Familia e Escola

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FAMÍLIA E ESCOLA INTERFACES DA VIOLÊNCIA ESCOLAR LEILA MARIA FERREIRA SALLES JOYCE MARY ADAM DE PAULA E SILVA

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  • Famlia e escolaInterfaces da vIolncIa escolarLeiLa Maria Ferreira SaLLeSJoyce Mary adaM de PauLa e SiLva

  • Famlia e escola

  • Conselho editorial aCadmiCo responsvel pela publicao desta obra

    luiz marcelo de CarvalhoCsar donizetti Pereira leite

    Flvia medeiros sartimaria aparecida segatto muranaka

    maria rosa rodrigues martins de Camargoluiz marcelo de Carvalho

  • LeiLa Maria Ferreira SaLLeSJoyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    Famlia e escolaInterfaces da vIolncIa escolar

  • 2011 editora Unesp

    Cultura Acadmica

    Praa da s, 108

    01001-900 so Paulo sP

    tel.: (0xx11) 3242-7171

    Fax: (0xx11) 3242-7172

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    editora afiliada:

    este livro publicado pelo Programa de Publicaes digitais da Pr-reitoria de Ps-Graduao da Universidade estadual Paulista Jlio de mesquita Filho (UnesP)

    CiP Brasil. Catalogao na Fonte

    sindicato nacional dos editores de livros, rJ

    s164f

    salles, leila maria Ferreira, 1955-

    Famlia e escola: interfaces da violncia escolar / leila maria Ferreira salles,

    Joyce mary adam de Paula e silva. so Paulo: Cultura acadmica, 2011.

    inclui bibliografia.

    isBn 978-85-7983-191-1

    1. Violncia na escola. 2. Juventude e violncia. 3. educao Participao

    dos pais. 4. responsabilidade dos pais. i. silva, Joyce m. a. de P. e (Joyce

    mary adam de Paula e).

    11-7544 Cdd: 371.58

    Cdd: 37.064

  • AgrAdecimentos

    agradecemos s escolas que participaram da pesquisa por per-mitirem nosso acesso e se disporem a participar do estudo. agra-decemos aos participantes docentes e direo que tornaram esta pesquisa possvel.

    agradecemos diretoria de ensino de Limeira e Secretaria do estado de educao de So Paulo por contriburem com seu inte-resse para a realizao deste estudo.

    agradecemos equipe de pesquisa que participou conosco de todas as etapas do estudo: Prof. dr. antonio carlos Simes Pio unesp/iGce/rio claro; Profa. dra. concepcin Fernndez villanueva universidad complutense de Madrid, Prof . dr. Juan carlos revilla universidad complutense de Madrid; Prof. dr. roberto domnguez Bilbao universidad de San Pablo-Madrid; aos professores da diretoria de ensino de Limeira ira Leme russo cury, cludia a. S. Scotuzi e vnia M. L. duarte, e s alunas Ma-rina Jutkoski e rachel rodrigues.

    Agradecemos FAPESP pelo apoio financeiro que permitiu a realizao da pesquisa.

  • sumrio

    Apresentao 9

    Introduo 11

    Parte 1As prticas familiares de criao e tutela de filhos e a violncia de jovens: uma reviso bibliogrfica 151 a famlia, os estilos parentais e a violncia de jovens 172 a famlia de periferia e a violncia de jovens 253 Sobre os modos de organizao das famlias pobres 314 autoridade e controle na famlia: algumas consideraes

    sobre a tutela familiar na sociedade atual 37

    Parte 2Dados da pesquisa 475 a famlia dos alunos e a relao escola-famlia segundo

    os educadores 496 os depoimentos dos gestores e dos docentes da escola 1 597 os depoimentos dos gestores e dos docentes da escola 2 778 Sobre a famlia dos alunos, a relao escola-famlia

    e a violncia de jovens 95

  • Consideraes finais 101

    Referncias bibliogrficas 105

  • ApresentAo

    este livro, que trata das relaes entre escola e famlia, resulta-do de uma pesquisa desenvolvida por pesquisadores do instituto de Biocincias, uNeSP, campus de Rio Claro, e contou com financia-mento da FaPeSP. Participaram do estudo pesquisadores da uni-versidad complutense de Madrid e professores e coordenadores da diretoria de ensino de Limeira.

    O livro apresenta algumas reflexes e anlises sobre um estudo realizado em duas escolas pblicas, onde os incidentes de violncia so frequentes. as anlises evidenciam que a famlia considera-da pelos educadores como a principal causa dos comportamentos violentos protagonizados pelos jovens. a violncia dos jovens na escola explicada pelos modos de organizao familiar, os tipos de arranjos familiares e as prticas educativas que os pais empregam na criao dos filhos.

    embora os educadores paream diferenciar as famlias pobres entre si h famlias pobres porm adequadas e famlias pobres que so inadequadas para criar seus filhos , o estudo indicou a dificul-dade dessas escolas em conviver com os alunos e suas famlias que pertencem s camadas mais empobrecidas da populao.

    a distncia cultural entre os educadores e as famlias dos alunos nas escolas pesquisadas constitui-se em uma categoria central para

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    a anlise dos dados, apontando para a presena de um processo de excluso simblica dos alunos e de suas famlias.

    Por fim, ressalta-se que cabe escola reconhecer o desencontro entre ela e as populaes excludas, pois a trajetria escolar dos alu-nos no precisa ser acompanhada por um processo de estigmatiza-o e desvalorizao deles e de suas famlias. agir para que se cons-trua uma relao entre alunos, famlias dos alunos e escola, baseada no respeito, uma condio fundamental para que se possa reduzir a violncia no contexto escolar e fora dela.

    esperamos que este livro possa contribuir para a discusso so-bre a violncia de jovens e sobre a violncia escolar, mesmo sabendo que muito ainda temos que caminhar para apreender toda a com-plexidade presente nesta temtica.

  • introduo1

    estudos realizados a respeito da temtica jovens, violncia e es-cola tm apontado para a importncia de se realizarem pesquisas que enfoquem a relao entre violncia na escola e famlia.

    os professores e a direo da escola tendem a imputar a culpa de todo e qualquer comportamento violento ao aluno, s suas famlias e comunidade onde vivem, isentando a escola de qual-quer responsabilidade pela produo e reproduo da violncia em seu interior. Nesse contexto, a famlia de classe social mais baixa apontada por educadores como uma instituio cada vez mais incapacitada para educar as novas geraes. Por outro lado, a situao de vulnerabilidade social dos jovens, as dificuldades econmicas e as peculiaridades psicossociais que acompanham a adolescncia so desafios apresentados s instituies em ge-ral que, muitas vezes, elas no esto preparadas para enfrentar. assim, tanto a escola como as famlias acabam por entrar em um crculo vicioso de culpabilidade recproca, dificultando ainda mais a proposta de solues que lhes permitam contribuir para a insero social e profissional dos jovens.

    1 Este trabalho recebeu Financiamento Fapesp: Programas Especiais Ensino Pblico.

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    A desfiliao, conforme apontada por Castel (2008), um as-pecto central quando se discute a violncia juvenil na sociedade. as rupturas que se estabelecem no que o autor chama de redes de integrao primria relacionadas principalmente famlia e ao sentimento de pertencimento comunitrio , assim como a precarizao do trabalho, que gera a instabilidade dos estveis, provocam o sentimento de insegurana com respeito reproduo da existncia e proteo, acarretando a descrena nas instituies. essa descrena demarca as relaes que os jovens estabelecem com as instituies, gerando o questionamento do papel destas em suas vidas, assim como o das relaes de autoridade e os vnculos que so necessrias para seu sentimento de pertencimento.

    as relaes que se estabelecem na escola so permeadas pelo sig-nificado dessa instituio na vida dos alunos, e as relaes e vivncias deles no ambiente familiar exercem um papel importante nesse con-texto. O olhar da escola sobre os alunos e suas famlias, por sua vez, tambm constitui uma varivel importante nas interaes que se pro-cessam nessa instituio. assim, esses dois aspectos precisam ser mais bem compreendidos para que a trade escola-famlia-aluno seja mais bem assimilada e possam se empreender parcerias no sentido de criar vnculos sociais e relaes mais produtivos no ambiente escolar.

    as polticas pblicas que venham a favorecer vnculos sociais so fundamentais no sentido de encaminhar os jovens para aes de responsabilidade no s consigo mesmos, mas tambm com a so-ciedade. Nesse sentido, a possibilidade de uma parceria entre esco-la e famlia contribui significativamente para o sucesso de polticas dessa natureza. Para isso, faz-se necessrio que educadores e escola reconheam as condies concretas de vida das famlias e compre-endam as interaes e dificuldades enfrentadas pelas mesmas.

    O objetivo central deste estudo, portanto, refletir sobre a rela-o famlia-escola-violncia escolar. Para tanto, procedemos a uma sntese dos estudos sobre famlia e relaes familiares, realizamos entrevistas coletivas e aplicamos questionrios aos educadores, com o intuito de proceder a uma anlise da viso dos mesmos sobre a

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    famlia dos alunos e os comportamentos e aes que se consideram relacionados violncia escolar.

    A primeira parte contm uma reviso bibliogrfica do que tem sido escrito sobre a famlia dos jovens de periferia,2 o protagonis-mo de violncia e a relao famlia-escola, e a tutela da sociedade. a segunda parte apresenta os dados da pesquisa realizada, na qual destaca-se a viso dos educadores das duas escolas pesquisadas, a respeito da famlia dos alunos e a relao escola-famlia, bem como a relao com a questo da violncia escolar. embora os educadores paream diferenciar as famlias pobres entre si h famlias pobres porm adequadas e famlias pobres que so inadequadas para criar seus filhos , o estudo indicou a dificuldade destas escolas em con-viver com os alunos e suas famlias que pertencem s camadas mais empobrecidas da populao. agir para que se construa uma relao entre alunos, famlia dos alunos e escola baseada no respeito uma condio fundamental para que se possa reduzir a violncia no con-texto escolar e fora dela.

    2 embora ser morador da periferia urbana no tenha necessariamente uma rela-o com pobreza, nesse sentido que o termo empregado neste texto, pois os jovens e as famlias aqui referidas residem na periferia da cidade e pertencem aos estratos socioeconmicos mais empobrecidos da populao.

  • pArte 1

    As prticAs fAmiliAres de criAo e tutelA de filhos e A violnciA de jovens: umA reviso bibliogrficA

  • 1 A fAmliA, os estilos pArentAis

    e A violnciA de jovens

    Na adolescncia h um processo de renegociao da autonomia. a relao de dependncia e autonomia perante os adultos muda medida que a criana cresce. esse processo de transio da in-fncia para a adolescncia e da dade jovem para a idade adulta estudado, descrito e analisado. Nos estudos realizados, examinam--se, por exemplo, as relaes entre pais e filhos, as prticas educa-tivas, as diferenas de socializao de acordo com a classe social, o modo como, mesmo sob o controle disciplinador, se promove a individua o dos adolescentes e dos jovens, e como o adulto reage frente aos comportamentos de independncia e autonomia deles (Motandon, 2001; Scabini, 2000; Kreppner, 2000).

    A relao entre pais e filhos e sua vinculao com os estilos pa-rentais e as prticas educativas so descritas, categorizadas e ava-liadas. O estilo parental, definido como o conjunto das prticas educativas parentais utilizadas pelos cuidadores com o objetivo de educar, socializar e controlar o comportamento de seus filhos (Go-mide, 2006, p.7), descrito e avaliado. As prticas educativas que consistem nas estratgias e tcnicas, como explicaes, punies ou recompensas de que os pais e as mes lanam mo para atingir ob-jetivos especficos e orientar o comportamento de seus filhos, tam-bm so descritas e avaliadas.

    Hoffman (1975, 1994) define duas categorias de estratgias educativas: a indutiva e a coercitiva. as estratgias indutivas so

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    um meio de controle mais indireto que enfatiza as consequncias negativas do dano causado aos outros. ao educar a criana, os pais explicam as regras, os princpios e os valores, fazem advertncias morais, apelam para o amor que a criana sente por eles e direcio-nam a sua ateno para as consequncias de seu comportamento e para a situao. a disciplina indutiva favorece a internalizao de padres morais. J a disciplina coercitiva caracteriza-se pela apli-cao direta da fora e do poder dos pais, pela punio fsica, pela ameaa e pela privao de privilgios e afetos para controlar o com-portamento da criana.

    Bem e Wagner (2006), Cecconello, De Antoni e Koller (2003) e De Antoni e Koller (2000), tendo como base os estudos de Hoff-man, afirmam, contudo, que o uso ocasional de disciplina coercitiva por parte de pais que utilizam frequentemente disciplina indutiva no prejudica o desenvolvimento da criana, desde que no ocorra punio fsica. Porm, o controle excessivo exercido pelos pais so-bre o comportamento dos filhos leva a um desequilbrio de poder na relao, que pode mesmo impedir o desenvolvimento de caracters-ticas e habilidades importantes, como a autoestima e a autonomia.

    Segundo Baumrind (1966, 1971), a variao no nvel do controle exercido pelos pais, combinada a outros aspectos da interao pa-rental, como comunicao e afeto, define trs estilos parentais: o au-toritativo (democrtico), o autoritrio e o permissivo. O estilo au-toritativo ou democrtico est baseado no respeito mtuo e h um equilbrio entre afeto e controle. os pais reconhecem e respeitam a individualidade dos filhos, tendem a promover os comportamentos positivos mais do que a restringir os no desejados, e as normas e os limites so claros. o estilo autoritrio implica alto nvel de controle. os pais mantm um controle restritivo e impositivo sobre a conduta dos filhos, fazem uso de castigos fsicos, ameaas e proibies, esta-belecem altos nveis de exigncia, desconsiderando as necessidade e as opinies da criana, e mantm pouco envolvimento afetivo com eles. o estilo permissivo caracterizado pelo pouco controle paren-tal. os pais no costumam castigar, mostram-se tolerantes, tendem a aceitar positivamente os impulsos da criana e permitem que a

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    prpria criana regule suas atividades. em geral, comportam-se de maneira no punitiva, buscam satisfazer os desejos das crianas e no tentam direcionar seu comportamento.

    Baumrind foi posteriormente reformulado por Maccoby e Mar-tin, que propuseram que o estilo permissivo fosse subdividido em dois: o indulgente e o negligente.1 os autores diferenciaram os es-tilos considerando as dimenses de controle e afeto, isto , o nvel de exigncia, definido pela superviso e pela disciplina, e o de res-ponsividade, definido pelo apoio e pela aceitao. Responsividade indica quanto o adolescente percebe seus pais como amorosos, res-ponsivos e envolvidos; exigncia indica quanto os pais monitoram e supervisionam o adolescente. as diferenas nessas dimenses fo-ram analisadas quanto contribuio para o desenvolvimento da individualidade e da autoafirmao dos filhos. Com essa diferencia-o, e incluindo-se na classificao o grau de exigncia e responsivi-dade, os estilos parentais foram redefinidos como segue:

    estilo autoritativo (democrtico): caracterizado por gran-de exigncia e responsividade. Os pais estabelecem regras para o comportamento de seus filhos: monitoram a sua conduta, corrigem atitudes negativas e gratificam atitudes positivas. a disciplina imposta de forma indutiva e a co-municao entre pais e filhos baseada no respeito mtuo e no dilogo. Os pais solicitam a opinio dos filhos enco-rajando a tomada de decises e esperam que seus filhos sejam responsveis e maduros. os pais so afetuosos e res-pondem s necessidades dos filhos, mas nas divergncias impem seu controle, no pautando as decises pelo con-senso ou pelos desejos da criana. So pais que promovem a autonomia, mas sob superviso.

    estilo autoritrio: caracterizado por alto controle e baixa responsividade. Pais autoritrios so rgidos e autocrti-cos, estabelecendo regras rigorosas. o comportamento da

    1 Ver a este respeito: De Antoni; Koller, 2000; Cecconello; De Antoni; Koller, 2003; Weber, Prado, Viezzer; Brandenburg, 2004; Pacheco; Teixeira; Gomes, 1999; Gomide, 2006; Bem Wagner, 2006; De Antoni; Barone; Koller, 2007.

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    criana avaliado de acordo com as regras de conduta es-tabelecidas. Exigem obedincia, respeito autoridade e ordem. empregam a punio como forma de controle do comportamento e no acatam os questionamentos e as opi-nies das crianas; no valorizam o dilogo e a autonomia. H poucas manifestaes de afeto.

    estilo indulgente: caracterizado por baixo controle e alta responsividade. Pais indulgentes estabelecem pouco con-trole. No estabelecem regras, nem limites para a criana. H pouca demanda de responsabilidade e maturidade. So excessivamente tolerantes, permitindo que a criana autorregule seu comportamento. So muito afetivos, co-municativos e receptivos, tendendo a satisfazer qualquer demanda que a criana apresente.

    estilo negligente: caracterizado por baixo controle e res-ponsividade. Pais negligentes no so nem afetivos nem exigentes, tendendo a manter seus filhos distncia e res-pondendo somente s suas necessidades bsicas. So per-missivos e indiferentes. os pais esto mais centrados em seus prprios interesses, o que os faz responder s deman-das das crianas de forma imediata, para que no os per-turbem. Pais negligentes no supervisionam e no apoiam as crianas.

    Weber, Prado, Viezzer e Brandenburg (2004) apontam, no en-

    tanto, para a necessidade de se diferenciar o estilo parental negli-gente da negligncia abusiva, considerada uma violncia contra a criana. a negligncia considerada maltrato ocorre quando as ne-cessidades bsicas da criana, de ordem fsica, social, psicolgica e intelectual, no so satisfeitas pelos seus cuidadores.

    a partir dessa caracterizao, vrias pesquisas procuraram avaliar as influncias dos diferentes estilos no desenvolvimento de crianas e adolescentes. as investigaes na rea consistem princi-palmente em levantamentos quantitativos. os dados empricos so coletados com um grande nmero de sujeitos por meio de escalas,

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    inventrios, questionrios e/ou censos demogrficos sobre a popu-lao. Em geral, indicam que os adolescentes filhos de pais demo-crticos apresentam um melhor desempenho em todas as reas e que quanto mais autoritrio e coercitivo for o estilo educacional dos pais, menos autnomo, menos confiante e mais suscetvel a presses so os jovens. indicam tambm que pais permissivos negligentes ou indulgentes aumentam a probabilidade de envolvimento dos adolescentes em comportamentos antissociais.

    Esses estudos evidenciam que, em geral, os filhos de pais auto-ritativos (democrticos) so social e instrumentalmente mais com-petentes. esse estilo parental promove um desenvolvimento psico-lgico de crianas e adolescentes considerado mais positivo no que diz respeito a maturidade psicossocial, competncia psicossocial, desempenho escolar, autoconfiana e menores nveis de problemas de comportamento. o respeito, o apoio, a tolerncia e a aceitao do filho pelos pais, aliados a um controle moderado de seu comporta-mento, contribuem para melhorar a autoaceitao e o autoconceito dos adolescentes. o estilo autoritativo facilita o desenvolvimento do comportamento moral pr-social, diminui a vulnerabilidade ao uso de drogas e lcool, tem forte apego aos pais, aceitao de crenas tradicionais sobre o bom comportamento e grande desaprovao de maus comportamentos (Cecconello, De Antoni e Koller, 2003; We-ber, Prado, Viezzer e Brandenburg, 2004; Gomide, 2006).

    Os filhos de pais autoritrios, especialmente mes, apresentam comportamento de agresso verbal ou fsica, destruio de objetos, mentem, so socialmente retrados, manifestam depresso e ansie-dade. Filhos de pais permissivos tendem a usar tabaco e lcool, a ter baixo autocontrole e baixa capacidade de lidar com conflitos. Os resultados mais negativos aparecem relacionados aos filhos de pais negligentes, que podem apresentar desenvolvimento atrasado, pro-blemas afetivos e comportamentais e comportamento antissocial (Weber; Prado; Viezzer; Brandenburg, 2004; Gomide, 2006).

    Para Gomide (2006), algumas prticas educativas familiares reduzem riscos e outras aumentam a probabilidade de comporta-mentos antissociais. as prticas vinculadas ao comportamento pr-

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    -social so: monitoria positiva e comportamento moral. entende-se por monitoria positiva o uso apropriado da ateno e da distribui-o de privilgios, adequado estabelecimento de regras, distribui-o contnua e segura de afeto, acompanhamento e superviso de atividades escolares e de lazer. Os pais do ateno ao filho e os con-trolam. o comportamento moral diz respeito a propiciar condies que favoream o desenvolvimento de empatia, senso de justia, res-ponsabilidade, trabalho, generosidade e conhecimento do certo e do errado quanto a drogas, lcool e sexo seguro. Em geral, o grau de coeso, aceitao e apoio familiar, associado a um baixo conflito afetivo intrafamiliar e a certo grau de controle por parte dos pais, favorece a internalizao, pelo adolescente, dos valores paternos.

    as prticas educativas familiares vinculadas ao comportamento antissocial so: negligncia, caracterizada pela ausncia de ateno ou afeto pela criana; abuso fsico, como maus-tratos, incluindo agresso fsica, sexual e psicolgica, como insultos, xingamentos, ameaas; disciplina relaxada, que se caracteriza pelo no cumpri-mento das regras estabelecidas; punio inconsistente os pais se orientam por seu humor na hora de punir ou reforar, e no pelo ato praticado , o que prejudica a avaliao pela criana dos efeitos de suas aes sobre os outros e sobre o meio e a distino entre o certo e o errado; e monitoria negativa, que inclui o excesso de or-dens, independentemente de seu cumprimento o que pode gerar hostilidade, insegurana e dissimulao , ou disciplina severa que impede a autonomia dos filhos e pode resultar em hostilidade (Go-mide, 2006).

    a violncia intrafamiliar ocorre quando os pais utilizam o po-der que lhes conferido por sua situao para dominar e satisfazer seus desejos e necessidades pessoais. a violncia intrafamiliar est relacionada s relaes interpessoais assimtricas e hierrquicas, marcadas por desigualdade e subordinao temporrias ou siste-mticas (nos casos de abuso emocional, fsico e sexual), negligncia e abandono dos filhos pelos pais (De Antoni; Koller, 2000; Arajo, 2002). A vulnerabilidade familiar, medida por indicadores de risco e proteo, aponta que a violncia na famlia est associada a fatores

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    de ordem pessoal, como a sade fsica, o temperamento, a autoes-tima e a confiana dos seus membros, e a fatores como as condi-es socioeconmicas e a rede de apoio social e afetiva existente na comunidade. a rede de apoio diz respeito ao conjunto de locais e pessoas nos quais as famlias buscam apoio e auxlio, sejam estes de ordem emocional, moral ou financeira, como hospitais, postos de sade, Conselho Tutelar, ONGs etc.

    Conforme De Antoni, Barone e Koller (2007), a explicao para o abuso fsico est, s vezes, associada a eventos especficos e pon-tuais, como determinada etapa do desenvolvimento infantil ou a perda de emprego de um dos genitores, e outras vezes a caracters-ticas dos pais, como a impossibilidade de controlar seus impulsos agressivos, ou ainda a caractersticas dos filhos, como ser portador de necessidades especiais. outras vezes, a violncia fsica est rela-cionada cultura na qual a famlia est inserida. Neste caso, o uso da fora fsica revela a crena nos valores autoritrios e na legitimi-dade de poder dos pais sobre os filhos, e justificada por ser uma prtica disciplinar que existe h diversas geraes na famlia.

    De Antoni, Barone e Koller (2007) afirmam, com base em um estudo realizado com famlias denunciadas por abuso fsico, que os indicadores de proteo so trs: a religiosidade que fornece ou de-senvolve valores morais e espirituais e facilita lidar com o sofrimen-to; o sentimento de valorizao das conquistas familiares como os estudos do filho ou uma sua qualidade, a casa onde residem ou o trabalho de um membro , que contribui para o aumento da auto-estima do grupo; e o desejo de mudana, como a aspirao a que o filho melhore de vida. J entre os indicadores de risco esto a mater-nidade ou a paternidade na adolescncia, o no reconhecimento da paternidade, a excessiva interferncia dos pais dos progenitores, al-coolismo, depresso em um dos pais, descontrole emocional, filhos portadores de necessidades especiais, uso de drogas ilcitas, aids e conflito com a lei.

    Nessas famlias, as prticas disciplinares impostas pelos pais so ineficazes pela falta de estabelecimento de limites. Os pais, em geral, divergem entre si sobre as prticas educativas e tm senti-

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    mentos ambivalentes aps o uso da fora fsica, de forma que, aps o castigo, se desculpam com o filho, evidenciando certa confuso sobre as formas de aplicao de disciplina. Mesmo assim, aparen-temente acreditam que a punio fsica seja educativa. No entan-to, como a punio corporal contestada pela sociedade e passvel de interveno jurdica, os pais afirmam tentar estabelecer dilogo com os filhos, mas que estes no aceitam as argumentaes. Os fi-lhos, na maioria das vezes, voltam a repetir o comportamento que acarretou o castigo fsico. assim, em geral, a determinao de li-mites pela imposio verbal ou corporal no tem xito. O relacio-namento familiar marcado pela agressividade entre pais e filhos e por violncia conjugal.

    Nessas famlias, tambm comum a presena da violncia transgeracional. isto , os prprios pais foram educados por meio de punio fsica pelos seus pais (De Antoni; Barone; Koller, 2007). ou seja, evidncias apontam para a transmisso intergeracional de estilos parentais. Controlar os filhos por meio de comportamentos violentos gera mais violncia. Tal fato pode explicar por que os me-ninos protagonizam mais situaes de violncia, j que apanham mais do que as meninas. Pais que receberam educao severa e/ou foram vtimas de maus tratos na infncia tendem a repetir essa ex-perincia com os prprios filhos. Pessoas tratadas com severidade quando jovens, na famlia de origem, tendem a utilizar prtica si-milar com seus prprios filhos. Depreende-se, portanto, que existe um ciclo de violncia no mbito do qual os pais percebem suas prticas como normais ou naturais. o abuso fsico compreendido como o uso de fora fsica contra a criana e o adolescente por parte dos adultos que devem zelar pelo bem-estar deles justificado e de-fendido pelos familiares como uma prtica disciplinar (Cecconello; De Antoni; Koller, 2003; Gomide, 2006; De Antoni; Koller, 2000).

    assim, muitas vezes, as causas da violncia juvenil so impu-tadas s famlias dos jovens, por sua dificuldade em impor limites, normas e valores aos filhos. A adoo de um ou outro estilo parental se constituiria, ento, em um dos fatores relacionados ao protago-nismo de violncia por jovens.

  • 2 A fAmliA de periferiA

    e A violnciA de jovens

    alguns dos autores que pesquisam as causas do protagonismo de jovens em situaes de violncia concentram sua ateno na fa-mlia e, em especial, nas famlias pobres.

    ao estudar as famlias moradoras da periferia de recife, Melo (1999) afirma que nessas famlias falta uma figura de autoridade educativa na determinao de valores e normas sociais, o que con-tribui para que os jovens se encaminhem para a marginalidade. Segundo a autora, as mes no conseguem impor uma disciplina aos seus filhos, por exemplo, obrigando-os a frequentar a escola. as mes falam de violncia nas ruas, mas no impedem que seus filhos convivam nesses grupos de amigos, por elas considerados errados, indisciplinados e ms influncias. Mesmo que nessas fa-mlias no haja uma imposio de autoridade, algumas vezes a me tenta se impor por meio de violncia fsica, reproduzindo com seus filhos a relao que teve com sua famlia de origem. Segundo Mello (1998), os pais desses jovens, quando permanecem junto da famlia, comportam-se de forma opressora ou mostram-se desinteressados, deixando de participar das decises. Os companheiros das mes be-bem, expulsam os filhos de casa e os acusam de ser delinquentes. Os estudos de Lesser de Mello (2002) corroboram essas afirmaes. Sarti (1999) tambm afirma que as crianas das famlias pobres no experimentam a autoridade paterna.

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    As investigaes de Lesser de Mello (2002), Mello (1998) e Arajo (2002) tm tambm mostrado que os jovens ficam na rua, mesmo que a rua seja vista pelos pais como um espao que leva a desvios, como roubo e uso de drogas. Os pais no conhecem os amigos dos filhos e no sabem de suas atividades, indicando que h pouca comunicao ente eles. Os pais vm seus filhos como indisciplinados e tomam co-nhecimento dos seus desvios por intermdio da escola, da polcia, de vizinhos e parentes. as mes se mostram desapegadas e permissivas e se queixam de no saber como impor disciplina. Nessas famlias no h lei, ordem ou limites. contudo, em certas ocasies, h uma tentati-va de disciplinar os filhos por meio de posturas e atitudes autoritrias. assim, o autoritarismo convive com atitudes de negligncia.

    No mesmo sentido, Feij e Assis (2004) afirmam que as mes que criam seus filhos sem o cnjuge veem-se foradas a trabalhar fora para sustentar a casa, o que implica menor disponibilidade de tempo para vigiar o comportamento dos jovens, que podem, assim, se associar a ms companhias ao buscar dinheiro nas ruas. as mes apresentam dificuldade para se relacionar com os seus filhos, desconhecendo-os como pessoa, pois para elas o filho sempre bom e carinhoso, e reagem com surpresa ao tomar conhecimento do comportamento dele em sociedade.

    Como afirma Szymanski (2004), existe a famlia idealizada pela sociedade, que representada na maioria das vezes como composta de pai provedor, me responsvel pela criao dos filhos e pela ma-nuteno domstica. Assim, essa autora afirma que:

    as falhas nesse processo so atribudas a patologias ou deficincias morais, intelectuais ou psicolgicas dos pais. instituies educacionais como escolas e creches aproveitam-se dessa ideologia para culpar a famlia pelas dificuldades escolares e de relacionamento que crianas e jovens apresentam e, tam-bm, para encobrir suas prprias deficincias. (p.7)

    outros trabalhos destacam uma associao entre situaes de violncia protagonizada por jovens e o uso de lcool e drogas no

  • Famlia e esCola 27

    meio familiar. o abuso dessas substncias mais frequente nas famlias que no conseguem controlar seus filhos (Melo; Caldas; Carvalho; Lima, 2005). Guareschi et al. (2003), ao estudar as ra-zes alegadas por moradores de favela para que os jovens se tor-nem marginais, traficantes, ladres e/ou violentos, mostra que os entrevistados relacionam a marginalidade estrutura familiar. Para eles, nas famlias em que a presena do pai rara e as mes no con-trolam seus filhos, as crianas tendem a se envolver com drogas e com traficantes e a se tornar violentas, embora tal fato seja tambm percebido como uma forma de sobrevivncia.

    Em uma reviso de literatura, Bem e Wagner (2006) conside-ram que o enquadramento dos pais em uma ou em outra categoria pode dar origem a uma estigmatizao das famlias pertencentes aos nveis sociais mais baixos; no entanto, mostram que h relao entre os valores dos pais e as classes sociais. os integrantes de clas-ses sociais mais abastadas, definidos por maior escolaridade e maior poder aquisitivo, tendem a priorizar valores de autodireo ou au-togesto, como autocontrole, responsabilidade e curiosidade, e fa-zem mais uso de estratgias indutivas. as famlias de nvel socioe-conmico inferior, caracterizadas por menor escolaridade e menor poder aquisitivo, se preocupam mais com valores de conformidade, como limpeza, bons modos e obedincia, e utilizam mais sistema-ticamente estratgias baseadas na afirmao de poder pautadas por castigo fsico, ameaas e tcnicas coercitivas.

    os estudos com os adolescentes e jovens que cometeram atos infracionais tambm indicam que em suas famlias h uma inverso de hierarquia e de autoridade, j que os pais abdicam de seu papel e no supervisionam a criana, embora, s vezes, eles sejam demasia-damente punitivos e proibitivos, ou acreditem que os conflitos po-dem ser solucionados por meio de violncia (Segond, 1992; Verzini, 1996; Melo et al., 2005). Para Segond (1992), embora no exista uma causa nica, a transgresso tem relao com normas e limites.

    Kessler (2004), ao revisar as teorias sobre delinquncia juvenil, assinala que o dficit de socializao a hiptese central de uma de-las. o pressuposto que a desestruturao familiar, como a dos la-

  • 28 LeiLa Maria Ferreira SaLLeS Joyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    res monoparentais chefiados pela me, dificulta a internalizao de normas sociais, induz busca da gratificao imediata e contribui para a falta de autocontrole. o pouco controle sobre a conduta dos filhos dificultaria a internalizao de normas sociais. Porm, como aponta o autor, a maioria dos filhos de mes sozinhas no delin-quente e no h evidncias suficientes para postular uma relao positiva entre esses dois fatores. Nos anos 1980, predominam teo-rias que associam a delinquncia juvenil s classes sociais desfavo-recidas, indicando a existncia de uma relao entre crime e desi-gualdade social. a concepo corrente nessa poca que a pobreza, o desemprego, o subemprego, a desestruturao familiar e a falta de controle comunitrio se somam para impulsionar o jovem ao crime.

    Cecconello, De Antoni e Koller (2003) afirmam que, em geral, os adolescentes que cometem atos infracionais pertencem a famlias nas quais o pai est ausente, a maternidade ocorreu na adolescncia e registra-se o uso de drogas, como bebidas alcolicas. esses ado-lescentes tm uma comunicao pobre com os pais e pouco apego a eles e so menos controlados e supervisionados. H pouca intimida-de entre eles e no h planos conjuntos para o futuro. essas famlias caracterizam-se por pouco contato fsico, pouca demonstrao de carinho, intensa rejeio e falta de comunicao entre os membros.

    estudos feitos com adolescentes internadas aps sofrerem vio-lncia intrafamiliar tambm mostram que em suas famlias no existe um modelo de autoridade que estabelea limites, mantenha a estabilidade e o senso de equilbrio nas relaes familiares. a me no consegue impor limites e ser uma autoridade na famlia e o pai s assume essa tarefa quando est presente no lar, embora as meni-nas entrevistadas, em suas fantasias, imputem ao pai uma autorida-de que na realidade est longe de existir (De Antoni; Koller, 2000).

    Vrios estudos, ento, assinalam a existncia de conflitos de po-der e autoridade no mbito das famlias de adolescentes e jovens pobres que protagonizam situaes de violncia e/ou cometeram um ato infracional. As famlias pobres e qualificadas como deses-truturadas so apontadas como causa dos comportamentos violen-tos protagonizados por jovens, uma vez que no impem uma auto-

  • Famlia e esCola 29

    ridade que delimite valores e normas. ao mesmo tempo, o emprego da violncia para resolver situaes de conflito corriqueiro e tole-rado por essas famlias. os jovens aprendem, com isso, que os con-flitos podem ser resolvidos pela violncia. Os prprios familiares pai, me, padrasto, madrastas, avs, avs, tios e tias os punem por meio de violncia e resolvem seus conflitos dessa maneira. A violncia como modelo de soluo de conflitos passada de gerao a gerao e acaba por ser percebida como banal, natural e inevitvel.

    assim, os estudos sobre essas famlias apontam que as prticas educativas ora tendem permissividade, pela no imposio de li-mites, ora a uma tentativa de impor controle por meio de castigos fsicos. como esses trabalhos indicam, esse fato estaria relacionado s formas de organizao dessas famlias, monoparentais, chefiadas pela me, pais ausentes etc.

    as concluses de estudos como esses, quando apropriados acri-ticamente, desconsiderando o conjunto do tecido social como cor-responsvel nesse processo, tornam-se referenciais que fazem parte das justificativas para a culpabilizao das famlias pela violncia dos jovens e pelos comportamentos negativos que apresentam na escola e na sociedade.

    a famlia permanece como uma instncia fundamental de socia-lizao, mas as condies concretas de vida, as angstias decorren-tes da insegurana social, a precarizao das condies de trabalho e a criminalizao da pobreza so aspectos que se fazem presentes e minam a idealizao que se faz da famlia como espao ideal e no conflituoso para a socializao de jovens. Porm a apropriao acr-tica culpabiliza os sujeitos, ao no levar em conta o contexto social e econmico que leva vulnerabilidade social e ruptura das redes relacionais de proteo.

    a famlia permanece uma instncia fundamental de socializa-o, mas, como afirmamos, as condies concretas de vida, a angs-tia da insegurana social, a precarizao das condies de trabalho e o individualismo e a criminalizao da pobreza so aspectos que minam essa etapa da socializao da juventude.

  • 3 sobre os modos de orgAnizAo

    dAs fAmliAs pobres

    Os estudos com e sobre as famlias que podem ser classificadas como pobres, isto , integrantes das camadas economicamente menos favorecidas, mostram, no entanto que, embora a organiza-o do grupo familiar venha sofrendo grandes mudanas na socie-dade contempornea, de modo geral, a representao de famlia que constroem est permeada por valores que vigoram nas fam-lias tradicionais, organizadas de modo nuclear. Segundo romanelli (1995), o modelo de famlia nuclear, hierarquizada, na qual o pai tem autoridade sobre a mulher e os filhos e na qual prevalece a divi-so sexual do trabalho e uma maior proximidade entre mes e filhos visto como ideal. essa idealizao da famlia permanece, mesmo que em seu cotidiano o modelo necessite ser adaptado, de modo que lhes garanta a sobrevivncia.

    O modelo de famlia nuclear composta por pai, me e filhos predomina quando os filhos esto na faixa etria dos 6 aos 7 anos e passa a ser menos frequente medida que a idade deles aumenta.

    Entre as famlias pobres existem, alm dos tradicionais, arran-jos familiares1 caracterizados como monoparentais, nucleares ou extensos (Amazonas; Damasceno; Terto; Silva, 2003; Melo et al, 2005; De Antoni; Koller, 2000). Bem e Wagner (2006), ao revisa-rem a literatura, mostram que, entre as famlias de baixo nvel so-

    1 entende-se por arranjo familiar os membros da famlia, consanguneos ou no, que residem no mesmo domiclio.

  • 32 LeiLa Maria Ferreira SaLLeS Joyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    cioeconmico, o arranjo domstico que predomina o da famlia extensa, na qual existe mais de um ncleo familiar ou a incluso de parentes, como avs, tios, primos e agregados. esse arranjo de-corrncia do desemprego, dos baixos salrios e da instabilidade das relaes conjugais. em geral, nas famlias monoparentais a me a responsvel pelo grupo.

    Segundo Amazonas et al. (2003) e Sarti (2004, 2007), so cada vez mais frequentes os ncleos familiares chefiados por mulheres, o que indica uma tendncia feminilizao da pobreza e uma maior vulne-rabilidade da mulher. a adoo de um arranjo familiar monoparental no qual a mulher a base no significa, necessariamente, a adoo de um modelo alternativo de relaes familiares. Pelo contrrio, como afirma Bilac (1995), as constantes e sucessivas unies dessas mulhe-res, a monogamia seriada, pode significar um esforo para manter no lar a figura do provedor e indicar que o modelo ideal de famlia continua sendo o da famlia nuclear. assim, o homem como provedor econmico e a mulher como cuidadora da casa, dos filhos e do marido muito mais um ideal do que uma realidade vivenciada.

    A reviso da literatura feita por Bem e Wagner (2006), Amazo-nas et al. (2003) e o estudo de Sarti (2007) evidenciam que, entre as famlias pobres, ainda prevalecem os valores tradicionais e os pa-dres patriarcais de hierarquia, implicando uma reafirmao da au-toridade masculina. em geral, a mulher subordinada ao homem e a famlia estruturada como um grupo hierrquico, no qual preva-lece o padro de autoridade patriarcal. Existe uma forte hierarquia entre progenitores e filhos, ancorada na obedincia e no no desafio autoridade dos pais. A educao concebida como exerccio uni-lateral da autoridade. o respeito aos mais velhos, em especial aos pais, um valor fundamental. espera-se que as crianas obedeam. A organizao domstica baseada no princpio da diviso sexual tradicional, na qual o homem o provedor e a mulher, a dona de casa. a valorizao do homem pelo seu papel de provedor indica que a tica do trabalho dominante nessas famlias.

    Segundo Sarti (1999, 2007), Amazonas et al. (2003) e Bilac (1995, 2006), a qualidade de provedor de teto, alimento e respeito

  • Famlia e esCola 33

    famlia confere autoridade ao homem e um papel central na me-diao entre o grupo familiar e o mundo. ele o responsvel pela famlia e qualquer fracasso nesse papel recai sobre ele. o homem o chefe econmico e moral da famlia e a mulher, da casa. cabe a ela manter o grupo familiar unido e, como dona da casa, controlar o dinheiro. a autoridade feminina est relacionada valorizao do papel de me no cuidado dos filhos. No cotidiano dessas famlias, no entanto, essa diviso de trabalho por sexo no mais se susten-ta, pois o trabalho feminino imprescindvel para a sobrevivncia. assim, as famlias, ao adequarem o modelo familiar ao seu coti-diano, adotam particularidades de acordo com suas estratgias de sobrevivncia.

    o desemprego masculino e o abuso de lcool e outras drogas enfraquecem o papel do homem como provedor, o que lhe enfra-quece a autoridade econmica e moral. a autoridade moral ento, segundo Sarti (2007), buscada nos outros homens pertencentes ao grupo familiar, como o pai e/ou os irmos, que passam a representar a famlia diante do mundo. a mulher, ao assumir a responsabilidade econmica da famlia, reveste-se do papel de chefe, o que, no en-tanto, no lhe confere respeitabilidade perante o grupo social mais amplo. Neste caso, ela ainda necessita de seus pais ou irmos para lhe conferir respeitabilidade, ou seja, as relaes com a sua famlia de origem e parentesco so mantidas e at mesmo fortalecidas. a perda da capacidade provedora do homem contribui para que os casamen-tos sejam instveis. os casamentos so feitos e desfeitos, e quanto mais pobres so as famlias mais instveis elas so (Sarti, 2007).

    a instabilidade familiar decorrente de separao, morte, desem-prego ou subemprego faz que toda a rede de sociabilidade na qual a famlia est envolvida se responsabilize pelas crianas (Feij; Assis, 2004; Sarti, 1995, 2007) e as realizaes pessoais fiquem subordina-das s necessidades do grupo familiar (Bem; Wagner, 2006; Ama-zonas et al., 2003; Sarti, 1995, 2007).

    Segundo Sarti (1995, 2007), se nas famlias de classes mdias e altas h hoje um conflito entre a afirmao da individualidade e a submisso s obrigaes e responsabilidades do grupo familiar

  • 34 LeiLa Maria Ferreira SaLLeS Joyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    e o abandono das tradies a norma, nas famlias pobres esse conflito menor. Embora na famlia e na escola se afirme cons-tantemente que pelo trabalho que as pessoas acham seu espao no mundo e podem melhorar de vida, ou seja, que por meio do trabalho que os projetos individuais so construdos, entre os po-bres prevalece o projeto coletivo, pois a ascenso de um membro da famlia promove todo o grupo familiar. Nas famlias pobres, segundo Sarti (1995, 2007), as obrigaes em relao aos familia-res so mais fortes do que os projetos individuais, de forma que o grupo familiar precede o indivduo.

    Nos grupos de parentesco e de vizinhana, segundo Sarti (1995, 2007), prevalecem as obrigaes e a solidariedade. A obrigao se sobrepe ideia de parentesco de sangue e a lgica da solidarieda-de ope-se lgica do individualismo. a maior parte das crianas pobres vive entre a famlia, a rua do bairro e a escola. a rua pas-sa a ser uma extenso da casa, e as famlias passam muito tempo em convvio com a comunidade, em parte por causa das condies precrias de moradia. em geral, os cuidados com as crianas so compartilhados por todos. assim, a famlia nunca est isolada, mas inserida em uma rede na qual as obrigaes morais so determinan-tes. essas obrigaes e relaes de solidariedade viabilizam apoio e sustentao s famlias pobres. a solidariedade uma maneira que essas famlias encontram para se proteger e sobreviver na conjun-tura socioeconmica.

    Nos novos casamentos, no entanto, em geral o marido no se torna necessariamente pai das crianas. Assim, os filhos de unies anteriores podem ser criados pela av, que acolhe os filhos e os ne-tos no desemprego e nas separaes. em virtude da instabilidade dessas famlias, o pai, a me ou uma av podem exercer tanto o pa-pel de provedor como o de cuidador, no havendo uma delimitao clara de funes. Porm, quem acolhe a criana espera retribuio em forma de obrigaes morais, o que fortalece a rede de solida-riedade. Tambm a me pode, para evitar conflito, optar em dar os filhos para outra pessoa criar. Todas essas solues, em geral, so temporrias, podendo ser desfeitas a qualquer momento. as ado-

  • Famlia e esCola 35

    es temporrias e informais relativizam a noo de pai e de me, embora permanea a imagem idealizada do pai de sangue e da me verdadeira, isto , dos pais biolgicos (Amazonas et al., 2003; Sarti, 2007). No entanto, contrapondo-se a essas afirmaes, Je-rusa Gomes (1995) argumenta que algumas mulheres cuidam dos filhos das outras que vivem no mesmo bairro no por uma relao de compadrio e de vizinhana, mas porque so remuneradas por isso; no entanto, ainda assim tal fato indica que os pais no aban-donam seus filhos.

    Segundo Sarti (2007), a ideia de famlia est associada ideia de ter filhos, que do sentido ao casamento. A famlia uma refern-cia para os jovens que, na maioria das vezes, a idealizam. entre os jovens de periferia, a me referncia significando apoio, acolhida e amparo. Para Sarti (2007), a famlia uma referncia simblica fundamental para a populao pobre, pois o espelho no qual os pobres refletem e significam o mundo.

    assim, estes estudos indicam que a organizao familiar de-sejada se pauta no modelo familiar nuclear, embora este dificil-mente se concretize ou, mais comumente, raramente perdure. as-sim, outros arranjos familiares acabam se impondo. Porm, esses arranjos que acabam se efetivando tendem a ser desqualificados pela escola e apresentados como causa do comportamento indisci-plinado, do protagonismo de violncia pelos jovens e da ausncia de valores morais.

    as redes sociais compostas pelas famlias ampliadas ou refeitas e pela comunidade do bairro podem inclusive perder sua credibili-dade frente aos jovens, facilitando sua insero em grupos sociais considerados problemticos. e a escola, ao se constituir como uma instituio desacreditada, pode se somar a este rol de rupturas e desfiliaes, contribuindo para que os jovens permaneam em pro-cessos de insero social que podem ser considerados excludentes.

  • 4 AutoridAde e controle nA

    fAmliA: AlgumAs considerAes sobre A tutelA fAmiliAr

    nA sociedAde AtuAl

    Discutir as prticas familiares de criao e tutela de filhos impli-ca tambm buscar entender a famlia, seus modos de organizao e suas prticas na sociedade. a literatura tem mostrado que as rela-es entre pais e filhos atualmente se tornam mais igualitrias, que as responsabilidades so divididas igualmente entre o casal, e que a funo familiar de socializao repartida entre diferentes agentes. o pai, que era o provedor e disciplinador, teve esse pa-pel perdido ou pelo menos questionado. os papis de gnero e as obrigaes no so mais to claros. a autoridade, o direito e o de-ver so objetos de constantes negociaes e o adultocentrismo da sociedade denunciado.

    os estudos, principalmente aqueles efetuados a partir da dcada de 1980, tm, ento, apontado para as transformaes que podem ser observadas nas relaes entre pais e filhos. De acordo com estes estudos, hoje, as relaes familiares se baseiam mais no dilogo, na participao, na igualdade, na afeio e na compreenso. os adoles-centes veem a relao com os pais como satisfatrias, e tomar suas prprias decises livremente se torna aceitvel, no sendo mais uma situao conflituosa (Bosma; Jackson; Zijsling; Zani, 1996; Krepp-ner, 2000; Scabini, 2000; Montandon, 2001). A transformao das relaes entre pais e filhos contribui, inclusive, para que os filhos

  • 38 LeiLa Maria Ferreira SaLLeS Joyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    permaneam mais tempo junto dos pais e permite o prolongamento do tempo de coabitao.

    Na sociedade contempornea, o processo de tutela do adolescen-te e do jovem , ento, distinto daquele que ocorria anteriormente. em geral, a satisfao com a permanncia na casa paterna depende da flexibilidade familiar e da proximidade afetiva existente entre os jovens e seus pais e as formas de imposio da disciplina paterna (Gil Calvo, 2003; Scabini, 2000). Segundo Romanelli (1995), prin-cipalmente nas camadas mdias e mais escolarizadas da populao, pais e filhos hoje estabelecem relacionamentos afetivos e se sentem mais prximos. Com isso, a ideia de que o pai representa a autori-dade e a me o lado afetivo se transforma, com reflexos nas relaes de mando e poder no mbito familiar.

    Mesmo que haja uma pluralidade de infncias, adolescncias e juventudes em virtude das diferenas concretas nas condies de vida existentes na sociedade, e que a criana e o jovem sejam tu-telados educados, socializados e disciplinados pelo adulto, j que so desiguais entre si, h, parece-nos, uma tendncia de se es-tabelecerem relaes mais igualitrias entre eles. essa tendncia concomitante ao questionamento do adultocentrismo da sociedade e ao processo de prolongamento da adolescncia.

    Hoje, os jovens estudam, trabalham, se especializam, adiando a sada da famlia de origem e a constituio da prpria famlia (Abra-mo, 1994; Peralva, 1997). Embora esse processo seja mais acentuado nas camadas mdias da populao, h a tendncia para que se gene-ralize para toda a sociedade. dadas as mudanas que vm ocorren-do em virtude das transformaes das condies scio-histricas e culturais, os referenciais funcionais que demarcavam os limites entre uma idade e a outra so desorganizados. Como afirma Peralva (1997), na sociedade contempornea est ocorrendo um processo de despa-dronizao do ciclo de vida. as rpidas transformaes que ocorrem no mundo de hoje impossibilitam a emergncia de uma conscincia geracional, dissolvendo a oposio entre o passado e o futuro.

    as idades da vida esto bagunadas e, assim, a prpria ideia do que ser tutelado se modifica.

  • Famlia e esCola 39

    anteriormente, a infncia e a adolescncia tendiam a ser meno-rizadas e o jovem esperava, embora buscasse assumir o mais rapida-mente possvel o papel de adulto produtivo e consumidor. o car-ter preparatrio do processo educativo era acentuado e a diferena entre criana, adolescente, jovem e adulto estava firmemente esta-belecida. Porm, na sociedade contempornea, caracterizada pela acelerao, pela velocidade, pelo consumo, pela satisfao imediata dos desejos, pela mudana das relaes familiares e da relao crian-a-adolescente-adulto, cuja nfase est no presente, no cotidiano, no aqui e no agora, e na busca do prazer imediato, o processo de socializao distinto do que ocorria anteriormente.

    a socializao, no sentido clssico, implica uma relao de desi-gualdade entre adulto e criana e um longo tempo de preparao no qual est embutida a ideia de que a criana, na condio de ser em formao, est inacabada. a socializao sempre um processo que parte do adulto. Assim, na concepo de socializao fica implcita a ideia de que um processo de sentido nico, do qual a recipro-cidade est excluda (Parsons, 1968; Fernndez Villanueva, 1985; Castro, 1998).

    No entanto, os estudos realizados nas ltimas dcadas, como os de Kreppner (2000), Scabini (2000) e Montandon (2001) com crianas e adolescentes nos diversos contextos da vida cotidiana e nas estruturas de poder poltico e econmico, vm, juntamente com as mudanas verificadas nas relaes adultos-crianas e pais-filhos, questionar a ideia de socializao no sentido clssico do termo, que concebia que os adultos, pais e professores em especial detinham as informaes s quais as crianas poderiam ter acesso, e aquilo que deveriam saber e/ou lhes era permitido fazer era controlado e esta-belecido de acordo com as faixas etrias. As tecnologias da comu-nicao, entre elas a televiso e a internet, possibilitam que o acesso s informaes se d sem a superviso dos pais. assim, as crianas entram em contato desde cedo com o sexo, a violncia e a explora-o dos conflitos ntimos, por exemplo.

    a produo acadmica atual aponta que o importante como os membros dos grupos mantm e renegociam relaes, isto , toda

  • 40 LeiLa Maria Ferreira SaLLeS Joyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    a rede de relaes nas quais as crianas crescem e que lhes possibi-lita assimilar gradativamente a cultura, os valores e as normas que vigoram na organizao social na qual esto inseridas (Fernndez Villanueva, 1985; Montandon 2001). As crianas e os adolescentes so atores que interagem e reagem, negociam e redefinem a reali-dade social. O exame das relaes estabelecidas entre pares, como essas do significao sua idade, estabelecem normas e percebem a influncia do gnero na construo da sua identidade, evidenciam a necessidade de entender as crianas e os jovens como atores, isto , como sujeitos do processo de socializao, e no s como sujeitados a ele. A flexibilizao dos costumes, o reconhecimento das crianas e dos adolescentes como sujeitos de direitos sociais e a tendncia horizontalidade nas relaes adultos-crianas se refletem na educa-o dos filhos, que se torna menos rigorosa. Mudam-se as formas de dominao e a autoridade se torna democrtica. Ou, como afirma Lasch (1991), a famlia tende a se organizar de modo democrtico e igualitrio, com o declnio da autoridade autoritria.

    Nesse sentido, pais e professores no devem mais se impor arbi-trariamente, pois a sua autoridade s considerada vlida quando justificada e justificvel, ou seja, quando se conforma razo. As investigaes sobre estilos parentais, ao preconizar a superioridade do estilo democrtico, reforam essas afirmaes.

    H maior liberdade e autonomia para os jovens e diminuio da autoridade e do controle paternos. os mtodos autoritrios e dire-tivos de educao so criticados. Procuram-se minimizar as dife-renas entre as geraes e evitar que a criana seja lembrada de sua imaturidade e dependncia. Exalta-se a juventude, fazendo que os mais velhos desejem ser jovens e que as relaes entre pais e filhos se transformem, com os pais perdendo a autoridade, questionando o que fazem de errado, e a criana e o adolescente querendo apenas ter direitos (Lasch, 1991). Para o autor, as profisses assistenciais, como a assistncia social, a psiquiatria e a educao, questionam a autoridade dos pais e a colocam sob superviso.

    as relaes de autoridade e os valores sociais e morais esto sen-do questionados e revistos. De um lado, existem a criana e o ado-

  • Famlia e esCola 41

    lescente precocemente seguros de como devem se comportar, e, de outro, a prpria sociedade que se v em crise de autoridade e confusa quanto aos valores morais que deve adotar, o que se reflete nas atitu-des dos pais e dos educadores. os pais se sentem inseguros e hesitam em impor seus padres, ao mesmo tempo em que a criana e o ado-lescente adquirem o direito de ser respeitados nas suas exigncias. assim, os pais se encontram confusos quanto s prticas educativas, sem discernir mais o certo e o errado, se devem ou no impor disci-plina aos filhos. A exigncia de disciplina , assim, delegada a outras autoridades ou ento o pai joga a deciso disciplinar para a me que joga para o pai. Na dvida, ambos esperam que os colegas dos fi-lhos decidam, ou seja, desloca-se o controle para o grupo de pares. A delegao da disciplina poupa a famlia de conflitos. Por sua vez, o adolescente aprende que as regras so diferentes e que variam nas diferentes famlias, e usa esse conhecimento para negociar com os pais, aumentando a insegurana deles (Lasch, 1983, 1991).

    Tudo isso contribui para que os pais passem a hesitar sobre suas normas, sobre o que certo e o que errado, e acabem por confiar nas orientaes de especialistas e s vezes depender delas. Isso faz aumentar cada vez mais a importncia das tcnicas de criao de filhos. Ou seja, os pais vacilam sobre seus julgamentos e redobram a sua dependncia de especialistas, mesmo que seus conselhos sejam conflitantes e mudem conforme a moda (Lasch, 1991, p.215-27). Como diz Giddens (2002), mesmo que os especialistas sejam ques-tionados como autoridades e todos discordem entre si, pois no h objetividade na cincia, h uma demanda social por suas opinies.

    A demanda por especialistas provoca um controle externo da vida privada e leva superviso da educao dada s crianas. as mes agem de acordo com a imagem do que deve ser uma boa me. a famlia na atualidade tutelada por agentes assistenciais e por es-pecialistas mdicos, psiquiatras, educadores, entre outros que lhe dizem o que deve fazer, como deve se comportar e como deve educar os filhos (Lasch, 1983, 1991; Cunha, 1997; Donzelot, 2001).

    a gerao mais velha no guia mais os jovens; ao contrrio, so os adultos que querem ficar jovens. O jovem torna-se modelo para

  • 42 LeiLa Maria Ferreira SaLLeS Joyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    as diferentes faixas etrias. Difunde-se socialmente o culto apa-rncia, beleza, erotizao e necessidade de se conservar a ju-ventude. o envelhecimento tende a ser postergado. H, hoje, um imaginrio social de juventude que leva os pais a abandonarem sua autoridade e disfarar sua idade meus filhos so meus amigos. a ideologia igualitria permite aos pais, agora, se apresentar como amigos, companheiros mais velhos dos filhos, se tornar colegas de-les, o que se manifesta na prpria aparncia jovial que os pais assu-mem, no gosto jovem e no uso de grias. Pais e filhos devem falar sobre seus sentimentos e evitar confrontos (Lasch, 1983, 1991).

    As mes se mostram aflitas com a possibilidade de perder os fi-lhos e assim fazem poucas exigncias, esperando que quando dei-xem a famlia o faam sem crise emocional. At mesmo os jovens, quando questionados, dizem que no tm conflitos com seus pais, embora os acusem de negligncia, indiferena e/ou excesso de aten-o. O conflito de geraes condenado como anacrnico (Lasch, 1983, 1991).

    Tudo isto indica ento que os modos de imposio de disciplina e as formas como as famlias controlam seus filhos precisam ser pro-blematizados, pois as relaes entre pais e filhos, adultos, crianas e adolescentes se constri hoje de uma forma distinta de antes.

    No h normas rgidas de conduta e as exigncias so vistas como irreais. a imposio de limites passvel de discusso. o mo-delo de relao o da relao entre iguais, que no fazem exigncias e que compreendem. difunde-se a importncia de uma vida do-mstica pautada em padres democrticos, na defesa dos direitos das mulheres, no fim da represso sexual e em uma educao in-fantil permissiva. Para Roure (2007), o enfraquecimento da famlia compatvel com o esprito do capitalismo tardio que promove a atomizao do indivduo que, cada vez mais s e destitudo das re-ferncias familiares de identificao e autoridade, fica merc dos poderes coletivos e da ideologia totalitria.

    a autoridade do pai estava fundada no fato de ser provedor e em seu saber paterno. Contudo, como afirma Romanelli (1995, p.82) esse saber do pai, que antes se baseava na experincia, na tradio,

  • Famlia e esCola 43

    hoje questionvel, pois so os filhos que sabem e ditam modelos de conduta. At mesmo, em alguns aspectos, chega-se a se afirmar a superioridade das crianas e dos adolescentes perante o adulto, dada sua familiaridade com as novas tecnologias. Como afirma Gid dens (2000), o declnio da autoridade do pai e do seu poder sobre a esposa e os filhos amplia o controle da me e desloca o centro da famlia da autoridade patriarcal para a afeio maternal. A me e os filhos se pautam cada vez mais pelo dilogo, e as relaes entre eles tendem a se tornar mais igualitrias.

    O filho compreendido em seus sentimentos e no seu direito de exprimi-los. As relaes interpessoais se tornam pouco exigen-tes. Todos querem ser bons pais. Segundo Lasch (1983, 1986), prevalece a tica do lazer e da autossatisfao e a permissividade se torna regra. A famlia autoritria e a moralidade sexual repressora so criticadas e, em muitos casos, superadas. Fica difcil manter padres e uma ideia de continuidade, de razes e normas em um mundo onde nada fixo, no qual os valores e os padres morais mudam constantemente. o passado no serve mais de guia para o futuro, que imprevisvel (Lasch, 1983, 1986). A cultura hoje a cultura do evitar conflitos, do suavizar o que penoso. Substi-tuem-se o certo e o errado por relaes humanas e a amizade se torna a nova religio (Lasch, 1991, p.139). O amor e a disciplina no so mais provenientes da mesma pessoa, poupando-se o rela-cionamento de conflitos.

    uma caracterstica bsica da famlia hoje, para Lasch, a se-parao entre amor e disciplina. difunde-se socialmente a ideia de que qualquer disciplina pode acarretar traumas. os pais delegam, assim, a disciplina aos especialistas e aos amigos dos filhos, e ficam amigos deles. o controle social agora um problema tcnico-mdi-co (Lasch, 1983, 1991).

    A delegao da disciplina poupa a famlia de conflitos. Os pais discutem e negociam. Pais e professores abdicam de sua autorida-de. o adolescente hoje j no deseja suceder ao pai; em vez disso, ele deseja simplesmente gozar a vida sem a sua interferncia sem a interferncia de qualquer autoridade (Lasch, 1991, p.166).

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    Toda essa transformao nas formas de controle social e de im-posio de autoridade permeia tambm as relaes estabelecidas na escola. Na escola, a distncia entre professor e aluno diminui. Mais do que a aprendizagem dos contedos escolares, o importante a qualidade das relaes humanas que so estabelecidas. Bom pro-fessor aquele que sabe se relacionar, ouve o aluno e o compreende como pessoa (Salles, 1998, 2000). aquele que respeita o aluno. o respeito ou desrespeito legitima at mesmo o protagonismo de violncia de jovens na escola (Salles; Silva; Fernandez Villanueva; Revilla e Bilbao, 2007).

    Tambm comea a ganhar espao entre os educadores a propos-ta de discusso conjunta entre alunos e equipe escolar das normas disciplinares. o pressuposto que os parmetros e normas de con-duta so respeitados quando so fruto de uma discusso conjunta. Procura-se dar oportunidade para que o aluno tome decises e se sinta corresponsvel pela organizao do espao escolar, refletindo sobre a legitimidade das regras (Rego, 1996; Salles, 2000; Aquino, 2003). Os alunos so considerados colaboradores e partcipes dos processos educativos que com eles se desenvolvem. os mtodos au-toritrios so questionados por gerar maior frequncia de compor-tamentos violentos contra os iguais e justificar atitudes agressivas dos alunos em relao aos professores (Hyman; Perone, 1998; Epp, 1996). Questiona-se a noo de que o caminho para solucionar a crise vivenciada nas escolas implica exacerbar os procedimentos disciplinares e a autoridade.

    os posicionamentos autoritrios so criticados por restringirem a autonomia do aluno e no permitirem a construo de um pen-samento autnomo e crtico. enfatizam-se a liberdade e o respeito ao aluno, o que pode permitir at mesmo certa impunidade pela ausncia de normas e parmetros que organizem o espao escolar. Indisciplina indica ousadia, desafio aos padres vigentes. Todo li-mite, parmetro e diretriz visto como uma prtica autoritria e cerceadora da espontaneidade dos alunos (Rego, 1996; Silva, 1998).

    Estas reflexes, sobre a imposio da autoridade no mbito es-colar esto em conformidade com as discusses acima, que afir-

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    mam que as relaes entre as pessoas devem se basear em relaes igualitrias nas quais, por princpio, nada imposto, tudo ques-tionvel e qualquer forma de autoridade cerceia e desrespeita as diferenas individuais.

    Porm, a proposta de discusso conjunta entre alunos e equipe escolar das normas disciplinares evidencia que a autoridade nas ins-tituies escolares foi, como afirma Roure (2001), reduzida a ques-tes de disciplina ou indisciplina e estabelecimento de limites. Na discusso sobre os limites, a concepo de autoridade perde o seu sentido social de fator constitutivo da conquista da autonomia das novas geraes para traduzir-se em uma estratgia pragmtica da direo para regular a conduta do educando. a escola busca assim expurgar o risco da postura autoritria. No entanto, ao agir desse modo nega que a autoridade seja um fator constitutivo da crian-a e perde, com isso, sua funo formadora, assumindo um papel meramente disciplinador. as tentativas de reverter essa condio, reafirmando a necessidade de se imporem limites, so insuficien-tes. apenas dizer no criana no garante, segundo roure (2001), a construo de valores ticos e morais. Para a autora, essa s uma tentativa de reduzir um problema do mbito das relaes sociais esfera individual. Como afirma, pensar que a imposio de limites pode estabelecer a formao tica do cidado o mesmo que acreditar que a moralidade se esgota na heteronomia (Roure, 2001, p.14). A ausncia da autoridade na experincia da formao humana, como afirma a autora, ao contrrio do que se poderia su-por, compromete o processo de individuao e no implica maiores possibilidades de autonomia e liberdade.

    Para La Taille (1996, 1999), o atual discurso pedaggico a res-peito da tica tem se desenvolvido sobre a premissa da crise moral que pode ser verificada na deturpao dos valores e na ausncia de limites nas relaes entre os indivduos. a educao contempor-nea abdica da autoridade e passa a conceber a educao moral como uma negociao em torno das regras ou como mera imposio de limites. o importante a tica das relaes, e no o certo e o errado. Contudo, como afirma o autor, o abandono da autoridade em favor

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    da autonomia da criana impede a superao da anomia e favorece formas de socializao narcisistas e individualistas.

    assim, a autoridade, antes percebida como inquestionvel na criao e na educao das crianas, torna-se questionvel. Porm, lembramos aqui, o jovem continua a ser tutelado pelo adulto. o adulto quem assinala o espao da criana e do jovem, e essa designa-o se d de acordo com as classes sociais, o gnero, o local onde vive, a forma como suas famlias se constituem. e os projetos de vida dos jovens diferem na medida de sua autonomia, dos valores da famlia em que vivem e das perspectivas familiares em relao a ele.

    No entanto, as formas de controle mudam e posturas autorit-rias de forte controle deixam de corresponder ao esperado social-mente. as relaes tendem horizontalidade, as regras e os limites so negociveis e a referncia pode deixar de ser o adulto para ser o grupo de pares.

    assim, nesse quadro de ambiguidades e imprecises que a vio-lncia da qual os jovens ora so vtimas e ora so protagonistas se constri, e as explicaes que enfatizam a forma de organizao das famlias e os estilos parentais precisam ser questionadas e rela-tivizadas.

  • pArte 2

    dAdos dA pesquisA

  • 5 A fAmliA dos Alunos e A relAo

    escolA-fAmliA, segundo os educAdores

    A fim de se refletir sobre a questo das relaes familiares e o que pensam os educadores das duas escolas estudadas sobre esse as-pecto e sua implicao na violncia escolar, foram feitas entrevistas coletivas e aplicados questionrios aos educadores de duas escolas.

    em cada uma das escolas participantes do estudo, realizaram-se dois encontros com seus docentes e gestores. em uma delas, identi-ficada aqui como Escola 1, participaram 15 educadores: 13 docentes, a coordenadora e a diretora. No primeiro encontro, foi solicitado a cada participante do grupo que se posicionasse em relao a temas propostos pelos pesquisadores, e procurou-se incentivar a discusso entre eles a respeito de cada temtica. o segundo encontro tambm contou com a presena de 12 docentes, da diretora e da coordena-dora. Ao final da discusso, foi entregue um questionrio coor-denao para ser respondido por todos os professores da escola que lecionavam para as 7as e 8as sries do ensino fundamental, e poste-riormente recolhido. No total, foram respondidos 15 questionrios.

    o mesmo procedimento foi adotado na escola 2. do primeiro encontro participaram nove educadores. Nesse encontro estavam presentes a coordenadora e o vice-diretor da escola. do segundo encontro participaram seis educadores, entre eles o vice-diretor da escola. Nessa escola empregou-se o mesmo procedimento utilizado

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    na escola 1, a saber, a distribuio dos questionrios para serem posteriormente recolhidos. No total, dez docentes responderam ao questionrio a respeito das famlias dos alunos.

    os dados das entrevistas e dos questionrios foram complemen-tados por observao das atividades da escola: reunies, festas, re-creio etc.

    Para definir as categorias de anlise, as respostas dos educadores foram classificadas e categorizadas em diferentes blocos temticos definidos com base na reviso da bibliografia da rea e do discurso dos participantes. os temas bsicos das entrevistas serviram como eixos orientadores da anlise.

    A tcnica empregada para o exame dos depoimentos foi a anlise de contedo que, segundo Bardin (1988), um instrumental meto-dolgico pelo qual se busca entender o sentido de uma comunica-o. Apoiando-nos nessa tcnica de anlise, procuramos a explici-tao e a sistematizao dos contedos veiculados nos depoimentos dos entrevistados. Na primeira leitura dos depoimentos, visamos definir os indicadores que orientariam a interpretao dos dados coletados. Em seguida, passamos para a fase de explorao do ma-terial com o objetivo de codific-lo, classific-lo e categoriz-lo. Em cada entrevista, procuramos identificar os temas, as nfases e os pa-dres presentes nas falas dos entrevistados.

    as respostas foram agrupadas em diferentes blocos temticos considerados mais significativos, definidos com base nos pr-prios temas enfocados na entrevista e nas respostas dos partici-pantes do estudo.

    A seguir, buscamos identificar as dimenses mais frequentes ou mais enfatizadas em cada um desses blocos temticos, bem como as diferenas que puderam ser encontradas em cada um deles.

    A Escola 1

    Em 1967 foi construdo em uma cidade do interior do Estado de So Paulo o prdio onde hoje est situada a escola 1. inicialmente,

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    instalou-se no local um Ginsio Estadual. Em 1976, este deixou de se chamar Ginsio estadual para se constituir como escola estadu-al de Primeiro Grau. com a criao do curso Supletivo de Segundo Grau, a escola se transformou em escola de Primeiro e Segundo Grau (EEPSG) e atualmente Escola Estadual, na qual so ofereci-dos o Ensino Fundamental e Mdio (EJA).

    a escola localiza-se em um bairro predominantemente resi-dencial, de classe mdia. Grande parte da comunidade local tem seus filhos matriculados em escolas particulares. Por isso, apenas 5% dos alunos residem em bairros prximos escola, sendo os 95% restantes provenientes de bairros distantes. estes utilizam o trans-porte escolar pblico como meio de locomoo, e alguns vo es-cola de bicicleta.

    os alunos so provenientes de vrios bairros, todos considera-dos perifricos. Tambm frequentam a escola alunos que moram na zona rural do municpio.

    os alunos em sua maioria so oriundos de escolas municipais existentes nesses bairros da periferia da cidade. So filhos de traba-lhadores de diversos setores, inclusive de postos de trabalho infor-mal. a maioria dos pais e padrastos que trabalham est empregada em postos que exigem pouca qualificao, como operrios, pedrei-ros, serventes de pedreiros, eletricistas, encanadores, ambulantes ou caminhoneiros. as mes, quando no so donas de casa, trabalham como costureiras, empregadas domsticas ou faxineiras. Alguns alu-nos trabalham, por exemplo, ajudando um tio dono de borracharia, ajudando o pai que ambulante ou que tem um carrinho de lanches ou que dono de um mercadinho. os alunos mais velhos da edu-cao de Jovens e Adultos (EJA) relatam trabalhar como balconistas no comrcio local, operrios e ajudantes de cozinha.

    esta escola bem cuidada e ampla, com espaos apropriados para o desenvolvimento de atividades diversificadas com os alunos.

    O prdio se situa em um terreno de 6.141,10 m2. Suas insta-laes fsicas incluem dez salas de aula, sala de informtica, sala de leitura, banheiros feminino e masculino, cozinha, ptio co-berto com palco, quadra coberta e dependncias administrativas.

  • 52 LeiLa Maria Ferreira SaLLeS Joyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    a escola funciona nos trs turnos e atende hoje um total de 1.118 alunos.

    No perodo noturno, a escola oferece a eJa, que destinada queles que no tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino Mdio, na idade apropriada. ou seja, destinada princi-palmente a uma populao que frequentemente j vem assumin-do compromissos familiares e profissionais. A escola mantm dez turmas de EJA, atendendo a aproximadamente 400 alunos nesta modalidade.

    o ensino Mdio dessa escola atende a 718 alunos, em turmas divididas da seguinte maneira: seis turmas de 5a srie e quatro tur-mas de 8a srie de manh; e cinco turmas de 6a srie e quatro turmas de 7a srie tarde. de acordo com as coordenadoras da escola, no perodo da manh o ndice de indisciplina menor, o que justifica o fato de os alunos mais novos serem matriculados nesse perodo.

    Para as coordenadoras, os alunos da 7a srie so os que apresen-tam o maior ndice de indisciplina, o que torna comum as transfe-rncias de alunos de uma classe de 7a srie a outra, com o objetivo de diluir os possveis grupos de alunos indisciplinados. de acordo com o Plano de Gesto, a escola apresenta um alto ndice de evaso e reteno dos alunos. isso pde ser observado durante a realizao deste estudo pelo grande nmero de alunos com idade superior adequada para a srie. enumerados os possveis motivos dessa de-fasagem, a equipe escolar chegou concluso de que a indisciplina causada pelo baixo interesse e a desmotivao dos alunos e de al-guns professores so os fatores responsveis por estes resultados.

    durante nossas visitas escola, pudemos realmente presenciar um forte desnimo em grande parte dos professores. era comum escutar reclamaes de professores que diziam ser impossvel dar aula em algumas salas por causa da indisciplina dos alunos. chega-mos mesmo a ouvir o desabafo de uma professora, que relatou no aguentar mais, pois os alunos estavam jogando bolas de papel e giz em suas costas e em seu rosto enquanto tentava dar aula. Pudemos perceber um clima de tenso existente entre alguns professores e os alunos que se comunicavam por meio de gritos e gozaes.

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    Para a equipe gestora, uma das principais dificuldades enfren-tadas pela escola a no participao dos pais na vida escolar dos filhos, principalmente por no frequentarem as reunies destinadas integrao entre eles e a escola.

    Durante o tempo em que ficamos na escola, foi possvel perceber que so poucas as salas de aula em que os alunos permanecem em silncio. Na maioria do tempo, nas aulas que observamos, os alunos se apresentam bastante agitados, o que produz muito barulho. Tam-bm h uma movimentao constante dos alunos dentro da sala e at mesmo pelos corredores da escola, durante as trocas dos professores, mesmo que as regras definidas pela equipe gestora o proba.

    No primeiro dia que fomos escola para conversar com os pro-fessores sobre o projeto, presenciamos a discusso entre duas mes de alunas que haviam brigado na escola. ao entrarmos, a coorde-nadora nos explicou que a maior parte das brigas que ocorrem entre meninas, e que em uma tentativa de solucionar esse problema algumas j haviam sido transferidas para outras escolas. a diretora chegou a comentar que todos os dias h ao menos um caso de briga entre alunos. Assim, segundo a diretora e a coordenadora e tam-bm pelo que pudemos presenciar , so frequentes situaes de conflito entre alunos nessa escola.

    a aparncia fsica dos alunos denota a situao de pobreza em que vivem. So poucos os que possuem objetos mais caros. Foi possvel perceber que muitos alunos vo escola com o uniforme sujo e/ou rasgado. chegamos a presenciar o caso de uma aluna que estava na escola descala e suja, e que nos contou que todo material que tinha era providenciado pela escola. assim, esses alunos apresentam carac-tersticas que os distanciam da imagem idealizada do aluno ideal.

    A Escola 2

    A Escola em estudo foi criada no final da dcada de 1970, con-forme Decreto n. 14.148/79, e est situada em um bairro da perife-ria do municpio.

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    a escola funciona em prdio prprio e possui duas alas unidas por um galpo: a ala administrativa e a ala das salas de aula que, de 1979 a 1983, continha apenas seis salas, e a partir do ano de 1984 passou a contar com 12 salas, em virtude de uma ampliao iniciada em 1982. Essa ampliao foi decorrente da urbanizao do bairro e da grande demanda por novas vagas, em especial pelo aumento de migrantes do norte do estado de So Paulo, do estado de Minas Gerais e do Norte e Nordeste do pas.

    as instalaes fsicas da escola em questo consistem em: 12 salas de aula, uma sala-ambiente de informtica, uma sala de lei-tura, uma quadra de esportes, um ptio coberto, cozinha, banhei-ros masculino e feminino e uma sala de vdeo, cujo uso se alterna com a sala de aula no 1. a rea administrativa conta com sala de professores, sala do diretor, secretaria que abriga o vice-diretor e o professor coordenador pedaggico , cinco sanitrios, sendo um feminino e um masculino para professores, um feminino e um masculino para o setor administrativo e um de uso exclusivo do diretor da escola; alm disso, h uma sala de arquivo morto e uma cozinha administrativa.

    A Escola atende a aproximadamente 800 alunos de 5a 8a sries do ensino Fundamental distribudos entre o perodo da manh e da tarde, que em sua grande maioria residem nos bairros circunvizi-nhos. a instituio escolar est localizada em uma rea de periferia, com grande densidade demogrfica e baixos indicadores socioeco-nmicos; na regio, predominam as habitaes de padro popular e conjuntos residenciais populares, criados nas dcadas de 1980 e 1990 pelo poder pblico. Apesar de contarem com toda a infraes-trutura bsica, alguns bairros dessa rea no possuem pavimenta-o asfltica.

    o padro urbanstico bastante precrio e contribui, juntamen-te com os ndices socioeconmicos, para uma baixa qualidade de vida da populao. No existem reas verdes e nem reas destina-das ao lazer da populao local. No bairro onde a escola se encontra no existem praas, nem parques recreativos; o que se pode obser-var que prximo instituio escolar h uma quadra em fase de

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    construo, porm j depredada e coberta de pichaes. Na mesma situao encontram-se os baixos muros da Escola.

    as atividades culturais da regio so limitadas e as prticas es-portivas costumam ocorrer em espaos pblicos de estruturas pre-crias e reas livres. os servios pblicos de sade so oferecidos em regime de pronto-atendimento e em uma unidade Bsica de Sade, a 3 km de distncia da escola em questo. esses servios de sade so responsveis pelo atendimento de aproximadamente 50 mil habitantes da cidade de rio claro.

    No bairro onde a escola 2 se localiza, h uma grande degradao ambiental ocasionada pelo descarte clandestino de resduos slidos (domsticos, industriais e at hospitalares) e a existncia de bolses de entulhos e lanamento de esgoto in natura nos corpos dgua, fato esse comum de se observar na periferia das cidades dos pases em desenvolvimento.

    No Jardim ipanema, bairro onde a escola em estudo se situa, as atividades econmicas esto diretamente ligadas ao pequeno comrcio farmcias, mercados, padarias, papelarias, oficinas me-cnicas, depsitos de gs, alm de um grande nmero de bares. o setor de servio informal tambm significativo e representado principalmente por vendedores, sales de cabeleireiro e manicures.

    os ndices de violncia so elevados e caracterizam uma das re-gies mais violentas do municpio. o dia a dia da populao est ligado ao da polcia no combate ao crime e ao trfico de drogas. A populao local tem conhecimento dos pontos de trfico e sabe identificar os traficantes e marginais que circulam pelo bairro, mas, assim como ocorre em todas as reas de grande violncia, no h um discurso declarado sobre o problema, pois o medo e a necessidade de um convvio social impem a lei do silncio.

    Para quem vem ou v de fora, a escola no causa uma boa im-presso: o prdio est muito depredado, com muro quebrado e a pintura suja e pichada; antes mesmo de adentrar a instituio, j possvel notar a falta de conservao e o abandono.

    o primeiro contato com o interior da escola nos remete a um estado de desolamento e penria: o prdio escuro; as dependn-

  • 56 LeiLa Maria Ferreira SaLLeS Joyce Mary adaM de PauLa e SiLva

    cias so mal conservadas e sujas; falta infraestrutura adequada os banheiros, por exemplo, esto longe dos padres bsicos de um banheiro escolar; falta higiene, at mesmo no ptio onde servida a merenda escolar. H restos de comida espalhados pelo local e nota--se facilmente que a assepsia da cozinha no a ideal. a passagem entre os ptios cerrada por cadeados; portanto, para transitar pela escola necessrio pedir a uma das funcionrias responsveis pelas chaves que se disponha a liberar-nos o acesso. uma das primeiras salas de aula tem grades e cadeado na porta. ao ser questionada a respeito, uma das funcionrias afirmou que naquela sala fica o equi-pamento de televiso a fim de evitar roubos e furtos optou-se por esta soluo. outro fato que chama a ateno so as pichaes no interior da escola, que ocorrem com menos frequncia, mas so de fcil identificao.

    o ptio que se localiza entre as salas e que acolhe o maior n-mero de estudantes na hora do intervalo relativamente pequeno. alm de esteticamente feio e demonstrar ares de abandono, est cercado por terra e mato, o que gera desconforto e revolta entre os alunos. eles pedem que o mato seja cortado para evitar a prolife-rao de bichos que por vezes aparecem pelo ptio. alguns alunos relatam que, por causa do mato alto, j apareceram sapos, aranhas e at mesmo uma cobra dentro da escola e que, h alguns anos um urubu fez ninho no mesmo ptio.

    a escola no tem espao apropriado para o desenvolvimento de atividades diversificadas e h dificuldade at mesmo para realizar reunies, pois no h uma sala adequada. durante uma Hora de Trabalho Pedaggico Coletivo (HTPC) de que participamos, foi possvel notar o desconforto de alguns professores com as condi-es fsicas da escola, como vidros quebrados, carteiras depredadas e a falta de ventiladores.

    Apesar do quadro de conflitos e das restries de recursos fsicos e materiais, no h grandes mudanas na equipe gestora, que atua h alguns anos na mesma escola. em contrapartida, os docentes costumam mudar com frequncia poucos profissionais permane-cem na instituio, pois uma boa parte pede transferncia.

  • Famlia e esCola 57

    de acordo com o relato dos gestores, a escola constantemente invadida, depredada e vandalizada. essas aes, segundo eles, so protagonizadas pelos jovens da comunidade onde a escola se loca-liza. atualmente um grupo de meninas vem causando problemas dentro e fora dos portes da escola. So, de acordo com o relato dos gestores, garotas ainda muito jovens, com idade entre 12 e 13 anos, que mantm relaes sexuais com diversos meninos e assumem relacionarem-se tambm com pessoas do mesmo sexo. A direo da escola informou-nos que elas foram orientadas a respeito dos pe-rigos de relaes sexuais desprotegidas com diversos parceiros, mas que elas parecem no se importar e demonstram orgulho em relatar esses fatos. certa vez, presenciamos uma conversa da coordenadora com a me de uma dessas meninas. a me mostrou-se durante toda a conversa muito calma em relao s reclamaes e informaes que lhe eram repassadas, talvez indicando que tal comportamento no lhe causa estranheza. Segundo os gestores, quando essas meni-nas no esto na escola as invases no acontecem e, se acontecem, so em propores menores.

    compondo esse quadro fragilizado em relao ao ensino, aban-donado no que diz respeito s instalaes e associado ao vandalismo e s invases quase dirias por parte de pessoas de fora da esco-la, muitas vezes ligadas ao trfico , percebe-se facilmente que, se comparada realidade na qual est inserida, a escola 2 apenas uma continuidade do prprio entorno.

    Muitos alunos j tiveram experincias marcantes com a vio-lncia e so comuns os casos de problemas familiares envolvendo o crime e o uso de drogas. durante a pesquisa, foi possvel notar na fala de alguns alunos que roubos, furtos, brigas, mortes, ao policial e uso de entorpecentes so fatos cotidianos e de fcil acei-tao pela populao do bairro; poucos alunos se incomodam ou se envergonham em ter familiares presos ou ligados, de forma direta e indireta, ao crime.

    Para os alunos, a escola um ponto importante de convvio so-cial e a que eles tm a oportunidade de entrar em contato com informaes e pessoas s quais no teriam acesso to facilmente no

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    dia a dia. Basicamente, a escola um local de encontrar amigos. No entanto, os gestores afirmam que existem grupos rivais que causam tumultos e brigas, e impedem o trabalho docente.

    Segundo a equipe escolar, h tambm alunos que no param em suas salas de aula e ficam andando pelos corredores da escola, atra-palhando o andamento das atividades das outras turmas. Pudemos constatar e observar que muitos desses alunos que perambulam pe-los corredores saem para se encontrar com invasores, que adentram a escola pelos muros dos fundos. Os invasores muitas vezes ficam nas janelas das salas de aulas, comunicando-se com os alunos do fundo, e chegam at a atrapalhar as aulas.

    Quando ocorre uma ao policial ou um ato de violncia, como a priso de traficantes conhecidos, a morte ou o assassinato de pa-rentes de alunos, toda a comunidade escolar fica conturbada, o que afeta, inclusive, o trabalho pedaggico. a ao policial tambm comum dentro da escola: geralmente os agentes adentram o prdio para procurar foragidos que usam a escola para se refugiar durante as perseguies no bairro, pois acreditam estar a salvo entre alunos no ptio da escola. Porm, a polcia no limita sua ao e faz buscas intensas na escola. algumas vezes, com armas em punho e efetuan-do prises. Por vezes a polcia realiza batidas em alunos suposta-mente ligados ao crime.

    durante as visitas escola, foi possvel notar que os alunos considerados mais violentos costumam intimidar os colegas e os professores. Muitos deles chegam a amea-los. Nas reunies, pronunciamentos de alguns professores revelaram que eles sentem medo dos alunos e que se sentem ameaados dentro e fora do mbi-to escolar. alguns docentes chegaram a relatar intimidaes feitas por alunos e dizem que, para evitar conflitos e manter o mnimo de convivncia em sala de aula, optam por no confrontar esses alunos.

    O espao da escola um lugar de conflitos permanentes, com constantes situaes de violncia. Tudo isso contribui para que os resultados educacionais sejam precrios, embora, s vezes, alguns resultados positivos sejam alcanados.

  • 6 os depoimentos dos gestores e

    dos docentes dA escolA 1

    os pronunciamentos dos docentes e dos gestores nas entrevis-tas e as respostas dadas por eles aos questionrios foram analisados conforme se referiam s famlias dos alunos, sua associao com a violncia de jovens no mbito escolar e a relao famlia-escola.

    essas respostas foram agrupadas em dois conjuntos temticos mais significativos: (1) a famlia e a violncia protagonizada por jo-vens; (2) a relao famlia-escola. A primeira categoria famlia e a violncia protagonizada por jovens foi subdividida em duas sub-categorias: (1a) os arranjos familiares e a atuao dos pais na criao dos filhos; (1b) o cuidado e a tutela familiar. A segunda categoria, que trata da relao famlia-escola, abarcou duas dimenses de an-lise: (2a) os conflitos na relao escola-famlia; (2b) as propostas dos docentes para a melhoria dessas relaes.

    Sobre famlia e a violncia protagonizada por jovens no mbito esco