. A melhora da receita permitiu a expanso sistemtica do gasto estatal, principalmente em emprego pblico, salrios, aposentadorias e penses. Foi adotada, desde 2006, uma generosa moratria para trabalhadores e donas de casa com idade para se aposentar, que no haviam feito contribuies ao sistema de seguridade social, o que resultou num aumento de 2,6 milhes de beneficiados. Proporcionado por maiores arrecadaes, esse aumento de despesas no ameaou, inicialmente, a obteno de supervits primrios razoveis que, mesmo tendo comeado a decrescer, mantiveram-se elevados durante grande parte do perodo. Do mesmo modo, o default e a primeira reestruturao da dvida, em 2005, reduziram os juros devidos e, portanto, o componente financeiro do gasto pblico. A volta situao de normalidade permitiu forte expanso do salrio real, a partir dos generosos aumentos nominais acertados em convenes coletivas de trabalho (paritrias). A acomodao de maiores salrios na gesto financeira das empresas foi possvel graas ao crescimento da produo e das vendas, e aos significativos ganhos de produtividade resultantes do maior uso da capacidade instalada. Enquanto se caracterizava como uma etapa de recuperao dos nveis de produo, consumo e investimentos pr-crise, o perodo 2003-2006 testemunhou uma fase de modesta entrada lquida de capitais na presena de um baixo grau de monetizao da economia. Foi graas ao overshooting da taxa de cmbio que se deu uma significativa acumulao de reservas e a reoxigenao do sistema financeiro sem maiores presses inflacionrias. Apesar de ter tido acesso quase nulo ao crdito internacional devido ao default da dvida, o setor pblico pde se financiar, em boa medida, na 6 A alquota do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) mantida em 21% h mais de 15 anos; os combustveis so taxados em 66% do seu preo final e, desde 2001, aplicado um imposto de 0,6% s movimentaes bancrias, existindo, ainda, vrios gravames provinciais e municipais ao consumo.

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    esteira da maior entrada de divisas no pas e de recursos fiscais nos cofres pblicos, em conexo com as exportaes de soja, petrleo e outras commodities. Ocorreu, tambm, uma incipiente entrada de investimentos estrangeiros diretos (IED) em setores estratgicos, como siderurgia, cimento, agroindstria, frigorficos exportadores, etc., principalmente por parte de empresas brasileiras.7 Para assegurar a confiana dos agentes econmicos, o prprio Kirchner e o seu ento Ministro da Economia, Roberto Lavagna (herdado da gesto Duhalde), encarregavam-se de reafirmar, continuamente, que o modelo se apoiava no trip virtuoso, baseado nos supervits gmeos -- fiscal e externo -- e na taxa de cmbio real desvalorizada. Em sntese, a Argentina atravessou um perodo de expressivo crescimento do consumo, viabilizado pela absoro da capacidade ociosa e do desemprego, e realimentado pelo aumento da massa salarial real e dos pagamentos de aposentadorias e penses. Foi uma etapa de expanso da arrecadao e do gasto, e de remonetizao do sistema financeiro, inicialmente sem maiores presses inflacionrias, que somente comeariam a aparecer por volta de 2005-2006. 2.2.2 Os termos de troca, preos relativos internos e poltica cambial Fortemente inserida nos mercados mundiais de commodities agrcolas, a Argentina se beneficiou grandemente da subida dos preos relativos desses produtos em relao aos bens industriais transacionveis com o exterior. No caso destes, havia intensa competio advinda dos mercados asiticos e, tambm, do vizinho Brasil. Por sua vez, o incremento do consumo pblico e privado, estimulado pelos aumentos reais de salrios, pressionou o custo e o preo dos servios. Dessa forma, tambm no caso dos servios os preos relativos se moveram contra os bens industriais transacionveis internacionalmente, quando medidos em pesos. Essa modificao nos preos relativos tende a provocar uma tendncia valorizao da taxa de cmbio8. 7 Estima-se que empresas brasileiras investiram na Argentina cerca de US$ 7 bilhes, entre 2002 e 2006. Ver Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior Brasil: www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1227705966.pdf 8 Para uma discusso detalhada desse ponto, com referncia ao caso brasileiro, ver Raul Velloso e Paulo Springer de Freitas, Os limites de nosso modelo de crescimento, apresentado ao Frum Nacional em 13/05/2014.

    Esse movimento no prejudicou de forma significativa o setor industrial numa primeira fase do modelo pr-consumo, devido, principalmente, a trs fatores: a. o fato de os salrios serem baixos inicialmente e haver ganhos de produtividade; b. a adoo de uma poltica cambial tendente a manter artificialmente elevada a taxa de cmbio nominal, ou seja, a impedir que a melhora dos termos de troca, a entrada de capitais e a tendncia natural apreciao real da taxa de cmbio acima referida se manifestassem. Essa poltica cambial permitiu acumular reservas e os pesos emitidos serviram para suprir a demanda por dinheiro no processo de remonetizao ps-crise; c. a gravitao favorvel nas polticas de cmbio dos scios comerciais da regio, em especial na brasileira. Com efeito, o Brasil manteve durante esse perodo uma poltica de metas de inflao e flutuao cambial, o que levou apreciao da sua moeda. O real mais valorizado ajudou a manter a competitividade da produo industrial argentina, apesar dos fortes incrementos salariais locais. Em sntese, nessa primeira etapa do modelo pr-consumo, em razo das condies iniciais mencionadas, da evoluo favorvel dos termos de troca e da poltica cambial dos vizinhos, a mudana dos preos relativos a favor dos produtores de commodities e servios, em contraposio s indstrias de bens transacionveis, no gerou demasiados custos para o setor industrial. 2.2.3 A incipiente poltica compensatria para a indstria Apesar do exposto no segmento anterior, j vinham sendo aplicadas algumas polticas compensatrias para o setor industrial, que foram sendo intensificadas, como se ver adiante, nas etapas posteriores do modelo. No perodo 2003-2006, os instrumentos e efeitos mais relevantes foram os seguintes: a. Impostos de exportao e restries quantitativas s exportaes agroindustriais Uma das heranas da crise de 2002 foi a aplicao de impostos sobre a exportao (retenes ad valorem de 20 a 30%) de commodities e alguns dos seus subprodutos.

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    esteira da maior entrada de divisas no pas e de recursos fiscais nos cofres pblicos, em conexo com as exportaes de soja, petrleo e outras commodities. Ocorreu, tambm, uma incipiente entrada de investimentos estrangeiros diretos (IED) em setores estratgicos, como siderurgia, cimento, agroindstria, frigorficos exportadores, etc., principalmente por parte de empresas brasileiras.7 Para assegurar a confiana dos agentes econmicos, o prprio Kirchner e o seu ento Ministro da Economia, Roberto Lavagna (herdado da gesto Duhalde), encarregavam-se de reafirmar, continuamente, que o modelo se apoiava no trip virtuoso, baseado nos supervits gmeos -- fiscal e externo -- e na taxa de cmbio real desvalorizada. Em sntese, a Argentina atravessou um perodo de expressivo crescimento do consumo, viabilizado pela absoro da capacidade ociosa e do desemprego, e realimentado pelo aumento da massa salarial real e dos pagamentos de aposentadorias e penses. Foi uma etapa de expanso da arrecadao e do gasto, e de remonetizao do sistema financeiro, inicialmente sem maiores presses inflacionrias, que somente comeariam a aparecer por volta de 2005-2006. 2.2.2 Os termos de troca, preos relativos internos e poltica cambial Fortemente inserida nos mercados mundiais de commodities agrcolas, a Argentina se beneficiou grandemente da subida dos preos relativos desses produtos em relao aos bens industriais transacionveis com o exterior. No caso destes, havia intensa competio advinda dos mercados asiticos e, tambm, do vizinho Brasil. Por sua vez, o incremento do consumo pblico e privado, estimulado pelos aumentos reais de salrios, pressionou o custo e o preo dos servios. Dessa forma, tambm no caso dos servios os preos relativos se moveram contra os bens industriais transacionveis internacionalmente, quando medidos em pesos. Essa modificao nos preos relativos tende a provocar uma tendncia valorizao da taxa de cmbio8. 7 Estima-se que empresas brasileiras investiram na Argentina cerca de US$ 7 bilhes, entre 2002 e 2006. Ver Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior Brasil: www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1227705966.pdf 8 Para uma discusso detalhada desse ponto, com referncia ao caso brasileiro, ver Raul Velloso e Paulo Springer de Freitas, Os limites de nosso modelo de crescimento, apresentado ao Frum Nacional em 13/05/2014.

    Esse movimento no prejudicou de forma significativa o setor industrial numa primeira fase do modelo pr-consumo, devido, principalmente, a trs fatores: a. o fato de os salrios serem baixos inicialmente e haver ganhos de produtividade; b. a adoo de uma poltica cambial tendente a manter artificialmente elevada a taxa de cmbio nominal, ou seja, a impedir que a melhora dos termos de troca, a entrada de capitais e a tendncia natural apreciao real da taxa de cmbio acima referida se manifestassem. Essa poltica cambial permitiu acumular reservas e os pesos emitidos serviram para suprir a demanda por dinheiro no processo de remonetizao ps-crise; c. a gravitao favorvel nas polticas de cmbio dos scios comerciais da regio, em especial na brasileira. Com efeito, o Brasil manteve durante esse perodo uma poltica de metas de inflao e flutuao cambial, o que levou apreciao da sua moeda. O real mais valorizado ajudou a manter a competitividade da produo industrial argentina, apesar dos fortes incrementos salariais locais. Em sntese, nessa primeira etapa do modelo pr-consumo, em razo das condies iniciais mencionadas, da evoluo favorvel dos termos de troca e da poltica cambial dos vizinhos, a mudana dos preos relativos a favor dos produtores de commodities e servios, em contraposio s indstrias de bens transacionveis, no gerou demasiados custos para o setor industrial. 2.2.3 A incipiente poltica compensatria para a indstria Apesar do exposto no segmento anterior, j vinham sendo aplicadas algumas polticas compensatrias para o setor industrial, que foram sendo intensificadas, como se ver adiante, nas etapas posteriores do modelo. No perodo 2003-2006, os instrumentos e efeitos mais relevantes foram os seguintes: a. Impostos de exportao e restries quantitativas s exportaes agroindustriais Uma das heranas da crise de 2002 foi a aplicao de impostos sobre a exportao (retenes ad valorem de 20 a 30%) de commodities e alguns dos seus subprodutos.

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    Com essas retenes, de um lado o setor pblico apropriou-se de parte da renda que o setor exportador deveria receber, pela combinao dos melhores preos internacionais e da poltica cambial, que, ao impedir a revalorizao do peso, maximizava as receitas em moeda local dos produtores de commodities agropecurias. Do outro, os impostos de exportao amorteciam o aumento dos preos internos dos alimentos -- em especial, trigo, milho e carne bovina --, o que gerava mais renda disponvel para o consumo de outros bens e servios e menores presses salariais. Posteriormente, para obter esse resultado, as retenes foram complementadas com restries quantitativas s exportaes desses produtos, o que permitiu aumentar a oferta interna e deprimir seus preos. Em outras palavras, os impostos e cotas de exportao funcionaram como um subsdio ao consumo de bens industriais9. Tambm reduziram os custos do trabalho, ao moderar a presso dos assalariados por maiores rendas para pagar alimentos que, em outro contexto, teriam encarecido devido ao aumento da demanda externa. Finalmente, incrementaram as receitas fiscais, que puderam ser destinadas ao maior gasto pblico corrente. Todos esses mecanismos contriburam para aumentar a demanda interna de bens industriais. b. O congelamento, em pesos, dos preos dos servios pblicos: transporte, gs e eletricidade10 Essa poltica tambm atuou como subsdio implcito ao setor industrial; de um lado, por implicar menores custos de produo para os segmentos intensivos em energia, comparados com seus competidores latino-americanos; de outro, porque ao serem congelados os preos da energia e do transporte pblico -- compensados, inicialmente, com subsdios estatais relativamente baixos -- a maior renda disponvel dos 9 Se, por exemplo, o consumidor gasta menos em alimentos cuja demanda relativamente inelstica, h mais renda disponvel para outros bens, como os eletrodomsticos. 10 As rupturas dos contratos com as empresas concessionrias na sada da conversibili-dade e a posterior maxidesvalorizao de 2002 fizeram com que os seus preos e tarifas, originalmente dolarizados na dcada de 90, fossem pesificados e prontamente congelados durante muitos anos. Essa deciso foi implementada por meio da Lei de Emergncia Econmica, cuja vigncia sofreu sucessivas prorrogaes, sendo a ltima vlida at dezembro de 2015.

    assalariados se voltou, entre outros destinos, maior demanda de bens de consumo durveis. Esse foi o cenrio predominante no perodo 2003-2006. No entanto, medida que se alcanava o pleno emprego, os ganhos de produtividade acompanhavam cada vez menos os aumentos dos custos laborais da indstria. Ademais, uma vez aumentado o grau de monetizao da economia, comearam a ser notadas as presses inflacionrias da poltica cambial. Ao mesmo tempo, os efeitos da primeira reestruturao da dvida pblica externa (em 2005) e o aumento do gasto pblico corrente passaram a pressionar, mais diretamente, o resultado fiscal. Paralelamente, surgiam, sobre a produo agropecuria, os primeiros resultados negativos dos mecanismos para frear a mudana dos preos relativos a seu favor. Iniciou-se, ento, uma nova etapa do modelo, que coincidiu com a campanha para as eleies presidenciais de 2007. 2.3 Segunda etapa do modelo: o incio do esgotamento do modelo impossvel (2007). 2.3.1 A encruzilhada: aceitar a mudana e moder-la, ou remar contra a corrente Durante o ano de 2006, comearam a ser percebidos os primeiros efeitos negativos do modelo de impulso do consumo, tanto na oferta de bens e servios, sujeita interveno estatal -- em especial, energia e alimentos --, quanto nas presses inflacionrias derivadas do manejo do gasto pblico, dos salrios privados e da poltica cambial. Nesse momento, teria sido aconselhvel aceitar a mudana nos preos relativos a favor das commodities e seus subproduto