Entre as alucinações do dia a dia-Revisado

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Dossiê O Pensamento Ecológico https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 2, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i2.27474 255 Entre as alucinações do dia a dia: o tempo e a latinidade em Belchior Among the hallucinations of everyday life: time and latinidad in Belchior Denise Figueiredo Barros do Prado Denise Prado é professora Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. É uma das líderes do GIRO – Grupo de Pesquisa em Mídia e Interações Sociais (UFOP/CNPq). Cláudio Rodrigues Coração É professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutor em Comunicação: meios e processos audiovisuais pela ECA/USP. Coordenador do Grupo de Pesquisa 'Quintais: cultura da mídia, arte e política' (CNPq - UFOP) Submetido em 22 de Março de 2020 Aceito em 24 de Junho de 2020 RESUMO Neste artigo, a partir de uma leitura contextualizada, analisamos as relações entre o tempo e as marcas de latinidade engendradas no álbum Alucinação (1976), do cantor e compositor Belchior. O percurso metodológico é construído a partir da articulação de uma discussão sobre a cultura e o tempo social que se desdobra em três eixos analíticos: o debate sobre a contracultura articulada ao contexto de produção do álbum; a reflexão sobre as temporalidades sociais envoltas na obra e na dimensão poética das canções; e a emergência do prosaico como lugar de constituição da resistência. PALAVRAS-CHAVE: Alucinação; Belchior; Tempo; Latinidade; Contracultura.

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Entreasalucinaçõesdodiaadia:otempoealatinidade

emBelchior

Amongthehallucinationsofeverydaylife:timeandlatinidadinBelchior

DeniseFigueiredoBarrosdoPradoDenisePradoéprofessoraProgramadePós-GraduaçãoemComunicaçãoedocursode Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutora peloProgramadePós-GraduaçãoemComunicaçãoSocialdaUFMG.ÉumadaslíderesdoGIRO–GrupodePesquisaemMídiaeInteraçõesSociais(UFOP/CNPq).

CláudioRodriguesCoraçãoÉ professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do curso deJornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Doutor emComunicação: meios e processos audiovisuais pela ECA/USP. Coordenador doGrupodePesquisa'Quintais:culturadamídia,arteepolítica'(CNPq-UFOP)

Submetidoem22deMarçode2020

Aceitoem24deJunhode2020

RESUMONesteartigo,apartirdeumaleituracontextualizada,analisamosasrelaçõesentreotempo e as marcas de latinidade engendradas no álbum Alucinação (1976), docantor e compositor Belchior. O percursometodológico é construído a partir daarticulaçãodeumadiscussãosobreaculturaeotemposocialquesedesdobraemtrês eixos analíticos: o debate sobre a contracultura articulada ao contexto deproduçãodoálbum;areflexãosobreastemporalidadessociaisenvoltasnaobraena dimensão poética das canções; e a emergência do prosaico como lugar deconstituiçãodaresistência.PALAVRAS-CHAVE:Alucinação;Belchior;Tempo;Latinidade;Contracultura.

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ABSTRACTInthispaperweanalyse,fromacontextualizedreading,therelationsbetweentimeandtracesoflatinidadarrangedinthealbumAlucinação(1976),bythesingerandcomposer Belchior. The methodological path is built from the articulation of adiscussionaboutcultureandsocial timethatunfolds inthreeanalyticalaxes: thedebate about counterculture articulated to the context in which the albumwasproduced;reflectiononthesocialtemporalitiesembeddedinthisworkandinthepoetic dimension of the songs; and the emergence of the prosaic as a place ofconstitutionofresistance.KEYWORDS:Alucinação;Belchior;Time;Latinidad;Counterculture.RESUMENDesdeunalecturacontextualizada,analizamosenesteartículolarelaciónentreeltiempo y las marcas latinas engendradas en el álbum Alucinação (1976), delcantante y compositor brasileño Belchior. El camino metodológico prevé laarticulacióndeunenfoquesobreculturaytiemposocialquesedesarrollaentresejesanalíticos: ladiscusiónsobre lacontraculturaarticuladaenel contextode laproduccióndelálbum;lareflexiónsobrelastemporalidadessocialesinvolucradaseneltrabajoyenladimensiónpoéticadelascanciones;ylaaparicióndeloordinariocomolugardeconstitucióndelaresistencia.PALABRASCLAVE:Alucinação;BelchiorTiempo;Latinidad;Contracultura.

JánaaberturadoálbumAlucinação(1976),comosomsuavedeumagaita,

numtomentreoromânticoeonostálgico,antesdenosdarmosconta,Belchiornos

convida (nos seduz) anos vermos como latino-americanos.Anunciando-seneste

lugar,Belchioriniciaumgestovoltadoparanós:háumamelancolia–misturadacom

algumadosededisplicência–quenosenvolveeépartilhadaentrenós.Emmeioa

certodesencantamentocomomundoeumclamorpelasubversãopolíticaeestética,

surgemascançõesdeAlucinação.Asimplicidadedenossacondição–apenasum

rapazlatino-americano–trazàtona,semgrandessurpresas,aperdados“grandes

mistérios”. No entanto, isso se apequena diante da abertura que promove: nós,

latino-americanos,temosapossibilidadedeviverabanalidadedavidacotidianae,

dela,fazernascerapoesiadeinventarumfuturo.

Éapartirdessaabertura,eemmeioaesseolharvoltadoparaoprosaico,

queBelchiornosconvocaapensaroquenosfazlatino-americanosporumolhar“de

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dentro”,donosso lugar cultural, edanossamaneiradeviver/entendero tempo.

Instigadosporessaproposta,nosdesafiamos,nesteartigo,adiscutircomooálbum

Alucinação,nascidoemumcontextosingularnoBrasil–aquefaremosreferência

mais adiante – faz emergir uma compreensão sobre o que significa ser (e se

reconhecer) latino-americano, bem como uma diversa forma de organizar os

tempos que nos constituem. Para trazermos à tona essa leitura, traçamos um

percursointerpretativodeAlucinação,conformeapresentadoadiante.

1. Delíriolúcidoe/ouacrisedacontracultura–ocontextodeAlucinação

ÀépocadosurgimentodeAlucinação,oexílioeraumapalavraquejáestava

marcadanocotidianobrasileiroe latino-americano.Coma instalaçãodaditatura

civil-militar em 1964, o exílio tornou-se uma necessidade de sobrevida, e as

possibilidades de retorno eram imprecisas e inconstantes. A concepçãode exílio

pode suscitar, pelo menos, duas proposições: a atormentadora quebra da

identidade; ou a fuga errante em oposição a um estado de exceção. Nas duas

elaborações,ainterdiçãoàcasa,aolugardemorada,àpátria,éaconfiguraçãode

suaviolência.Oretornoaessepontodepartidasequestrado,porpartedosujeito

exiladodesejante,podeseconstituirdeumaredentoracondição,quepoderíamos

chamar de desejo pessoal angustiante. Não é sem sentido, também, que esse

sentimento individual de exílio (o estranho, o estrangeiro retirado) traduza a

necessidadedereinvençãodaliberdade,tantoapessoalquantoacoletiva.Eisuma

espéciedeprincípioutópico,aosepensaroretornodoexilado,quesevêobrigado

a,nodesencaixe,refazer-seereconstituiroseulugaremmeioàslutastravadasno

quadrosocial.

Aexploraçãodoslimitesedasfragilidadesdoconceitodacontracultura,por

exemplo,estáatreladaaesseenteexilado,poreleser,essencialmente,emvirtude

decircunstânciasterríveis,aquelequeseopõeàdeterminadaordemestabelecida.

Éporissoquenadescriçãodoprocessodeexílio(sequestro,partidaeretorno)o

elementoderupturaculturalseinstituicomomarcaparasepensaroquepassoue

oquevirá.Aesserespeito,éinteressanteadescriçãodeCaetanoVeloso,emVerdade

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Tropical,aoestabelecerumaleituradopaís,emsuavoltadoexílio,naocasiãodo

carnavaldeSalvador, em1972,quando transmuta sua lidapessoal emotimismo

baseadonarelaçãocomessaexperiênciadecontexto:

Arejeiçãoqueoexíliosignificaranãoapenassedissipava;davalugaraumacarinhosa compensação. Nós, os tropicalistas, diferentemente de muitosamigos da esquerda mais ingênua, que pareciam crer que os militarestinhamvindodeMarte,sempretivemosdispostosaencararaditaduracomouma expressão do Brasil. Isso aumentava o nosso sofrimento, mas hojesustenta o que parece ser o meu otimismo. É que penso e ajo como sesoubessenacarnequaisaspotencialidadesverdadeirasdoBrasil,por terentradonumdiálogocomsuasmotivaçõesprofundas–esimplesmentenãoconcluoquesomosummerofracassofatal[grifosdoautor](Veloso,2008,p.458).

Essa imagemde futuro, narrada e atribuída ao “calordahora”, no anode

1972,é,nomínimo,incômoda,namedidaemqueprevêumprojetodeconstrução

simbólicaarticuladoao cabotinomovimentopessoaldoartista.Elaevidencia,no

mais,apossibilidadedeumnovoBrasil:opaísseconfiguraria,doravante,orientado

porprojetos e sonhosdediversosmatizes,na ânsiade se esculpiros temposda

revolução estética interditada, especificamente a do movimento tropicalista, em

plenomomentoditatorialbrasileiro.Nota-sequeorescaldodomovimentoestético,

doqualCaetanoéparte,estádiluídojustamentenasnovasrealidadesdesseretorno,

algoresignado,doexilado.

Aapostacontraculturaldotropicalismoseria,então,apartirdisso,otriunfo

dainterpretaçãodosmovimentosdevolta,cujostraumasdoperíodoanterior–a

censuraàencenaçãodapeçaRodaViva,deChicoBuarque,em1967,peloTeatro

Oficina; a vaia ao próprio Caetano Veloso, em 1968, por parte da juventude

universitáriadeesquerda,noshowdaPUC/SP;oaumentosignificativodarepressão

por parte do regime ditatorial; a vigília e a paranoia envolvidas no movimento

artístico – estariam vinculados a um contexto específico, sob o verniz da

efervescênciaculturalmisturadocomasangústiasdasnarrativasdeumageração

quesofriaainterdiçãonapeleenacarne.

Setraçarmosumintervalohistóricoentreosanosde1968(promulgaçãodo

AI-5)e1979(promulgaçãodaAnistia),podemosperceberqueavoltadosexilados

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políticos em 1979 (Gregório Bezerra, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Fernando

Gabeira,LuizCarlosPrestes)étributáriadeumaansiedadeutópicaqueseinveste,

ao final, de um canto melancólico, já que é significativo neste recorte temporal

(1968-1979) certa diluição dos processos arquitetados, na política e na cultura,

desdepelomenosmeadosdosanos1950.

Ou seja, a interdição da ditadura brasileira, e seus impactos políticos na

cultura,instiga,involuntariamente,atemáticadacrisedacontraculturanoseioda

produçãoartísticanacionaldosanos1970.Oocasodessa“celebração”énotado,já

meioforadotom,porCaetanoVeloso,em1972,epodeserresumidonosaldodo

finaldoperíodo,em1979,pordoissentimentos:a)amelancoliadoprocessopolítico

interditadodesdeo golpede1964e suasmarcaçõesno imagináriodepaís; b) a

reflexãodoocasodaestéticacontracultural,especialmenteapartirde1968.

Aproduçãodamúsicapopularbrasileiranadécadade1970,especialmente

adeartistasvinculadosouherdeirosdasmarcasdomodernismomusicaldesdea

bossa nova, incorpora o tema do questionamento interno dos rumos damúsica

popular brasileira e suas linhas evolutivas, bem como seu intenso processo de

assimilaçãonaculturademassa.Écomoseessatematizaçãosetornasseevidente

pelocantotristeemelancólico–resíduodasprojeçõescontraculturaisdoperíodo

anterior (antes de 1968), promovendo uma desconstrução, de certo modo

consciente, das premissas estabelecidas pelos artistas do tropicalismo. Ou seja,

poderíamos elencar/identificar uma espécie de “crise de narrativa” na música

popularbrasileira.

Oanode1968éparadoxalparaessaassimilação,jáqueestampaavanguarda

atreladaaosmovimentosreivindicatóriosinternacionaiseseinserenocontextode

interdiçãoradicalpelacanetadosmilitaresereacionários.Éumano-emblemaque

pareceatormentarosespectrosdasdécadasseguintes,naculturaenapolítica,em

cujamarcaéreveladaoutrapossibilidadedesonho,nointervaloentre1968e1979,

atreladoagoraaoprenúnciodeumnovotempoqueinsisteemnãorecomeçar.Daí

a “angústiamotivadora”dosanos1970emcontrastecomaenergiaeufóricados

tropicalistaspré-exílio.

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Essatemporalidadedoídaé,nosparece,agrandetemáticadaobradocantor

ecompositorBelchior,e,fundamentalmente,dasuaproduçãonadécadade1970.

Seusdiscosdoperíodo,deMoteeGlosa(1974)aEraumavezumhomemeseutempo

(1979), passando por Alucinação (1976), Coração Selvagem (1977) e Todos os

Sentidos(1978),carregamàexaustãoosentimentointerpretativo,própriodeuma

épocaesgarçadapelosprojetosderedençãodacontraculturaedapresençatardia

dotropicalismo.Nessesentido,Alucinação(1976)éomaisemblemáticoálbumdo

artista,natentativadeestabelecerumaproposiçãoestéticadelirantecomoatributo

deste desamparo da contracultura em crise. Além disso, Alucinação sintetiza

mesclas e componentes sonoros – fusões do folk e rock eletrificado com as

marcaçõesmusicaisdatradiçãonordestinaelatino-americana–comoinstrumentos

inerentes à poesia, pormeio da linguagemquasedeclamadadamusicalidadedo

cantor. Ou seja, a canção popular, em Belchior, é fruto dessas incorporações da

poesia com os conteúdos sonoros pertencentes ao choque entre tradição e

vanguarda.“Alucinação”,acançãohomônima,pareceexportaispremissas,dealgum

modocontraditórias,noseguinte trecho: “eunãoestou interessadoemnenhuma

teoria,emnenhumafantasia,nemnoalgomais”.

Maisdoqueelencaradiscussãodenovoscomportamentosdecostume,de

umanovajuventude,asletrasdocantorecompositor–espéciedepoetaromântico

incomodado–seincorporamàsnarrativasdascontradiçõesdotempoeàsmarcas

dasociedadedoconsumoedointelectualismo(referênciasàculturapop,erudição

existencialistaerepertóriopoético).Taiscaracterísticassãodescritivasdacrisedo

sujeitojovem:descompassadodiantedopoderdasimagensdaculturademassae

davelocidadedamudançadapaisagemsocial; e confortado,paradoxalmente,na

buscaporumprosaicodesequilibrantedarotina.

Assumirumdelíriolúcido,emmeioaessapaisagemeaessetempo,parece

serasaídadiscursivade interlocutoresdiversosnaquelemomento.RaulSeixase

TimMaiasãodoisartistascontemporâneosdeBelchiorqueinvestem,emmomentos

delicados de suas carreiras nos anos 1970, na projeção de uma espiritualidade

celebratóriadacontracultura.TaisquaisBelchior,parecemempreenderumabusca

pessoal assimilada pelas linhas estéticas internacionais, não simplesmente as

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apropriadaspelotropicalismo,epreocupadoscommanifestaçõesdamulheredo

homem comum em suas vidas comezinhas, seus amores e paixões também

comezinhos.

2. Espíritodotempo,expectativaseesperanças–osujeitodeAlucinação

Esta é uma geração de músicos que se opunha à reflexão obrigatória do

projetomodernistabrasileiro–sedistanciandodaperspectivadostropicalistascom

relaçãoàsapreensõesderivadasdoManifestoAntropofágicode1928,deOswaldde

Andrade–paranarrarospontosdeinflexõeserupturasdaordemestabelecida.Para

Belchioreessesartistas,a“expectativanervosa”davoltadosexiladosestácalcada

na descrição do autoexílio no próprio país. Em 1976, ano de instalação de

Alucinação, a ironia das canções serve como instrumentoda negaçãode leituras

teóricas balizadas por uma acomodação das demandas do processo histórico (a

repressão,apossívelvoltadosexilados,osanosdechumboetc.):“nãoqueroregra

nemnada,tudotácomoodiabogosta,tá,játenhoestepeso,quemefereascostas,

enãovou,eumesmo,atarminhamão”(em“Comododiabogosta”);oudaafirmação

deumnovocomponentedeexpectativa,maisdestrutivo: “eeuqueroéqueesse

cantotorto,feitofaca,corteacarnedevocês”(em“Apaloseco”).

A veia identitária artística deBelchior assume, assim, especificamente em

Alucinação,aargumentaçãodilemática,adeterminaçãodeumembateentrearazão

eo sentimentalismodopoeta-narrador (TeixeiraCarlos,2014).Desenha-se, com

isso,acríticaaospreceitosexpostosnaepifaniatropicalista,maisespecificamente

na fagulha endereçada ao representantemaior, Caetano Veloso. O polemismo é

percebidoàcontrapelonosseguintesversosprovocativos:“eusouapenasumrapaz

latino-americano,semdinheironobanco,semparentes importantes,evindosdo

interior,mastragodecabeçaumacançãodorádio,emqueumantigocompositor

baianomedizia: tudo édivino, tudo émaravilhoso” (em “Apenasumrapaz latino

americano”,grifonosso);“Veloso,osolnãoétãobonitopraquemvemdoNorteevai

vivernarua,anoitefriameensinouaamarmaisomeudia,epeladoreudescobrio

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poderdaalegria,eacertezadequetenhocoisasnovas,coisasnovaspradizer”(em

“Fotografia3x4”,grifonosso).

Aconstataçãodequeotempofoi“contaminado”poroutrascaracterísticas

deexperiênciaevivênciaéperpassadaporestesujeitonarradoraltivoepolêmico

(amargurado, por vezes, com o passar dos anos), ao se investir na posição

antieufórica, em larga medida. O que parece se destravar desse enredo é uma

reflexão mais alargada a respeito dos limites da crítica e da liberdade como

condicionantesdasutopias,nadiscussãocerradasobreanostalgia (o tempoque

passouesufocaonarrador)emelancolia(naconstataçãodoesgotamentodeum

modelooudeumprojetodevida).Semexagero,Alucinação,oálbum,pareceresumir

umateoriadaliberdade,levando-seemcontaaspossibilidadesextremasdautopia,

comodescreveMarcuse,aocontextualizarasengrenagensdacrisedacontracultura

nocontextodopós-1968:

Eufaleidaspossibilidadesextremas,utópicas,deumasociedadelivre.Issonãoérisívelesemresponsabilidadenumperíodohistórico[asrevoluçõesestéticasnocontextode1968]noqualachancedeumaprimeiralibertaçãonas lutas dos insurgentes contra a escravidão situa-se no terceiro e noprimeiro mundo, nas lutas contra condições de vida insuportáveis edesumanas, contraamais explícitapobrezaeprivaçãodosdireitos civis?(Marcuse,2018,p.109).

Se destacarmos essa descrição do filósofo alemão às motivações de

Alucinação, podemos observar que a recuperação do aspecto idílico da

contracultura se traduz, emanálise teórica sobreonovoutópico,no combatede

certotriunfodatradição,interrogando,comisso,asliberdadesinquestionáveisdo

projetoindomáveldamodernidade1.

1Talimageméresumidanaenumeraçãodacanção“God”,deJohnLennon(1970):“Ijustbelieveinme,Yokoandme,andthat´sreality,thedreamisover,yesterdayIwasthedreamweaver,butnowI´mreborn,Iwasthewalrus,butnowI´mJohn,andsodearfriends,youjusthavetocarryon,thedreamisover”[“Acreditoemmimapenas,Yokoeeu,eessaéarealidade,osonhoacabou,ontemeueraotecedordossonhos,masagoraeurenasci,eueraamorsa,masagorasou John,entãoqueridosamigos,vocêsprecisamcontinuar,o sonhoacabou”].Aimagem, evocadaapartirdessa canção tornou-se, éprecisodizer, umaobsessãoparaBelchior, na ânsiadereordenaramáximadacanção[“osonhoacabou”],principalmenteemseu“ComentáriosarespeitodeJohn”(1979).Nessecontextodeprodução,aconstataçãodopoetanarrador,sobreoesfacelamentodacontracultura,reveste-sedeelogiodoprosaico.

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Parece-nosqueaoconvocaraalucinaçãoapartirdodelírioedasexperiências

com coisas reais, aciona-se, ainda, a identificação do esvaziamento das viagens

lisérgicasda juventude,quesesucumbiuaosmitosdarebeldiasemcausa.Desse

modo, lançandomão da descrição filosófica e teórica, a liberdade é versada, em

Alucinação, comoconstituintedo fenômenodoesgotamentodasutopias,mas,ao

mesmo tempo e contraditoriamente, como denúncia das interdições de vários

componentes,noprocessohistóricoinstável,entre1968e1979:“porissocuidado

meubem,háperigonaesquina,elesvenceram,eosinalestáfechadopranós,que

somosjovens”(em“Comonossospais”);“vocênãosente,nãovê,maseunãoposso

deixardedizer,meuamigo:queumanovamudança,embreve,vaiacontecer,eo

quealgumtempoeranovo,jovem,hojeéantigo,eprecisamostodosrejuvenescer”

(em“Velharoupacolorida”).

Nessaprojeçãodefuturoederessignificaçãodeumpassadoquebradiço,a

expectativadaaberturademocráticanoBrasil, na segundametadedadécadade

1970,expõe,comAlucinação, aesperançacalcadanestedelíriocontemplativodo

autoexílio,docantor-narradorquepartiudonorteaosul,eafirmaçãodequeotom

datemporalidade/cotidianidadedaculturabrasileiraépessimistanarecepçãodos

exiladosnoestrangeiro.EaquivaletantooretornodeCaetanoem1972(acrítica

deBelchiorparecealcançá-lo)quantoospolíticosretornadosem1979.Otempodo

cotidiano assume, assim, um valor de elaboração contemplativa para que o

palavrório da esfera pública seja atravessado, estética e politicamente, pela

argumentaçãodoser-no-mundopensadonabanalidade,comonossugereCastrono

seguintetrecho:

Pode haver autenticidade e quotidianidade e, por outro lado, ainautenticidadenãodeveserpensadacomoalgonegativo,esimcomoumnecessáriodesligamento,porassimdizer,dacondiçãoexistencialdentrodoestar-no-mundo e Ser-aí [no componente midiático]. Efetivamente, paraesseDaseinqueétemporalmenteequeserealizanamedidadesuaprópriatemporalização,setratadeumanecessáriaoportunidadedeviverotempocomumebanal,otempodoquotidiano,deserconsigomesmo(...),quetemafaculdadedeprojetaroDaseinparaabanalidadedomundo(Castro,2017,p.101).

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Assim, se notarmos as escolhas dos temas de artistas contemporâneos a

Alucinação, como Tim Maia e Raul Seixas, já mencionados, percebemos uma

investida não mais na premissa de uma contracultura eufórica, ou

dissimuladamentezen,masnumaespiritualidadedelirante(aalquimiaracionalde

TimMaia, a sociedade alternativa de Raul Seixas, por exemplo), ora operada na

autoprojeção individual, ora modelada no desprendimento discursivo da luta

coletiva:dosexcluídos,dospequenos,essencialmente.Nessesentido,opersonagem

“maluco beleza” de Raul Seixas (que controla a lucidez com a loucura, em sua

descriçãoprincipal) épróximodadesobediênciado cantor-narradorde “Comoo

diabogosta”(“sempredesobedecer,nuncareverenciar”).

Ospormenoresdessaoutralinguagemcontracultural,poressesartistaspós-

tropicalistas,reconfiguranãoapenasarepresentaçãodosaspectosculturaisdedada

produção,masprincipalmenteaconstruçãodeoutraspossibilidadesparaopaís,no

limiardastensõesentreadurezaditatorialeaexpectativadaaberturademocrática.

Curiosamente,énessacontramãodaesperançaredentoraqueoencerramentode

umaeraémarcadoporassimilaçõesromânticasradicaisanteoracionalalegórico

mais elaborado pelas linhas de força do primeiro tropicalismo. Os desajustes

estéticos,nesseprocesso,sãoengendradosporviolênciassimbólicas.Umadasmais

consistentestalvezsejaaimagemdaquelesquevoltamdoexílio,que,aoretornarem

efincaremopénochãodapátrianativa,seveem,jáidosos,absorvidospelonovo.

LeonelBrizola,LuizCarlosPresteseoutrosseinseremnasdemandasdonovo,com

odiscursodaaberturapolítica,massão,agora,presençasfantasmáticasemcena.

Emmeioaotensoprocessodeabsorçãodasnovasroupagenspolíticaseculturais,

desde o capital cultural interditado pelo golpe de 1964 até as inconstâncias do

modelo de transe entre as épocas, entre as gerações, tais presenças reorientam

outros significadosparaosexiladosque retornam(namelancolia)e contribuem,

comforça,paraareelaboraçãodoslimitesedoocasodacontracultura.

Poisbem,seaviolênciasimbólicaémarcantenestepontodechegada,nofim

dadécada,comseusfantasmasemcena,aliberdadepassaasercompreendidana

costuradospontosdistendidosdaculturabrasileira,enanecessidadedeempenhar

umateoriadefundomaiorsobreasaspiraçõesdoartista,dopovoedasengrenagens

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dosprojetosculturais.Wisnikparececompreenderessasdemandasembaladaspela

necessidadedeépoca:

Se o tropicalismo é o sonho da abertura de um baú (que precede ofechamentopolíticode1968)quecontémasquinquilharias,astraquitandaseasmaravilhasacumuladasaolongodeumahistóriarecalcada,avoltadoexíliocontémaconsciênciadequenãohámaisaquelebaúaabrir,queoprocessoprodutivoacelerouossignosculturaisnumacentrifugadora,equeosseusmovimentosreaisnãopodemserpercebidosemcentroslocalizados,nememlinhasretas,masemcírculosabrangentes(Wisnik,2005,p.36).

O espírito do tempo, aqui, é determinante no sentido de expor uma

emergênciaderitualísticadacançãopopular,esuasdemandas,cujaleiturareflexiva

possa investirabanalidadedoser-no-mundo(cf.Castro)diantedopalavróriodo

espaçopúblico“contaminado”,maisemais,daculturainternacionalizada.Trata-se,

ademais,daevidênciadessedelíriointempestivodepercepçãodocotidianovulgar,

amodelarasexpectativasdeumpovo,nareelaboraçãoestéticapossíveldedada

alucinação lúcida, e seus dispositivos poéticos. Esse sentimento se verifica, por

exemplo,naobradosditospoetasmalditosdosanos1970(Cacaso,Leminski,Ana

Cristina Cesar, Mautner, Macalé), que reivindica uma estética cada vez mais

preenchida pela angústia e pela temporalidade estilhaçada da cultura demassa.

Empreende-se uma tensão sobre o espírito de época, em queAlucinação parece

anteverduasemergências:umainterna,comoassimiladoradeproduçõesartísticas

doperíodo;outraexterna,comoadescreverosurgimentodoprosaicocomomolde

deresistência.

3. Umtempoalucinante:rearranjandoastemporalidadesdavidasocial

Alémdessediálogocomocontextodesurgimentodoálbum,há,nodiscurso

de Alucinação, ummovimento que coloca a própria compreensão do tempo em

questão.Areinterpretaçãodotempoestáassociadaaoquestionamentodofuturo

enquanto lugarde chegadadamodernidade.Amodernidade, encarada comoum

horizonte a ser alcançado, convoca uma leitura do tempo comouma progressão

linear. Essa noção demodernidade, centrada nas culturas ocidentais, estabelece

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essa linha progressivista para o desenvolvimento social. Tal perspectiva não

somentecolocaaAméricaLatinanumlugardeatrasoeincompletude,comoprivaa

seuspovos–àépoca,considerados“deterceiromundo”–dodireitodeconstituir

maneirasalternativasdepensarasdinâmicastemporaiseasrelaçõesculturaiscom

otempo.Assim,aconvivênciaconfusaetensionadadasmúltiplastemporalidades

nas culturas latino-americanas e suas resistências cotidianas são vistas como

entravesparaoalcancedamodernidade.Nestecontexto,asmesclasculturaissão

marcasdeuma impureza,um impedimentoparaoalcancedamodernidadeedo

progresso.

Aníbal Quijano (2005) pondera que esta perspectiva, embora tenha

reprimido e sufocado as heranças culturais latino-americanas durante o período

colonial,nãoimpediuqueelasemergissemclandestinamenteapartirdamescla,da

imitaçãoedasubversãodeseussímbolosnumarelaçãodialéticacomasimagensda

modernidade. Martín-Barbero (2008) pontua essa emergência justamente nas

produçõesculturaisenasapropriaçõestecnológicasprocessadasnaAméricaLatina

que se fundam num gesto de “revanche sociocultural”, no qual usos e formas

imprevistassãoprocessadasepassamaquestionaraslógicasculturaisdominantes.

Oreconhecimentodalógicadadiferença–amestiçagemconstitutivadarazãode

ser – revela a suapotência de intervençãonos cursosdamodernidade.Assim, a

mestiçagemculturaléabertaà institucionalidadeeàcotidianidade,àobjetivação

dosatores,àmultiplicidadedesolidariedadesqueseoperamnosocial:

É como a mestiçagem e não como superação – continuidades nadescontinuidade, conciliaçõesentreritmosqueseexcluem–queestãosetornando pensáveis as formas e os sentidos que a vigência cultural dasdiferentes identidades vem adquirindo: o indígena no rural, o rural nourbano,ofolclorenopopulareopopularnomassivo.Nãocomoformadeesconderascontradições,massimparaextraí-las,dosesquemas,demodoapodermosobservá-lasenquantosefazemesedesfazem:brechasnasituaçãoesituaçõesnabrecha(Martín-Barbero,2008,p.262).

Essareleiturado“agiremmescla”daAméricaLatinafazcomqueastrocas

culturais sejamvistas comoproduções inventivas e criativasda cultura.Apartir

disso, a experiência de ser latino-americano é tratada como uma experiência de

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fronteira–oufronteiras,seconsiderarmosasfronteirasdamodernidade,dotempo

edacultura.EssaimagemlimiarédensamenteexploradaporCanclini(2011),que

faladalatinidadecomoconstituídapelaporosidadeepermeabilidadeàpresençado

Outroe,aomesmotempo,porumaperformatividadeeconstanteredefiniçãodesi.

Esse reconhecimento da mistura e da resistência residual (Williams, 1969) das

culturascolocaemxequeoquesignificasermodernoemterraslatino-americanas.

Amodernidadeseconverteentãonãonumespaçotransitável,masnumacondição

quenosenvolve,naqualapermanênciaéimpossíveleotrânsitointerminável,pois

jánãohápontodechegada.EssaincertezaapareceemBelchiorpelanegaçãodas

teoriasprontase,emespecial,domovimentotropicalista,bemcomodasafirmações

categóricas sobre a experiência de ser no mundo, por entender que as formas

culturaisemergentesdasnossasmesclassãocapazesdetornarexpressivaanossa

experiênciadesermoslatino-americanos–demodoque“umtangoargentinome

vaibemmelhorqueumblues”(“Apaloseco”).

Essa relação mesclada e fronteiriça da cultura latino-americana coloca a

modernidade em tensão a partir de três processos de mescla: descoleção,

desterritorializaçãoeosgêneros impuros.Adescoleçãoépercebidapelaruptura

comashierarquiasdasculturasdominantes,apegadasàscategoriasejulgamentos

devalor,quesetraduzemnasculturasdemesclapelarupturadessasfronteiraspara

fazeremergirformasnovas.Adesterritorializaçãoconvocaparaodesafiodepensar

a transformação das relações com o local, que passam a ser tensionados pelos

valores,produtoseformasglobais,reprocessando-asporumolharlocalizado;jáos

gênerosimpurosconduzemàemergênciadeformasculturaisfronteiriças,tocadas

pelas formas midiáticas, nas quais se permite a mescla de culturas, espaços e

tempos, como os videoclipes, quadrinhos, música popular massiva, sonoridades

híbridaseetc.

Juntoaessesprocessos,podemosapontaradestemporalização,postoqueas

temporalidades latino-americanas tensionam o moderno, o tradicional e o

midiático, reconfigurando a noção de passado-presente-futuro como uma

sequência. A reconfiguração dos regimes temporais aparece comomarca crucial

paraacompreensãodeAlucinação(1976):ofuturonãoéumpontodechegadanem

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um vir-a-ser, mas o tempo no qual é possível – e necessário – rejuvenescer,

reinventandoa lógicado tempo.Comessaproposta, o futuronãopode ser visto

comoumaexternalidade–passívelounãode realização–mas comonascidoda

experiênciacorporaldossujeitos,emergentedasmaneirasdesereestarnomundo.

Essa dimensão da ação como constitutiva do futuro é trabalhada por

Appadurai (2013), que o vê como um trabalho imaginativo, resultante de uma

experiência cultural: o futuro é uma forma cultural produzida socialmente. Essa

formadeprodução/projeçãodotempoenvolveumconjuntodeafetosesensações:

projetarofuturodemandaexpectativasesentimentos,exigeumolharparaotempo

einquiriroqueseesperadele,revelaumestadoemocionalque,emsuamelancolia,

reservaapotênciadeagiremcontrapeloàprópriaépoca.Daíofuturonãopodeser

compreendidoporumviésconceitualoutécnico,masporumaexperiênciacorporal

eemocionalprofunda,naqualhásempre“umamudançaembreve”paraacontecer.

Porisso,emAlucinação(1976),ofuturonãoéaquiloquevemapósopresente,mas

aquilo que toma corpo em oposição aos desencaixes sentidos na tensão entre

passadoepresente–talcomoaroupaquenãonosservemais.

O passado é associado a um estágio da vida que é social, mas também

reconhecívelpelossujeitos,queprecisamimaginarofuturoaindaquenãohajaum

passadoquelhesamparecomimagensauspiciosas–afinal,“oqueháalgumtempo

era jovemenovo,hojeéantigo” (“Velha roupacolorida”).Esseacionamentodos

sujeitosparapensarotemposocialsetornaumtraçomarcantedoálbumàmedida

queotempoédotadodecorporeidadeeépensadoapartirdossujeitos,conferindo-

lhesopoderdeaçãoeconfiguraçãosobreoseuprópriotempo.

Aotrazeressadimensãocorporalparaotempo,associando-oaojovemcomo

figuraemarcadeumtempo,elepromoveumainversãodalógicatemporallinear.O

passado,queumdiaforajovem,envelhece,eofuturonãopodeseracontinuaçãodo

envelhecimento – sob pena de perder o frescor da juventude e seu potencial

transformador.Nessalógica,ofuturosósetornapotenteenquantojuventude,pois

semorejuvenescimentoamudançasocialéimpossível.

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4. Rejuvenescer–aemergênciadoprosaicocomoresistência

Aoscilaçãodeumatemporalidadequenegaumencadeamentolinearpara

verofuturocomocampoderesistênciasituaasociedadebrasileiraàslógicascada

vez mais aceleradas das cenas culturais internacionalizadas. Tem-se, então, em

Belchiorespecificamente,oresquíciodeumaalmafugidia(TeixeiraCarlos,2014).

OálbumAlucinaçãoexplicaessaaflição,naapresentaçãodocantocríticointelectual

epolêmico (Moreira,2015).Mas,diversamentedoquesepoderiasupor,elenão

depositanojovema“esperança”deumnovotempo,masnapotênciade“fazer-se

jovem”–ajuventudecomoumaaçãoencarnadanossujeitosenascidadeseuolhar

subversivo e resistente aomundo. Disso deriva certamelancolia, pois enquanto

potênciaháumaincompletudeemfacedaexpectativadasuarealização.Oaspecto

dedenúnciamelancólicaéconsequência,portanto,deumaquebradeexpectativas:

tanto pela emergência do novo como tema (“o novo sempre vem”), como pela

possibilidade de falar, reflexivamente da dor e do amor romântico. Sanches, ao

interpretar“Fotografia3x4”,sintetizaessapropulsãoemBelchior,noantagonismo

doartistacomo“outroromântico”RobertoCarlos:

Àviolência socialquerecebiana testa,onarrador [de “Fotografia3x4”]respondiacomviolênciainternaequivalente,àmaneiradoprotagonistadeLaranjaMecânicadeStanleyKubrick(citadaliteralmenteem“Alucinação”).Oconflitoessencialeraodosentimentodeinadequaçãoaotempo(àidade)eàgeografia(noautoexíliodoretirantenordestino).AtristezaeraaprovadosnovedeBelchior,comoeratambémadeRobertoCarlos[seuantagonistapoético](Sanches,2004,p.237).

Essa premissa de Sanches retoma a ideia de violência simbólica como

anteparo da cotidianidade em Alucinação. Essencialmente, “Fotografia 3 x 4”

apresenta a amargura e a impassividade do cantor-narrador, coadunado,

firmemente, à possibilidade de reconstruir um passado idílico (e doído) com a

amostramaisincisivadosnovostempos,edosignificadodopercursodesseexílio

interno.Tal espírito se encontra emcançõesdeoutrosdiscos como “Nahorado

almoço”(1974), “Galos,noitesequintais” (1977), “Tudooutravez”e “Conheçoo

meulugar”(1979).Emtodaselasháaconstataçãodequeouniversodainfância,do

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tempo que consumiu a sua alma, não volta. Ele, o tempo, é consubstanciado na

errância (espacial e temporal). Com isso, o ato de falar de amor nutre-se com a

condiçãodeinadaptaçãoecomadescriçãodobanal.Oqueparecereembaralharas

possibilidadesdoautoexílio,doocasocontracultural,emBelchior,éessadicotomia,

tematizadaaferroefogo,entreaesperançaeaconstataçãodafragilidadehumana

deagirpararefundaroprópriotempo.Otempodainterdiçãoédisputadonoveio

daalucinaçãolúcidaprojetivadefuturo.Aemergênciadanaçãoeseupovo,edoente

pessoalretraído,pormeiodasengrenagensdocotidiano,ésentidadoenoprosaico

(no sentido de se opor ao palavrório das explicações teóricas generalistas de

mundo). Assim, nos interessa observar três categorias de compreensão dessa

manifestaçãoemAlucinação:

a. Aculturapopularcomoafirmaçãodoprosaico

SeoespíritodotempopareceseradiscussãonorteadoradeAlucinação,esse

condicionanteépostoàprovacomaafirmaçãodeummomentomarcadopelavida

prosaica,anteodelíriodamodernidadeveloz.Masessadescriçãopodeserresumida

tambémcomolembrançanostálgica.Issoseancora,então,aomantra“anopassado

eumorri,masesseanoeunãomorro”, comosea linhapoéticaadvertissequeo

componentedelutapessoal(doindivíduo,daprececotidiana)éaoposiçãoaoanjo

caídodessamesmamodernidade.

A esse respeito, é necessário perceber que as bases de um discurso

identitário, nestes deslocamentos do sujeito (o errante, o inadequado, o poeta

romântico)investe-sedaculturapopularcomomarcaderesistêncianoelogiodo

local de origem, cearense, nordestino, brasileiro (principalmente nas canções “A

paloseco”e“Fotografia3x4”).AobradeBelchior,comoumtodo,apontaatemática

daamarguradocotidiano,afirmandooseuladoprosaico,e,noavesso,assumindoo

rompimentocomopalavróriodaarenapúblicadacomunicaçãodemassa.Expõe,a

partirdisso,suascontradições:deapeloàmelancoliaededescriçãodosprocessos

sociaisesgarçados.

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Surgeaíumsensodelatinidade,deumveioquenosconstituienosinterliga,

quepermiteumidentificar-seeumsentircoletivo.Aconstruçãodessaidentidade

latino-americanaémenosabuscaporumahomogeneidadeemaisa tentativade

indicarumamatrizdesentidos,umacomunidadedesentimentosquepermiteum

graudeidentificaçãopelassensibilidades.Issoseevidenciajánacançãodeabertura

doálbum, “Apenasumrapaz latinoamericano”,noquala trivialidadedaprópria

identidade se manifesta pela tentativa de normalização de um cotidiano de

interdições(proibiçõespolíticasetambémestéticas,aoarrogar-seodireitodenão

fazerumamúsica“Correta,branca,suave,muitolimpa,muitoleve”)queimpõeao

artista um papel de resistência quando a luta é para viver – para atender aos

compromissoscolocadosa simesmocomaprópriavidae seusdesejos (“Masse

depoisdecantarvocêaindaquisermeatirar,mate-melogo,àtarde,àstrês,queà

noiteeutenhoumcompromissoenãopossofaltarporcausadevocês”).

Já em “Fotografia 3x4”, Belchior coloca em xeque a noção de que os

documentosquenosatribuemumacidadaniacomum–tãorelevantesemtempos

devigilânciaeopressõessociaisepolíticas–setornamrisíveispelaimpossibilidade

denossituarculturalmente,depromoverumaidentificação:“Emcadaesquinaque

eu passava um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois sorria

examinandoo3x4dafotografiaeestranhandoonomedolugardeondeeuvinha”.

A identificação social emerge na cotidianidade do gesto e do sentimento, na

comunidadeintersubjetivaqueemergedesesaber“umrapazlatinoamericano,sem

parentesimportantesevindodointerior”(“Apenasumrapazlatinoamericano”).

Por isso,reconhecer-se latino-americanoabarcatantoumatrivialidade,na

qual se procura normalizar o cotidiano e suas lutas e resistências (políticas e

estéticas), quanto um saber-se latino-americano por sentir e afetar-se de forma

singular.Comisso,ogritodesesperadoprecisaseremportuguês,alínguaapartir

daqualsentimoseordenamosessesentir,evidenciandoovínculoemocionalcom

essacomunidadequenosconstituienaqualsomosforjados.

Sonoramente,essasmesclasculturaisconstitutivasdoserlatino-americano

aparecempelahabilidadecomqueelecompõeapartirdeumentrecruzamentodas

referênciaslocaiseregionaiscomasproduçõesmainstream,associando-seaofolke

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aorock,comoformadefazersurgirumestiloqueevidenciaadimensãoresidualda

suaprodução.Comessaconstituiçãosonora,oartistafazsurgirumasintoniairônica

entreomodernoeotradicional,mostrandoasincongruênciaseinconsistênciasdo

seuprópriotempo.Assim,otommelancólicoe,aomesmotempo,ácidoeirônicodo

compositornãoselimitaàtextualidade,fazendocontrapontocomotomromântico

de suas composições enquanto aponta os desenganos e desencaixes daquele

momento.

Assim,aformadeviveraidentidadenosunenosofrimentoenasmaneiras

desentir,eanecessidadedecompartilharadordessaexperiênciasemanifestana

ânsiaporserouvido,ecoarnooutro, feri-loparaassimreconhecerapartilhadas

mesmas sensações: “euqueroéqueesse canto torto, feito faca, corte a carnede

vocês”(“Apaloseco”).Nessacomposição,otommelancólicosereforçaporseruma

composiçãoseguidadacadênciaironicamenteanimadade“Nãoleveflores”,naqual

seremetemaisdiretamenteaofolk.Éporissotambémqueserepetecomtantaforça

–emelancolia–“eusoucomovocê”em“Fotografia3x4”,poisaidentificaçãosóé

possívelsenosreconhecermos intersubjetivamente, comoaquelesquepartilham

umaexperiênciasocial.

b. Atemporalidadetensionada

Em Alucinação, o tempo linear é marca do conservadorismo, nos faz

sucumbiràpermanência.Umtempoquesefundanasbasesdo“antigo”,da“roupa

quenãonosservemais”,éumacontinuidade,quefazdofuturoolugar“dosnossos

pais”,demodoquenãosetemapossibilidadederupturaoumudança.Essetempo

apassivador coloca as temporalidades acima dos sujeitos e suas ações, pois lhes

suprimeapossibilidadedeinauguraroutrasexperiênciastemporais.

Em “Velha roupa colorida”, o desencaixe entre o passado e presente é

reveladopela roupaque já não cabe: o passado é contingente dopresente. Para

libertar-sedopassadoeampliaraspossibilidadesdefuturo,deve-sedesvencilhar-

sedeleerefundarumlugardofuturo.Nestecontexto,opassadoeopresentesãoo

tempodoantigoesónosenvelhecem:éprecisorejuvenescerparaofuturoexistir

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comopotência,emoposiçãoaopassadoquenosconstrange.Énecessáriofazerdo

futuroumoutro,torná-lonovo:ofuturorejuvenescidoéaesperançaquealimenta

amelancoliasentidanodiaadia.Ainversãodalógicadotempotorna-se,assim,uma

estratégiadesobrevivênciadofuturo.

EisaquiosentidodeurgênciadeAlucinação.Orompantedonovopareceser

definidordealgomaiscomplexo,anotarumrecortecondicionadoporumaetapade

absorçãoderegistrodeépocalatente,emqueotempomarcadopelacrisedosujeito

se instala.Osaresdocontextodasociedadebrasileira,emtalperíodo,advêmda

resistência coletiva, mas é embalado com movimentos muito pessoais.

Diferentementedareacomodaçãodeumpassadoredentor,onarradordoálbum,de

modo geral, empreende uma linha de fuga, além de firmar este tempo quase

estilhaçadodalembrançadoída.

Nessesentido,ainadequaçãodosujeitoéumaafirmaçãodeentorpecimento,

como uma chance de saltar ao novo: inquieto, juvenil. O sol que brilha desse

movimentoparececontemplarumdesconfortoculturalqueconvocaosânimosdo

seutempo.“Osonhoacabou”pareceanteciparaconfirmaçãodolocalinquietodo

narrador,eestenderasafliçõesdosujeitoàsquestõesinerentesasuaépoca,àsua

nação, ao seu povo, às vanguardas artísticas que lhe são caras. À propósito, em

Belchior,ojogodamelodia/harmonianascançõesestáenvolvidocomasreferências

poéticas(porexemplo,deJoãoCabraldeMeloNeto,em“Apaloseco”,edeEdgar

AlanPoe,em“Velharoupacolorida”)emusicais(comoBillyFury,pelacitação“Play

itcool,baby”,em“Alucinação”)ecomadescriçãominuciosadeumaurgência,na

percepçãodavulgaridadepoéticanodiaadia.Essetempodainconstânciaéaaflição

doseulugarnomundo.

c. Oautoexílioealutaporfazer-sejovem

Nomais,amovimentaçãopoéticaépeça-chavedeoutrodeslocar-se,nesse

intenso processo de narratividade exasperante. Diferentemente da volta dos

tropicalistas, em1972, edosexiladosde1979, esse sujeito estrangeiroem terra

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nacional–“nãoquero lhefalar,meugrandeamor”(“Comonossospais”)– fazda

melancoliaocernedaapresentaçãodolugarqueseesvaieé.

Écomoseele,osujeitonarrador,compreendesse,pelaobservaçãoquefaz,

aslinhassuavesdeumtempocorroídopeladureza/levezadoprosaicocomoguia.

Nãosemsentido,asimagensdeAlucinaçãoapontamqueseotremdaHistóriase

movenainterdiçãodoslugaresdeorigem,osentimentodedeslocamentopessoalé

sempre vivido como umdilema do que é identificado e do que é projetado, nos

termosdeMarcuse.

Aliberdade,dessaforma,adquireumvalordeação:aelaboraçãodeumcanto

da juventude e a expectativa da esperança. Assim, a ciência dessa afirmação, do

tempoqueinsisteemnãosefechar,quenãoseencerra,dispõedealgocaroàcrítica

daexasperaçãomodernaemBelchior:odesconfortoemrelaçãoaumfuturosem

lastro. O sentimento de autoexílio assume, assim, um lugar de resistência a algo

externodocotidianodavidaprosaica.

Essa vida prosaica não deixa de ser observada pelo agir daquele que

rejuvenesce,quevêna juventudeumapotência, capazdeassumirocontroledos

rumosdotempoe,comisso,empreendertransformaçõesimprevistasnosocial.Em

“Comonossospais”, a reorganização temporal é aúnicamaneiradeenfrentaro

antigo, o conservador, que traça um futuro soterrado na antiguidade do

passado/presente.Issosedáporqueoantigoéoquetemoshoje–presente–poisé

uma continuidade da decadência do mundo. Fazer-se jovem é libertário,

transgressor, já que resiste a aceitar a triste passagem do tempo, em que o

conservadorismoeomaterialismomanifestospelafiguradospais–aimagemde

quem “está em casa, guardado por Deus, contando vis metais” – evidencia a

desesperança,sufocandoosfuturospossíveis.Essafiguradáaveraqueleque,pela

imobilidade,pelapassividade,impede-searefundaçãodosocial.Porisso,nãoser

capaz de rejuvenescer é uma fatalidade; é viver no presente e tornar-se antigo,

permitir-seenvelhecerecederàvisãoconservadoradotempolinear.

Em “Sujeito de Sorte”, se evidencia a melancolia sentida diante dessa

constatação:serjoveméumrisco–“Porqueapesardemuitomoço,mesintosãoe

salvoeforte”–umavezqueéajuventudequesenteeenfrentaoprópriosentidode

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tempo. Rejuvenescer, tornar-se jovem no presente e no futuro, é abrir mão do

passadoenquantoguiaparasuapresençanotempo(“Eassimjánãopossosofrerno

anopassado”):viveropassadoémorteetambémentrega–oespíritodajuventude

exige essa ruptura com o antigo, o conservador, aquilo que nos mata pelo

conformismo com as violências resistentes no tempo presente. Daí, a grande

alucinaçãoésuportarodia-a-dia,assumiraexperiênciaenquantovivênciacorporal,

naqualodesafioexisteemnãosetolher,manter-sefirme,emdefesadalibertação:

“nãovou,eumesmo,atarminhamão”(“Comoodiabogosta”).

Essa capacidade subversiva da juventude de inverter a lógica do tempo é

provocativaem“Nãoleveflores”,emqueseafirmaqueespezinharojovemnãoé

boa estratégia: “as lágrimas do jovem são fortes comoum segredo, podem fazer

renascer ummal antigo”. Nessa canção, deixa-se claro que a rebeldia, o espírito

transgressor nascido do rejuvenescimento dos jovens, é o que vai fazer face às

repressõesesofrimentos.Nãosuporqueemsuadorajuventudetemparalisia,pois

o sofrimento na juventude converte-se em força para a resistência, rebela-se e

engendraa luta – aindaquea esperançados jovensnão tenha se completado (a

mudançanãotenhaocorridoainda),elanãoémorta.Assim,aofinaldoálbum,em

“AntesdoFim”,emdiálogointertextualcomGuimarãesRosa,Belchiorrecuperaa

citaçãodeGrandesertão:veredas(“Viverémuitoperigoso”)paraafirmarqueesseé

operigoqueavaleapenaseexpor:ajuventudeéosoprovigorosoquetransforma

osocial.

5. Consideraçõesfinais

Éimportantefrisar,apartirdisso,queacançãopopularbrasileirados1970

(Wisnik, 2005) faz da metáfora sua própria compreensão. Essa fase de

modernizaçãodamúsicapopularbrasileiraestáligadaaumatributoderesistência

nummovimentoparadoxalmentemarcante:asofisticaçãodeumaculturademassa

quepadronizaaexpressãoeasdemandasdasvozesdeumasociedadediversificada

noconsumodessasmarcasexpressivasdacanção.Nessesentido,acançãodeum

artista popular como Belchior reflete as condições do país nessa roupagem, via

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indústriacultural,deumaprosada falapública(nordestina,cearense,nocaso)a

decifrarascircunstânciasdahegemoniadeumafalamaior.Aomesmotempo,evoca

uma marcação musical e comunicacional típica do folk rock estadunidense,

marcadamente em Bob Dylan, a psicodelia de um romantismo sincero

(principalmenteemLennon)eumaassimilaçãodocantopolíticofolclóricolatino-

americano(fundamentalmente,nainfluênciadeVictorJaraenasmúsicasdeLuiz

Gonzaga).Essamesclasonoraepoética,diríamos,dápistasdeumareflexãointerna

dacrisedacontracultura,nostermosquetratamosaqui:“aolongodosanos70a

revolta cultural se apresentou de forma espontânea e desorganizada” (Novaes,

2005, p. 16), como se afirmasse o acréscimo dessas descrições e expectativas e

tivessequeencararosdesdobramentosdeseuspapeiserepresentaçõesnocaldoda

culturabrasileiradaliemdiante.

Pela escuta atenta e afetiva deste álbum, essa mescla surge como um

desajustediantedamodernidade,pois,aoserevelarrotineiroebanal,abre-separa

ariquezadocotidianoevê,nele,emergênciadeummodosingulardeveromundo.

Ao voltar a atenção para esse cotidiano e suas potencialidades, o álbum revela

formassubversivasdevivereentendero tempo, tornando imprevisíveisopapel

poético e estético da melancolia. A partir desse retorno ao cotidiano latino-

americanoesuasmesclasconstitutivassurgeumaformaenraizadaderesistênciaàs

durezaseviolênciasdomundo.

Por isso, a aposta central de reordenação da experiência do tempo via

rejuvenescimento torna-se a chave para a compreensão do futuro. Ao inverter a

lógicadepassagemdotempo–tornar-se jovemnofuturo–,revela-seumaoutra

forma de compreender e viver o tempo, gestada no seio de uma comunidade

intersubjetiva que encontra na latinidade, na partilha dos sentimentos, a

possibilidadedefazerfaceàsviolênciaseinterdiçõescolocadasàquelecontexto.

Nesse reordenamento das formas de lidar com o tempo, o presente é

acionadoparamarcarocursodaaçãodossujeitos,promovendoassimumacesura

das temporalidades: reconhecer-se cearense, nordestino, brasileiro, latino, que

sangra, sofre,morree renasceéummarcadorda forçadogestode resistênciae

sobrevivência dos povos que rompem com o tempo. Rompe-se com o tempo do

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outro,externo,linear,moderno,emdefesadeumtempolatino-americanoquesefaz

esereconhecejovemparaviverasesperançasque,mesmonãovividas,tambémnão

seencontrammortas(“ComooDiaboGosta”).

Seesseconflitocomotempoémuitasvezesvistocomo“desnorteio”ecomo

“desapontamento”, sentimentos tidos como “comunsno seu tempo”, é tambémo

tempoquepermiteosurgimentodeumamelancolianecessária,pormeiodaqualse

estabeleceumreconhecimentointersubjetivo(“eusoucomovocê”,em“Fotografia

3x4”)queresisteaoconservadorismodoseutempoedacompreensãodostempos.

É intersubjetiva e cotidianamente que se torna possível viver a verdadeira

alucinação,entreveramudançanodiaadia,forjandooesteionoqual“amaremudar

ascoisasmeinteressamais”(“Alucinação”).

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