Entre as alucinações do dia a dia-Revisado
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DossiêOPensamentoEcológico–https://revistaecopos.eco.ufrj.br/
ISSN2175-8689–v.23,n.2,2020DOI:10.29146/eco-pos.v23i2.27474
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Entreasalucinaçõesdodiaadia:otempoealatinidade
emBelchior
Amongthehallucinationsofeverydaylife:timeandlatinidadinBelchior
DeniseFigueiredoBarrosdoPradoDenisePradoéprofessoraProgramadePós-GraduaçãoemComunicaçãoedocursode Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora peloProgramadePós-GraduaçãoemComunicaçãoSocialdaUFMG.ÉumadaslíderesdoGIRO–GrupodePesquisaemMídiaeInteraçõesSociais(UFOP/CNPq).
CláudioRodriguesCoraçãoÉ professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do curso deJornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutor emComunicação: meios e processos audiovisuais pela ECA/USP. Coordenador doGrupodePesquisa'Quintais:culturadamídia,arteepolítica'(CNPq-UFOP)
Submetidoem22deMarçode2020
Aceitoem24deJunhode2020
RESUMONesteartigo,apartirdeumaleituracontextualizada,analisamosasrelaçõesentreotempo e as marcas de latinidade engendradas no álbum Alucinação (1976), docantor e compositor Belchior. O percursometodológico é construído a partir daarticulaçãodeumadiscussãosobreaculturaeotemposocialquesedesdobraemtrês eixos analíticos: o debate sobre a contracultura articulada ao contexto deproduçãodoálbum;areflexãosobreastemporalidadessociaisenvoltasnaobraena dimensão poética das canções; e a emergência do prosaico como lugar deconstituiçãodaresistência.PALAVRAS-CHAVE:Alucinação;Belchior;Tempo;Latinidade;Contracultura.
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ABSTRACTInthispaperweanalyse,fromacontextualizedreading,therelationsbetweentimeandtracesoflatinidadarrangedinthealbumAlucinação(1976),bythesingerandcomposer Belchior. The methodological path is built from the articulation of adiscussionaboutcultureandsocial timethatunfolds inthreeanalyticalaxes: thedebate about counterculture articulated to the context in which the albumwasproduced;reflectiononthesocialtemporalitiesembeddedinthisworkandinthepoetic dimension of the songs; and the emergence of the prosaic as a place ofconstitutionofresistance.KEYWORDS:Alucinação;Belchior;Time;Latinidad;Counterculture.RESUMENDesdeunalecturacontextualizada,analizamosenesteartículolarelaciónentreeltiempo y las marcas latinas engendradas en el álbum Alucinação (1976), delcantante y compositor brasileño Belchior. El camino metodológico prevé laarticulacióndeunenfoquesobreculturaytiemposocialquesedesarrollaentresejesanalíticos: ladiscusiónsobre lacontraculturaarticuladaenel contextode laproduccióndelálbum;lareflexiónsobrelastemporalidadessocialesinvolucradaseneltrabajoyenladimensiónpoéticadelascanciones;ylaaparicióndeloordinariocomolugardeconstitucióndelaresistencia.PALABRASCLAVE:Alucinação;BelchiorTiempo;Latinidad;Contracultura.
JánaaberturadoálbumAlucinação(1976),comosomsuavedeumagaita,
numtomentreoromânticoeonostálgico,antesdenosdarmosconta,Belchiornos
convida (nos seduz) anos vermos como latino-americanos.Anunciando-seneste
lugar,Belchioriniciaumgestovoltadoparanós:háumamelancolia–misturadacom
algumadosededisplicência–quenosenvolveeépartilhadaentrenós.Emmeioa
certodesencantamentocomomundoeumclamorpelasubversãopolíticaeestética,
surgemascançõesdeAlucinação.Asimplicidadedenossacondição–apenasum
rapazlatino-americano–trazàtona,semgrandessurpresas,aperdados“grandes
mistérios”. No entanto, isso se apequena diante da abertura que promove: nós,
latino-americanos,temosapossibilidadedeviverabanalidadedavidacotidianae,
dela,fazernascerapoesiadeinventarumfuturo.
Éapartirdessaabertura,eemmeioaesseolharvoltadoparaoprosaico,
queBelchiornosconvocaapensaroquenosfazlatino-americanosporumolhar“de
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dentro”,donosso lugar cultural, edanossamaneiradeviver/entendero tempo.
Instigadosporessaproposta,nosdesafiamos,nesteartigo,adiscutircomooálbum
Alucinação,nascidoemumcontextosingularnoBrasil–aquefaremosreferência
mais adiante – faz emergir uma compreensão sobre o que significa ser (e se
reconhecer) latino-americano, bem como uma diversa forma de organizar os
tempos que nos constituem. Para trazermos à tona essa leitura, traçamos um
percursointerpretativodeAlucinação,conformeapresentadoadiante.
1. Delíriolúcidoe/ouacrisedacontracultura–ocontextodeAlucinação
ÀépocadosurgimentodeAlucinação,oexílioeraumapalavraquejáestava
marcadanocotidianobrasileiroe latino-americano.Coma instalaçãodaditatura
civil-militar em 1964, o exílio tornou-se uma necessidade de sobrevida, e as
possibilidades de retorno eram imprecisas e inconstantes. A concepçãode exílio
pode suscitar, pelo menos, duas proposições: a atormentadora quebra da
identidade; ou a fuga errante em oposição a um estado de exceção. Nas duas
elaborações,ainterdiçãoàcasa,aolugardemorada,àpátria,éaconfiguraçãode
suaviolência.Oretornoaessepontodepartidasequestrado,porpartedosujeito
exiladodesejante,podeseconstituirdeumaredentoracondição,quepoderíamos
chamar de desejo pessoal angustiante. Não é sem sentido, também, que esse
sentimento individual de exílio (o estranho, o estrangeiro retirado) traduza a
necessidadedereinvençãodaliberdade,tantoapessoalquantoacoletiva.Eisuma
espéciedeprincípioutópico,aosepensaroretornodoexilado,quesevêobrigado
a,nodesencaixe,refazer-seereconstituiroseulugaremmeioàslutastravadasno
quadrosocial.
Aexploraçãodoslimitesedasfragilidadesdoconceitodacontracultura,por
exemplo,estáatreladaaesseenteexilado,poreleser,essencialmente,emvirtude
decircunstânciasterríveis,aquelequeseopõeàdeterminadaordemestabelecida.
Éporissoquenadescriçãodoprocessodeexílio(sequestro,partidaeretorno)o
elementoderupturaculturalseinstituicomomarcaparasepensaroquepassoue
oquevirá.Aesserespeito,éinteressanteadescriçãodeCaetanoVeloso,emVerdade
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Tropical,aoestabelecerumaleituradopaís,emsuavoltadoexílio,naocasiãodo
carnavaldeSalvador, em1972,quando transmuta sua lidapessoal emotimismo
baseadonarelaçãocomessaexperiênciadecontexto:
Arejeiçãoqueoexíliosignificaranãoapenassedissipava;davalugaraumacarinhosa compensação. Nós, os tropicalistas, diferentemente de muitosamigos da esquerda mais ingênua, que pareciam crer que os militarestinhamvindodeMarte,sempretivemosdispostosaencararaditaduracomouma expressão do Brasil. Isso aumentava o nosso sofrimento, mas hojesustenta o que parece ser o meu otimismo. É que penso e ajo como sesoubessenacarnequaisaspotencialidadesverdadeirasdoBrasil,por terentradonumdiálogocomsuasmotivaçõesprofundas–esimplesmentenãoconcluoquesomosummerofracassofatal[grifosdoautor](Veloso,2008,p.458).
Essa imagemde futuro, narrada e atribuída ao “calordahora”, no anode
1972,é,nomínimo,incômoda,namedidaemqueprevêumprojetodeconstrução
simbólicaarticuladoao cabotinomovimentopessoaldoartista.Elaevidencia,no
mais,apossibilidadedeumnovoBrasil:opaísseconfiguraria,doravante,orientado
porprojetos e sonhosdediversosmatizes,na ânsiade se esculpiros temposda
revolução estética interditada, especificamente a do movimento tropicalista, em
plenomomentoditatorialbrasileiro.Nota-sequeorescaldodomovimentoestético,
doqualCaetanoéparte,estádiluídojustamentenasnovasrealidadesdesseretorno,
algoresignado,doexilado.
Aapostacontraculturaldotropicalismoseria,então,apartirdisso,otriunfo
dainterpretaçãodosmovimentosdevolta,cujostraumasdoperíodoanterior–a
censuraàencenaçãodapeçaRodaViva,deChicoBuarque,em1967,peloTeatro
Oficina; a vaia ao próprio Caetano Veloso, em 1968, por parte da juventude
universitáriadeesquerda,noshowdaPUC/SP;oaumentosignificativodarepressão
por parte do regime ditatorial; a vigília e a paranoia envolvidas no movimento
artístico – estariam vinculados a um contexto específico, sob o verniz da
efervescênciaculturalmisturadocomasangústiasdasnarrativasdeumageração
quesofriaainterdiçãonapeleenacarne.
Setraçarmosumintervalohistóricoentreosanosde1968(promulgaçãodo
AI-5)e1979(promulgaçãodaAnistia),podemosperceberqueavoltadosexilados
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políticos em 1979 (Gregório Bezerra, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Fernando
Gabeira,LuizCarlosPrestes)étributáriadeumaansiedadeutópicaqueseinveste,
ao final, de um canto melancólico, já que é significativo neste recorte temporal
(1968-1979) certa diluição dos processos arquitetados, na política e na cultura,
desdepelomenosmeadosdosanos1950.
Ou seja, a interdição da ditadura brasileira, e seus impactos políticos na
cultura,instiga,involuntariamente,atemáticadacrisedacontraculturanoseioda
produçãoartísticanacionaldosanos1970.Oocasodessa“celebração”énotado,já
meioforadotom,porCaetanoVeloso,em1972,epodeserresumidonosaldodo
finaldoperíodo,em1979,pordoissentimentos:a)amelancoliadoprocessopolítico
interditadodesdeo golpede1964e suasmarcaçõesno imagináriodepaís; b) a
reflexãodoocasodaestéticacontracultural,especialmenteapartirde1968.
Aproduçãodamúsicapopularbrasileiranadécadade1970,especialmente
adeartistasvinculadosouherdeirosdasmarcasdomodernismomusicaldesdea
bossa nova, incorpora o tema do questionamento interno dos rumos damúsica
popular brasileira e suas linhas evolutivas, bem como seu intenso processo de
assimilaçãonaculturademassa.Écomoseessatematizaçãosetornasseevidente
pelocantotristeemelancólico–resíduodasprojeçõescontraculturaisdoperíodo
anterior (antes de 1968), promovendo uma desconstrução, de certo modo
consciente, das premissas estabelecidas pelos artistas do tropicalismo. Ou seja,
poderíamos elencar/identificar uma espécie de “crise de narrativa” na música
popularbrasileira.
Oanode1968éparadoxalparaessaassimilação,jáqueestampaavanguarda
atreladaaosmovimentosreivindicatóriosinternacionaiseseinserenocontextode
interdiçãoradicalpelacanetadosmilitaresereacionários.Éumano-emblemaque
pareceatormentarosespectrosdasdécadasseguintes,naculturaenapolítica,em
cujamarcaéreveladaoutrapossibilidadedesonho,nointervaloentre1968e1979,
atreladoagoraaoprenúnciodeumnovotempoqueinsisteemnãorecomeçar.Daí
a “angústiamotivadora”dosanos1970emcontrastecomaenergiaeufóricados
tropicalistaspré-exílio.
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Essatemporalidadedoídaé,nosparece,agrandetemáticadaobradocantor
ecompositorBelchior,e,fundamentalmente,dasuaproduçãonadécadade1970.
Seusdiscosdoperíodo,deMoteeGlosa(1974)aEraumavezumhomemeseutempo
(1979), passando por Alucinação (1976), Coração Selvagem (1977) e Todos os
Sentidos(1978),carregamàexaustãoosentimentointerpretativo,própriodeuma
épocaesgarçadapelosprojetosderedençãodacontraculturaedapresençatardia
dotropicalismo.Nessesentido,Alucinação(1976)éomaisemblemáticoálbumdo
artista,natentativadeestabelecerumaproposiçãoestéticadelirantecomoatributo
deste desamparo da contracultura em crise. Além disso, Alucinação sintetiza
mesclas e componentes sonoros – fusões do folk e rock eletrificado com as
marcaçõesmusicaisdatradiçãonordestinaelatino-americana–comoinstrumentos
inerentes à poesia, pormeio da linguagemquasedeclamadadamusicalidadedo
cantor. Ou seja, a canção popular, em Belchior, é fruto dessas incorporações da
poesia com os conteúdos sonoros pertencentes ao choque entre tradição e
vanguarda.“Alucinação”,acançãohomônima,pareceexportaispremissas,dealgum
modocontraditórias,noseguinte trecho: “eunãoestou interessadoemnenhuma
teoria,emnenhumafantasia,nemnoalgomais”.
Maisdoqueelencaradiscussãodenovoscomportamentosdecostume,de
umanovajuventude,asletrasdocantorecompositor–espéciedepoetaromântico
incomodado–seincorporamàsnarrativasdascontradiçõesdotempoeàsmarcas
dasociedadedoconsumoedointelectualismo(referênciasàculturapop,erudição
existencialistaerepertóriopoético).Taiscaracterísticassãodescritivasdacrisedo
sujeitojovem:descompassadodiantedopoderdasimagensdaculturademassae
davelocidadedamudançadapaisagemsocial; e confortado,paradoxalmente,na
buscaporumprosaicodesequilibrantedarotina.
Assumirumdelíriolúcido,emmeioaessapaisagemeaessetempo,parece
serasaídadiscursivade interlocutoresdiversosnaquelemomento.RaulSeixase
TimMaiasãodoisartistascontemporâneosdeBelchiorqueinvestem,emmomentos
delicados de suas carreiras nos anos 1970, na projeção de uma espiritualidade
celebratóriadacontracultura.TaisquaisBelchior,parecemempreenderumabusca
pessoal assimilada pelas linhas estéticas internacionais, não simplesmente as
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apropriadaspelotropicalismo,epreocupadoscommanifestaçõesdamulheredo
homem comum em suas vidas comezinhas, seus amores e paixões também
comezinhos.
2. Espíritodotempo,expectativaseesperanças–osujeitodeAlucinação
Esta é uma geração de músicos que se opunha à reflexão obrigatória do
projetomodernistabrasileiro–sedistanciandodaperspectivadostropicalistascom
relaçãoàsapreensõesderivadasdoManifestoAntropofágicode1928,deOswaldde
Andrade–paranarrarospontosdeinflexõeserupturasdaordemestabelecida.Para
Belchioreessesartistas,a“expectativanervosa”davoltadosexiladosestácalcada
na descrição do autoexílio no próprio país. Em 1976, ano de instalação de
Alucinação, a ironia das canções serve como instrumentoda negaçãode leituras
teóricas balizadas por uma acomodação das demandas do processo histórico (a
repressão,apossívelvoltadosexilados,osanosdechumboetc.):“nãoqueroregra
nemnada,tudotácomoodiabogosta,tá,játenhoestepeso,quemefereascostas,
enãovou,eumesmo,atarminhamão”(em“Comododiabogosta”);oudaafirmação
deumnovocomponentedeexpectativa,maisdestrutivo: “eeuqueroéqueesse
cantotorto,feitofaca,corteacarnedevocês”(em“Apaloseco”).
A veia identitária artística deBelchior assume, assim, especificamente em
Alucinação,aargumentaçãodilemática,adeterminaçãodeumembateentrearazão
eo sentimentalismodopoeta-narrador (TeixeiraCarlos,2014).Desenha-se, com
isso,acríticaaospreceitosexpostosnaepifaniatropicalista,maisespecificamente
na fagulha endereçada ao representantemaior, Caetano Veloso. O polemismo é
percebidoàcontrapelonosseguintesversosprovocativos:“eusouapenasumrapaz
latino-americano,semdinheironobanco,semparentes importantes,evindosdo
interior,mastragodecabeçaumacançãodorádio,emqueumantigocompositor
baianomedizia: tudo édivino, tudo émaravilhoso” (em “Apenasumrapaz latino
americano”,grifonosso);“Veloso,osolnãoétãobonitopraquemvemdoNorteevai
vivernarua,anoitefriameensinouaamarmaisomeudia,epeladoreudescobrio
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poderdaalegria,eacertezadequetenhocoisasnovas,coisasnovaspradizer”(em
“Fotografia3x4”,grifonosso).
Aconstataçãodequeotempofoi“contaminado”poroutrascaracterísticas
deexperiênciaevivênciaéperpassadaporestesujeitonarradoraltivoepolêmico
(amargurado, por vezes, com o passar dos anos), ao se investir na posição
antieufórica, em larga medida. O que parece se destravar desse enredo é uma
reflexão mais alargada a respeito dos limites da crítica e da liberdade como
condicionantesdasutopias,nadiscussãocerradasobreanostalgia (o tempoque
passouesufocaonarrador)emelancolia(naconstataçãodoesgotamentodeum
modelooudeumprojetodevida).Semexagero,Alucinação,oálbum,pareceresumir
umateoriadaliberdade,levando-seemcontaaspossibilidadesextremasdautopia,
comodescreveMarcuse,aocontextualizarasengrenagensdacrisedacontracultura
nocontextodopós-1968:
Eufaleidaspossibilidadesextremas,utópicas,deumasociedadelivre.Issonãoérisívelesemresponsabilidadenumperíodohistórico[asrevoluçõesestéticasnocontextode1968]noqualachancedeumaprimeiralibertaçãonas lutas dos insurgentes contra a escravidão situa-se no terceiro e noprimeiro mundo, nas lutas contra condições de vida insuportáveis edesumanas, contraamais explícitapobrezaeprivaçãodosdireitos civis?(Marcuse,2018,p.109).
Se destacarmos essa descrição do filósofo alemão às motivações de
Alucinação, podemos observar que a recuperação do aspecto idílico da
contracultura se traduz, emanálise teórica sobreonovoutópico,no combatede
certotriunfodatradição,interrogando,comisso,asliberdadesinquestionáveisdo
projetoindomáveldamodernidade1.
1Talimageméresumidanaenumeraçãodacanção“God”,deJohnLennon(1970):“Ijustbelieveinme,Yokoandme,andthat´sreality,thedreamisover,yesterdayIwasthedreamweaver,butnowI´mreborn,Iwasthewalrus,butnowI´mJohn,andsodearfriends,youjusthavetocarryon,thedreamisover”[“Acreditoemmimapenas,Yokoeeu,eessaéarealidade,osonhoacabou,ontemeueraotecedordossonhos,masagoraeurenasci,eueraamorsa,masagorasou John,entãoqueridosamigos,vocêsprecisamcontinuar,o sonhoacabou”].Aimagem, evocadaapartirdessa canção tornou-se, éprecisodizer, umaobsessãoparaBelchior, na ânsiadereordenaramáximadacanção[“osonhoacabou”],principalmenteemseu“ComentáriosarespeitodeJohn”(1979).Nessecontextodeprodução,aconstataçãodopoetanarrador,sobreoesfacelamentodacontracultura,reveste-sedeelogiodoprosaico.
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Parece-nosqueaoconvocaraalucinaçãoapartirdodelírioedasexperiências
com coisas reais, aciona-se, ainda, a identificação do esvaziamento das viagens
lisérgicasda juventude,quesesucumbiuaosmitosdarebeldiasemcausa.Desse
modo, lançandomão da descrição filosófica e teórica, a liberdade é versada, em
Alucinação, comoconstituintedo fenômenodoesgotamentodasutopias,mas,ao
mesmo tempo e contraditoriamente, como denúncia das interdições de vários
componentes,noprocessohistóricoinstável,entre1968e1979:“porissocuidado
meubem,háperigonaesquina,elesvenceram,eosinalestáfechadopranós,que
somosjovens”(em“Comonossospais”);“vocênãosente,nãovê,maseunãoposso
deixardedizer,meuamigo:queumanovamudança,embreve,vaiacontecer,eo
quealgumtempoeranovo,jovem,hojeéantigo,eprecisamostodosrejuvenescer”
(em“Velharoupacolorida”).
Nessaprojeçãodefuturoederessignificaçãodeumpassadoquebradiço,a
expectativadaaberturademocráticanoBrasil, na segundametadedadécadade
1970,expõe,comAlucinação, aesperançacalcadanestedelíriocontemplativodo
autoexílio,docantor-narradorquepartiudonorteaosul,eafirmaçãodequeotom
datemporalidade/cotidianidadedaculturabrasileiraépessimistanarecepçãodos
exiladosnoestrangeiro.EaquivaletantooretornodeCaetanoem1972(acrítica
deBelchiorparecealcançá-lo)quantoospolíticosretornadosem1979.Otempodo
cotidiano assume, assim, um valor de elaboração contemplativa para que o
palavrório da esfera pública seja atravessado, estética e politicamente, pela
argumentaçãodoser-no-mundopensadonabanalidade,comonossugereCastrono
seguintetrecho:
Pode haver autenticidade e quotidianidade e, por outro lado, ainautenticidadenãodeveserpensadacomoalgonegativo,esimcomoumnecessáriodesligamento,porassimdizer,dacondiçãoexistencialdentrodoestar-no-mundo e Ser-aí [no componente midiático]. Efetivamente, paraesseDaseinqueétemporalmenteequeserealizanamedidadesuaprópriatemporalização,setratadeumanecessáriaoportunidadedeviverotempocomumebanal,otempodoquotidiano,deserconsigomesmo(...),quetemafaculdadedeprojetaroDaseinparaabanalidadedomundo(Castro,2017,p.101).
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Assim, se notarmos as escolhas dos temas de artistas contemporâneos a
Alucinação, como Tim Maia e Raul Seixas, já mencionados, percebemos uma
investida não mais na premissa de uma contracultura eufórica, ou
dissimuladamentezen,masnumaespiritualidadedelirante(aalquimiaracionalde
TimMaia, a sociedade alternativa de Raul Seixas, por exemplo), ora operada na
autoprojeção individual, ora modelada no desprendimento discursivo da luta
coletiva:dosexcluídos,dospequenos,essencialmente.Nessesentido,opersonagem
“maluco beleza” de Raul Seixas (que controla a lucidez com a loucura, em sua
descriçãoprincipal) épróximodadesobediênciado cantor-narradorde “Comoo
diabogosta”(“sempredesobedecer,nuncareverenciar”).
Ospormenoresdessaoutralinguagemcontracultural,poressesartistaspós-
tropicalistas,reconfiguranãoapenasarepresentaçãodosaspectosculturaisdedada
produção,masprincipalmenteaconstruçãodeoutraspossibilidadesparaopaís,no
limiardastensõesentreadurezaditatorialeaexpectativadaaberturademocrática.
Curiosamente,énessacontramãodaesperançaredentoraqueoencerramentode
umaeraémarcadoporassimilaçõesromânticasradicaisanteoracionalalegórico
mais elaborado pelas linhas de força do primeiro tropicalismo. Os desajustes
estéticos,nesseprocesso,sãoengendradosporviolênciassimbólicas.Umadasmais
consistentestalvezsejaaimagemdaquelesquevoltamdoexílio,que,aoretornarem
efincaremopénochãodapátrianativa,seveem,jáidosos,absorvidospelonovo.
LeonelBrizola,LuizCarlosPresteseoutrosseinseremnasdemandasdonovo,com
odiscursodaaberturapolítica,massão,agora,presençasfantasmáticasemcena.
Emmeioaotensoprocessodeabsorçãodasnovasroupagenspolíticaseculturais,
desde o capital cultural interditado pelo golpe de 1964 até as inconstâncias do
modelo de transe entre as épocas, entre as gerações, tais presenças reorientam
outros significadosparaosexiladosque retornam(namelancolia)e contribuem,
comforça,paraareelaboraçãodoslimitesedoocasodacontracultura.
Poisbem,seaviolênciasimbólicaémarcantenestepontodechegada,nofim
dadécada,comseusfantasmasemcena,aliberdadepassaasercompreendidana
costuradospontosdistendidosdaculturabrasileira,enanecessidadedeempenhar
umateoriadefundomaiorsobreasaspiraçõesdoartista,dopovoedasengrenagens
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dosprojetosculturais.Wisnikparececompreenderessasdemandasembaladaspela
necessidadedeépoca:
Se o tropicalismo é o sonho da abertura de um baú (que precede ofechamentopolíticode1968)quecontémasquinquilharias,astraquitandaseasmaravilhasacumuladasaolongodeumahistóriarecalcada,avoltadoexíliocontémaconsciênciadequenãohámaisaquelebaúaabrir,queoprocessoprodutivoacelerouossignosculturaisnumacentrifugadora,equeosseusmovimentosreaisnãopodemserpercebidosemcentroslocalizados,nememlinhasretas,masemcírculosabrangentes(Wisnik,2005,p.36).
O espírito do tempo, aqui, é determinante no sentido de expor uma
emergênciaderitualísticadacançãopopular,esuasdemandas,cujaleiturareflexiva
possa investirabanalidadedoser-no-mundo(cf.Castro)diantedopalavróriodo
espaçopúblico“contaminado”,maisemais,daculturainternacionalizada.Trata-se,
ademais,daevidênciadessedelíriointempestivodepercepçãodocotidianovulgar,
amodelarasexpectativasdeumpovo,nareelaboraçãoestéticapossíveldedada
alucinação lúcida, e seus dispositivos poéticos. Esse sentimento se verifica, por
exemplo,naobradosditospoetasmalditosdosanos1970(Cacaso,Leminski,Ana
Cristina Cesar, Mautner, Macalé), que reivindica uma estética cada vez mais
preenchida pela angústia e pela temporalidade estilhaçada da cultura demassa.
Empreende-se uma tensão sobre o espírito de época, em queAlucinação parece
anteverduasemergências:umainterna,comoassimiladoradeproduçõesartísticas
doperíodo;outraexterna,comoadescreverosurgimentodoprosaicocomomolde
deresistência.
3. Umtempoalucinante:rearranjandoastemporalidadesdavidasocial
Alémdessediálogocomocontextodesurgimentodoálbum,há,nodiscurso
de Alucinação, ummovimento que coloca a própria compreensão do tempo em
questão.Areinterpretaçãodotempoestáassociadaaoquestionamentodofuturo
enquanto lugarde chegadadamodernidade.Amodernidade, encarada comoum
horizonte a ser alcançado, convoca uma leitura do tempo comouma progressão
linear. Essa noção demodernidade, centrada nas culturas ocidentais, estabelece
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essa linha progressivista para o desenvolvimento social. Tal perspectiva não
somentecolocaaAméricaLatinanumlugardeatrasoeincompletude,comoprivaa
seuspovos–àépoca,considerados“deterceiromundo”–dodireitodeconstituir
maneirasalternativasdepensarasdinâmicastemporaiseasrelaçõesculturaiscom
otempo.Assim,aconvivênciaconfusaetensionadadasmúltiplastemporalidades
nas culturas latino-americanas e suas resistências cotidianas são vistas como
entravesparaoalcancedamodernidade.Nestecontexto,asmesclasculturaissão
marcasdeuma impureza,um impedimentoparaoalcancedamodernidadeedo
progresso.
Aníbal Quijano (2005) pondera que esta perspectiva, embora tenha
reprimido e sufocado as heranças culturais latino-americanas durante o período
colonial,nãoimpediuqueelasemergissemclandestinamenteapartirdamescla,da
imitaçãoedasubversãodeseussímbolosnumarelaçãodialéticacomasimagensda
modernidade. Martín-Barbero (2008) pontua essa emergência justamente nas
produçõesculturaisenasapropriaçõestecnológicasprocessadasnaAméricaLatina
que se fundam num gesto de “revanche sociocultural”, no qual usos e formas
imprevistassãoprocessadasepassamaquestionaraslógicasculturaisdominantes.
Oreconhecimentodalógicadadiferença–amestiçagemconstitutivadarazãode
ser – revela a suapotência de intervençãonos cursosdamodernidade.Assim, a
mestiçagemculturaléabertaà institucionalidadeeàcotidianidade,àobjetivação
dosatores,àmultiplicidadedesolidariedadesqueseoperamnosocial:
É como a mestiçagem e não como superação – continuidades nadescontinuidade, conciliaçõesentreritmosqueseexcluem–queestãosetornando pensáveis as formas e os sentidos que a vigência cultural dasdiferentes identidades vem adquirindo: o indígena no rural, o rural nourbano,ofolclorenopopulareopopularnomassivo.Nãocomoformadeesconderascontradições,massimparaextraí-las,dosesquemas,demodoapodermosobservá-lasenquantosefazemesedesfazem:brechasnasituaçãoesituaçõesnabrecha(Martín-Barbero,2008,p.262).
Essareleiturado“agiremmescla”daAméricaLatinafazcomqueastrocas
culturais sejamvistas comoproduções inventivas e criativasda cultura.Apartir
disso, a experiência de ser latino-americano é tratada como uma experiência de
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fronteira–oufronteiras,seconsiderarmosasfronteirasdamodernidade,dotempo
edacultura.EssaimagemlimiarédensamenteexploradaporCanclini(2011),que
faladalatinidadecomoconstituídapelaporosidadeepermeabilidadeàpresençado
Outroe,aomesmotempo,porumaperformatividadeeconstanteredefiniçãodesi.
Esse reconhecimento da mistura e da resistência residual (Williams, 1969) das
culturascolocaemxequeoquesignificasermodernoemterraslatino-americanas.
Amodernidadeseconverteentãonãonumespaçotransitável,masnumacondição
quenosenvolve,naqualapermanênciaéimpossíveleotrânsitointerminável,pois
jánãohápontodechegada.EssaincertezaapareceemBelchiorpelanegaçãodas
teoriasprontase,emespecial,domovimentotropicalista,bemcomodasafirmações
categóricas sobre a experiência de ser no mundo, por entender que as formas
culturaisemergentesdasnossasmesclassãocapazesdetornarexpressivaanossa
experiênciadesermoslatino-americanos–demodoque“umtangoargentinome
vaibemmelhorqueumblues”(“Apaloseco”).
Essa relação mesclada e fronteiriça da cultura latino-americana coloca a
modernidade em tensão a partir de três processos de mescla: descoleção,
desterritorializaçãoeosgêneros impuros.Adescoleçãoépercebidapelaruptura
comashierarquiasdasculturasdominantes,apegadasàscategoriasejulgamentos
devalor,quesetraduzemnasculturasdemesclapelarupturadessasfronteiraspara
fazeremergirformasnovas.Adesterritorializaçãoconvocaparaodesafiodepensar
a transformação das relações com o local, que passam a ser tensionados pelos
valores,produtoseformasglobais,reprocessando-asporumolharlocalizado;jáos
gênerosimpurosconduzemàemergênciadeformasculturaisfronteiriças,tocadas
pelas formas midiáticas, nas quais se permite a mescla de culturas, espaços e
tempos, como os videoclipes, quadrinhos, música popular massiva, sonoridades
híbridaseetc.
Juntoaessesprocessos,podemosapontaradestemporalização,postoqueas
temporalidades latino-americanas tensionam o moderno, o tradicional e o
midiático, reconfigurando a noção de passado-presente-futuro como uma
sequência. A reconfiguração dos regimes temporais aparece comomarca crucial
paraacompreensãodeAlucinação(1976):ofuturonãoéumpontodechegadanem
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um vir-a-ser, mas o tempo no qual é possível – e necessário – rejuvenescer,
reinventandoa lógicado tempo.Comessaproposta, o futuronãopode ser visto
comoumaexternalidade–passívelounãode realização–mas comonascidoda
experiênciacorporaldossujeitos,emergentedasmaneirasdesereestarnomundo.
Essa dimensão da ação como constitutiva do futuro é trabalhada por
Appadurai (2013), que o vê como um trabalho imaginativo, resultante de uma
experiência cultural: o futuro é uma forma cultural produzida socialmente. Essa
formadeprodução/projeçãodotempoenvolveumconjuntodeafetosesensações:
projetarofuturodemandaexpectativasesentimentos,exigeumolharparaotempo
einquiriroqueseesperadele,revelaumestadoemocionalque,emsuamelancolia,
reservaapotênciadeagiremcontrapeloàprópriaépoca.Daíofuturonãopodeser
compreendidoporumviésconceitualoutécnico,masporumaexperiênciacorporal
eemocionalprofunda,naqualhásempre“umamudançaembreve”paraacontecer.
Porisso,emAlucinação(1976),ofuturonãoéaquiloquevemapósopresente,mas
aquilo que toma corpo em oposição aos desencaixes sentidos na tensão entre
passadoepresente–talcomoaroupaquenãonosservemais.
O passado é associado a um estágio da vida que é social, mas também
reconhecívelpelossujeitos,queprecisamimaginarofuturoaindaquenãohajaum
passadoquelhesamparecomimagensauspiciosas–afinal,“oqueháalgumtempo
era jovemenovo,hojeéantigo” (“Velha roupacolorida”).Esseacionamentodos
sujeitosparapensarotemposocialsetornaumtraçomarcantedoálbumàmedida
queotempoédotadodecorporeidadeeépensadoapartirdossujeitos,conferindo-
lhesopoderdeaçãoeconfiguraçãosobreoseuprópriotempo.
Aotrazeressadimensãocorporalparaotempo,associando-oaojovemcomo
figuraemarcadeumtempo,elepromoveumainversãodalógicatemporallinear.O
passado,queumdiaforajovem,envelhece,eofuturonãopodeseracontinuaçãodo
envelhecimento – sob pena de perder o frescor da juventude e seu potencial
transformador.Nessalógica,ofuturosósetornapotenteenquantojuventude,pois
semorejuvenescimentoamudançasocialéimpossível.
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4. Rejuvenescer–aemergênciadoprosaicocomoresistência
Aoscilaçãodeumatemporalidadequenegaumencadeamentolinearpara
verofuturocomocampoderesistênciasituaasociedadebrasileiraàslógicascada
vez mais aceleradas das cenas culturais internacionalizadas. Tem-se, então, em
Belchiorespecificamente,oresquíciodeumaalmafugidia(TeixeiraCarlos,2014).
OálbumAlucinaçãoexplicaessaaflição,naapresentaçãodocantocríticointelectual
epolêmico (Moreira,2015).Mas,diversamentedoquesepoderiasupor,elenão
depositanojovema“esperança”deumnovotempo,masnapotênciade“fazer-se
jovem”–ajuventudecomoumaaçãoencarnadanossujeitosenascidadeseuolhar
subversivo e resistente aomundo. Disso deriva certamelancolia, pois enquanto
potênciaháumaincompletudeemfacedaexpectativadasuarealização.Oaspecto
dedenúnciamelancólicaéconsequência,portanto,deumaquebradeexpectativas:
tanto pela emergência do novo como tema (“o novo sempre vem”), como pela
possibilidade de falar, reflexivamente da dor e do amor romântico. Sanches, ao
interpretar“Fotografia3x4”,sintetizaessapropulsãoemBelchior,noantagonismo
doartistacomo“outroromântico”RobertoCarlos:
Àviolência socialquerecebiana testa,onarrador [de “Fotografia3x4”]respondiacomviolênciainternaequivalente,àmaneiradoprotagonistadeLaranjaMecânicadeStanleyKubrick(citadaliteralmenteem“Alucinação”).Oconflitoessencialeraodosentimentodeinadequaçãoaotempo(àidade)eàgeografia(noautoexíliodoretirantenordestino).AtristezaeraaprovadosnovedeBelchior,comoeratambémadeRobertoCarlos[seuantagonistapoético](Sanches,2004,p.237).
Essa premissa de Sanches retoma a ideia de violência simbólica como
anteparo da cotidianidade em Alucinação. Essencialmente, “Fotografia 3 x 4”
apresenta a amargura e a impassividade do cantor-narrador, coadunado,
firmemente, à possibilidade de reconstruir um passado idílico (e doído) com a
amostramaisincisivadosnovostempos,edosignificadodopercursodesseexílio
interno.Tal espírito se encontra emcançõesdeoutrosdiscos como “Nahorado
almoço”(1974), “Galos,noitesequintais” (1977), “Tudooutravez”e “Conheçoo
meulugar”(1979).Emtodaselasháaconstataçãodequeouniversodainfância,do
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tempo que consumiu a sua alma, não volta. Ele, o tempo, é consubstanciado na
errância (espacial e temporal). Com isso, o ato de falar de amor nutre-se com a
condiçãodeinadaptaçãoecomadescriçãodobanal.Oqueparecereembaralharas
possibilidadesdoautoexílio,doocasocontracultural,emBelchior,éessadicotomia,
tematizadaaferroefogo,entreaesperançaeaconstataçãodafragilidadehumana
deagirpararefundaroprópriotempo.Otempodainterdiçãoédisputadonoveio
daalucinaçãolúcidaprojetivadefuturo.Aemergênciadanaçãoeseupovo,edoente
pessoalretraído,pormeiodasengrenagensdocotidiano,ésentidadoenoprosaico
(no sentido de se opor ao palavrório das explicações teóricas generalistas de
mundo). Assim, nos interessa observar três categorias de compreensão dessa
manifestaçãoemAlucinação:
a. Aculturapopularcomoafirmaçãodoprosaico
SeoespíritodotempopareceseradiscussãonorteadoradeAlucinação,esse
condicionanteépostoàprovacomaafirmaçãodeummomentomarcadopelavida
prosaica,anteodelíriodamodernidadeveloz.Masessadescriçãopodeserresumida
tambémcomolembrançanostálgica.Issoseancora,então,aomantra“anopassado
eumorri,masesseanoeunãomorro”, comosea linhapoéticaadvertissequeo
componentedelutapessoal(doindivíduo,daprececotidiana)éaoposiçãoaoanjo
caídodessamesmamodernidade.
A esse respeito, é necessário perceber que as bases de um discurso
identitário, nestes deslocamentos do sujeito (o errante, o inadequado, o poeta
romântico)investe-sedaculturapopularcomomarcaderesistêncianoelogiodo
local de origem, cearense, nordestino, brasileiro (principalmente nas canções “A
paloseco”e“Fotografia3x4”).AobradeBelchior,comoumtodo,apontaatemática
daamarguradocotidiano,afirmandooseuladoprosaico,e,noavesso,assumindoo
rompimentocomopalavróriodaarenapúblicadacomunicaçãodemassa.Expõe,a
partirdisso,suascontradições:deapeloàmelancoliaededescriçãodosprocessos
sociaisesgarçados.
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Surgeaíumsensodelatinidade,deumveioquenosconstituienosinterliga,
quepermiteumidentificar-seeumsentircoletivo.Aconstruçãodessaidentidade
latino-americanaémenosabuscaporumahomogeneidadeemaisa tentativade
indicarumamatrizdesentidos,umacomunidadedesentimentosquepermiteum
graudeidentificaçãopelassensibilidades.Issoseevidenciajánacançãodeabertura
doálbum, “Apenasumrapaz latinoamericano”,noquala trivialidadedaprópria
identidade se manifesta pela tentativa de normalização de um cotidiano de
interdições(proibiçõespolíticasetambémestéticas,aoarrogar-seodireitodenão
fazerumamúsica“Correta,branca,suave,muitolimpa,muitoleve”)queimpõeao
artista um papel de resistência quando a luta é para viver – para atender aos
compromissoscolocadosa simesmocomaprópriavidae seusdesejos (“Masse
depoisdecantarvocêaindaquisermeatirar,mate-melogo,àtarde,àstrês,queà
noiteeutenhoumcompromissoenãopossofaltarporcausadevocês”).
Já em “Fotografia 3x4”, Belchior coloca em xeque a noção de que os
documentosquenosatribuemumacidadaniacomum–tãorelevantesemtempos
devigilânciaeopressõessociaisepolíticas–setornamrisíveispelaimpossibilidade
denossituarculturalmente,depromoverumaidentificação:“Emcadaesquinaque
eu passava um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois sorria
examinandoo3x4dafotografiaeestranhandoonomedolugardeondeeuvinha”.
A identificação social emerge na cotidianidade do gesto e do sentimento, na
comunidadeintersubjetivaqueemergedesesaber“umrapazlatinoamericano,sem
parentesimportantesevindodointerior”(“Apenasumrapazlatinoamericano”).
Por isso,reconhecer-se latino-americanoabarcatantoumatrivialidade,na
qual se procura normalizar o cotidiano e suas lutas e resistências (políticas e
estéticas), quanto um saber-se latino-americano por sentir e afetar-se de forma
singular.Comisso,ogritodesesperadoprecisaseremportuguês,alínguaapartir
daqualsentimoseordenamosessesentir,evidenciandoovínculoemocionalcom
essacomunidadequenosconstituienaqualsomosforjados.
Sonoramente,essasmesclasculturaisconstitutivasdoserlatino-americano
aparecempelahabilidadecomqueelecompõeapartirdeumentrecruzamentodas
referênciaslocaiseregionaiscomasproduçõesmainstream,associando-seaofolke
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aorock,comoformadefazersurgirumestiloqueevidenciaadimensãoresidualda
suaprodução.Comessaconstituiçãosonora,oartistafazsurgirumasintoniairônica
entreomodernoeotradicional,mostrandoasincongruênciaseinconsistênciasdo
seuprópriotempo.Assim,otommelancólicoe,aomesmotempo,ácidoeirônicodo
compositornãoselimitaàtextualidade,fazendocontrapontocomotomromântico
de suas composições enquanto aponta os desenganos e desencaixes daquele
momento.
Assim,aformadeviveraidentidadenosunenosofrimentoenasmaneiras
desentir,eanecessidadedecompartilharadordessaexperiênciasemanifestana
ânsiaporserouvido,ecoarnooutro, feri-loparaassimreconhecerapartilhadas
mesmas sensações: “euqueroéqueesse canto torto, feito faca, corte a carnede
vocês”(“Apaloseco”).Nessacomposição,otommelancólicosereforçaporseruma
composiçãoseguidadacadênciaironicamenteanimadade“Nãoleveflores”,naqual
seremetemaisdiretamenteaofolk.Éporissotambémqueserepetecomtantaforça
–emelancolia–“eusoucomovocê”em“Fotografia3x4”,poisaidentificaçãosóé
possívelsenosreconhecermos intersubjetivamente, comoaquelesquepartilham
umaexperiênciasocial.
b. Atemporalidadetensionada
Em Alucinação, o tempo linear é marca do conservadorismo, nos faz
sucumbiràpermanência.Umtempoquesefundanasbasesdo“antigo”,da“roupa
quenãonosservemais”,éumacontinuidade,quefazdofuturoolugar“dosnossos
pais”,demodoquenãosetemapossibilidadederupturaoumudança.Essetempo
apassivador coloca as temporalidades acima dos sujeitos e suas ações, pois lhes
suprimeapossibilidadedeinauguraroutrasexperiênciastemporais.
Em “Velha roupa colorida”, o desencaixe entre o passado e presente é
reveladopela roupaque já não cabe: o passado é contingente dopresente. Para
libertar-sedopassadoeampliaraspossibilidadesdefuturo,deve-sedesvencilhar-
sedeleerefundarumlugardofuturo.Nestecontexto,opassadoeopresentesãoo
tempodoantigoesónosenvelhecem:éprecisorejuvenescerparaofuturoexistir
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comopotência,emoposiçãoaopassadoquenosconstrange.Énecessáriofazerdo
futuroumoutro,torná-lonovo:ofuturorejuvenescidoéaesperançaquealimenta
amelancoliasentidanodiaadia.Ainversãodalógicadotempotorna-se,assim,uma
estratégiadesobrevivênciadofuturo.
EisaquiosentidodeurgênciadeAlucinação.Orompantedonovopareceser
definidordealgomaiscomplexo,anotarumrecortecondicionadoporumaetapade
absorçãoderegistrodeépocalatente,emqueotempomarcadopelacrisedosujeito
se instala.Osaresdocontextodasociedadebrasileira,emtalperíodo,advêmda
resistência coletiva, mas é embalado com movimentos muito pessoais.
Diferentementedareacomodaçãodeumpassadoredentor,onarradordoálbum,de
modo geral, empreende uma linha de fuga, além de firmar este tempo quase
estilhaçadodalembrançadoída.
Nessesentido,ainadequaçãodosujeitoéumaafirmaçãodeentorpecimento,
como uma chance de saltar ao novo: inquieto, juvenil. O sol que brilha desse
movimentoparececontemplarumdesconfortoculturalqueconvocaosânimosdo
seutempo.“Osonhoacabou”pareceanteciparaconfirmaçãodolocalinquietodo
narrador,eestenderasafliçõesdosujeitoàsquestõesinerentesasuaépoca,àsua
nação, ao seu povo, às vanguardas artísticas que lhe são caras. À propósito, em
Belchior,ojogodamelodia/harmonianascançõesestáenvolvidocomasreferências
poéticas(porexemplo,deJoãoCabraldeMeloNeto,em“Apaloseco”,edeEdgar
AlanPoe,em“Velharoupacolorida”)emusicais(comoBillyFury,pelacitação“Play
itcool,baby”,em“Alucinação”)ecomadescriçãominuciosadeumaurgência,na
percepçãodavulgaridadepoéticanodiaadia.Essetempodainconstânciaéaaflição
doseulugarnomundo.
c. Oautoexílioealutaporfazer-sejovem
Nomais,amovimentaçãopoéticaépeça-chavedeoutrodeslocar-se,nesse
intenso processo de narratividade exasperante. Diferentemente da volta dos
tropicalistas, em1972, edosexiladosde1979, esse sujeito estrangeiroem terra
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nacional–“nãoquero lhefalar,meugrandeamor”(“Comonossospais”)– fazda
melancoliaocernedaapresentaçãodolugarqueseesvaieé.
Écomoseele,osujeitonarrador,compreendesse,pelaobservaçãoquefaz,
aslinhassuavesdeumtempocorroídopeladureza/levezadoprosaicocomoguia.
Nãosemsentido,asimagensdeAlucinaçãoapontamqueseotremdaHistóriase
movenainterdiçãodoslugaresdeorigem,osentimentodedeslocamentopessoalé
sempre vivido como umdilema do que é identificado e do que é projetado, nos
termosdeMarcuse.
Aliberdade,dessaforma,adquireumvalordeação:aelaboraçãodeumcanto
da juventude e a expectativa da esperança. Assim, a ciência dessa afirmação, do
tempoqueinsisteemnãosefechar,quenãoseencerra,dispõedealgocaroàcrítica
daexasperaçãomodernaemBelchior:odesconfortoemrelaçãoaumfuturosem
lastro. O sentimento de autoexílio assume, assim, um lugar de resistência a algo
externodocotidianodavidaprosaica.
Essa vida prosaica não deixa de ser observada pelo agir daquele que
rejuvenesce,quevêna juventudeumapotência, capazdeassumirocontroledos
rumosdotempoe,comisso,empreendertransformaçõesimprevistasnosocial.Em
“Comonossospais”, a reorganização temporal é aúnicamaneiradeenfrentaro
antigo, o conservador, que traça um futuro soterrado na antiguidade do
passado/presente.Issosedáporqueoantigoéoquetemoshoje–presente–poisé
uma continuidade da decadência do mundo. Fazer-se jovem é libertário,
transgressor, já que resiste a aceitar a triste passagem do tempo, em que o
conservadorismoeomaterialismomanifestospelafiguradospais–aimagemde
quem “está em casa, guardado por Deus, contando vis metais” – evidencia a
desesperança,sufocandoosfuturospossíveis.Essafiguradáaveraqueleque,pela
imobilidade,pelapassividade,impede-searefundaçãodosocial.Porisso,nãoser
capaz de rejuvenescer é uma fatalidade; é viver no presente e tornar-se antigo,
permitir-seenvelhecerecederàvisãoconservadoradotempolinear.
Em “Sujeito de Sorte”, se evidencia a melancolia sentida diante dessa
constatação:serjoveméumrisco–“Porqueapesardemuitomoço,mesintosãoe
salvoeforte”–umavezqueéajuventudequesenteeenfrentaoprópriosentidode
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tempo. Rejuvenescer, tornar-se jovem no presente e no futuro, é abrir mão do
passadoenquantoguiaparasuapresençanotempo(“Eassimjánãopossosofrerno
anopassado”):viveropassadoémorteetambémentrega–oespíritodajuventude
exige essa ruptura com o antigo, o conservador, aquilo que nos mata pelo
conformismo com as violências resistentes no tempo presente. Daí, a grande
alucinaçãoésuportarodia-a-dia,assumiraexperiênciaenquantovivênciacorporal,
naqualodesafioexisteemnãosetolher,manter-sefirme,emdefesadalibertação:
“nãovou,eumesmo,atarminhamão”(“Comoodiabogosta”).
Essa capacidade subversiva da juventude de inverter a lógica do tempo é
provocativaem“Nãoleveflores”,emqueseafirmaqueespezinharojovemnãoé
boa estratégia: “as lágrimas do jovem são fortes comoum segredo, podem fazer
renascer ummal antigo”. Nessa canção, deixa-se claro que a rebeldia, o espírito
transgressor nascido do rejuvenescimento dos jovens, é o que vai fazer face às
repressõesesofrimentos.Nãosuporqueemsuadorajuventudetemparalisia,pois
o sofrimento na juventude converte-se em força para a resistência, rebela-se e
engendraa luta – aindaquea esperançados jovensnão tenha se completado (a
mudançanãotenhaocorridoainda),elanãoémorta.Assim,aofinaldoálbum,em
“AntesdoFim”,emdiálogointertextualcomGuimarãesRosa,Belchiorrecuperaa
citaçãodeGrandesertão:veredas(“Viverémuitoperigoso”)paraafirmarqueesseé
operigoqueavaleapenaseexpor:ajuventudeéosoprovigorosoquetransforma
osocial.
5. Consideraçõesfinais
Éimportantefrisar,apartirdisso,queacançãopopularbrasileirados1970
(Wisnik, 2005) faz da metáfora sua própria compreensão. Essa fase de
modernizaçãodamúsicapopularbrasileiraestáligadaaumatributoderesistência
nummovimentoparadoxalmentemarcante:asofisticaçãodeumaculturademassa
quepadronizaaexpressãoeasdemandasdasvozesdeumasociedadediversificada
noconsumodessasmarcasexpressivasdacanção.Nessesentido,acançãodeum
artista popular como Belchior reflete as condições do país nessa roupagem, via
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indústriacultural,deumaprosada falapública(nordestina,cearense,nocaso)a
decifrarascircunstânciasdahegemoniadeumafalamaior.Aomesmotempo,evoca
uma marcação musical e comunicacional típica do folk rock estadunidense,
marcadamente em Bob Dylan, a psicodelia de um romantismo sincero
(principalmenteemLennon)eumaassimilaçãodocantopolíticofolclóricolatino-
americano(fundamentalmente,nainfluênciadeVictorJaraenasmúsicasdeLuiz
Gonzaga).Essamesclasonoraepoética,diríamos,dápistasdeumareflexãointerna
dacrisedacontracultura,nostermosquetratamosaqui:“aolongodosanos70a
revolta cultural se apresentou de forma espontânea e desorganizada” (Novaes,
2005, p. 16), como se afirmasse o acréscimo dessas descrições e expectativas e
tivessequeencararosdesdobramentosdeseuspapeiserepresentaçõesnocaldoda
culturabrasileiradaliemdiante.
Pela escuta atenta e afetiva deste álbum, essa mescla surge como um
desajustediantedamodernidade,pois,aoserevelarrotineiroebanal,abre-separa
ariquezadocotidianoevê,nele,emergênciadeummodosingulardeveromundo.
Ao voltar a atenção para esse cotidiano e suas potencialidades, o álbum revela
formassubversivasdevivereentendero tempo, tornando imprevisíveisopapel
poético e estético da melancolia. A partir desse retorno ao cotidiano latino-
americanoesuasmesclasconstitutivassurgeumaformaenraizadaderesistênciaàs
durezaseviolênciasdomundo.
Por isso, a aposta central de reordenação da experiência do tempo via
rejuvenescimento torna-se a chave para a compreensão do futuro. Ao inverter a
lógicadepassagemdotempo–tornar-se jovemnofuturo–,revela-seumaoutra
forma de compreender e viver o tempo, gestada no seio de uma comunidade
intersubjetiva que encontra na latinidade, na partilha dos sentimentos, a
possibilidadedefazerfaceàsviolênciaseinterdiçõescolocadasàquelecontexto.
Nesse reordenamento das formas de lidar com o tempo, o presente é
acionadoparamarcarocursodaaçãodossujeitos,promovendoassimumacesura
das temporalidades: reconhecer-se cearense, nordestino, brasileiro, latino, que
sangra, sofre,morree renasceéummarcadorda forçadogestode resistênciae
sobrevivência dos povos que rompem com o tempo. Rompe-se com o tempo do
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outro,externo,linear,moderno,emdefesadeumtempolatino-americanoquesefaz
esereconhecejovemparaviverasesperançasque,mesmonãovividas,tambémnão
seencontrammortas(“ComooDiaboGosta”).
Seesseconflitocomotempoémuitasvezesvistocomo“desnorteio”ecomo
“desapontamento”, sentimentos tidos como “comunsno seu tempo”, é tambémo
tempoquepermiteosurgimentodeumamelancolianecessária,pormeiodaqualse
estabeleceumreconhecimentointersubjetivo(“eusoucomovocê”,em“Fotografia
3x4”)queresisteaoconservadorismodoseutempoedacompreensãodostempos.
É intersubjetiva e cotidianamente que se torna possível viver a verdadeira
alucinação,entreveramudançanodiaadia,forjandooesteionoqual“amaremudar
ascoisasmeinteressamais”(“Alucinação”).
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