HAMID, Sonia. Desintegrando Refugiados - Os Processos Do Reassentamento de Palestinos No Brasil

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  • Universidade de Braslia UnB Instituto de Cincias Sociais ICS Departamento de Antropologia - DAN Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social - PPGAS

    (Des)Integrando Refugiados: Os Processos do Reassentamento

    de Palestinos no Brasil

    Snia Cristina Hamid

    Braslia, 2012.

  • Snia Cristina Hamid

    (Des)Integrando Refugiados: Os Processos do Reassentamento de Palestinos no Brasil

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade de Braslia, em cumprimento s exigncias para obteno do ttulo de Doutor em Antropologia Social.

    Banca Examinadora:

    Presidente: Dra. Kelly Cristiane da Silva (Universidade de Braslia)

    Examinadora: Dra. Giralda Seyferth (Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro)

    Examinadora: Dra. Mariza Peirano (Universidade de Braslia)

    Examinadora Suplente: Dra. Ellen Woortmann (Universidade de Braslia)

    Examinador: Dra. Andra de Souza Lobo (Universidade de Braslia)

    Examinador: Dr. Leonardo Augusto Schiocchet (Universidade Federal Fluminense)

    Braslia, 2012.

  • Agradecimentos - shoukran

    Aps cinco anos de esforos para a concretizao deste trabalho, tenho inmeras pessoas a agradecer. Pessoas que, de distintas maneiras, me ofereceram a ddiva da amizade, do tempo, do conhecimento, do apoio, da confiana e do amor. Sem ela, definitivamente, no teria conseguido concluir este trabalho, nem me desconstruir e reinventar como pessoa/profissional. Espero que a concretizao deste trabalho seja vista como parte de minha contraddiva.

    Primeiramente, agradeo a todos os meus interlocutores de Braslia, So Paulo e Rio Grande do Sul, em especial aos refugiados palestinos e famlia de Mogi das Cruzes que me recebeu calorosamente em sua casa. Obrigada pela possibilidade de refletir sobre o refgio, pelo tempo a mim doado, pelas trocas variadas e pela confiana! Sem vocs, este trabalho no se realizaria!

    Ao CNPq, agradeo pela bolsa de doutorado que me permitiu realizar esta pesquisa com dedicao exclusiva.

    Agradeo minha orientadora, a professora Kelly Silva, por transmitir sua empolgao com a antropologia, pelo apoio e orientao. Com ela aprendi que um bom profissional se constri aos poucos, com trabalho, disciplina, curiosidade e alegria. Obrigada pela pacincia, pela generosidade e pela parceria!

    Agradeo aos professores que compuseram a minha banca Giralda Seiferth, Mariza Peirano, Leonardo Schiocchet, Andra Lobo e Ellen Woortmann pela disponibilidade em participar deste ritual, pelas ricas e provocantes contribuies. Agradeo, ainda, aos professores Daniel Simio e Carlos Alexandre pela disponibilidade em presidir a banca na ausncia de minha orientadora.

    No poderia esquecer os professores que participaram de minha banca de qualificao e que me deram importantes contribuies sobre o prosseguimento do trabalho: Gustavo Lins Ribeiro e Patrice Schuch. Agradeo, especialmente, Patrice pelas valiosas sugestes, pela generosidade em compartilhar bibliografias e pelo interesse em relao ao meu trabalho.

    Aos funcionrios do DAN, especialmente s competentes secretrias Rosa, Adriana e Cristiane. Muito obrigada por tudo!

    Agradeo aos professores do Departamento de Antropologia que fizeram parte de minha trajetria acadmica, influenciando meu modo de ver a antropologia e ser antroploga: Ellen Woortmann, Lia Zanotta, Luis Roberto Cardoso de Oliveira, Carla Teixeira, Trajano Filho, Cristina Patriota, Antondia Borges, Mariza Peirano e Patrice Schuch. Agradeo, ainda,

  • professora e amiga Leila Chalub por ter me apresentado, na graduao, os caminhos da antropologia.

    pesquisadora Bahia Munem, amiga que conquistei ao longo do trabalho de campo, agradeo por nossos constantes dilogos, pelas trocas generosas, por seu exemplo de comprometimento poltico e, sobretudo, pela amizade! Shoukran ktir ya ukhti.

    Angela Facundo, interlocutora sagaz, agradeo pelo apoio e pela amizade que estamos construindo.

    Agradeo aos amigos de sempre e para sempre que me acompanharam durante estes cinco anos, ouvindo minhas histrias sobre a tese, compreendendo minhas ausncias, dando-me alento, alegria e amor. Cristina, por nossas conversas cotidianas que tantas vezes me trouxeram paz, diverso e reflexo. Muito do que sou hoje constru ao longo de nossa amizade! Jaqueline, pelo apoio, palavras de incentivo e amizade de tantos anos. Voc faz parte da minha histria! Zahrinha linda, por compartilhar experincias to prximas s minhas, fazendo-me refletir e entend-las melhor. Enti ukhti kaman! Silvinha, pela leveza, pacincia e energia que passa a cada encontro e conversa. Alm d@s amig@s Ismael, Renata, Tannetti, Jlia, Brunner, Bruna e Xapa, pelas delcias da Jogatina.

    A todos os colegas do DAN que conheci ao longo destes sete anos. Em especial a(o)s amig@s feministas, que me fizeram feminista tambm: Anna Lcia Cunha, Priscila Calaf, Roderlei Goes e Moiss Lopes. Aos katacumbeiros: Silvia Monroy, Carlos Alexandre, Luis Cayon, Cristina Dias, Mrcia Leila, Lilian Chaves, Jlia Brussi, Yoko Nitahara, Sara Morais, Diego Soares, Roberta Salgueiro e Luciene Dias.

    Agradeo a minha famlia, que cresceu na medida em que escrevia a tese. Aos meus pais, Fawzi e Amina, por todos os ensinamentos e apoio que me transmitiram na vida, cada um a seu modo. Aos meus irmos, Jad e Nagi, pela f que sempre depositaram em mim e em meu trabalho. Tambm tenho muito orgulho de quem vocs so! s minhas cunhadas queridas, Carol e Krita, pela amizade e por todo carinho que transmitem nossa famlia. Ao Kaliq, meu sobrinho lindo, que encheu meu corao de alegria. Aos meus sogros, Fernando e Nazar; cunhados, Henrique, Laninha, Leo e Thalita; e seus filhos, Ana Luiza, Bianca, Paulo e Joo; pelo apoio e energia boa transmitidos a todo tempo.

    Por ltimo, agradeo ao Andr, meu amor, que se tornou, ao longo deste doutorado, meu companheiro de vida. Obrigada pela parceria, pelo cuidado comigo, por sua leveza e entusiasmo com a vida... Te quero to bem...

  • Ns nascemos no Iraque, mas no fomos iraquianos nem por um dia. (...) A ptria aquele annimo que desconhecemos totalmente. Desde que nascemos, ns, os palestinos, estamos fora dela. Crescemos de um exlio a outro, sem conhecermos uma ptria e sem uma ptria que queira nos conhecer. (...) Assim o palestino, de uma viagem a outra, de uma tenda a outra, de uma disperso a outra, de uma guerra a outra, e de uma paz ilusria a outra paz ilusria. Esse o palestino, o Ssifo de nossa poca, o Ssifo de uma poca perversa e sem fim. Mas tenho esperana de que esse incio na nova terra, no Brasil, seja o fim da viagem, o fim da viagem de Ssifo.

    (Depoimento de refugiado palestino presente no documentrio A Chave da Casa. *Diretores: Stela Grisotti e Paschoal Samora)

  • Resumo

    Esta tese tem como objeto os processos do reassentamento de um grupo de pouco mais de 100 refugiados palestinos pelo Estado brasileiro a partir do Programa de Reassentamento Solidrio. Trata-se de um grupo que, em sua maioria, vivia no Iraque, mas que, com a queda de Saddam Hussein devido interveno norte-americana, em 2003, e a instaurao de conflitos diversos em toda a regio, fugiu para a Jordnia, sendo instalados durante quase cinco anos no inspito campo de refugiados Ruweished. Longe de focar apenas os refugiados palestinos, esta tese analisa os processos e relaes mediante os quais o reassentamento foi negociado desde o campo de refugiados Ruweished at seis meses aps a finalizao do programa de reassentamento no Brasil por atores diversos (Estado brasileiro, Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados, entidades confessionais, organizaes e comunidades palestinas e libanesas, sociedade civil e os prprios refugiados); assim como as representaes que os perpassaram. Atravs destas anlises, esta tese busca apontar tanto as diferentes prticas de governo e produo destes palestinos, no mbito internacional, nacional e local, como sua agncia diante dos regimes de poder em que foram conformados. Considerando que uma idia central do reassentamento era o alcance da integrao sociedade brasileira, buscou-se focar as tecnologias de produo de sujeitos integrados e as formas como os refugiados se apropriaram, criticaram e subverteram o que lhes foi proposto.

    Palavras-Chave: refugiados palestinos; reassentamento; integrao; poltica e humanitarismo.

  • Abstract

    This thesis explores the resettlement process of a group of just over 100 Palestinian refugees in Brazil via the Solidarity Resettlement Program. The majority of the members of this group lived in Iraq until Saddam Husseins regime fell, as a result of the United States military intervention in 2003. The destabilization of the region, because of the conflicts that ensued after the invasion, lead this group to flee to Jordan, where they were instead placed for nearly five years in the inhospitable and hastily-installed Ruweished refugee camp. Far from only focusing on the Palestinian refugees, this thesis analyzes the processes and the mediating transactions and relations, between various actors (the Brazilian state, United Nations High Commissioner for Refugees-UNHCR, faith-based entities, Palestinian and Lebanese communities and organizations, civil society, and the refugees themselves), through which the resettlement was negotiated. It encompasses and spans the time from Ruweished camp until six months after the resettlement program concluded in Brazil and the representations that pervaded and permeated these processes. Through these analyses, this thesis seeks to both identify the different governmental practices and production of these Palestinians in local, national, and international contexts, as well as their agency within the regimes of power by which they were shaped. Whereas a central idea of this resettlement was the reach and scope of integration into Brazilian society, we aimed to focus on the technologies of production of integrated subjects and the ways in which the refugees appropriated, criticized, and subverted these proposed processes and ideas.

    Key Words: Palestinian refugees; resettlement; integration; policy and humanitarianism

  • Rsum

    La prsente thse a pour objet les processus dimplantation dun groupe dun peu plus de 100 rfugis palestiniens par ltat brsilien, par le biais du Programa de Reassentamento Solidrio (Programme Dimplantation Solidaire). Il sagit dun groupe qui vivait majoritairement en Irak et qui a d fuir de ce pays vers la Jordanie suite la chute de Saddam Hussein, en raison de lintervention militaire des Etats-Unis dAmrique, en 2003, et au dclenchement de nombreux conflits dans toute la rgion. Une fois en Jordanie, ces individus furent installs pendant cinq ans dans linhabitable camp de rfugis de Ruweished. Loin de sintresser uniquement aux rfugis palestiniens, cette thse analyse les processus et les relations travers lesquels limplantation fut ngocie - du camp de rfugis de Ruweished au six mois aprs la conclusion du programme dimplantation au Brsil - par une multiplicit dacteurs (ltat brsilien, le Haut Commissariat des Nations Unies pour les Rfugis, des entits confessionnelles, des organisations et des communauts palestiniennes et libanaises, la socit civile et les rfugis eux-mmes), tout comme les reprsentations postrieures ces processus. Par le biais de ces analyses, la prsente thse cherche signaler les diffrentes pratiques du gouvernement et la production de ces Palestiniens, au niveau international, national et local, tout comme leur capacite daction face aux rgimes de pouvoir dans lesquels ils se sont retrouvs. Dans la mesure o la principale notion mobilise pour penser le processus d'implantation est celle dintgration la socit brsilienne, cette recherche s'attache mettre en avant les technologies de production de sujets intgrs et les formes dont les rfugis ont critiqu, subverti et se sont appropri ce qui leur a t propos.

    Mots-Cls: rfugis palestiniens; implantation; intgration; politique et humanitarisme.

  • Lista de ilustraes

    Figura 1 Plano de Partio das Naes Unidas (1947) e Acordo de Armistcio (1949) Figura 2 Territrios conquistados e ocupados por Israel em 1967 Figura 3 Vista da entrada do conjunto residencial. Aos fundos, Lago Parano Figura 4 Acampamento dos refugiados palestinos em agosto de 2008 Figura 5 Acampamento dos refugiados palestinos em abril de 2009. Figura 6 Fogareiro improvisado dentro do acampamento

  • Lista de tabelas

    Tabela 1 Discriminao por nacionalidade dos imigrantes entrando no Brasil no perodo 1884-1939 (Imigrao do Oriente Mdio para o Brasil, 1884-1939)

  • Lista de abreviaturas e siglas

    ACNUR Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados ANP Autoridade Nacional Palestina (ANP) ASAV Associao Antnio Vieira BRICS Brasil, Rssia, ndia, China e frica do Sul CDDH Centro de Defesa dos Direitos Humanos CJP Comisso de Justia e Paz CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNPIR Conselho Nacional de Promoo da Igualdade Racial Conapir Conferncia Nacional de Promoo da Igualdade Racial Conare Comit Nacional para os Refugiados CSNU Conselho de Segurana das Naes Unidas DEPB Delegao Especial da Palestina no Brasil FARCs Foras Armadas Revolucionrias da Colmbia Fatah Movimento de Libertao Nacional da Palestina FDLP Frente Democrtica pela Libertao da Palestina FEPAL Federao rabe Palestina do Brasil FPLP Frente Popular pela Libertao da Palestina IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IGCR Intergovernmental Comittee on Refugees

    IMDH Instituto Migraes e Direitos Humanos

    IPEA Fundao Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada IRO International Refugee Organization MOPAT Movimento Palestina para Tod@s OIR Organizao Internacional de Refugiados OLP Organizao pela Libertao da Palestina ONU Organizao das Naes Unidas PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento UNHCR United Nation High Comissioner for Refugee UNRRA United Nation Relief and Rehabilitation Administration UNRWA United Nation Relief and Work Agency for Palestinian Refugee

  • Sumrio Lista de ilustraes Lista de tabelas Lista de abreviaturas e siglas

    IInnttrroodduuoo ..................................................................................................................... 014

    CCaappttuulloo 11 Negociaes do reassentamento dos refugiados palestinos no marco internacional .................................................................................................................

    037

    1.1 A Fuga do Iraque e o campo Ruwesheid .................................................................. 039 1.2 Se eu soubesse que seriam cinco anos...: a espera no campo de refugiados Ruwesheid .....................................................................................................................

    043 1.3 A construo do problema dos refugiados palestinos .............................................. 046 1.4 O Tratamento do refgio pelo ACNUR e pela UNRWA .......................................... 055 1.5 Os Pases rabes e os refugiados palestinos ............................................................ 062 1.6 Os palestinos do Iraque .............................................................................................. 066 1.7 Negociando o reassentamento dos refugiados palestinos: a importncia de um ativista ............................................................................................................................

    069 1.8 O Brasil ou... O Brasil: o que pensavam os refugiados palestinos de Ruwesheid? ..

    079

    CCaappttuulloo 22 A poltica do discurso humanitrio brasileiro: histria, conjuntura e sentimentos ......................................................................................................................

    082

    2.1 Histria: desnaturalizando a receptividade nacional em relao ao estrangeiro/refugiado ........................................................................................................

    086 2.1.1 De imigrantes assrios a refugiados do Iraque ........................................... 088 2.1.2 Judeus: subversivos, comunistas e desinteressantes para a economia do Brasil .........................................................................................................................

    090

    2.1.3 Poltica brasileira de refgio aps a Segunda Guerra Mundial .......................... 092 2.1.4 Mudanas no Regime Internacional de Refugiados e a adeso restritiva do Brasil .........................................................................................................................

    095 2.1.5 A Questo dos refugiados entre 1980 e 1997 ...................................................... 097 2.1.6 A Lei 9474/97, o Conare e o Acordo Macro para o Reassentamento de refugiados ..................................................................................................................

    101 2.1.7 Problematizando o discurso humanitrio brasileiro ........................................... 103

    2.2 Conjuntura: o contexto poltico brasileiro no perodo da vinda dos refugiados palestinos .......................................................................................................................

    105 2.3 Sentimentos: mobilizando emoes - a importncia do vdeo Nenhum lugar para onde fugir .....................................................................................................................

    111 2.3.1 Contextualizando a produo de uma imagem dos refugiados palestinos ......... 114 2.3.2 Nenhum lugar para onde fugir ......................................................................... 115 2.3.3 Dos Pressupostos e expectativas da ao salvadora e seus efeitos ..................... 118 2.3.4 Problematizando o procedimento de acolhida dos refugiados ..........................

    121

    CCaappttuulloo 33 Pressupostos da integrao: Separar para integrar e a diferena cultural como problema ...........................................................................................

    125

    3.1 Entendendo o Programa de Reassentamento Solidrio ............................................ 127

  • 3.2 O programa de reassentamento da Critas: a experincia com os colombianos ......... 128 3.3 Os preparativos para a chegada dos palestinos ....................................................... 130 3.4 Pressupostos da integrao .................................................................................. 138 3.5 Repertrio de insatisfaes: os primeiros tempos do programa de reassentamento e as estratgias dos refugiados ..........................................................................................

    139 3.5.1 As Promessas feitas no campo Ruwesheid e a chegada ao Brasil ...................... 140 3.5.2 A Proposta de integrao e sua subverso pelos refugiados ......................... 142 3.5.3 A questo do tratamento de sade .................................................................... 147 3.5.4 As Aulas de portugus ...................................................................................... 149 3.5.5 Os problemas referentes ao aprendizado como decorrentes da cultura: a viso da coordenadora do curso de portugus ....................................................................

    153 3.6 A agente de integrao Sheila, o problema da cultura e a produo dos palestinos como refugiados perigosos ........................................................................

    158 3.6.1 De refugiados em perigo a refugiados perigosos ...................................... 162 3.6.2 A polcia como agente de integrao ................................................................ 165

    3.7 O problema da cultura e a cultura como problema: algumas consideraes ............

    170

    CCaappttuulloo 44 - Os protestos dos refugiados e a definio estatal sobre refugiados mais e menos desejveis ............................................................................................................

    174

    4.1 O acampamento ...................................................................................................... 175 4.2 Faysal e o protesto .............................................................................................. 181 4.3 Nasser: negociaes com o ACNUR e estratgias para a sada do Brasil ............... 186 4.4 Dr. Roberto: o discurso do representante do Conare .............................................. 193 4.5 Palestinos: refugiados indesejveis algumas consideraes ................................. 198 CCaappttuulloo 55 - A comunidade palestino-libanesa e sua relao com os refugiados ..........

    201

    5.1 A Imigrao palestina ao Brasil ............................................................................... 202 5.1.1 Aps 1948 ........................................................................................................ 207 5.1.2 Refugiados de ontem e de hoje .......................................................................... 212

    5.2 A comunidade palestina e sua relao com os refugiados ........................................ 215 5.2.1 Posies da Delegao Especial da Palestina no Brasil e da Federao Palestina no Brasil ....................................................................................................

    215 5.2.2 A Vinda dos refugiados e a comunidade palestina paulista ............................. 217 5.2.3 Posies quanto ao direito de retorno ......................................................... 220 5.2.4 Enquadramento da vinda dos refugiados nas diferentes posies polticas locais .............................................................................................................................

    225 5.3 Divergncias na Promoo da Igualdade .............................................................. 229

    5.3.1 O Protesto ........................................................................................................ 231 5.3.2 Os refugiados, os movimentos sociais e a delegao palestina na Conapir ...... 233

    5.4 As Organizaes palestinas e os refugiados: algumas consideraes ...................... 239 5.5 Relaes apartadas: a comunidade rabe de Mogi das Cruzes e os refugiados ........ 240

    5.5.1 Os Libaneses e os palestinos de Mogi das Cruzes ............................................. 241 5.5.2 Identificaes e diferenas: relaes entre os rabes estabelecidos e os refugiados .................................................................................................................

    243 5.5.3 Comparando trajetrias ................................................................................... 247 5.5.4 Identidades e diferenas: algumas consideraes ...............................................

    252

    CCaappttuulloo 66 - Os (des)caminhos da integrao: percursos de uma famlia refugiada ......

    256

  • 6.1 Vivendo com a famlia Abdallah ............................................................................. 258 6.2 Trabalho .................................................................................................................. 261

    6.2.1 Separaes e aproximaes indesejadas: mobilidade e reorganizao familiar . 264 6.2.2 Entre a perda de empregos e a validao de diplomas ..................................... 267 6.2.3 Tempos de mudanas: novos empregos e seus reflexos nas relaes de gnero . 271 6.2.4 Os tortuosos percursos para o alcance, a traduo, o reconhecimento e a validao de diplomas ...............................................................................................

    274 6.3 A sade da integrao ............................................................................................... 277 6.4 Reflexes, desde o Brasil, sobre a condio de esposa de palestino ........................ 284 6.5 Documentos: busca pelo trnsito internacional e por direitos locais ....................... 287 6.6 A busca pela mudana do status de refugiado ......................................................... 291 6.7 Sem emprego, sem casa prpria, sem documento: notcias de junho/julho .............

    300

    CCoonnssiiddeerraaeess ffiinnaaiiss .........................................................................................................

    307

    RReeffeerrnncciiaass ....................................................................................................................

    317

  • IInnttrroodduuoo

    Em meados de 2007, o Estado brasileiro props-se a reassentar pouco mais de 100 refugiados palestinos em seu territrio. Tratava-se de um grupo que, durante quase cinco

    anos, viveu no inspito campo de refugiados Ruwesheid, localizado em meio ao deserto, na fronteira entre a Jordnia e o Iraque. A fuga para o campo, em abril de 2003, se deu em

    consequncia de guerra civil no Iraque, pas onde j se encontravam em refgio, desencadeada aps a invaso americana e a posterior destituio de Saddam Hussein do poder1.

    O reassentamento desta populao no Brasil se deu no mbito do Programa de Reassentamento Solidrio, elaborado e liderado pelo Brasil durante o Plano de Ao do Mxico, em 2004. Embora pensado inicialmente para receber apenas refugiados da Amrica

    Latina provenientes de conflitos da regio, o programa brasileiro foi o primeiro pas latino-americano a reassentar refugiados de outros continentes. O processo de reassentamento dos palestinos, iniciado em setembro e outubro de 2007 e finalizado em dezembro de 2009, foi coordenado pelo Comit Nacional para os Refugiados (Conare) do Ministrio da Justia, pelo Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados (ACNUR) e por organizaes da sociedade civil, representada, neste caso, por entidades confessionais como a Critas Brasileira, de So Paulo, e a Associao Antnio Vieira (ASAV), do Rio Grande do Sul, estados estes escolhidos para o reassentamento. A ideia era que cada uma destas entidades se responsabilizasse, de diferentes maneiras, pela integrao do refugiado sociedade

    brasileira, o que deveria ocorrer ao longo dos dois anos do programa. O perfil dos refugiados reassentados no era de modo algum uniforme, sendo marcado

    pela variedade de condies e trajetrias: havia idosos, jovens e crianas; homens solteiros sozinhos e famlias; refugiados com alto nvel de instruo e outros analfabetos; uma famlia crist em meio maioria muulmana; gente nascida na Palestina, mas a maior parte no Iraque2. A este respeito, preciso esclarecer que esses palestinos (nascidos ou no no Iraque) jamais gozaram de cidadania iraquiana, sendo tratados como refugiados palestinos pelos

    1 Ressalto que o reassentamento, assim como o repatriamento e a integrao local, tem sido utilizado como uma

    tecnologia de governo de populao refugiada pela comunidade internacional a fim de resolver, de modo duradouro, o problema do refugiado. Tratar-se-ia de uma medida adotada para aqueles refugiados que no conseguiram se integrar ao primeiro pas de asilo, seja pela ausncia de condies sociais locais, seja por ainda estar correndo perigo. 2 Segundo o relato do Oficial de Informao Pblica do ACNUR, Luiz Fernando Godinho, dado pesquisadora

    norte-americana Bahia Munem, o grupo seria composto por 36% de mulheres e 64% de homens. Cerca de 70% deles teriam entre 18-59 anos; 10% teriam mais de 60 anos e 11% teriam entre 5-11 anos.

  • 15

    dirigentes deste pas, seguindo uma tendncia assumida pela maioria dos pases rabes vizinhos.

    A presente tese tem como objeto de anlise os processos do reassentamento destes refugiados palestinos. Sua discusso, no entanto, no se centra apenas nos refugiados, nem

    toma tal grupo como uma comunidade em um lugar eterno (Malkki, 1995:01). O foco recai sobre o conjunto de processos e relaes por meio do qual o reassentamento foi negociado, desde o campo de refugiados Ruwesheid at seis meses aps a finalizao do programa no Brasil, pelos vrios atores nele envolvidos. Mediante tal anlise, o objetivo trazer tona o repertrio de representaes, categorias e expectativas que orientaram tais processos e relaes, mas tambm problematizar seu contedo, especificando o modo como

    cada um desses atores (instituies oficialmente encarregadas pela integrao; organizaes civis que apoiaram os refugiados; e os prprios refugiados) aciona todo este repertrio. A ideia que o foco nestas diferentes relaes permita perceber as vrias dimenses local, nacional e inter-(ou trans)-nacional em que se coloca o reassentamento.

    Para alcanar esse objetivo, comeo discutindo a negociao, no marco internacional, da retirada destes palestinos do campo de refugiados na Jordnia antes mesmo que se soubesse onde seriam reassentados. Prossigo descortinando as diversas questes que mobilizaram a deciso brasileira de aqui reassent-los, e aponto como a representao do refugiado como vtima e do Brasil como um pas hospitaleiro e capaz de acolher estes palestinos, engendrou expectativas mtuas, alm de frustraes e embates. Com base nesta discusso, sugiro que as prticas de governo destinadas integrao dos refugiados

    sociedade brasileira refletem a forma como historicamente o Brasil lidou com a diferena. Em continuidade, abordo como a interao entre os refugiados e a comunidade rabe no

    pas foi marcada tanto pelo problema poltico que envolve os palestinos, quanto pela viso que os integrantes desta comunidade tm sobre seu prprio processo de insero nacional. Ao final, exploro como alguns dos refugiados lidaram com as condies colocadas, seno impostas, pelo Estado brasileiro, influenciando sua maior ou menor integrao.

    Neste percurso no qual o reassentamento negociado, interessa-me pensar como os palestinos foram diferentemente (con)formados e ao mesmo tempo agiram nos e sobre os contextos pelos quais passaram. Assim, busco discutir tanto as prticas que os tornam governveis atravs de tecnologias de controle, normalizao e modelagem de suas condutas (Foucault, 2004; 2009), quanto sua agncia diante deste regime de poder/conhecimento no qual so conformados. Considerando que, no contexto brasileiro, um ponto central do

    reassentamento foi a integrao dos refugiados, procurei observar tanto as tecnologias de

  • 16

    produo de sujeitos integrados pelas instituies e grupos que tem interagido com os refugiados, quanto as prprias formas como eles lidaram com esta integrao (apropriando-se, criticando e/ou subvertendo-a). Conforme entendido por Ong (2003), cidadania uma ideia que remete a esta dupla dimenso da questo, na medida em que ela no se resume ao

    status legal do refugiado ou a seus direitos e deveres frente ao Estado que o acolhe, mas tambm engloba o conjunto de prticas cotidianas, mediadas por valores referentes famlia, ao trabalho e ao gnero, por exemplo, que visam torn-lo um bom cidado do pas. Tratar-se-ia de refletir sobre as regras, prticas e valores acionados pelos atores institucionais e a forma como so apropriadas pelos palestinos nessa jornada de aprender a pertencer ao novo territrio.

    Ao longo desta tese, o foco nos processos de negociao do reassentamento permitir apreender as diferentes faces das agncias nele envolvidas e o modo como condicionam os

    resultados alcanados. Desse modo, facetas especficas do Estado brasileiro em sua tentativa de visibilizao internacional e em sua poltica interna para refugiados sero vislumbradas. Ela lanar luz sobre como a ideia de integrao dos outros foi e vem sendo pensada e colocada em prtica no contexto brasileiro. De outra perspectiva, tal pesquisa possibilitar a reflexo sobre os contnuos efeitos da ocupao do territrio palestino para as geraes evadidas da regio, seja produzindo mltiplos deslocamentos, seja nas contnuas necessidades de reintegrao em contextos variados.

    Construindo um objeto de pesquisa

    A definio do tema e do objetivo da tese constitui, na maioria das vezes, um desafio ao antroplogo que busca dar um norte e um sentido s experincias diversas que teve ao longo de seu trabalho de campo. Durante muito tempo em minha pesquisa, imersa em inmeras questes que pareciam importantes para meus interlocutores e para mim mesma,

    tive grandes dificuldades de definir qual deles orientariam a discusso da tese. Ao olhar

    retrospectivamente, porm, vejo que o tema escolhido j se evidenciava em minhas primeiras interaes com os refugiados palestinos. pensando no potencial destes encontros iniciais que os descrevo a seguir para esclarecer as escolhas feitas neste trabalho.

    No final de agosto de 2008, regressei do Chile, local onde a princpio desenvolveria minha pesquisa de doutorado. Havia passado um ms no pas fazendo contatos diversos, interessada que estava em entender sobre a maior comunidade palestina fora dos pases

    rabes, e que guardava ainda a especificidade de ser crist. Meu intuito era o de pesquisar

  • 17

    como as vrias geraes de imigrantes e seus descendentes pensavam a Palestina e como construam sua palestinidade naquele pas. Com isso, buscava expandir meu tema de pesquisa do mestrado, cujo foco foi a construo de memrias e identidades de mulheres palestinas em Braslia. Ao retornar de viagem, porm, me deparei com a notcia de que um

    grupo de refugiados palestinos se encontrava acampado em frente ao escritrio do Alto Comissariado das Naes Unidas, em Braslia.

    Aps oito meses vivendo nas cidades em que foram reassentados, tais refugiados vieram a Braslia protestar, estando a mais de cem dias acampado. Em linhas gerais, eles reclamavam da assistncia dispensada pelas instituies Critas e ASAV responsveis pela integrao em Mogi das Cruzes e no Rio Grande do Sul, da grande dificuldade de

    acessar o sistema pblico de sade, dos problemas para conseguir emprego, do baixo valor da bolsa subsistncia a que faziam jus, e do desafio de aprender o portugus3. Partindo desse quadro, eles no apenas reivindicavam uma melhoria do programa, mas tambm questionavam a deciso brasileira de t-los reassentado, demandando sua transferncia para pases que tradicionalmente acolhem refugiados, como a Sucia, os Estados Unidos, o Canad, a Nova Zelndia ou a Austrlia.

    Em minha primeira visita a este acampamento, em agosto, descobri que cinco dos nove manifestantes j haviam regressado s respectivas cidades, dada a promessa, mediada inclusive pelo Ministrio Pblico Federal (MPF), de que teriam suas demandas atendidas. A conversa com aqueles que permaneceram, no entanto, revelou o quo tensas estavam as

    relaes com a Agncia internacional, uma vez que ela tanto teria suspendido a referida bolsa

    para pression-los a retornar aos estados, quanto solicitado aos vizinhos que no ajudassem os refugiados com comida e dinheiro. Na ocasio, ao tentar falar com algum funcionrio da

    Agncia, um dos vigias do escritrio comunicou que os funcionrios haviam deixado de trabalhar por alguns dias, tendo em vista problemas de relao com os refugiados.

    Como observaria tempos depois, certos representantes do Conare acusavam os palestinos que estavam acampando em frente sede do ACNUR de ingratos, uma vez que o

    Brasil foi o nico pas que os recebeu sem estabelecer qualquer processo seletivo, procedimento usual para o reassentamento de refugiados. Estes, em seus termos, se

    3 Ao longo dos dois anos do programa de reassentamento, os refugiados seriam beneficiados com casas alugadas

    e mobiliadas, assistncia financeira, aulas de portugus, subsdios para a compra de remdios, direito de acesso educao e sade pblicas e documentos de identificao (RNE Registro Nacional de Estrangeiro), Cadastro de Pessoas Fsicas (CPF) e Carteira de Trabalho. Enquanto o Conare seria o responsvel pela concesso de tais documentos e dos acessos sade e educao mencionados, o programa de reassentamento seria gerido e financiado pelo ACNUR e executado, nos Estados, pelas organizaes confessionais.

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    configuravam como os ltimos do campo, o resto, aqueles que ningum quis, tendo sido o Estado brasileiro o nico a aceit-los.

    Sobre as negociaes referentes vinda dos refugiados, o que as notcias e meus interlocutores ligados s organizaes responsveis pelo reassentamento informavam, era que

    a acolhida destes refugiados pelo pas se configurou como uma ao estritamente humanitria do Estado brasileiro, o que foi apontada como um reflexo de sua

    hospitalidade histrica com os imigrantes e refugiados, alm de respeito e boa convivncia com a diferena. Em ltima instncia, o Brasil, nestes termos, anunciava uma continuidade entre o carter hospitaleiro de seu povo e seu pas e sua postura humanitria.

    Decidida a estudar este reassentamento, viajei s cidades de So Paulo e Mogi das Cruzes, de modo a desenvolver um pr-campo sobre a situao dos refugiados neste ltimo local. Meu primeiro contato foi com o coordenador da Critas que, aps um ano da vinda dos

    refugiados palestinos, relatava seus problemas e dificuldades. Por um lado, devido s inmeras reclamaes e demandas do grupo, ele acusaria os refugiados de dependentes, oriundo de um contexto assistencialista, o que os levava a querer estabelecer este tipo de relao com a organizao local. Por outro, ele constatava que o problema dos palestinos estava em sua diferena cultural, cujo contedo variava entre a agressividade, a falta de apreo pela vida (eles sempre ameaariam fazer greve de fome, por exemplo) ou a desigualdade das relaes de gnero. Tais atitudes, dizia ele, os diferenciava de outros refugiados, sobretudo os colombianos, que, por sua proximidade cultural, se mostravam agradecidos em relao ao que recebiam, se integrando facilmente ao contexto local. Por

    ltimo, o coordenador tambm fazia referncia aos movimentos palestinos locais, os quais teriam se aproximado dos refugiados sem entender ao certo o programa de reassentamento,

    intervindo a partir de seus interesses polticos relacionados questo palestina. Sobre isso, ele reiterava que a causa da Critas no era poltica, mas humanitria.

    Aps este encontro, consegui agendar uma conversa com um membro do movimento palestino local que havia mobilizado um grupo de pessoas de origem palestina, alm de

    brasileiros, para auxiliar os refugiados em Mogi das Cruzes. Em nossa conversa, ele falou sobre a dificuldade que tiveram de saber onde os refugiados estavam alocados, o que os

    impossibilitou de auxili-los desde o momento de sua chegada. Tal dificuldade, segundo ele, teria sido tanto decorrente da recusa da Critas de inform-los sobre onde os refugiados estavam vivendo, de maneira a mant-los apartados dos movimentos palestinos locais; quanto da prpria postura da organizao palestina que representa as associaes afins pelo Brasil.

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    Esta, sendo contrria ao reassentamento, no queria assumir qualquer responsabilidade ou relao com o processo de sua vinda.

    Com efeito, como viria a saber depois, durante as negociaes para o reassentamento dos refugiados no pas, tanto a Delegao Especial da Palestina no Brasil (rgo que funciona como embaixada), quanto a Federao rabe Palestina local (organizao que representa as associaes palestinas no Brasil) teriam sido contrrias ao reassentamento, sob o argumento de que a soluo para o problema dos refugiados palestinos no estaria em sua disperso pelos vrios pases do mundo, mas na concretizao de seu direito de retorno a Palestina. A manuteno da presena deles em campos de refugiados ou nas proximidades deste territrio seria, portanto, uma manifestao constante do problema dos refugiados

    palestinos e da responsabilidade de Israel sobre a sua criao. Tal posicionamento das organizaes mencionadas recrudesceria os embates internos entre os movimentos palestinos

    locais, os quais teriam posturas diversas em relao ao discurso referente ao direito de retorno ou sobre o tipo de apoio que deveriam dar aos refugiados.

    Nesta mesma viagem, tive ainda a oportunidade de ir at Mogi das Cruzes para conhecer algumas famlias refugiadas. Entre as famlias que contatei, as preocupaes tambm giravam em torno da assistncia dispensada pela Critas e ao temor de que no conseguiriam sobreviver aps o trmino do auxlio financeiro internacional. Elas diziam respeito, ainda, s dificuldades cotidianas enfrentadas por eles, como a de abrir contas em banco, conseguir atendimento nos hospitais, aprender o portugus, regularizar seus documentos, encontrar emprego ou estudar.

    Ao retonar a Braslia, no final de 2008, precisava digerir aquela intensa experincia to cheia de informaes fragmentadas, acusaes mtuas e atores diversos. Como daria

    sentido e norte a todas elas? Embora tivesse estudado sobre a imigrao palestina no mestrado, o que me colocava a par de vrias questes histricas e polticas concernentes aos palestinos, aquela experincia se mostrava completamente nova, tanto porque aqueles

    reassentados estavam numa condio distinta no pas, sob o status oficial de refugiado

    condio que os colocava em relao a um conjunto diverso de instituies, prticas e discursos; quanto por eu no estar diante do que s vezes frouxamente definimos como um

    grupo ou uma comunidade que se encontra delimitada territorialmente. Quando aponto, alm disso, para a diversidade de atores que compunha este campo,

    no estou me referindo apenas ao embate entre refugiados, Agncias de reassentamento ou comunidade rabe, mas tambm s diferenciaes de posio existentes no interior de cada

    um destes distintos grupos. Diante disso, fui percebendo que, melhor que focar atores

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    especficos, seria buscar entender os processos atravs dos quais o reassentamento vinha sendo constantemente negociado por todos eles. Por outro lado, as vrias acusaes dos representantes das organizaes que lidavam com os refugiados, assim como a crescente insatisfao destes com os procedimentos adotados no reassentamento, indicavam diferentes

    expectativas sobre como deveria se dar sua integrao sociedade brasileira. Para tratar etnograficamente unidades de anlise como esta proposta na tese,

    interessante pensarmos na contribuio dada por Little (2006), cuja proposta a de uma etnografia multiator. Ao sugerir que o conflito, e no um grupo social particular, seja a unidade de anlise nos estudos sobre conflitos socioambientais, o autor prope uma metodologia processual, a partir da qual o antroplogo ir lidar simultaneamente com vrios grupos sociais e mapear as polarizaes das posies, as alianas, as coalizaes, assim como as mudanas destas ao longo de um perodo de tempo. A abordagem antropolgica

    possibilitaria, para alm do mapeamento dos embates polticos ou econmicos, uma apreenso dos elementos cosmolgicos, rituais, identitrios e morais envolvidos no conflito. Alm destas reflexes, caberia pensarmos na contribuio de Marcus (1995:95), cuja proposio a de uma etnografia multissituada (multi-sited ethnography) pautada no descolamento da pesquisa tradicional, focada em um nico local, para a observao e participao em mltiplos stios, rompendo as dicotomias entre local/global ou vida cotidiana/sistema mundo.

    Os riscos destas abordagens seriam a perda de uma descrio densa (Geertz, 1989), possvel a partir de um longo perodo em um nico local. De fato, como aponta Little (2006) este tipo de pesquisa nunca seria exaustivo, uma vez que o etngrafo teria que tratar dos

    diversos grupos envolvidos. A meta, no entanto, seria justamente a compreenso de seus conflitos e suas inter-relaes. Alm disso, Marcus (1995) acrescentaria que o objetivo da etnografia multissituada no seria o de abrir mo de uma abordagem localizada e densa ou o de propor a apreenso da totalidade, mas o de entender as conexes entre localidades e imaginrios diferenciados.

    Partindo das contribuies destes autores, ressalto que o objetivo desta tese tampouco o de trazer uma descrio aprofundada sobre os grupos envolvidos com o reassentamento dos refugiados palestinos, mas o de descrev-los apenas na medida em que nos ajudam a entender melhor as negociaes envolvidas no mencionado reassentamento, assim como os processos de produo e autoproduo dos refugiados. Alm disso, para contornar uma possvel perda de densidade analtica, busquei estabelecer relaes em todos os lugares pelos quais passei, alm de metodologias diversas, a partir das condies encontradas em cada um

    deles, conforme discutirei na penltima seo. Ressalto que meu trnsito entre lugares e

  • 21

    imaginrios possibilitou que as dimenses locais, nacionais, (inter) e (trans)nacionais envolvidas no reassentamento no fossem vistas de forma verticalizadas, como se estivessem sobrepostas umas as outras, mas como dimenses que tambm so negociadas localmente.

    Perspectivas analticas

    A complexidade da questo do refgio abre aos antroplogos mltiplas possibilidades de abordagem, desafiando-os a repensar temas classicamente estudados pela disciplina. Com efeito, o deslocamento e a posio liminar ocupada pelo refugiado, sobretudo o palestino, no sistema de Estado-Nao incita novas reflexes sobre nao, conscincia nacional, condio

    de estar sem Estado e cidadania, alm de conceitos como cultura, comunidade e identidade, em geral vistas como unidades territorializadas ou como identificveis na ordem das

    nacionalidades (Malkki, 1992, 1995). Considerando meu interesse de pesquisa os processos de produo e autoproduo

    dos refugiados, sobretudo no Estado nacional focarei a relao entre Estado-Nao, condio do refugiado e questes referentes cidadania. Para isso, apontarei, por um lado, como certas discusses sobre refugiados estabelecem uma relao entre ausncia de Estado e ausncia de direitos. Disso resultaria, em parte, sua representao e tratamento pelas Agncias internacionais como vtimas ou meramente humanos (Arendt, 2007; Agier, 2006; Agamben, 2007; Malkki, 1996). Ao final, delinearei uma abordagem de anlise que no ir focar apenas no status legal do refugiado, mas nos processos de formao de sujeitos.

    Nas mencionadas discusses sobre refugiado, a ideia de Estado-Nao apresenta-se como central para sua compreenso. Embora boa parte da literatura da dcada de 1980/90 sobre globalizao e transnacionalismo sugerisse o enfraquecimento do Estado-Nao (processos polticos de unificao como a Unio Europeia, migraes e disporas, multiplicao de ONGs, organizaes de ajuda humanitria, entidades transnacionais), os estudos com refugiados desvelariam que ele, ao contrrio, seguiria com profundos efeitos

    sobre a vida dos sujeitos (Agier, 2006; Aretxaga, 2003; Trouillot 2001). Conforme explica Malkki (1995: 05), longe de se apresentar apenas como um sistema

    poltico em sentido estrito, o Estado-Nao seria um poderoso regime de ordenamento e conhecimento que , ao mesmo tempo, poltico-econmico, histrico, cultural, esttico e

    cosmolgico. Ao funcionar como um regime de classificao (ou como categorical order) que seleciona e ordena os povos em tipos nacionais, a autora mostra como esse moderno

    sistema tornou-se uma ordem natural/nacional das coisas em vrias dimenses da vida

  • 22

    humana. Tal conceito remeteria a ideia de que, embora o Estado estivesse associado a um local e tempo particulares, ele simultaneamente constituiria uma forma cultural transnacional

    e supralocal.

    O refugiado, produzido por essa lgica estatal atravs de sua expulso, ao mesmo

    tempo em que representaria um desafio a ela (nao = um povo e um territrio), tambm revelaria a sua fora. Ao ser colocado em uma posio liminar, transitria e

    inclassificvel, conforme aponta Malkki (1995:6-7), ele se transformaria em uma categoria perigosa e poluidora da ordem nacional das coisas. Com efeito, o fato de passarem a no estar associados a nenhum ponto fixo neste sistema de comunidades nacionais imaginadas 4, os levariam a ser vistos pelos outros pases como um problema e uma ameaa segurana

    e s fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo, a ideia de no estarem subsumidos a um Estado-Nao os levariam a ser percebidos e tratados como desprovidos de identidade, cultura e

    direitos. Hannah Arendt (2007), ao tratar do massivo nmero de minorias e aptridas na Europa

    decorrentes da formao de novos Estados-Naes e da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, aponta como a completa excluso de minorias do pas onde viviam (e a recusa de qualquer outro em aceit-los) representou a perda de todos os seus direitos, mesmo aqueles considerados inalienveis, o que os obrigou a viver sob leis de exceo ou sob condies de absoluta ausncia da lei. Partindo disso, a autora desvela como os Direitos do Homem, pautados na ideia de dignidade humana e invocados sempre que um indivduo precisasse de proteo contra a nova soberania, mostraram-se desprovidos de qualquer tutela e realidade no

    momento em que no foi mais possvel classific-los como direitos dos cidados de um Estado.

    Esta ligao entre os Direitos do Homem e os Direitos do cidado tambm foi esmiuada por Agamben (2007), a partir do marco da biopoltica e de sua ideia de homo sacer. Para ele, a Declarao de Direitos, j nomeada Dclaration de droit de lhomme et du citoyen, deve ser entendida como a inscrio da vida natural (puro nascimento) na ordem jurdico-poltica do Estado-Nao. A vida nua tornou-se, assim, a origem e o fundamento da soberania estatal.

    4 Este termo foi cunhado primeiramente por Benedict Anderson [1983] (2008: 32-34), em seu livro

    Comunidades Imaginadas. Para o autor, ela imaginada porque os sujeitos se concebem ligados a pessoas que nunca viram; porque, independente da desigualdade e explorao existentes em seu interior, ela concebida como uma camaradagem horizontal; limitada porque possui fronteiras finitas; imagina-se como soberana porque nasceu na poca em que o iluminismo e a Revoluo estavam destruindo a legitimidade do Reino Dinstico hierrquico de ordem divina.

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    A fico a implcita a de que o nascimento torne-se imediatamente nao, de modo que entre os dois termos no possa ter resduo algum. Os direitos so atribudos ao homem (ou brotam dele), somente na medida em que ele o fundamento dissipante (e que, alis, no deve nunca vir luz como tal), do cidado (AGAMBEN, 2007: 135).

    Para Agamben, o surgimento massivo de refugiados a partir da Primeira Guerra Mundial representou justamente o rompimento dessa continuidade entre o homem e o cidado ou entre nascimento e nao, colocando em xeque a fico da soberania moderna. Se antes toda a vida natural era vista imediatamente como fonte de direitos, agora redefinida pelo Estado-Nao, que passa a discriminar em seu interior uma vida autntica de uma vida nua/sacra (vida matvel e insacrificvel). Se anteriormente os direitos do homem e do cidado eram contguos, assistir-se-ia ao seu afastamento e a consequente separao entre o humanitrio e o poltico. O autor denuncia que as instituies humanitrias, ao estarem

    separadas da esfera poltica, no fazem mais do que representar e proteger a vida nua/sacra, reproduzindo seu isolamento.

    A pesquisa desenvolvida por Malkki (1995, 1996) com refugiados hutus em campos de refugiados na Tanznia se aproximaria desta ltima ideia ao mostrar que as instituies humanitrias reproduzem discursos e imagens padronizados sobre os refugiados, caracterizando-os como meras vtimas, puramente humanos, corpos feridos amontoados

    sem histria ou identidade ou como um tipo generalizado e idealizado. O efeito da universalizao de grupos deslocados particulares na categoria refugiado e o seu tratamento

    como apenas humano, argumenta a autora, tem sido, justamente, a desistoricizao, a despolitizao e o consequente silenciamento desses sujeitos.

    Ao descentrar o olhar do ponto de vista estatal, Malkki, no entanto, tambm sugere alguns problemas para a mencionada separao. Se, ao apontar as vises das instituies

    humanitrias, a autora se aproxima do argumento de que tem havido uma ruptura entre o homem e o cidado e entre o humanitrio e o poltico, seu olhar sobre as representaes dos

    prprios refugiados tende a desmantelar tais dicotomias. A autora mostra que enquanto para as instituies o sujeito verdadeiramente refugiado no momento em que chega ao campo, situao em que est mais fragilizado, para os hutus por ela estudados tal status foi

    incorporado processualmente, transformando-se em uma dimenso positiva e vital de sua identidade coletiva no exlio. Isso porque o campo tornou-se espao privilegiado para a contnua reconstruo de sua histria enquanto povo, levando-os tanto a se perceberem

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    como uma nao no exlio, quanto a se assumirem como detentores de direitos legtimos de retorno ao pas.

    A etnografia de Malkki mostra, portanto, que a despeito de no estarem includos em um Estado, os refugiados construram uma histria nacional e uma identidade poltica coletiva

    que fundamentavam suas reivindicaes pelo direito de retorno ao Burundi. Para os hutus, portanto, a ausncia de um Estado no culminou numa auto-representao como vtimas ou

    apenas humanos, como poderia sugerir o trabalho de Agamben. Nesta direo, Agier (2006:210-11), a partir de sua pesquisa em campos de refugiados

    na frica, refora que preciso atentar para a emergncia da poltica em espaos a priori definidos como um no-lugar sociolgico e poltico o campo de refugiados , j que este preenchido por relaes de poder, seja aquelas que os refugiados estabelecem entre si, seja as que travam com as Agncias humanitrias. Alm disso, para ele, a questo dos direitos

    polticos no pode estar exclusivamente associada sua inscrio nacional, principalmente em tempos de globalizao.

    A relao exclusiva entre Estado e direitos de alguma maneira confrontada por estas perspectivas que tanto consideram a viso e as relaes dos prprios refugiados, quanto sugerem outros espaos de articulao de direitos advindos da globalizao. Para Aiwha Ong (2006: 21-25), esta rgida oposio binria de tipo de populaes cidados versus vida nua , ao se ancorar apenas na dimenso legal e territorializada de cidadania, desconsidera tanto outros discursos e regimes ticos alternativos aos direitos humanos na conformao dos sujeitos (a religio, por exemplo), quanto a multiplicidade de sistemas (multinacionais, organizaes religiosas, Agncias humanitrias, comunidade local, ONGs) que intervm para negociar problemas de proteo e legitimidade.

    Assim, sem deixar de reconhecer a importncia das ideias de Arendt e Agamben para a compreenso da condio do refugiado num sistema ordenado por Estados-Naes, principalmente no que se refere relao entre os Direitos do Homem (humanitrio) e do Cidado (poltico), os trabalhos empricos supracitados apontam que elas no so suficientes para a compreenso da complexidade do refgio. Distanciando-se de uma perspectiva estritamente legal de cidadania5, eles apontam outros regimes de conformao e proteo dos

    5 Uma definio considerada clssica de cidadania foi desenvolvida por T. H. Marshall em seu texto Cidadania

    e Classe Social, em 1949 (1967: 57, 63, 76, 79). Para o autor, a ideia de cidadania coincide com o desenvolvimento do capitalismo e dos Estados Nacionais, conformando-se como um status concedido queles que so membros integrais de uma comunidade. Seu pressuposto o de uma igualdade jurdica mnima entre aqueles que possuem tal status, isso no que tange aos direitos e obrigaes. Prope, ento, uma classificao dos direitos de cidadania em trs subcategorias distintas: a) direitos civis que correspondem queles necessrios

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    sujeitos que extrapolam os limites do Estado. Com isso, mais do que defender o enfraquecimento ou desaparecimento deste, eles sugerem que a relao entre Estado e fenmenos transnacionais ou supranacionais no podem ser vistos como opostos ou mutuamente excludentes, sendo mais produtivo pensar em suas articulaes e

    reconfiguraes.

    At aqui, os autores mencionados abordaram a questo dos refugiados em contextos

    em que os mesmos foram excludos do Estado, estabelecendo-se, em geral, em campos de refugiados. Contudo, nem todos eles so definidos, como lembra Ong (2003:26-27), como se estivessem excludos das normas do pas que os recebe (o caso dos reassentados palestinos seria um exemplo disso), sendo tambm necessrio pensar a questo da cidadania no interior do Estado. Neste, o escopo e a diversidade da imigrao internacional tambm tem desafiado noes tradicionais de cidadania, pensadas como ancoradas em comunidades polticas

    homogneas e territorializadas e em noes de identidade nacional, soberania e controle estatal.

    Conforme Bloemraad et. al. (2008), dentro das fronteiras nacionais, a cidadania foi abordada teoricamente tanto como um simples status legal que possibilitava a aquisio de um conjunto de direitos quanto, de forma mais abrangente, como participao poltica, econmica e social e/ou como pertencimento a determinado grupo. No primeiro caso, o foco da discusso eram as regras e os mecanismos escolhidos por cada pas para a concesso de cidadania (as regras de jus solis e jus sanguinis seriam um exemplo), alm do modo como elas se articulavam com a construo dos nacionalismos (tnico ou civil) dos mesmos. No segundo caso, a abordagem se centrava no grau de participao dos imigrantes na sociedade receptora, seja politicamente, seja na esfera econmica e social. Ao investigar os caminhos e as barreiras de uma cidadania participativa, estas pesquisas tanto cunharam a ideia de uma cidadania de segunda classe, quanto focaram nas noes de incorporao, integrao e/ou assimilao do imigrante, muitas vezes utilizadas de modo intercambivel (idem:162-4). Na ltima discusso, o cerne da questo era a relao entre direito e pertencimento, dada a necessidade de proteo dos direitos das minorias, presente nos debates tericos do

    liberdade individual, como a liberdade de movimentao, de imprensa, de f, de propriedade etc.; b) direitos polticos que garantem a participao no exerccio do poder, seja como um membro de um organismo investido da autoridade poltica, seja como eleitor; c) direitos sociais que referem-se garantia de um mnimo de bem-estar econmico, segurana, educao e servios sociais. Marshall mostra como, na Inglaterra, do sc. XVIII ao XX, a expanso dos direitos de cidadania ocorreu na seguinte ordem: 1) direitos civis, 2) polticos e 3) sociais. Embora no utilizemos em nosso trabalho a ideia de cidadania apenas como um status que uns possuem e outros no, acreditamos que a definio de Marshall ajuda a pensar a diferena entre um nacional e um refugiado no Brasil, em termos legais, e quais os direitos e deveres que possuem frente ao Estado.

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    multiculturalismo. Ao desafiar as ideias liberais de que todos os indivduos so livres e iguais perante o Estado, a teoria multicultural reivindica o reconhecimento das diferenas das minorias, incluindo os imigrantes, conclamando o Estado a criar polticas que possibilitem a representao e a participao dos sujeitos dentro de suas comunidades (idem:159-62).

    Neste estado da arte sobre a relao entre cidadania, imigrao e Estado-Nao, Bloemraad et. al. (2008) apontam, ainda, um conjunto de tericos que questionam uma compreenso da cidadania centrada apenas no Estado, mesmo quando os grupos estavam inseridos formalmente em seu territrio. Seguindo as crticas mencionadas anteriormente de que, embora o Estado continue a conformar as regras, direitos e instituies referentes cidadania, a globalizao promove outros espaos e instituies de proteo e participao

    dos sujeitos, esses tericos promoveram tanto as ideias de uma cidadania para alm (cidadania ps-nacional), como atravs (cidadania transnacional) das fronteiras nacionais. O argumento central de uma cidadania ps-nacional/cosmopolita a de que os direitos so inerentes s pessoas, no sendo o resultado de um pertencimento estatal. Nesse sentido, a expanso dos direitos humanos e dos aparatos legais compeliria o Estado a fornecer direitos de pertencimento aos imigrantes, independente de sua origem. A ideia de cidadania transnacional, por sua vez, no advoga o necessrio enfraquecimento de uma cidadania centrada no Estado, mas a existncia de pertencimentos mltiplos dentro do consolidado sistema de soberanias estatais, seja como status legal na forma de dupla cidadania, seja como uma cidadania participativa baseada em prticas transnacionais (idem:164-69) 6.

    Ao focar o processo de integrao dos palestinos dentro do Estado brasileiro, no me

    restringirei apenas a seu status legal ou a seu conjunto de direitos e deveres, nem estarei preocupada em avaliar o grau de integrao dos refugiados. Como mencionado, a cidadania

    ser aqui tomada como um processo social contnuo de produo e autoproduo de sujeitos cidados (Aiwha Ong, 2003) ou, utilizando um termo nativo, de sujeitos integrados. Esta definio de cidadania proposta por Ong marcada pela teoria foucaultiana e por sua forma

    6 Em seu texto A condio da transnacionalidade, Ribeiro (2000) aponta um conjunto de condies

    (integrativas, histricas, econmicas, tecnolgicas, ideolgicas, culturais, sociais e rituais) que tornou possvel a transnacionalidade. Para o autor, embora este tema possua similaridades com temticas como globalizao, sistema mundial e diviso internacional do trabalho, sua questo central a relao entre territrios e os diferentes arranjos socioculturais e polticos que orientam as maneiras como as pessoas representam pertencimento a unidades socioculturais, polticas e econmicas. Discutir tal questo, segundo Ribeiro, permite, entre outros pontos, modificar nossas concepes sobre cidadania para encompassar uma clara sensibilidade e responsabilidade com relao ao efeito de aes polticas e econmicas em um mundo globalizado (2000:93-94). Em outra produo sobre brasileiros nos Estados Unidos, Ribeiro (2000:215-43) aponta para o surgimento de certas prticas que reconhecem formas extraterritoriais de cidadania ou modos ambguos e mltiplos de inclusividade: voto brasileiro no exterior; facilitao da dupla nacionalidade; e criao de Conselhos de Cidados nos pases por parte do governo brasileiro.

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    de compreender os processos de sujeio/subjetivao dos sujeitos. Para o autor francs, tal termo diria tanto respeito a algum que sujeito pelo controle e dependncia, quanto por algum preso sua prpria identidade por uma conscincia e autoconhecimento (Foucault, 1995:235). A primeira definio faz referncia aos processos que tornam os sujeitos governveis. Visando garantir a segurana econmica e a otimizao da populao, Foucault mostra como o Estado liberal investiu no conhecimento da populao, em seu bem-estar, sua

    sade e produtividade. Com efeito, esse poder sobre a vida ou essa tecnologia biopoltica desenvolveu-se a partir do sculo XVII com o intuito de disciplinar os corpos (atravs de adestramento, ampliao de suas aptides, extorso de suas foras, estmulo sua utilidade e docilidade) e regular a populao (com o controle do nascimento, da mortalidade e da longevidade) (Foucault, 2004, 2009). Ressalta-se que esse conjunto de tcnicas, conformadas por saberes especficos, constituiriam o social, definindo a anormalidade (loucos, criminosos, desviantes sexuais) em contraposio normalidade. Alm disso, tais tcnicas, longe de serem realizadas por um Estado centrado ou abstrato, seriam o resultado de uma mirade de instituies como a escola, os hospitais, os servios de bem estar, a polcia, o exrcito etc.

    Por outro lado, Foucault (1995) aponta que a relao de poder de uns sobre outros pressupe necessariamente a liberdade destes ltimos. Para o autor, o poder s se exerce sobre sujeitos livres, entendendo-se por isso sujeitos individuais e coletivos que tm diante de si um campo de possibilidades (:244). Nesse sentido, no haveria relao de poder sem resistncia, sem escapatria ou fuga, sem estratgia de luta (:248). Tal resistncia, no entanto, preciso deixar claro, apenas emerge a partir do regime de poder/conhecimento no qual o

    sujeito conformado. Partindo dessa base terica, Aiwha Ong sugere uma anlise das tecnologias de

    governo, ou seja, das polticas, programas, cdigos e prticas, acionadas cotidianamente nos encontros dos refugiados com os aparatos estatais (hospitais, cortes, servio social) que visam a formao de tipos particulares de cidados. A cidadania analisada a partir do efeito de mltiplas racionalidades que prescrevem tcnicas de vida e que definem quais so os sujeitos mais e menos valorizados como cidados da nao. Nesse contexto, afastando-se de uma viso de cultura como totalidade, ela questiona como as variadas categorias de

    diferenciao social pr-existentes gnero, raa, etnia so interpretadas e remodeladas pelas tecnologias sociais que definem o sujeito moderno.

    Alm disso, a autora tambm prope refletir sobre como os refugiados interpretam, resistem, elaboram estratgias e modificam esse modelo de cidadania, produzindo-se a si

    mesmos. Sobre isso, embora Foucault tenda a reconhecer em seus ltimos escritos que o

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    sujeito no totalmente objetificado pelos regimes de poder/saber, ele no aprofunda sua discusso sobre como os sujeitos resistem aos esquemas de controle ou como suas tticas podem ser criativas e surpreendentes (Ong, 2003:17), o que noutros autores discutido em termos de uma agncia dos sujeitos. Ressalto que a agncia neste trabalho no vista necessariamente como sinnimo de resistncia s relaes de dominao, mas como uma capacidade para a ao facultada por relaes de subordinao especficas, tal qual a concebe

    Saba Mahmood (2009:133). Com esta definio, a autora considera que a agncia no apenas o resduo de um self no domesticado, existente antes de operaes de poder, sendo em si mesmas produtos destas operaes.

    Com base em toda essa discusso, busco refletir aqui sobre as formas como as

    Agncias internacionais e nacionais instituem prticas de conformao dos sujeitos no processo de reassentamento. Alm disso, dou especial ateno aos modos como os refugiados

    se apropriam, resistem e elaboram estratgias e transformam o modelo a que esto sujeitos. Destaco, alm disso, que a questo da cidadania tem se apresentado como crucial quando se trata de um estudo envolvendo palestinos. A ausncia de um Estado autnomo tem implicado em constantes deslocamentos e na necessidade de (re)aprendizagens sobre novas formas de ser e estar no mundo. A maneira como os refugiados aqui reassentados avaliam, incorporam ou criticam este procedimento no Brasil largamente marcada por estas experincias anteriores de sujeio/subjetivao.

    Reflexes sobre o trabalho de campo

    Estudar os processos do reassentamento exigiu de mim um trnsito entre lugares, atores e imaginrios distintos. Ao longo da pesquisa, me desloquei (presencialmente e virtualmente) entre Braslia, So Paulo e Rio Grande do Sul. Alerto, no obstante, que embora tenha conhecido vrios dos refugiados palestinos que foram reassentados no Rio Grande do Sul, principalmente os que vieram Braslia protestar diante do ACNUR, alm dos agentes de

    integrao da ASAV, instituio confessional responsvel pelo programa de reassentamento neste estado; o pouco tempo a despendido (cerca de quinze dias) me leva, nesta tese, a privilegiar as interaes que travei em Braslia e em So Paulo. Assim, principalmente no que toca s caractersticas e ao funcionamento do programa de reassentamento, tema que tratarei no captulo 3, meu foco ser o programa da Critas, em Mogi das Cruzes.

    A investigao sobre o reassentamento dos refugiados palestinos teve incio, como

    mencionei anteriormente, em agosto de 2008. Em todo o segundo semestre deste ano, alm do

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    ano de 2009, empreendi o esforo de travar relaes com os refugiados que estavam acampados em frente ao ACNUR, em Braslia, acompanhando suas idas e vindas entre os respectivos estados onde foram reassentados e a capital federal, assim como a dinmica de seus protestos. Em outra direo, procurei igualmente desenvolver entrevistas com os

    representantes do ACNUR, do Conare e de instituies de defesa dos direitos humanos que se envolveram com os reassentados (ex: Instituto Autonomia e Instituto Migraes e Direitos Humanos IMDH).

    Sobre este primeiro perodo, marcado pela escrita do projeto de qualificao, me deparei com a escassez de pesquisas acadmicas sobre o tema do refgio nas cincias sociais brasileira, o que levantava a necessidade do mapeamento de tal campo no contexto local. Por

    outro lado, constatei tanto a dificuldade de entrevistar os diferentes funcionrios das instituies responsveis em gerir as polticas de refgio e o programa de reassentamento

    (Conare e ACNUR), quanto o de acessar documentos oficiais relativos aos refugiados, de forma geral, ou aos palestinos, de maneira particular. Com o tempo percebi que apenas alguns representantes das instituies pareciam ter permisso para dar entrevistas, o que limitava minha possibilidade de interlocuo ao longo da pesquisa. No que se refere recusa em possibilitar acesso aos documentos oficiais, a justificativa era a de que precisavam preservar a identidade dos refugiados, de modo a garantir-lhes proteo.

    Em parte, e como consequncia disso, constatei que a grande maioria das publicaes referentes aos refugiados era produzida pelas prprias organizaes responsveis por gerir as polticas de refgio e o programa de reassentamento, sendo muito comum haver a repetio de

    seus autores e dos discursos referentes ao refgio no Brasil, largamente tratados a partir de uma perspectiva legalista e, em geral, acrtica. Com isso, at mesmo parte dos prprios

    estudos acadmicos existentes terminavam por reproduzir tal perspectiva, uma vez que esta se tornava uma das principais fontes de pesquisa disponvel.

    Sobre a dificuldade de acesso aos documentos oficiais, ressalto que, embora a justificativa utilizada fosse a de que era preciso garantir a proteo dos refugiados, havendo, inclusive, pedidos de que no publicssemos nomes, fotos ou endereos destes em nossos trabalhos, esta publicizao era, por vezes, feita pelas prprias produes das referidas

    Agncias responsveis por proteg-los. Em dezembro de 2009, por exemplo, ao visitar a Critas Arquidiocesana de So Paulo, recebi um calendrio que, na marcao de cada ms, reproduzia a foto de um refugiado com a informao sobre a cidade onde se encontrava. Para minha surpresa, havia, inclusive, uma foto do casal de refugiados palestinos com quem estava

    morando em Mogi das Cruzes. Quando lhes mostrei a foto em que ambos estavam rezando na

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    mesquita desta cidade, a refugiada contou-me que no se lembrava de quem a havia feito ou de ter assinado qualquer termo liberando sua divulgao. Da mesma forma, no site do ACNUR local, cheguei a encontrar vrias matrias sobre os refugiados palestinos reassentados, nas quais havia fotos e informaes sobre seus verdadeiros nomes e cidades de

    residncia7. Alm da exposio dos nomes e das imagens dos refugiados, os representantes destas instituies utilizavam as estatsticas ou os dados referentes ao perfil dos requerentes

    de refgio e de reassentamento para a elaborao de suas publicaes sobre o tema8. Diante disso, observei que havia um circuito de troca de informaes apenas entre as agncias responsveis por gerir as polticas de refgio, possibilitando a reproduo de uma narrativa comum sobre a poltica de refgio local ou sobre o carter humanitrio do Estado brasileiro.

    A necessidade ou no de sigilo, assim, parecia ter menos a ver com os refugiados, e sim com a distribuio destas informaes entre pessoas privilegiadas.

    Diante do compromisso que estabeleci com os refugiados e com os demais interlocutores que se envolveram com o processo do reassentamento, alterei todos os nomes das pessoas citadas na tese. No entanto, os nomes das instituies com as quais eles estavam ligados foram mantidos, tendo em vista sua natureza pblica. Ademais, em nenhum momento da pesquisa foi requisitado sigilo em relao aos nomes das instituies das quais alguns interlocutores faziam parte.

    Em relao ao trabalho de campo em Braslia, gostaria de apontar a dificuldade que tive para estabelecer contatos com os representantes das organizaes responsveis pelo reassentamento. Na ocasio, o que tornava tal interlocuo ainda mais difcil era o prprio

    clima de tenso existente entre as instituies, sobretudo ACNUR e Conare, e os refugiados palestinos acampados, o que levava os primeiros a ser constantemente interpelados por

    jornalistas, representantes de grupos de defesa de direitos humanos ou mesmo pelo Ministrio Pblico Federal. Com o tempo, o fato de eu ser vista como prxima dos refugiados pois procurava estar com eles no acampamento e nos protestos , alm da organizao de direitos humanos que os representava juridicamente (Instituto Autonomia), me levou a ser, por vezes, classificada como uma aliada daqueles, limitando ainda mais a disposio de interlocuo comigo. Meu contato com os representantes do ACNUR e do Conare, assim,

    7 Ver ACNUR (2010).

    8 Ver, por exemplo, Conare (2007). Neste livro, publicado pelo Conare e o ACNUR, h uma seo em que o

    autor discute os processos de pedido de reassentamento de alguns refugiados. Neste caso, os casos so apresentados a partir do nmero de seus processos no Conare. Para pesquisadores externos, no era dada a possibilidade de anlise deste material, nem mesmo sob o compromisso tico de sigilo sobre seus nomes. Em uma de minhas conversas com o representante do Conare, feita em meados de 2010, perguntei se no poderia acessar as atas das reunies nas quais a vinda dos refugiados foi negociada, obtendo resposta negativa.

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    ocorreu pontualmente e em momentos distintos. Se a entrevista com o representante do ACNUR no pde ser gravada, a interao com o representante do CONARE envolveu a indisponibilidade dos documentos referente s negociaes sobre a vinda do grupo ou sobre os refugiados.

    Tais dificuldades, por sua vez, se configuravam elas mesmas importantes dados de pesquisa, uma vez que revelavam a forma como tais Agncias lidavam com as informaes

    sobre os refugiados. Alm disso, o prprio clima de tenso existente no momento em que desenvolvia a pesquisa determinou muito de seu alcance. De modo a superar tais restries, busquei expandir as situaes em que poderia analisar os discursos e/ou atuao a partir de notcias de jornais; coletivas de imprensa; anlise de processos judiciais impetrados pelos refugiados palestinos contra eles; entrevistas com representantes das entidades confessionais que lidam com os refugiados que, em alguns casos, se mostraram mais abertos para

    entrevistas (o caso da representante do IMDH um exemplo disso); e do contato com atores que fizeram parte das negociaes referentes vinda dos refugiados (como foi o caso de um americano ativista em direitos humanos). Alm disso, para que certos discursos ou embates presentes, muitas vezes vistos de forma fragmentada, ganhassem sentido amplo, busquei desnaturaliz-los, articulando-os ao contexto histrico em que foram produzidos.

    A interao com os refugiados no referido acampamento tampouco foi fcil. Se por um lado, o fato de eu no falar o rabe restringia a possibilidade de interlocuo e entendimento mtuo, uma vez que a maioria no falava o portugus ou o ingls; por outro, o referido clima de tenso, mas tambm de desconfiana que existia entre eles, dada as

    diferentes estratgias buscadas para alcanar seus objetivos, assim como suas cambiantes alianas e inimizades com distintos atores, me levava a ter que estar sempre atenta em relao

    aos meus posicionamentos9. Dado este cenrio, acabei me aproximando de dois refugiados solteiros (um adulto e um idoso), com os quais conseguia conversar em portugus ou ingls. Tal proximidade, sobretudo com o primeiro, levou tanto que alguns suspeitassem que eu pudesse estar ajudando-o, inclusive com dinheiro, a sair do pas, quanto a rumores de que pudesse ter algum tipo de relao afetiva com ele.

    Retomando a contribuio trazida por Little (2006), referente etnografia multiator que toma como objeto de anlise o conflito, ele ressalta que o antroplogo deve estabelecer um esforo de se relacionar com todos os principais atores sociais do conflito, buscando uma

    9 A questo da confiana/desconfiana/suspeita em trabalhos de campo com refugiados j se configura tema

    estudado, de diferentes maneiras, pelos antroplogos. Para mais informaes sobre esta discusso, ver: Knudsen e Daniel (1995) e Schiocchet (2011).

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    relao de empatia com eles. Reconhecendo a dificuldade de se dialogar com distintos grupos sociais, conhecer seus pontos de vista, sem, com isso, tomar partido de um dos lados do conflito, o autor chama a ateno para a necessidade de suspenso dos valores do etngrafo. Com base em minha experincia de campo, no entanto, pondero que a possibilidade de

    interlocuo e trnsito entre vrios atores exige mais do que a simples empatia do antroplogo ou a suspenso de seus valores. Transitar entre todos os lados tambm pode ser visto como

    uma atitude suspeita do antroplogo, que poder no ganhar a confiana necessria de nenhuma das partes para o aprofundamento de seu trabalho. Se, no caso das instituies, busquei expandir os meios de observao de seus discursos e prticas, no caso dos refugiados, minha aproximao se deu com aqueles que tinham certa fluncia noutras lnguas e tambm

    que demonstraram alguma abertura para a interlocuo. Deixando Braslia, em dezembro de 2009, fui a Mogi das Cruzes, local onde fiquei

    hospedada na casa de uma famlia de refugiados at abril de 2010. Neste perodo, afastei-me do clima tenso que marcava as observaes em Braslia e passei a acompanhar o modo como os refugiados lidaram com o fim do programa de reassentamento, ocorrido em dezembro, assim como o cotidiano das famlias em sua busca por emprego, documentos, assistncia de sade etc. Ademais, busquei entrevistar funcionrios da Critas, membros diversos da Prefeitura de Mogi das Cruzes e do Estado de So Paulo, alm de organizaes ligadas comunidade rabe destas duas cidades. Aps esse perodo, retomei o trabalho de campo entre os meses de junho e julho de 2010, buscando desenvolver entrevistas em Braslia, uma nova viagem Mogi das Cruzes e uma primeira interlocuo com as

    organizaes e os refugiados do Rio Grande do Sul. Por fim, importante salientar que minha ascendncia palestina, o fato de ser mulher e

    no falar o rabe tiveram diferentes efeitos ao longo do trabalho de campo, a depender dos atores com os quais estabeleci relaes. Como j vem sendo largamente salientado pelos antroplogos, as oportunidades abertas ao longo do trabalho de campo so mediadas pela interao de todos os marcadores de sua identidade, tal como so lidos pelos nativos, com os

    eventos e atores com os quais se depara, alm de serem constrangidos por uma srie de contingncias ambientais e histricas (Silva, 2005:3). Entre os refugiados, por exemplo, se minha ascendncia palestina propiciou certa abertura, no se configurou como elemento suficiente para propiciar disposio de interlocuo ou confiana entre eles. Meus comportamentos e conhecimentos eram constantemente por eles avaliados e, a depender disso, ora era classificada como brasileira, ora como palestina, sendo a primeira

    classificao uma forma de denotar certa falta de minha parte. Entre a comunidade

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    rabe/palestina j estabelecida no pas, por sua vez, minha ascendncia se conformou em importante capital simblico, possibilitando identificao e, consequentemente, maior disposio em contribuir para a pesquisa e fornecer informaes. Entre as organizaes estatais e da sociedade civil, por fim, minha ascendncia rabe no foi ressaltada por mim,

    nem observada por eles, sendo um fator que pouco influenciou em relao aos dados conseguidos. Para estas, a explicitao de minha posio em relao ao reassentamento

    aparecia como o aspecto mais importante para uma abertura ou recusa de dilogo. Enfim, ao buscar analisar os processos de negociao do reassentamento dos

    refugiados palestinos campo este marcado pela falta de produes crticas sobre o tema, bem como pela presena de mltiplos atores, localizados em stios distintos, com variadas

    posies de poder; ocupei diferentes posies em campo e me utilizei de diversas metodologias para compreender tal mosaico. As diferentes estratgias ou possibilidades de

    interao foram determinantes para o rumo que o trabalho tomou. Percebendo a complexidade de questes que envolviam o reassentamento, por exemplo, procurei abord-lo desde seu incio, ou seja, desde as negociaes feitas no campo Ruwesheid para reassentar os refugiados no Brasil, mas tambm discutir as questes que levaram o pas a aceit-los. A recusa das Agncias em fornecer materiais ou entrevistas especficas, fez com que buscasse reconstru-lo a partir da interlocuo com atores variados, bem como a partir de sua contextualizao histrica. Isto me permitiu dar sentido e mostrar a dinmica das posies e dos discursos feitos no presente pelos diversos atores envolvidos. A discusso sobre a efetivao do reassentamento no Brasil, por outro lado, foi realizada a partir de entrevistas, observaes e de

    minha participao direta em algumas situaes, o que permitiu abordar as diversas tecnologias de produo dos sujeitos integrados, e a maneira como os refugiados lidaram com as mesmas.

    Estrutura da tese

    No primeiro captulo da tese, objetivo entender como ocorreram as negociaes do reassentamento dos refugiados palestinos no marco internacional, ensejando, por um lado, que estes se tornassem os ltimos do campo Ruwesheid, na Jordnia, e, por outro, que fossem reassentados pelo Brasil. Partindo de certas inferncias feitas por determinados atores locais de que os refugiados palestinos que aqui vieram foram aqueles que nenhum pas quis, o resto ou os que sobraram, afirmaes estas que serviam para enaltecer a deciso brasileira

    de t-los aceitado ou para sugerir que a recusa dos pases era decorrente de problemas

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    variados dos refugiados, proponho que a compreenso de tais assertivas depende de uma percepo ampla do processo que tem culminado na manuteno do problema do refugiado palestino. Nesse contexto, viso apontar como esta categoria/condio foi e tem sido conformada pelo Estado de Israel, pelos pases rabes e movimentos palestinos e pelo

    humanitarismo internacional. Ao final, aponto que foi atravs da mobilizao dos vrios fatores envolvidos neste problema, alm de suas redes pessoais, que um ativista em direitos

    humanos favoreceu o reassentamento dos refugiados no Brasil e no Chile. No captulo 2, abordo o amplo discurso humanitrio brasileiro divulgado ao longo de

    todo o trabalho de campo (antes, durante e aps a vinda dos refugiados palestinos). Atravs dele, os agentes do Estado brasileiro e da entidade internacional (Conare e ACNUR) estabeleceriam um contnuo entre a deciso de reassentar refugiados, o avano e abertura das leis de refgio do pas e o carter hospitaleiro, pacfico e multicultural de seu povo e do

    Estado brasileiro. Ao longo do captulo, objetivo desnaturalizar tal discurso, apontando tanto a maneira como o pas lidou e tem lidado com os refugiados em sua histria (de forma seletiva e/ou restritiva) e como esta foi moldada por deslocamentos nas concepes de identidade nacional, integrao e diversidade cultural. Num segundo momento, indico a conjuntura existente no momento da vinda dos refugiados, apontando como seu reassentamento constitua um importante capital poltico para um pas que tem buscado projetar-se como jogador global no cenrio nacional e internacional. Se entendemos a concesso de refgio como uma ddiva doada pelo Estado brasileiro, podemos entender tanto como ele possibilita a criao de vnculos do Brasil com a comunidade internacional,

    quanto com os prprios refugiados, alm de engendrar expectativas de contra-ddiva. Sobre tais pontos, indico como a expectativa de que os refugiados fossem gratos, cultivada por

    certos atores estatais, est tanto relacionada imagem criada sobre quem eles eram completas vtimas , quanto moldada pela forma como o pas tem lidado com o imigrante.

    No captulo 3, discuto como o programa de reassentamento foi estruturado para receber os palestinos em Mogi das Cruzes. A partir de entrevistas com os agentes de

    integrao da Critas, discuto quais tem sido os pressupostos e as tcnicas de manejo de refugiados em So Paulo, com vistas a integr-lo sociedade brasileira. Em seguida, indico

    que h um repertrio comum de insatisfaes dos refugiados quanto ao programa, o qual nos informa tanto sobre suas caractersticas e funcionamento, quanto sobre as estratgias utilizadas por eles para lidar com o mesmo. Por ltimo, discuto que se os refugiados veem as dificuldades de integrao como decorrentes das caractersticas do programa, certos agentes

    da Critas a veem na diferena cultural dos refugiados. Com isso, problematizo tanto a ideia

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    de cultura e de cultura rabe que subsidia tal acusao, quanto o prprio lugar da diferena cultural no contexto brasileiro.

    No captulo 4, abordo a dinmica dos protestos feitos pelos refugiados em frente ao Alto Comissariado das Naes Unidas para Refugiados, em Braslia. Aps uma breve discusso sobre o perodo de um ano de acampamento, apresento como este foi vivido e representado por dois refugiados solteiros (um idoso e um adulto), e como este processo foi informado por suas respectivas trajetrias de refugiado palestino. Aponto como atravs das reivindicaes, os refugiados subverteram a ideia de ddiva e ajuda oferecida pelo Estado brasileiro, seja questionando a deciso de t-los trazido, quanto apontando que aquilo que exigiam se configurava como um direito. Em outra direo, indico como representantes do

    Estado brasileiro criticariam a postura dos refugiados, vista como dependente do Estado, assistencialista, agressiva e ingrata, levando-os deciso de suspender qualquer

    reassentamento de refugiados palestinos no pas. Com isso, indico tanto quais so as expectativas por parte dos agentes referentes aos valores que os refugiados deveriam assumir para se tornarem sujeitos integrados, quanto como a maior ou menor adequao do refugiado a tais valores leva sua classificao como mais ou menos desejvel.

    No captulo 5, exploro as diferentes facetas das relaes entre os refugiados e a comunidade palestina/libanesa do Brasil, mostrando como as diferenciaes presentes nas relaes entre esses dois grupos, mas tambm no interior da comunidade rabe brasileira e do grupo de refugiados, influenciaram suas interaes. Primeiramente, discuto como o fato de o Brasil ter aceitado a vinda do grupo, a despeito da posio contrria da Autoridade Palestina,

    culminou em diferentes posicionamentos da comunidade palestina local e divergncias quanto sua (no) responsabilidade em auxiliar no processo de integrao. Em seguida, tratando a forma como se deram as interaes entre os libaneses e os refugiados palestinos, indico como muitos imigrantes buscaram transmitir uma pedagogia de ascenso social aos refugiados que tem como marco inicial a vida de mascate, pensada como um trabalho rduo e baseada na conteno dos gastos. Em outra perspectiva, aponto como a origem rabe tambm

    funcionou como um denominador comum que motivou alguns imigrantes a auxili-los. No captulo 6, discuto as implicaes da condio e do status de refugiado no Estado

    brasileiro para uma famlia de refugiados que permaneceu em Mogi das Cruzes aps o fim do programa de reassentamento. Com a explanao do cotidiano desta famlia, em sua busca por emprego, documentos ou sade, discuto tanto os impactos de tal status na organizao familiar, nas relaes de gnero e em suas subjetividades, quanto as estratgias mltiplas tomadas por eles a partir de seu campo de possibilidades. Ressalto que tal relato permite

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    explicitar no apenas os efeitos do Estado brasileiro sobre a integrao dos refugiados, mas tambm os efeitos simultneos de suas mltiplas vinculaes (inter) nacionais na integrao local.

  • CCaappttuulloo 11

    Negociaes do reassentamento dos refugiados palestinos no marco internacional

    Quando iniciei a pesquisa sobre o reassentamento dos refugiados palestinos, um dos temas mais abordados nas notcias de jornais locais, nos discursos das instituies responsveis pelo reassentamento ou mesmo entre rabes j estabelecidos no Brasil, era o de que aqueles haviam ficado quase cinco anos no campo de refugiados Ruwesheid, na Jordnia,

    sendo os ltimos a serem reassentados. Enquanto outros refugiados palestinos ou de diversas nacionalidades iranianos, curdos, sudaneses, iraquianos, somalis (fala-se que a populao do campo chegou a mil pessoas) teriam sido aceitos por diversos pases, os que vieram ao Brasil seriam aqueles que restaram.

    Os refugiados aqui reassentados, assim, eram muitas vezes referidos como aqueles que ningum