critica de satre ao ego
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UNIVERSIDADEFEDERALDESANTAMARIA
CENTRODECINCIASSOCIAISEHUMANASPROGRAMADEPS-GRADUAOEMFILOSOFIA
ACRTICADESARTREAOEGOTRANSCENDENTALNAFENOMENOLOGIADEHUSSERL
DISSERTAODEMESTRADO
Adelar Conceio dos Santos
Santa Maria, RS, Brasil2008
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ACRTICADESARTREAOEGOTRANSCENDENTALNA
FENOMENOLOGIADEHUSSERL
por
Adelar Conceio dos Santos
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa dePs-Graduao em Filosofia, rea de Concentrao em
Filosofias Continental e Analtica, Linha de Pesquisa Fenomenologia eCompreenso, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como
requisito parcial para obteno do grau deMestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Fabri
Santa Maria, RS, Brasil
2008
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Universidade Federal de Santa MariaCentro de Cincias Sociais e Humanas
Programa de Ps-Graduao em Filosofia
A Comisso Examinadora, abaixo assinada,aprova a Dissertao de Mestrado
A CRTICA DE SARTRE AO EGOTRANSCENDENTAL NA
FENOMENOLOGIA DE HUSSERL
elaborada porAdelar Conceio dos Santos
como requisito parcial para obteno do grau deMestre em Filosofia
COMISO EXAMINADORA:
Marcelo Fabri, Dr. (UFSM)(Presidente/Orientador)
Paulo Schneider, Dr. (UNIJU)
Noeli Rossatto, Dr. (UFSM)
Santa Maria, 26 de novembro de 2008.
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DEDICATRIA
Aos amigos todos e em especial aqueles mais prximos.A Melissa Fernanda Copetti.
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RESUMO
Dissertao de Mestrado
Programa de Ps-Graduao em FilosofiaUniversidade Federal de Santa Maria
A CRTICA DE SARTRE AO EGOTRANSCENDENTAL NAFENOMENOLOGIA DE HUSSERL
AUTOR:ADELAR CONCEIO DOS SANTOSORIENTADOR:MARCELO FABRI
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 26 de novembro de 2008.
A presente dissertao tem como tema a crtica de Sartre a noo de Egotranscendental na fenomenologia de Husserl. Dentro do quadro de evoluo da obra deHusserl, o Ego transcendental pode ser assinalado como resultado da introduo danoo de epoch, ou reduo fenomenolgica, na chamada virada transcendental dafenomenologia. O Ego transcendental simultaneamente o resultado desta operao eo princpio de constituio de todo sentido do mundo. A fenomenologia transcendentalde Husserl ento Idealismo Transcendental. Contra esta concepo, em ATranscendncia do Ego, Sartre apresenta a tese segundo a qual o Eu no umcontedo da conscincia transcendental, necessrio para garantir a sua unidade eindividualidade, mas um objeto transcendente. A unidade e individualidade, necessrias conscincia, garantida pela intencionalidade, interpretada como o carter
fundamental de toda conscincia. Atravs dela toda conscincia conscinciaposicional (ttica) do seu objeto e conscincia no-posicional (no-ttica) de si,portanto esta primeira conscincia irrefletida j conscincia de si e deve serconsiderada autnoma, pois no tem necessidade de ser refletida. No entanto, destamaneira a tese de Sartre ameaa tornar incompreensvel tendncia inerente que levatoda conscincia a reflexo, ou seja, introduz-se uma ciso entre irrefletido e reflexoque torna a reflexo um acontecimento fortuito. Tentaremos ao longo deste estudooferecer uma resposta a esta objeo recorrendo ao instrumental terico fornecido porSartre na sua Ontologia Fenomenolgica. A intencionalidade servir como fio condutordestas anlises, entendendo que atravs da sua radicalizao que Sartre pe emquesto o prprio serda conscincia distinto do seu conhecimento.Finalmente a crticade Sartre ao Ego transcendental teria como pressuposto uma abordagem onto-fenomenolgica da conscincia.
Palavras-chave: filosofia contempornea; fenomenologia; Ego transcendental
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ABSTRACT
Dissertation MastersThe Postgraduate Program in Philosophy
Universidade Federal de Santa Maria
SARTRES CRITICAL OF THE TRANSCENDENTAL EGOIN THEPHENOMENOLOGY OF HUSSERL
AUTHOR: ADELAR CONCEIO DOS SANTOSADVISOR: MARCELO FABRI
Place and Date of Defense: Santa Maria, Nov. 26, 2008.
This dissertation is addressing the criticism of Sartre the notion of transcendentalEgo in the phenomenology of Husserl. Within the framework of developing the work ofHusserl, the Transcendental Ego can be flagged as a result of the introduction of theconcept of epoch, or phenomenological reduction, the "transcendental turn" ofphenomenology. The transcendental Ego is both the result of this operation and theprinciple of formation of any sense of the world. The transcendental phenomenology ofHusserl is then Transcendental Idealism. Against this conception, in The Transcendenceof the Ego, Sartre presents the argument that I not the content of transcendentalconsciousness, necessary to ensure its unity and individuality, but a transcendentobject. The unity and individuality, for the conscience is guaranteed by intentionality,
interpreted as the fundamental character of all consciousness. Through it all conscienceis "positional consciousness" (tetic) of its object and "non-positional consciousness"(non-tetic) of itself, so this is the first consciousness non-reflected alreadyconsciousness of itself and should be considered independently, since no need to bereflected. However, this way the thesis of Sartre threat inherent tendency to obscure allthat it takes conscious reflection, ie it introduces a split between non-reflected andreflection that makes the reflection a fortuitous event. Try during this study provide ananswer to this objection to using theoretical tools provided by Sartre in hisPhenomenological Ontology. The intentionality serve as a leitmotif of these tests, andthat is through their radicalization that Sartre puts in question the very being ofconsciousness separate from their knowledge. Finally the criticism of Sartre to the
transcendental Ego would be an onto-phenomenological approach onto theconsciousness.
Keywords: contemporary philosophy, phenomenology, transcendental Ego
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SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................ 9
1 O EGOTRANSCENDENTAL .................................................................................... 14
1.1 A fenomenologia de Husserl ................................................................................ 141.1.1 A crtica ao psicologismo...................................................................................... 15
1.1.2 A intuio das essncias...................................................................................... 17
1.1.3 O Eu na fenomenologia de Husserl...................................................................... 18
1.2 A Fenomenologia Transcendental ....................................................................... 22
1.2.1 O desenvolvimento da concepo de fenomenologia em Husserl ....................... 22
1.2.2 A concepo de Eu na fenomenologia transcendental ........................................ 25
1.2.3 O caminho para o Ego transcendental............................................................... 26
1.3 A Fenomenologia como Egologia Transcendental......................................... 29
1.3.1 A Epoch fenomenolgica.................................................................................... 29
1.3.2 O Ego transcendental como princpio de constituio do mundo......................... 31
1.3.3 A Fenomenologia como Idealismo Transcendental.............................................. 32
2 A CRTICA DE SARTRE AO EGOTRANSCENDENTAL ......................................... 35
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2.1 A teoria da transcendncia do Ego..................................................................... 36
2.1.1 A crtica a concepo fenomenolgica do Eu na conscincia .............................. 37
2.1.2 A conscincia irrefletida........................................................................................ 40
2.1.3 Explicitao do processo de constituio do Ego................................................. 43
2.2 A radicalizao da fenomenologia....................................................................... 47
2.2.1 A concepo sartriana da fenomenologia ............................................................ 47
2.2.2 A Intencionalidade como carter fundamental da conscincia............................. 48
2.2.3 Incompatibilidade entre a intencionalidade e a presena do Eu na conscincia .. 50
2.3 A conscincia irrefletida e o problema da reflexo ............................................ 522.3.1 A conscincia irrefletida e sua autonomia com relao reflexo....................... 52
2.3.2 A ciso entre irrefletido e reflexo ........................................................................ 53
2.3.3 O problema da passagem reflexo ................................................................... 54
3 A CONCEPO ONTO-FENOMENOLGICA DA CONSCINCIA ......................... 56
3.1 Teoria representacional e teoria fenomenolgica da conscincia ................... 56
3.1.1A Conscincia de si no um Conhecimento de si............................................. 58
3.1.2 O ser do conhecimento ........................................................................................ 59
3.1.3 A conscincia de si como fundamento da reflexo .............................................. 61
3.2 A ontologia fenomenolgica ................................................................................ 63
3.2.1 A teoria do fenmeno ........................................................................................... 63
3.2.2 O cogito pr-reflexivo ........................................................................................... 66
3.2.3 A prova ontolgica................................................................................................ 68
3.3 A abordagem onto-fenomenolgica da conscincia.......................................... 69
3.3.1 A presena a si.....................................................................................................70
3.3.2 A ipseidade........................................................................................................... 71
3.3.3 Conscincia e mundo........................................................................................... 72
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CONCLUSO ............................................................................................................... 74
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 78
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INTRODUO
O propsito principal do presente trabalho expor a crtica de Jean-Paul Sartre
(1905-1980) noo de Ego transcendental na fenomenologia de Edmund Husserl
(1859-1938). Para tanto, se partir de uma breve exposio da Fenomenologia para
ento caracterizar a noo de Ego transcendental em Husserl e sua importncia no
quadro da Fenomenologia Transcendental (I), em seguida se passar a crtica de Sartre
ao Ego transcendental em A transcendncia do Ego e ao confronto com a posio
defendida pela fenomenologia transcendental de Husserl (II) e, por ltimo, seranalisado em que medida os desdobramentos desta crtica exigem uma abordagem
onto-fenomenolgica da conscincia em Sartre (III).
I. A obra de Husserl geralmente dividida em quatro fases: a fase psicologista
expressa em Sobre o Conceito de Nmero (1887) e Filosofia da Aritmtica (1891), a
fase inaugural da Fenomenologia ainda como psicologia descritiva das Investigaes
Lgicas (1900-01), a fase da Fenomenologia Transcendental iniciada em Idias I(1913)
e exemplificada de forma definitiva nas Meditaes Cartesianas (1930) e, por ltimo, a
fase tardia do tema do mundo da vida em A Crise das Cincias Europias e a
Fenomenologia Transcendental(1936). O tema desta pesquisa tem como foco principal
a fase da chamada Fenomenologia Transcendental.
Nas Meditaes Cartesianas, Husserl acentua a proximidade da Fenomenologia
com Descartes, conforme havia anunciado nas Conferncias de Paris (1929). A
Fenomenologia transforma-se num tipo novo de filosofia transcendental pelo retorno
radical ao ego cogito puro (HUSSERL: 2001, p. 9;15). Atravs da epochfenomenolgica, a operao metdica que coloca entre parntesis a tese do mundo
objetivo, a fenomenologia pe em suspenso a verdade dos dados da cincia (3) e a
existncia do mundo, fundada na experincia natural (7), fica em suspenso tambm a
existncia de outros Eu e desaparecem todas as formas sociais e culturais. Mas, se
para Descartes era necessrio uma prova da existncia do mundo, para Husserl, ao
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contrrio, o Eu transcendental revelado pela reduo (epoch) do eu natural, quer
dizer, do eu psquico e psicofsico, conserva a experincia do mundo enquanto
correlato da conscincia transcendental.
O Ego transcendental , portanto, o principal resultado da operao de reduotranscendental e conseqentemente, segundo o prprio Husserl afirma, aquilo que
conduz a Fenomenologia ao Idealismo Transcendental (41). Paralelamente, este
idealismo a explicitao do ego cogito como sujeito de conhecimentos possveis. A
forma definitiva como Husserl apresenta a Filosofia nas Meditaes Cartesianas como
Filosofia Fenomenolgica Transcendental e o estilo de interpretao como Idealismo
Fenomenolgico Transcendental (Ibid., p. 111-112).
II.A transcendncia do Ego tem origem entre os anos de 1933-34 quando Sartre
estuda em Berlim o mtodo da fenomenologia. Nela Sartre expressa uma posio
contrria a interpretao da fenomenologia como Idealismo Transcendental, seu tema
privilegiado consiste, justamente, na rejeio Eu transcendental como estrutura ltima
da conscincia. No texto, que aparece pela primeira vez em 1936, nas Recherches
Philosophiques, IV, p. 85-123, a inteno de Sartre colocada j de incio: insurgir-se
contra a concepo segundo a qual o Ego um "habitante" da conscincia, quer como
uma presena formal (um princpio vazio de unificao) ou ainda como presena
material (como centro dos desejos e atos) (SARTRE: 1994a, p. 43). O intuito de Sartre
mostrar que o campo da conscincia transcendental no admite uma estrutura
egolgica, pelo contrrio, este rigorosamente impessoal.
No quadro da Filosofia Transcendental, O Eu transcendental pressuposto como
princpio de unificao e individualizao da conscincia. Diria-se que o Eu
transcendental necessrio haja vista uma exigncia de unidade e individualidade da
conscincia, de modo que possa sempre consider-la como "minha" e assim diferenci-la da conscincia de outrem. Mais ainda, este deve ser suposto como unificando todas
as minhas representaes, do que se possa sempre dizer como proveniente de um
Eu.
Assim tambm, para a Fenomenologia, o Eu transcendental liberado pela
epoch uma espcie de princpio unificador da conscincia e de constituio e
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significao do mundo. Mas ser mesmo necessrio pressupor uma tal estrutura como
unificando as representaes entre si, ou antes, no seria ele mesmo tornado possvel
pela unidade sinttica das representaes (Ibid., p. 45)? Ora, para um autor como
Kant perfeitamente compreensvel que ao falar do Eu Penso se trate, com efeito, deum pressuposto formal que a condio de possibilidade e a unidade necessria da
experincia (Ibid., p. 44), mas Husserl, que necessidade tem de pressupor o Eu
transcendental como estrutura ltima da conscincia?
Se o Eu transcendental pressuposto como princpio de unidade e
individualidade da conscincia, ento certo que a Fenomenologia no precisa recorrer
a ele. Com efeito, se para a Fenomenologia a conscincia define-se pela
intencionalidade (toda conscincia conscincia de qualquer coisa), isso significa ques pode haver conscincia enquanto conscincia de um objeto distinto dela mesma e
que, portanto, a conscincia unifica-se pelo prprio ato transcendente pelo qual
apreende o seu objeto. Pela intencionalidade a conscincia j conscincia de si, mas
no para si seu objeto. Assim, ter conscincia de qualquer coisa estar diante de
uma presena concreta que no a conscincia e, se o movimento vem sempre da
conscincia, seu sentido lhe advm sempre de fora, da coisa. Deste modo, a
transcendncia aparece como a marca distintiva da conscincia, ela unifica-se,
escapando-se. No o Eu transcendental que unifica a conscincia, mas antes a
conscincia que torna possvel a unidade e a personalidade do Eu. No h qualquer
motivo para pressupor um Eu transcendental como estrutura ltima da conscincia. A
concepo fenomenolgica da conscincia torna intil o papel unificante e
individualizante do Eu.
Introduzir um Eu na conscincia, ainda que formal, torn-la pesada e opaca.
Alm disso, em se admitindo algo como um "Eu" transcendental maneira de um
objeto, estaramos pondo em risco a prpria noo de intencionalidade. Desta maneira,Husserl estaria comprometendo sua tese ao reintroduzir na conscincia a
substancialidade de um Eu.
Para Sartre o Eu um objeto transcendente que s aparece ao nvel da reflexo.
A conscincia se unifica no prprio ato transcendente pelo qual conscincia do seu
objeto, portanto esta conscincia irrefletida deve ser considerada autnoma, pois no
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tem necessidade de ser refletida para existir.
Contudo, aqui Sartre se v frente a uma objeo. Suprimir da conscincia
transcendental o Eu fazer da reflexo um ato contingente e tornar inexplicvel o
movimento da conscincia para a reflexo. Neste caso, o Eu transcendental no seriasuposto apenas como uma espcie de princpio unificador da conscincia e de
constituio e significao do mundo. O Eu seria tambm a forma do movimento
reflexivo pelo qual algo meramente vivido pode, por uma necessidade derivada da
essncia da conscincia, ser recuperado reflexivamente. Segundo esta concepo o Eu
seria oprincpio teleolgico pelo qual a conscincia tende para uma plena conscincia
de si.
III. Contudo, para Sartre a "conscincia de si" no pressupe um "conhecimento
de si". O problema se d se confundirmos de sada, como Husserl, conscincia e
conhecimento. A conscincia de si no se pode reduzir ao conhecimento de si(este
aspecto largamente explorado na conferncia Conscincia de si e Conhecimento de
side 1947 o texto figura na seqncia da verso portuguesa deA transcendncia do
Ego). O problema do conhecimento dever, pois, ser esclarecido tendo em vista
condies de possibilidade que lhe so imediatamente anteriores. Que toda a virada
transcendental da fenomenologia de Husserl tem por base a exigncia de rigor, de
cincia positiva, isto se pode verificar no fato desta operar segundo os princpios de
uma teoria do conhecimento. A todo o ser se reduz ao ser conhecido e a
Fenomenologia nega-se logo de incio pensar o ser da apario. Husserl afirma que
para a Filosofia e a Fenomenologia, porquanto se ocupem da correlao entre ser e
conscincia, o ser uma idia prtica, isto , a noo de ser designa o conjunto da
multiplicidade de suas manifestaes, cuja descrio de sua unidade ideal aponta para
a idia de um trabalho infinito de determinao terica (HUSSERL: 2001, p. 114).Compreende-se em que medida a explicitao do campo transcendental da conscincia
por uma fenomenologia reflexiva possa significar um regresso ao infinito.
Contra a idia de uma filosofia da conscincia em que o sujeito constitui o mundo
enquanto correlato noemtico da descrio da conscincia transcendental, Sartre se
mantm no nvel radical da abertura pr-reflexiva que torna possvel todo
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desvelamento singular. Aceitar a tese segundo a qual a conscincia no possui uma
estrutura egolgica significa purificar o campo da conscincia transcendental,
conseqentemente isto implica uma radicalizao projeto fenomenolgico e da prpria
Filosofia Transcendental. A ruptura com a tendncia gnosiolgica da FenomenologiaTranscendental permite pr o problema do ser da conscincia, permite a Sartre fundar
uma Ontologia Fenomenolgica. Esta ser a descrio daquilo que a condio de
possibilidade da autoconscincia e de qualquer conhecimento em geral: o campo
transcendental purificado da conscincia impessoal.
O pressuposto deste trabalho ser, portanto, que a crtica de Sartre ao Ego
transcendental na fenomenologia de Husserl apresenta um teor ontolgico e exige oque se pode chamar uma abordagem onto-fenomenolgica da conscincia. O fio
condutor destas anlises centra-se na noo de intencionalidade da conscincia,
tomada como o princpio fundamental de toda conscincia.
A linha interpretativa deste trabalho segue uma orientao prpria, opta neste
sentido por utilizar exclusivamente os textos dos autores em questo, servindo-se de
bibliografia de apoio apenas na medida do necessrio.
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1 O EGOTRANSCENDENTAL
1.1 A fenomenologia de Husserl
Apesar do nome de Husserl ser conhecido como o fundador da Fenomenologia,um mtodo e um movimento filosfico de grande influncia, o percurso do seu
pensamento nem sempre esteve ligado a esta corrente. Pelo contrrio, nos seus
primeiros trabalhos1, ligados ao problema da fundamentao da matemtica, Husserl
pretende oferecer uma explicao do conceito de nmero recorrendo ao mtodo da
Psicologia. Nestas obras o autor utiliza uma forma de psicologismo contra o qual vir
posteriormente a reagir, servindo-se ento do instrumental fornecido pela
fenomenologia.
A carreira intelectual de Husserl se inicia portando no com a filosofia, mas com
a matemtica e o problema da sua fundamentao. Isto e a influncia da psicologia
emprica de Franz Brentano, cujas aulas freqentou em Viena, o levam
progressivamente a se aproximar do campo filosfico. A expresso desta virada no
pensamento de Husserl se encontra nas Investigaes Lgicas (1900/01)
As Investigaes Lgicas est dividida em duas grandes partes, a primeira (tomo
I) trata dos Prolegomenos a uma lgica pura, enquanto a segunda (tomo II) se refere s
Investigaes para a fenomenologia e a teoria do conhecimento. Pela diviso da obra eo contedo dos subttulos possvel ter uma idia da dimenso do projeto husserliano.
Trata-se do que o autor ir considerar posteriormente o esboo de uma cincia pura
1 So eles Sobre o conceito de nmero (1887) e Filosofia da Aritmtica (1891). Contra este ltimotrabalho Frege, tambm crtico do psicologismo, escreveu uma crtica apontando a confuso entre nvelsubjetivo e nvel objetivo resultante da utilizao do mtodo psicolgico.
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dos fundamentos do conhecimento, no apenas da filosofia, mas das cincias em geral.
A introduo das Investigaes exemplifica de maneira clara os problemas com
os quais Husserl se confronta desde a Filosofia da Aritmtica de 1891, convergindo
para o problema do fundamento da cincia, sua verdade e unidade. Contudo, diferenteda posio adotada na obra anterior, onde se pretende uma reduo do conceito de
nmero ao resultado de operaes subjetivas de ordem psquica explicveis pela
psicologia, trata-se aqui justamente da crtica desta forma de psicologismo. Para
Husserl trata-se primeiro de uma limpeza do terreno da lgica para em seguida passar
aos seus fundamentos tericos, pois disto depender a possibilidade da teoria do
conhecimento e conseqentemente da prpria objetividade do conhecimento. Assim,
logo de incio Husserl nos deixa confrontados com duas possibilidades:
Na verdade, no existem seno duas posies. A lgica uma disciplinaterica, independente da psicologia e ao mesmo tempo formal e demonstrativa,esta, a primeira tese. A outra a trata como uma tecnologia dependente dapsicologia [...] (HUSSERL, 1976, p. 38).
Estas duas alternativas convertem-se por um lado na contraposio entre uma
disciplina apriorstica e demonstrativa e uma disciplina emprica e indutiva.
O esforo de Husserl no incio das Investigaes mostrar a imperfeio
terica das cincias particulares, seu carter fundado e, portanto, sua incapacidade de
perguntar pelos seus prprios princpios. Diz-nos o autor que precisamente o
matemtico, o fsico, o astrnomo, no necessitam recorrer aos fundamentos ltimos de
sua atividade para levar a bom termo seus trabalhos cientficos, contudo, ficam assim
impossibilitados de provar estes mesmos pressupostos sobre os quais repousa a
validade de suas concluses. Este trabalho cabe a filosofia, e a fenomenologia mais
especificamente, como mtodo capaz de fazer a crtica ao psicologismo e fundar um
campo puro de fenmenos.
1.1.1 A crtica ao psicologismo
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O psicologismo no em primeiro lugar uma escola ou uma doutrina no sentido
usual do termo. Trata-se antes de uma tendncia corrente na poca de Husserl que
consiste na posio geral segundo a qual toda atividade do pensamento se reduz, em
ltima anlise, atividade psquica. Para Husserl, mais especificamente, trata-se decombater uma variante do psicologismo que afirma que a lgica, assim como a teoria
do conhecimento, so disciplinas subordinadas ao mtodo da psicologia. Contudo,
segundo o autor, a posio psicologista no consegue por sua vez dar conta desta
tarefa sem cair em contradio.
Husserl pretende mostrar que o psicologismo se mostra insuficiente nos seus
pressupostos metodolgicos quanto pretende se apresentar como fundamento da
lgica e da teoria do conhecimento, e que estas contradies, se levadas s ltimasconseqncias, implicam num ceticismo radical.
Assim, num primeiro momento, o trabalho da fenomenologia se concentrar na
tarefa de contestar a idia de reduo dos fenmenos a uma pura realidade espcio-
temporal. Aceitando que a noo de intencionalidade a caracterstica fundamental de
toda conscincia, a conscincia se caracterizar por ser sempre conscincia de alguma
coisa. Portanto, o objeto intencional visado por esta conscincia comporta um elemento
idealque no pode ser reduzido a um momento realda conscincia, objeto do mtodo
experimental da psicologia. Tal como se passam com os fenmenos da conscincia,
Husserl contesta da mesma forma que o mtodo experimental possa garantir a validade
objetiva das cincias em geral.
A crtica ao psicologismo nas Investigaes se desenvolve primeiro na (I)
contraposio entre a impreciso das leis empricas representado pela psicologia
experimental e a clareza e necessidade das leis lgicas, em seguida a (II) dependncia
das leis empricas de uma matria de fato confrontada com a independncia e
autonomia das leis lgicas que aparecem como anteriores a qualquer matria de fato e,por ltimo, mostra-se (III) o cartera priorie necessrio de toda lei lgica em oposio
ao cartera posteriorie contingente de toda lei experimental da psicologia2. Com isto
Husserl pretende mostrar a fragilidade de qualquer mtodo fundado em leis de carter
meramente psicolgico comparando-se solidez de um mtodo fundado sobre as leis a
2 Cf. Captulo 3 e Captulo 4 dos Prolegomenos a lgica pura das Investigaes Lgicas.
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priorida lgica.
Finalmente, a crtica de Husserl ao psicologismo mostra que a defesa
intransigente deste tipo de posio leva progressivamente ao reducionismo, ao
relativismo e, por ltimo, ao ceticismo, invalidando desta forma qualquer pretenso devalidade de uma cincia fundada neste mtodo. Reducionismo porque consiste em uma
reduo das leis essenciais do pensamento a operaes psquicas. Relativismo porque
isto por sua vez significa uma relativizao dos princpios do pensamento a um fato
psicolgico isolado. E, finalmente, esta postura implica no ceticismo porque impossibilita
desta forma emitir qualquer juzo universalmente vlido, uma vez que no h critrio
para decidir o que verdadeiro. O psicologismo fica ento impossibilitado de produzir
conhecimento vlido do seu objeto
3
.
1.1.2 A intuio das essncias
Partindo da idia da lgica pura como teoria do conhecimento, Husserl elabora
sua crtica das limitaes do mtodo das cincias naturais e da tendncia psicologista
na lgica, delineando com isto os contornos do campo da fenomenologia. Com efeito,
no se tratam mais de fenmenos no sentido das cincias empricas, da posio de um
objeto existente no mundo exterior, mas dos fenmenos tal como se do para a
conscincia. Contudo, se o objeto j no mais uma natureza em si, mas o correlato
desta natureza objetiva, ento, qu se pode captar e determinar com validade objetiva?
Husserl responde da seguinte forma:
[...] se os fenmenos no so natureza, tem sem embargo uma essnciacaptvel, e adequadamente captvel, na contemplao imediata todos osenunciados que descrevem os fenmenos por meio de conceitos direitos, ofazem, quando so vlidos, mediante conceitos de essncias, ou seja, pormeio de significados conceituais de palavras que podem se fazer efetivas naintuio de essncia (HUSSERL, 1992, p. 47).
Ainda que se tenha abstrado do fenmeno sua existncia objetiva ele conserva
3 Limitamo-nos aqui a uma exposio resumida da crtica de Husserl ao psicologismo.
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para a conscincia a sua essncia, possvel de ser captada pela conscincia atravs do
que Husserl chama intuio de essncia. No se trata aqui de uma experincia de
percepo ou recordao, nem de uma generalizao emprica na qual se postula a
existncia de um objeto por meio de dados da experincia. O conhecimento deessncia, diz Husserl, no um conhecimento de matter of fact, pois no diz nada
sobre a existncia individual do objeto. Neste caso, como se fosse necessrio se
valer do que o autor se refere como um ver fenomenolgico:
Porm tudo isso depende de que compreendamos que assim como ouvimosimediatamente um som tambm vemos uma essncia, a essncia som, aessncia fenmeno da coisa, a essncia coisa visvel, a essnciarepresentao imagem, a essncia juzo, vontade, e que contemplando-la
podemos abrir juzo sobre a essncia (Ibid., p. 53).
Porquanto fizssemos a experincia de nos abstrair da posio existencial da
natureza, poderamos ento afirmar com Husserl que [...] a fenomenologia pura
considerada como cincia no pode sermais que uma investigao de essncia e de
nenhum modo uma investigao de existncia (Ibid., p 53-54).
1.1.3 O Eu na fenomenologia de Husserl
No Captulo 1 da Quinta Investigao, referente s vivncias intencionais e seus
contedos, intitulada A conscincia como unidade fenomenolgica do eu e a
conscincia como percepo interna, Husserl discute trs conceitos de conscincia: a
conscincia como a total unidade fenomenolgica real do eu emprico como
entrelaamento das vivncias na unidade de seu curso , a conscincia comopercepo interna das vivncias psquicas prprias e a conscincia como nome
coletivo para toda classe de atos psquicos ou vivncias intencionais (HUSSERL,
1976, p. 475). Para a fenomenologia trata-se de evitar uma srie de enganos
decorrentes da multiplicidade do termo conscincia, principalmente tendo em vista a
sua proximidade com a psicologia e a distino entre fenmenos fsicos e fenmenos
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psquicos.
O problema da fenomenologia justamente que a investigao acerca da
essncia fenomenolgica dos atos desta ordem, guarda uma estreita relao com as
pretenses de delimitar o terreno prprio da psicologia. A psicologia, com efeito,entende por vivncias e contedos, acontecimentos reais que constituem a unidade
realda conscincia do indivduo. Contudo, Husserl assinala a necessidade de distinguir
o contedo consciente na percepo e o objeto exterior percebido nela. No se trata
portanto de um mero ponto de vista, como se fosse possvel considerar ora o
fenmeno na sua conexo subjetiva com a conscincia, ora na sua conexo objetiva
com as coisas mesmas. Husserl insiste sempre na necessidade de manter presente
esta distino, pois no se poder nunca assinalar com bastante rigor o equvoco quepermite chamarfenmeno, no s vivncia em que se constitui o aparecer do objeto
[...], seno tambm ao objeto aparecente como tal (Ibid., p. 478). Esta , contudo, uma
atitude natural se nos considerarmos unicamente como membros do mundo
fenomnico, onde nos encontramos em meio s coisas em geral.
Parece claro que ns aparecemos a ns mesmos como membros do mundo
fenomnico e tambm as coisas fsicas e psquicas (corpos e pessoas) aparecem em
referncia ao nosso eu fenomnico, mas preciso notar que:
Esta referncia do objeto fenomnico (que se pode chamar tambm contedode conscincia) ao sujeito fenomnico, ao eu, como pessoa emprica, comocoisa, , naturalmente, distinta da referncia do contedo de conscincia, emnosso sentido de vivncia, conscincia no sentido da unidade dos contedosde conscincia (ou da conscincia fenomenolgica do eu emprico). Ali se tratada relao entre duas coisas aparentes; aqui da relao de uma vivncia soltacom a compleio das vivncias (Ibid., p. 478).
A conscincia fenomenolgica diferencia-se assim da conscincia do eu
emprico. O que habitualmente se chama de vivido (os objetos aparentes e processosexternos enquanto fenmenos objetivos) no pode ser identificado com a conscincia
fenomenolgica que os vive, que no possui em si estes processos como seus
componentes e contedos reais.
Para Husserl o eu no seu sentido habitual um objeto emprico, como qualquer
coisa fsica sujeito interveno cientfica e, portanto, [...] como todos os objetos desta
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ndole, no tm fenomenologicamente outra unidade que a que lhe dada pelas
qualidades fenomnicas reunidas e se funda no contedo prprio destas (Ibid., p. 480).
Ou seja, ele no possui outra unidade seno aquela que lhe dada pela prpria
conscincia. Alm disso, se separarmos o eu do seu contedo emprico descobrimosque a ele no corresponde nenhum contedo de conscincia.
Se distinguimos o corpo do eu e o eu emprico, e restringimos o eu psquicopuro a seu contedo fenomenolgico, o eu puro fica reduzido a unidade daconscincia, ou seja, a compleio real das vivncias, compleio que ns (isto, cada um para o seu eu) encontramos, em parte, como existente comevidncia em ns mesmos e admitimos com fundamento, pela outra partecomplementar. O eu, fenomenologicamente reduzido, no , por isso, nada
peculiar que flutue sobre as mltiplas vivncias; simplesmente idntico aunidade sinttica prpria destas4(Ibid., p. 480).
Os contedos prprios da conscincia tm sua maneira peculiar de se unirem e
se fundirem em unidades e assim constituem o eu fenomenolgico ou a unidade da
conscincia, sem a necessidade de pr a par disso um princpio prprio como o eu,
[...] sujeito de todos os contedos e unificador de todos eles uma vez mais (Ibid., p.
480-481). Para a fenomenologia das Investigaes, seria incompreensvel a funo de
tal princpio.
Contudo, resta ainda analisar o eu puro, o eu da apercepo pura, que paramuitos representa o ponto unitrio de referncia ao qual se refere todo contedo da
conscincia. Aqui, o posicionamento de Husserl contrasta com a defendida por Natorp.
Para este a conscincia referncia ao eu, sendo contedo, tudo aquilo que est
referido na conscincia a um eu e justamente esta referncia que constitui o comum
e especfico da conscincia enquanto tal. Este eu um centro subjetivo de
refernciaembora, segundo Natorp, no possamos descrev-lo nem a sua referncia,
pois [...] toda representao que nos fizermos do eu converteria este em um objeto
(NATORP apud HUSSERL, 1976, p. 484-485).
No entanto, como o prprio Husserl faz notar, como Natorp pretende fixar o que
ele chama de fato bsico da psicologia sem o pensarmos e sem assim convert-lo
num objeto? Com efeito, tal como as investigaes sobre o eu emprico mostram que a
ele no corresponde nenhum contedo real da conscincia, para Husserl a concepo
4 Grifo nosso.
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fenomenolgica do eu no deixa lugar ao eu puro da percepo interna:
Agora bem, devo confessar que no logro encontrar de nenhuma maneira esseeu primitivo, centro necessrio de referncia. O nico que sou capaz de notar
ou de perceber o eu emprico e sua referncia emprica quelas vivnciasprprias ou a aqueles objetos externos, que no momento dado se tornarampara ele justamente objetos de ateno especial, ficando fora e dentromuitas outras coisas que carecem desta referncia ao eu (Husserl, 1976, p.485).
Portanto, o eu puro enquanto centro necessrio de referncia carece,
justamente, de uma referncia, uma vez que a ele no corresponde nenhum objeto
como no caso do eu emprico.
Por outro lado, a anlise fenomenolgica do eu emprico mostra que no
possvel compreender a referncia do eu aos seus objetos seno como pertencente
conscincia total daquelas vivncias intencionais cujo objeto o corpo do eu, o eu
como pessoa espiritual e o sujeito eu emprico inteiro (eu, homem). E se por
contedo se entende qualquer objeto ao qual se dirija a conscincia em forma de
percepo, imaginao, representao e assim por diante, ento compreende-se que
[...] a autoapercepo do eu emprico uma experincia de todos os dias, que no
oferece dificuldades de compreenso. O eu percebido do mesmo modo que qualquer
coisa externa5
(Ibid., p 486).Contudo, esta concepo do eu sofrer uma mudana radical a partir do
momento em que Husserl encaminha a fenomenologia na direo de uma filosofia
transcendental. Numa nota a segunda edio das Investigaes em 1913, Husserl
ressalta que j no aprova o que havia anteriormente dito com relao ao eu puro:
Nota segunda edio fazemos notar expressamente que a posio aquidefendida na questo do eu puro posio que j no aprovo, como fica dito resulta de pouca ou nenhuma importncia para as investigaes deste tomo.
Por mais importante que esta questo seja, inclusive como questofenomenolgica pura, h esferas sumamente amplas de problemasfenomenolgicos que concernem com certa generalidade ao contedo real dasvivncias intencionais e a sua referncia essencial aos objetos intencionais; eessas esferas podem ser submetidas a uma investigao sistemtica, semnecessidade de tomar em geral posio frente a questo do eu. As presentesinvestigaes se referem exclusivamente a estas esferas (Ibid., p. 486-487).
5 Grifo nosso.
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Podemos comprovar aqui que nas Investigaes Husserl se preocupa com uma
esfera de problemas bem mais amplos, ainda no campo prximo de uma psicologia
descritiva, posteriormente a fenomenologia passou a tratar do campo restrito da
conscincia transcendental. Neste processo a concepo de eu puro, atravs desucessivas redues fenomenolgicas, revela-se o campo puro da fenomenologia
transcendental e o princpio de constituio de todo sentido.
1.2 A Fenomenologia Transcendental
1.2.1 O desenvolvimento da concepo de fenomenologia em Husserl
A obra de Husserl geralmente dividida em quatro fases: a fase psicologista
expressa em Sobre o Conceito de Nmero (1887) e Filosofia da Aritmtica (1891), a
fase inaugural da Fenomenologia ainda como psicologia descritiva das Investigaes
Lgicas (1900-01), a fase da Fenomenologia Transcendental iniciada em Idias I(1913)
e exemplificada de forma definitiva nas Meditaes Cartesianas (1930) e, por ltimo, a
fase tardia do tema do mundo da vida em A Crise das Cincias Europias e a
Fenomenologia Transcendental(1936).
O tema da presente dissertao tem como foco principal a fase da chamada
Fenomenologia Transcendental. Abordaremos mais especificamente o tratamento dado
por Husserl a noo de Ego transcendental. Tentaremos mostrar que o Ego aparece
simultaneamente como o princpio fundamental e o grande resultado da virada
transcendental da fenomenologia que a encaminha finalmente para um IdealismoTranscendental. Para compreendermos a concepo de Ego transcendental em
Husserl necessrio acompanhar a prpria evoluo interna do seu pensamento.
Veremos que este tema est intimamente ligado as necessidades e as exigncias de
uma cincia pura transcendental, requerida da fenomenologia pelo seu criador.
Desde a publicao das Investigaes Lgicas (1900/01), o programa da
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fenomenologia sofreu alteraes drsticas. Levado cada vez mais pela exigncia de
rigor e a necessidade de fundar um campo que escapasse a, ainda, psicologia
descritiva das Investigaes, Husserl se empenha em fazer da fenomenologia a cincia
pura dos princpios, a nica a alcanar o domnio transcendental. Em 1907, emtrabalhos como A fenomenologia como cincia de rigore A idia da fenomenologia, a
fenomenologia j apresentada como fenomenologia transcendental6, e, finalmente,
em 1913 Husserl publica o primeiro volume das Idias para uma Fenomenologia Pura e
uma Filosofia Fenomenolgica. O ttulo da obra j informa que a fenomenologia pura
possui no apenas uma posio singular com relao as cincias mas deve se firmar
tambm como a cincia fundamental da filosofia. Com efeito, na introduo Husserl
fala da necessidade de evitar certas interpretaes errneas que desde asInvestigaes Lgicas vem a fenomenologia como preldio da psicologia emprica,
cuja esfera de descries imanentes abarca vivncias psquicas que se mantm
rigorosamente dentro do marco da experincia interna (HUSSERL, 1986, p. 7). Assim,
um dos esforos de Husserl nas Idias ser justamente mostrar que a fenomenologia
pura no psicologia.
O primeiro livro das Idias (o nico publicado por Husserl em vida) ocupa-se da
tarefa de preparar a entrada neste novo mundo que a Fenomenologia
Transcendental. O ponto de partida ser a posio natural, na qual nos encontramos
com a crena na existncia do mundo, como a conscincia se d na experincia
psicolgica, para mostrar os erros fundamentais desta posio. Em seguida Husserl
desenvolve o mtodo de redues fenomenolgicas, pelo qual pretende superar os
limites impostos ao conhecimento pela essncia de toda forma de investigao natural,
ao evitar que se dirija o olhar unicamente na direo dos fenmenos da posio natural
para assim ganhar o livre horizonte dos fenmenos purificados transcendentalmente,
e com ele o campo da fenomenologia no sentido que nos peculiar (Ibid., p. 9). Anovidade contida nas Idias portanto o recurso a reduo fenomenolgica. Atravs
dela que Husserl espera poder alcanar o verdadeiro campo transcendental e liberar
6A Idia da Fenomenologia, introduo de um texto de Husserl de 1907, apresenta pela primeira vez deforma temtica a idia de reduo fenomenolgica. Cf. BIEMEL, W. Las fases decisivas em el desarrollode la filosofa de Husserl. In: Husserl. Tercer coloquio filosfico de Royaumont. Buenos Aires: Paidos,1968, p.48.
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a fenomenologia do terreno da psicologia descritiva.
A nova fenomenologia transcendental se caracterizar no como uma cincia de
fatos, mas como uma cincia de essncias, eidtica. A epoch ou reduo
fenomenolgica consiste na abstrao de todo sentido dos fenmenos do mundo real,do eu emprico e seu mundo circundante, para ascender s camadas superiores da
experincia pura transcendental, onde resta o eu puro como resduo. Este aspecto
aparece em relevo nas Meditaes Cartesianas, onde o Ego transcendental liberado
pela reduo aparece como o princpio de constituio de todo sentido.
As Meditaes Cartesianas, Introduo a Fenomenologia, trabalho de
maturidade (final dos anos 20), considerada por Husserl sua obra definitiva, a qual
prolongou, reelaborou, mas no chegou a levar a cabo por completo. Composta decinco meditaes, s foi publicada, na integra, postumamente nas Husserliana, embora
a verso francesa, traduzida por Pfeiffer e Lvinas, j fosse conhecida antes da
publicao da original.
Nas Meditaes, vemos acentuada a proximidade da Fenomenologia
Transcendental com Descartes e Leibniz, conforme Husserl havia anunciado nas
Conferncias de Paris (1929). Na introduo da obra, Husserl pergunta-se mesmo se a
grande contribuio para a contemporaneidade no estar em reviver, ainda que no
esprito, o pensamento cartesiano das Meditaes Metafsicas. Pelo estudo das
Meditaes, Husserl o diz, a Fenomenologia transforma-se num tipo novo de filosofia
transcendental pelo retorno radical ao ego cogito puro (Husserl: 2001, p. 9;15).
Husserl apresenta as meditaes de Descartes como prottipo do retorno do filosofo
sobre si mesmo de modo que, os novos impulsos recebidos pela fenomenologia, a
transformam num tipo novo de filosofia transcendental que, segundo o autor, quase
poderamos chamar de neo-cartesianismo , onde Descartes surge como sendo o pai
primitivo da fenomenologia.Simultaneamente, as Meditaes Cartesianas visam mostrar que o Eu puro da
Fenomenologia transcendental, embora constitua todo o horizonte de sentido do
mundo, nem por isso se torna solipsista. Pelo contrrio o grande esforo de Husserl na
Quinta Meditao (que ocupa quase metade da obra) ser mostrar como constituo no
meu Ego transcendental reduzido a experincia do outro, ou seja, como se forma uma
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comunidade de mnadas, uma intersubjetividade mondica.
Paralelamente, a contribuio das Meditaes no conjunto da obra de Husserl se
insere no sentido de acentuar a proximidade da Fenomenologia Transcendental com o
Idealismo conforme indicava as Idias (1913) confirmando-se definitivamente, comoo prprio autor afirma, como um Idealismo Transcendental.
1.2.2 A concepo de Eu na fenomenologia transcendental
Embora as Meditaes Cartesianas de Husserl tenham inspirao nasMeditaes de Descartes, no retorno evidncia primeira do cogito, a concepo
fenomenolgica do Eu difere substancialmente da verso cartesiana. Husserl critica
Descartes sobretudo por no ter sido mais radical no caminho aberto pelo Eu Penso e,
em conseqncia disto, ter sofrido a influncia externa de pressuposto herdados de
uma certa concepo matemtica dos princpios da filosofia e os fundamentos de uma
cincia pura.
As Meditaes de Descartes visam uma reforma da filosofia, para fund-la como
uma cincia absoluta, o que significa para Descartes uma reforma de todas as cincias,
j que para este elas no passam de ramificaes de uma nica cincia universal que
a filosofia. Por isso necessrio filosofia, enquanto unidade universal das cincias,
estar assentada sobre um princpio de carter indubitvel. A forma e o carter deste
primeiro axioma buscado pelo filsofo se realizam, em Descartes, como sabemos,
baseado numa filosofia orientada para ao sujeito. Tomado do esprito de que este
assunto algopessoaldo filsofo, a tarefa consistir na destruio de tudo aquilo que
se acreditava como certo, todas as cincias at a admitidas como verdadeiras e tentarreconstru-las sobre bases slidas, onde ele deve poder justificar cada etapa, desde a
sua origem, apoiando-se em intuies absolutas.
A aplicao desta crtica metdica certeza da experincia sensvel, mostra que
o mundo organizado como dado emprico no resiste crtica. Tudo aquilo que faz
referncia a existncia deve portanto ser posto em suspenso logo de incio. Enquanto
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realidade absoluta e indubitvel, o sujeito que medita retm apenas a si mesmo
enquanto ego puro das suas cogitationes, como existindo indubitavelmente e no
podendo ser suprimido mesmo que este mundo no exista (Ibid., p. 12). O eu assim
reduzido alcana o seu carter apodtico e encontra nessa interioridade pura aexterioridade objetiva.
Para Husserl, tal como nas meditaes cartesianas, tudo isto se faz num retorno
ao eu do filsofo, mas, como veremos, num sentido bem mais radical do que aquele
proposto por Descartes.
1.2.3 O caminho para o Ego transcendental
O retorno ao ego cogito que, segundo Husserl, nos leva a subjetividade
transcendental, segue em paralelo as meditaes desencadeadas pela dvida
metdica do francs. Isto significa em primeiro lugar que ficam em suspenso a verdade
dos dados da cincia e a existncia do mundo, fundada na experincia natural, pois
este mundo nada mais do que um fenmeno com pretenso de existncia. Assim
como em Descartes no temos de incio nem uma cincia vlida nem um mundo
existente. Com isto fica em suspenso tambm a existncia de outros Eu que fazem
parte do mundo envolvente e com eles desaparecem tambm todas as formas sociais
e culturais. Em suma, no s a natureza corporal, mas tambm o conjunto do mundo
concreto que me rodeia j no para mim, de ora em diante, um mundo existente, mas
apenas fenmeno de existncia (Ibid., p. 31).
Acontece que este fenmeno, independente do que resulte da sua pretenso de
existncia, no se tornou por isso um puro nada. Permanece a possibilidade de dizeralgo verdadeiro a respeito dele, ou seja, nada afirmado contra a validade do
fenmeno. Ainda que me abstenha da crena na existncia de um mundo emprico, ele
permanece a para mim presente no campo da percepo. Por isso a qualquer
momento possvel, na reflexo, voltar-se a ateno sobre esta vida espontnea e
alcanar este fenmeno com sua validade concreta tal como se se trata-se de um
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existente do mundo emprico. E isto, segundo Husserl, fao-o enquanto eu filosfico
que pratica a absteno.
Este o resultado da epoch fenomenolgica, a operao metdica que
coloca entre parntesis a tese do mundo objetivo, o mtodo pelo qual me capto comoeu puro, no qual o mundo o que existe e vale para minha conscincia num tal cogito
(Ibid., p. 33). Assim como ocorre com a dvida metdica de Descartes, atravs da
epoch o mundo, e todo conjunto de fenmenos que ele designa, existe e tem
validadepara mim pelo fato de que dele tenho experincia num tal cogito. Nada do que
possa viver, experimentar, pensar, em resumo todo juzo que pressuponha o mundo, s
pode encontrar em mim o seu sentido e sua validade. Ao efetuar a absteno sobre
qualquer juzo que pressupe a crena na existncia do mundo, encontro-meunicamente como um ego puro com a corrente das minhas cogitationes.
Por conseqncia, de fato, a existncia natural do mundo do mundo acercado qual eu posso falar pressupe, como uma existncia em si anterior, a doego puro e das suas cogitationes. O domnio da existncia natural tem apenasuma autoridade de segunda ordem e pressupe sempre o domniotranscendental (Ibid., p. 34).
Acompanhando a reflexo de Descartes nas Meditaes, e pelo recurso a
epoch, Husserl alcana o carter indubitvel do cogito como eu puro. Contudo,precisamente neste ponto Husserl nos adverte que devemos evitar a tendncia para
encarar o ego cogito como um axioma apodtico a partir do qual se poderiam deduzir
todos os demais axiomas fundamentais sobre os quais se fundariam os princpios de
uma cincia explicativa do mundo, maneira das cincias matemticas. Esta
concepo acaba levando Descartes a interpretar o eu como uma qualquer coisa que
pensa, uma substncia finita que por sua vez requer a existncia de uma substancia
infinita, pela qual continuamente recriada. Descartes deduz em primeiro lugar aexistncia e veracidade de Deus, e dele a garantia da natureza objetiva, a dualidade
das substancias finitas, o terreno objetivo da metafsica e das cincias positivas (Ibid.,
p. 11-12). Contudo, para a fenomenologia o que esta em vista no uma prova da
existncia de Deus, mas a delimitao de uma esfera transcendental pura na qual se
trata de recriar o modo como o mundo aparece na minha prpria experincia que a
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determinao daquilo que o mundo (em geral) para mim.
Portanto se para Descartes o resultado desta operao faz do Ego uma
substantia cogitans separada, para Husserl, ao contrrio, o Eu transcendental
revelado pela reduo (epoch) do eu natural, quer dizer, do eu psquico e psicofsico,conserva a experincia do mundo enquanto correlato da conscincia transcendental.
Correlativamente no se dever pensar seja a que ttulo for que, no nosso eupuro apodtico, tenhamos conseguido salvar uma pequena parcela do mundo,parcela que, para o eu filosfico, seria a nica coisa do mundo no sujeita advida, e que se trata agora de reconquistar, atravs de dedues bemconduzidas e segundo os princpios inatos do ego, o resto do mundo (Ibid., p.37).
Husserl censura Descartes por este no ter se conformado inteiramente aoprincpio de no enunciar aquilo que no se d claramente na intuio pura do ego
cogito. Por isso, embora Descartes tenha feito a maior das descobertas, no
conseguiu, segundo Husserl, apreender-lhe o verdadeiro sentido, o da subjetividade
transcendental. E assim, no atravessou o prtico que conduz filosofia
transcendental verdadeira (Ibid., p. 38).
Com efeito, se pela epoch me capto como eu prprio com a minha vida
prpria intactos, independente de qualquer posio referente existncia do mundo
emprico, j no me capto como homem natural. O eu humano natural, da vida
psquica, reduzido ao eu transcendental e fenomenolgico, e todo o sentido e valor
existencial que o mundo tem para mim, extrai-os do meu eu transcendental que
nico que revela a epoch fenomenolgica transcendental (Ibid., p. 39). Husserl
ressalta desta maneira que o prprio conceito de transcendental, e correlativamente
tambm o conceito de transcendente, retiram o seu significado da meditao
empreendida dentro da esfera da subjetividade transcendental. Finalmente este eu que
traz o mundo em si a ttulo de unidade de sentido, se caracteriza como transcendental
no sentido fenomenolgico desse termo, e seus problemas correlatos: problemas
filosficos transcendentais (Ibid., p. 40).
1.3 A Fenomenologia como Egologia Transcendental
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1.3.1 A Epoch fenomenolgica
A grande pretenso de Husserl era colocar a Filosofia no caminho seguro de
uma cincia, para isto era necessrio um objeto prprio e um mtodo que a elevasse ao
"estatuto" de cincia de rigor. Levado cada vez mais por esta exigncia, Husserl
empenha-se no projeto de fazer da Fenomenologia uma Filosofia Transcendental. Para
satisfazer este ideal, a introduo do recurso da reduo tem como objetivo elevar a
investigao acima da esfera das simples opinies, atendo-se a descrio do dadointuitivo. A reduo se encarrega do acesso a um fenmeno puro, de modo que o seu
retorno redutivo se consumar ao cabo como um avano exploratrio.
A Epoch7 ou reduo fenomenolgica, que consiste na suspenso de
qualquer juzo sobre o mundo natural, pretende romper com qualquer referncia ao
psquico e alcanar o campo seguro da conscincia transcendental, uma vez que a
conscincia em atitude natural v a si prpria como realidade do mundo, determinada
pela causalidade fsica, biolgica, cultural. Husserl caracteriza a epoch tambm como
[...] o mtodo universal e radical pelo qual me capto como eu puro, com a vida da
conscincia pura que me prpria8, vida na qual e pela qual o mundo objetivo na sua
totalidade existe para mim, exatamente tal como existe para mim (Ibid., p, 33). Por esta
razo a ao da reduo fenomenolgica inibe o valor existencial do mundo objetivo e
assim tambm de qualquer juzo sobre ele. Husserl reafirma, nas Meditaes
Cartesianas, que aquele que desconhece o sentido e a funo da reduo
fenomenolgica transcendental encontra-se ainda no terreno do psicologismo
transcendental (Ibid., p. 112). Diferente da verso primitiva da fenomenologia comopsicologia descritiva, a introduo da epoch tem por objetivo no apenas descrever as
vivncias enquanto estas aparecem a uma conscincia, pois a fenomenologia
transcendental deve ser, alm disso, o correlato da descrio do campo de uma
7 Do grego , termo utilizado pelos cticos para designar a suspenso do juzo acerca dapossibilidade de um conhecimento qualquer.8 Grifo nosso.
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conscincia enquanto esta constituios seus objetos intencionais.
Neste caso a epoch fenomenolgica adquiri uma importncia redobrada uma
vez que por meio dela que a fenomenologia pode firmar-se no terreno de uma filosofia
transcendental. Assim, em lugar da dvida universal cartesiana, Husserl coloca aepoch universal, porm em um sentido bem preciso:
Pomos fora de jogo a tese geral inerente a essncia da atitude natural.Colocamos entre parnteses toda e cada uma das coisas abarcadas emsentido ntico por essa tese, assim, pois, este mundo natural inteiro, que estaconstantemente para ns a diante, e que seguir estando permanentemente,como realidade de que temos conscincia, ainda que nos de por colocar-loentre parntesis (HUSSERL, 1986, p. 73).
A epoch diz respeito portanto primeiramente a tese da atitude natural sobre aexistncia do mundo. Mas isto no significa por outro lado que esteja negando a
existncia deste mundo como o ctico, [...] seno que pratico a fenomenolgica
que me impede completamente todo juzo sobre existncias no espao e no tempo
(Ibid., p. 73). Do mesmo modo, todas as cincias que se referem a este mundo natural,
que tem por base a experincia de objetos nele existentes, tem sua validade posta
entre parnteses. Ou seja, toda proposio que afirma algo sobre o mundo baseado na
atitude natural, deve ser tratada como uma proposio que pretende ser vlida, e cuja
validez deve ser analisada.
Finalmente atravs da epoch se alcana o campo da conscincia pura, o
domnio do eu transcendental:
Pela fenomenolgica, reduzo o meu eu humano natural e a minha vidapsquica domnio da minha experincia psicolgica interna ao meu eutranscendental e fenomenolgico, domnio da experincia internatranscendental e fenomenolgica. O mundo objetivo que existe para mim, queexistiu ou que existir para mim, este mundo objetivo com todos os seus
objetos extrai de mim mesmo, afirmei-o mais acima, todo o sentido e todo ovalor existencial que tem para mim; extrai-os do meu eu transcendentalque onico que revela a fenomenolgica transcendental (HUSSERL, 2001, p.39).
O propsito de Husserl mostrar que a conscincia tem em si um ser prprio
que no afetado pela reduo, que permanece como resduo fenomenolgico e
constitui uma regio de ser que precisamente o campo de atuao da fenomenologia.
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Por esta razo a epoch fenomenolgica se justifica como [...] a operao necessria
para fazermos acessvel conscincia pura e, conseqentemente, a regio
fenomenolgica inteira (HUSSERL, 1986, p, 76). conscincia pura Husserl chamar
conscincia transcendental e a operao atravs da qual se poder alcan-la deepoch transcendental (Ibid., p. 76-77).
1.3.2 O Ego transcendental como princpio de constituio do mundo
Husserl nos fala que possvel apreender o sentido da epoch fenomenolgica,mas no a sua possvel ao, pois no est da mesma forma delimitado o alcance da
sua universalidade. Neste caso a pergunta que agora se apresenta a seguinte: Que
pode, com efeito, restar, quando pomos em suspenso o mundo inteiro, incluindo ns
mesmos com todo cogitare? (HUSSERL, 1986, p. 75).
Porm, se se espera que, ao p-lo em suspenso, sucumba o mundo como um
fato, o mesmo no se pode dizer do mundo como eidos, quer dizer, aquilo que lhe
prprio enquanto fenmeno. Isto a que Husserl se refere a conquista de uma nova
regio de ser segundo ele ainda no desvendada no que tem de prpria. Este
trabalho se faz assinalando de forma direta o que constitui este ser que no outra
coisa seno o que se designa por [...] vivncias puras, conscincia pura, com seus
correlatos puros e, por outra parte, seu eu puro desde o eu, desde a conscincia, as
vivncias que se nos do na atitude natural (Ibid., p. 75). Em outras palavras, Husserl
reafirma sempre que o "mundo", que compreende todo ser espacial e temporal, existe
para mim e "vale" pelo fato mesmo que tenho dele experincia, como no cogito de
Descartes, e posso dessa maneira emitir sobre ele juzos de existncia e valor. Assim"o mundo" para mim tudo aquilo que tenho conscincia num tal cogito, e isto a tal
ponto que no posso viver, experimentar, pensar; no posso agir e emitir juzos de
valor num mundo diferente daquele que encontra em mim e extrai de mim mesmo o seu
sentido e a sua validade (HUSSERL, 2001, p. 34). Mais do que revelar um campo
purificado de fenmenos, a conscincia pura, o ego transcendental, afirma-se como
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aquele que constitui a nossa experincia do mundo, na medida em que somente a partir
dele extramos o seu sentido.
A "existncia" do ego transcendental modifica radicalmente o tipo de relao da
conscincia com o mundo: por conseqncia, de fato, a existncia natural do mundo do mundo acerca do qual eu posso falar pressupe, como uma existncia em si
anterior, a do ego puro e suas cogitationes (Ibid., p. 34). O mundo portanto um
fenmeno transcendente cujas "partes reais" no tem lugar dentro na conscincia
transcendental, do mesmo modo como o eu reduzido no faz parte do mundo. Esta
"transcendncia do mundo" se mostra no texto de Husserl pela oposio entre o ser
meramente fenomnico do transcendente e o ser absoluto do imanente, a
indubitabilidade da percepo imanente, dubitabilidade da transcendente
9
, ou seja, omundo natural como correlato da conscincia pura transcendental e a impossibilidade
de um mundo fora da esfera absoluta do ego transcendental.
A oposio entre a tese contingente do mundo e a tese necessria,
absolutamente indubitvel, do eu e da vida do eu, resulta por fim na afirmao da
conscincia absoluta como resduo da aniquilao do mundo:
Pois a aniquilao do mundo no quer dizer correlativamente seno que em
toda corrente de vivncias (a corrente total e plena das vivncias de um eu,tomada, pois, sem termo por nenhum dos seus dois lados) ficariam excludascertas ordens de experincias e por conseguinte certas ordens da razoteorizante que busca sua orientao nelas. [...] Assim, pois, nenhum ser realem sentido estrito, nenhum ser que se exiba e comprove mediante aparnciasuma conscincia, para o ser da conscincia mesma (no mais amplo sentidode corrente de vivncias) necessrio (HUSSERL, 1986, p. 112-113).
1.3.3 A Fenomenologia como Idealismo Transcendental
A aproximao da fenomenologia transcendental com o idealismo, sugerida pelo
texto das Idias, viria a se confirmar nas Meditaes Cartesianas, onde a
fenomenologia pura se apresenta definitivamente como uma forma de idealismo
transcendental.
9 Estes so os ttulos dos 44 e 46 das Idias.
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Para Husserl todo sentido e todo ser imaginveis fazem parte do domnio da
subjetividade transcendental, portanto se constituem no interior do ego. Isto significa
ento que uma verdadeira teoria do conhecimento s pode ter sentido enquanto
fenomenolgica e transcendental e fundada numa explicitao do ego por si prprio.Esta explicitao , em primeiro lugar, uma explicitao de si prprio que pretende
mostrar de forma sistemtica como que o ego se constitui a si prprio como
existncia em si da sua essncia prpria e, em segundo lugar, uma explicitao de si
prprio, em sentido lato, que mostra como que o ego constitui em si os outros, a
objetividade e, em geral, tudo aquilo que para o ego seja no eu ou no no-eu
possui um valor existencial (Ibid., p, 111). Assim Husserl afirma que:
Realizada desta maneira sistemtica e concreta, a fenomenologia , por issomesmo, idealismo transcendental, ainda que num sentido fundamentalmentenovo. No o no sentido de um idealismo psicolgico que, a partir dos dadossensveis desprovidos de sentido, quer deduzir um mundo pleno de sentido.No um idealismo kantiano que cr poder deixar aberta a possibilidade deum mundo de coisas em si, ainda que a ttulo de conceito-limite. umidealismo que no nada mais do que uma explicitao do meu ego enquantosujeito de conhecimentos possveis. Uma explicitao conseqente, realizadasob a forma de cincia egolgica sistemtica, dando conta de todos ossentidos existenciais possveis para mim, como ego. Este idealismo no formado atravs de um jogo de argumentos e no se ope numa luta dialticaa qualquer realismo. a explicitao do sentido de qualquer tipo de ser que
eu, ego, posso imaginar; e, mais especificamente, do sentido datranscendncia que a experincia me d realmente: a da Natureza, da Cultura,do Mundo, em geral; o que quer dizer o seguinte: desvendar de uma maneirasistemtica a prpria intencionalidade constituinte.A prova deste idealismo a
prpria fenomenologia (Ibid., p. 111- 112).
O idealismo transcendental da fenomenologia pura portanto a explicitao
correta do caminho que conduz, atravs da reduo, do terreno da atitude natural ao
ego transcendental. Isto se verifica de tal forma em Husserl que o prprio autor afirma
que s quem compreendeu mal o sentido profundo do mtodo intencional ou o sentido
da reduo transcendental ou um e outro pode querer separar a fenomenologia e o
idealismo transcendental (Ibid., p. 112).
O Ego transcendental o principal resultado da operao de reduo
transcendental e conseqentemente, segundo o prprio Husserl afirma, aquilo que
conduz a fenomenologia ao idealismo transcendental. Paralelamente, este idealismo
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a explicitao do ego cogito como sujeito de conhecimentos possveis. A
fenomenologia deve espelhar o carter necessrio da filosofia como filosofia
fenomenolgica transcendental, [...] e, correlativamente, no que concerne ao universo
daquilo que real e possvel para ns, o estilo da interpretao, a nica possvel, doseu sentido, a saber, o idealismo fenomenolgico transcendental (Ibid., p. 112).
O campo da conscincia transcendental, da conscincia pura, uma esfera
absoluta que no necessita seno dela para existir.
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2 A CRTICA DE SARTRE AO EGOTRANSCENDENTAL
Ao que tudo indica, o primeiro contato de Sartre com a Fenomenologia se deu
atravs de Raymond Aron, colega de Sartre na cole Normal Suprieure, que retornava
aps um ano de estudos na Alemanha, onde havia tido contato com a fenomenologia
de Husserl, j bastante difundida. As possibilidades promissoras, relatadas por Aron,
acabam levando Sartre a seguir o caminho do amigo, se aventurando numa viagem de
estudos Alemanha.
Durante um ano, entre 1933 e 1934, Sartre estuda em Berlin o mtodo da
fenomenologia. Neste perodo pode constatar que o mtodo criado por Husserl
correspondia plenamente as suas expectativas de uma filosofia voltada para a realidade
concreta do cotidiano. Na Alemanha, Sartre redige em conjunto trs obras que, emboraabordem temas e reas diferentes, refletem a sua apropriao crtica da fenomenologia
e os primeiros esboos do que viria a ser sua filosofia: o texto do romanceA Nusea, o
artigo Uma Idia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a Intencionalidade e o
ensaio deA Transcendncia do Ego.
A Transcendncia do Ego, Esboo de uma Descrio Fenomenolgica , alm de
ser o primeiro texto filosfico de Sartre, tem um status singular dentro do pensamento
deste autor. Escrito entre 1933-34 e publicado em 1936, constitui como indica o
subttulo, uma primeira tentativa do autor para se iniciar no mtodo da fenomenologia
de Husserl. Contudo, apesar de Sartre reconhecer no novo mtodo a possibilidade de
trazer uma renovao para a estagnao em que se encontrava a filosofia de sua
poca, sua adeso ao movimento fenomenolgico se faz de uma maneira crtica. A
prova disto justamente este texto, onde se confronta com o criador da fenomenologia,
no para contest-la, mas para exigir a radicalidade que a anima e que est na sua
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base.
2.1 A crtica a presena do Eu na conscincia
No incio do texto deA Transcendncia do Ego temos a afirmao capital sobre
as intenes do autor: mostrar que [...] o Ego no est na conscincia nem formal nem
materialmente: ele est fora, no mundo; um ser do mundo, tal como o Ego de outrem
(SARTRE, 1994a, p. 43). Segundo Sartre, trata-se de combater um engano freqente
entre a maioria dos filsofos e psiclogos que faz do Ego um habitante daconscincia, quer como uma presena formal(um princpio vazio de unificao) ou
ainda como presena material- onde se pode incluir boa parte dos psiclogos - (como
centro dos desejos e atos). A primeira parte do ensaio de A Transcendncia do Ego, Eu
e Mim, ser dedicada a crtica destas duas tendncias a partir da qual na segunda
parte, Constituio do Ego, Sartre poder conceber e detalhar a constituio do Ego
como objeto transcendente.
Na crtica da Teoria da Presena Formal do Eu, Sartre comea levantando o
problema do Eu Penso na filosofia kantiana. Numa passagem conhecidssima da Crtica
da Razo Pura, Kant nos diz que o Eu Penso deve poderacompanhar todas as nossas
representaes (KANT, 1989, p. 131; B 131-132)10. Sartre pergunta se a partir desta
passagem se poderia concluir que um Eu habita de fato todos os nossos estados de
conscincia, e mais, se ele executa a sntese suprema de todas as nossas
experincias. Sua resposta que isto seria forar demais o pensamento kantiano. Com
efeito, se o problema da filosofia crtica um problema de direito, ento, Kant no
estaria afirmando nada sobre a existncia de fato do Eu Penso. Pelo contrrio, Sartresublinha que Kant teria visto que existem momentos de conscincia sem Eu, pois na
sua afirmao se destaca o deve poderacompanhar. Para Kant tratar-se-ia apenas de
10 A passagem se refere ao princpio da unidade transcendental da apercepo (16), ponto de partidade toda Deduo Transcendental.
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determinar as condies de possibilidade da experincia11, e uma dessas condies
justamente que eu possa relacionar estas experincias como minhas, ou seja, ao Eu
que pensa. Portanto, no se deve cair na tentao de realizareste Eu transcendental,
isto seria julgar a respeito do fato e no a respeito do direito (Ibid., p. 44).A discusso feita por Sartre com relao ao Eu Penso tem como objetivo
introduzir esta distino entre a questo de direito e a questo de fato. Diz ele que, se
em Kant se trata da questo de direito, resta resolver a questo de fato sobre a
existncia do Eu na conscincia. Esta questo formulada por Sartre da seguinte
forma: [...] o Eu penso deve poder acompanhar todas as nossas representaes, mas
acompanha-as de fato?12 (Ibid., p. 44-45). Admitindo a existncia de momentos de
conscincia sem Eu, haveria ento alguma alterao na estrutura de umarepresentao ao passar a um estado onde o Eu Penso a acompanha? E se assim
fosse, caberia neste caso perguntar se a unidade das nossas representaes
operada pelo Eu Penso, ou antes, as representaes estariam unidas de tal modo que
tornariam possvel o Eu Penso? Aparentemente isto apenas uma inverso operada
por Sartre da concepo kantiana do Eu como princpio de unificao das
representaes, mas para o autor trata-se de uma questo de fato que ele formula do
seguinte modo: [...] o Eu que ns encontramos na nossa conscincia tornado possvel
pela unidade sinttica das nossas representaes ou antes ele que unifica de fato as
representaes entre si? (Ibid., p.45)13.
Finalmente compreende-se que a discusso preliminar com relao a funo do
Eu Penso na filosofia transcendental, tem como finalidade a crtica da interpretao da
concepo formal do princpio kantiano como se se trata-se da existncia de fato do Eu,
o abandono do terreno de direito, e encaminhamento da discusso para o problema da
existncia de fato do Eu na conscincia.
2.1.1 A crtica a concepo fenomenolgica do Eu na conscincia
11 Para Sartre o papel do Eu Penso na filosofia crtica de Kant de um pressuposto formal que temunicamente a funo de unificar a experincia, ou seja, em todo caso em que se quer constituir umconhecimento possvel sobre um dado domnio de objetos, ento deve-se pressupor o Eu Penso.12 Grifo nosso.13 Grifo nosso.
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Neste ponto Sartre recorre a fenomenologia de Husserl, pois, segundo ele,
atravs desta temos a possibilidade de realizar um estudo cientfico e no crtico daconscincia. Para Sartre, uma vez que o seu procedimento fundamental a intuio,
que nos pe na presena da coisa, a fenomenologia uma cincia de fato e,
portanto, os problemas por ela postos so problemas de fato. Atravs dela os
problemas da relao do eu com a conscincia so postos como problemas
existenciais.
Husserl reencontra eapreende a conscincia transcendental de Kant atravsda . Mas esta conscincia j no um conjunto de condies lgicas, um fato absoluto. No j tambm uma hipstase do direito, um inconscienteflutuando entre o real e o ideal. uma conscincia real, acessvel a cada umde ns a partir do momento em que executa a reduo (Ibid., p. 45-46).
Tal como em Husserl, Sartre cr na existncia de uma conscincia constituinte,
conforme a verso transcendental da fenomenologia, para a qual a conscincia
transcendental que constitui a nossa conscincia emprica, com o eu psquico e
psicofsico.No entanto, se, segundo o prprio Husserl, o eu psquico e psicofsico um
objeto transcendente sujeito a , ser preciso duplic-lo por um Eutranscendental, estrutura da conscincia absoluta? (Ibid., p.46). Quer dizer, qual a real
utilidade do Eu transcendental na conscincia? Seria ele necessrio? Para Sartre, no
caso de uma resposta negativa, decorre toda uma srie de conseqncias:
1, que o campo transcendental torna-se impessoal ou, se prefere, pr-pessoal, ele no tem Eu;2, que o Eu no aparece seno ao nvel da humanidade e no seno umaface do eu, a face ativa;
3, que o Eu Penso pode acompanhar todas as nossas representaes porquesurge sobre um fundo de unidade que ele no contribui para criar e que estaunidade prvia que, ao contrrio, o torna possvel;4, que seria licito perguntar se a personalidade (mesmo a personalidadeabstrata de um Eu) um acompanhante necessrio de uma conscincia ou sese no pode conceber conscincias absolutamente impessoais (Ibid., p.46).
Como se pode observar, as conseqncias postas por Sartre, pretendem no s
contestar a existncia de fato do Eu na conscincia, mas sobretudo fundamentar uma
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concepo fenomenolgica impessoal da conscincia transcendental, sem Eu. A
pergunta mesma seria se a existncia de algo como o Eu transcendental pode ser
compatvel como a concepo fenomenolgica da conscincia dada pelo prprio
Husserl14. Ou seja, se na filosofia transcendental kantiana, o Eu como que umpressuposto formal, necessrio unidade da experincia, a fenomenologia enquanto
cincia de fato, como Sartre a compreende, pelo contrrio, no tem necessidade de
recorrer a ele.
Em primeiro lugar, se a existncia do Eu transcendental justificada pela
necessidade de unidade e individualidade da conscincia, ento, diz-nos Sartre,
certo que a fenomenologia no tem necessidade de recorrer a este Eu unificador e
individualizante (Ibid., p. 47). Este papel cabe a intencionalidade.A intencionalidade o carter fundamental da conscincia15 e por este motivo
que a conscincia transcende-se a si mesma e encontra sua unidade no objeto do
qual conscincia. Pois, o objeto transcendente s conscincias que o apreendem e
nele que se encontra sua unidade (Ibid., p. 47). Torna-se desnecessrio tambm
recorrer a um princpio de unidade no fluxo contnuo da corrente das nossas
conscincias, j que a conscincia que se unifica a si mesma cada vez em que se
expressa como conscincia desse objeto transcendente. Alm disso, devido a sua
prpria natureza a conscincia se constitui em uma totalidade sinttica e individual da
qual o Eu no ser seno uma expresso e nunca uma condio.
Enfim, Sartre responde a pergunta pela necessidade do Eu transcendental na
conscincia da seguinte maneira:
Podemos portanto responder sem hesitar: a concepo fenomenolgica daconscincia torna totalmente intil o papel unificante e individualizante doEu16. , ao contrrio, a conscincia que torna possvel a unidade e apersonalidade do meu Eu. O Eu transcendental no tem, portanto, razo de ser
(Ibid., p.48).
14 Neste ponto do texto Sartre faz notar a mudana de posicionamento de Husserl com relao questo: depois de ter considerado que o Eu [Moi] era uma produo sinttica e transcendente daconscincia (nas Logische Untersuchungen), retornou, nas Ideen, tese clssica de um Eutranscendental que estaria como que por detrs de cada conscincia [...] (SARTRE, 1994a, p.46). Sartrese confronta aqui com a viso subjetivista e transcendental da fenomenologia.15 Atravs da concepo de intencionalidade da conscincia, como mostraremos a seguir, Sartrepromove uma radicalizao da prpria fenomenologia de Husserl.16 Grifo nosso.
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Segundo Sartre, a existncia do Ego transcendental pe em perigo a prpria
concepo fenomenolgica da conscincia. Ou seja, alm de intil este Ego nocivo,
colocando em risco a autonomia da conscincia. Se o Eu uma estrutura necessriada conscincia, o fundamento da conscincia escapa a si mesma e ento o Eu se eleva
ao nvel de um absoluto ou uma mnada, como faz Husserl nas Meditaes
Cartesianas. Para Sartre torna-se claro que todos os resultados da fenomenologia
ameaam entrar em runa se o Eu no , do mesmo modo que o mundo, um existente
relativo, quer dizer, um objetopara a conscincia (Ibid., p.49).
2.1.2 A conscincia irrefletida
A crtica de Sartre a presena do Eu na conscincia como princpio de unidade e
individualidade, enquanto plo das representaes mostra que, porquanto se trate da
sua existncia de fato, a fenomenologia no necessita recorrer a ele. Pelo contrrio,
pressupor a existncia de um princpio por detrs de cada conscincia seria ir contra a
prpria noo de intencionalidade, concepo que garante a sua unidade no simples
carter da conscincia de ser conscincia de um objeto, estando a sua unidade no
prprio objeto do qual conscincia. Contudo, poderamos agora perguntar: se Sartre
rejeita o Eu da conscincia, formal e materialmente, qual ser o ponto de partida da
conscincia para a reflexo, ou dito de outra forma, qual ser o estatuto do cogito numa
possvel teoria impessoal da conscincia? O que garante a sua reflexividade?
Com efeito, para Sartre o Eu penso kantiano uma condio de possibilidade.
O Cogito de Descartes e de Husserl e verificao de um fato (Ibid., 49). O Cogito pessoal, pois no Eu penso h precisamente um Eu que pensa e , portanto como
Sartre diz, da que deve partir uma egologia. Cada vez em que um pensamento
qualquer apreendido, o Eu transcendente surge como o Eu que apreende o
pensamento. Na recordao de um fato qualquer, por exemplo, possvel recordar
tanto do fato ocorrido quanto que euvivi este fato, quer dizer, o Eu surge no mesmo
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instante em que tomo esta conscincia no modo pessoal. Para Sartre esta a garantia
de fato da afirmao kantiana de direito, ou seja, que apreendo cada uma das minhas
conscincias como provindas de um Eu.
Neste ponto Sartre afirma algo essencial para se compreender sua tese acercada transcendncia do ego, a saber, que todos os autores que descreveram o Cogito o
apresentaram como uma operao reflexiva, quer dizer, como uma operao de
segundo grau (Ibid., p.50), ou seja, como uma conscincia dirigida sobre a
conscincia, onde a conscincia parece como um objeto. Sartre faz notar algo muito
sutil nesta conscincia de conscincia que muitas vezes escapa a uma anlise menos
detida. A conscincia refletinte, aquela que reflete, no para si mesma o seu objeto,
pois aquilo que ela tematiza se refere a conscincia refletida. Enquanto permanececonscincia refletinte, conscincia dela mesma, sem uma nova conscincia que a
tematize, esta conscincia no-posicional. Assim, a conscincia que diz Eu penso
no precisamente aquela que pensa17. Ou antes, no o seu pensamento que ela
pe atravs deste ato ttico (Ibid., p. 50). A conscincia refletinte nela mesma
irrefletida e seria, pelo contrrio, necessrio uma conscincia de terceiro grau para p-
la como objeto.
Mas, Sartre pergunta, no seria precisamente o ato reflexivo que faria nascer o
Eu [Moi] na conscincia refletida? Ora, se Husserl mesmo reconhece que um
pensamento irrefletido sobre uma mutao ao se tornar refletido, o essencial da
mudana no seria a apario do Eu? (Ibid., p. 51). Com isto Sartre no apenas lana
uma suspeita sobre a conscincia reflexiva, mas tambm de certo modo a investe de
um poder de constituio, ao questionar se no seria a reflexo a origem do Eu. Assim,
quando da leitura de um livro, por exemplo, havia conscincia do livro, dos
personagens, mas no havia "Eu", apenas conscincia destes objetos e conscincia
no-posicional de si, ou seja, nenhum Eu na conscincia irrefletida. Quando aconscincia esta mergulhada no mundo dos objetos, so eles que garantem sua
unidade, o Eu desaparece, euno sou o objeto da conscincia. O Eu no pode estar
presente na conscincia irrefletida muito simplesmente por que o Eu penso s surge
como um correlato do ato reflexivo. Alm disso, segundo Sartre, [...] ele no aparece
17 Grifo nosso.
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reflexo como a conscincia refletida: ele d-se atravs da conscincia refletida (Ibid.,
p. 54).
Como concluso das anlises sobre o cogito como conscincia reflexiva, Sartre
apresenta quatro pontos fundamentais dos quais o terceiro particularmentesignificativo, pois exemplifica o que seria para o autor a estrutura complexa da
conscincia:
3, Ele [o Eu] no aparece nunca seno por ocasio de um ato refletido. Nestecaso, a estrutura complexa da conscincia a seguinte: h um ato irrefletidode reflexo sem Eu que se dirige para uma conscincia irrefletida. Esta torna-se o objeto da conscincia refletinte, sem deixar, todavia, de afirmar o seuobjeto prprio (uma cadeira, uma verdade matemtica, etc.).Ao mesmo tempo,um objeto novo aparece, o qual a ocasio de uma afirmao da conscincia
reflexiva e no est, por conseguinte, nem no mesmo plano da conscinciairrefletida (porque esta um absoluto que no precisa da conscincia reflexivapara existir) nem no mesmo plano do objeto da conscincia irrefletida (cadeira,etc.). Este objeto transcendente do ato reflexivo o Eu18 (Ibid., p. 55).
Em primeiro lugar Sartre conclui que o Eu um existente, com um tipo de
existncia diferente das verdades matemticas, das significaes e dos seres espcio-
temporais, mas real e transcendente, para em seguida afirmar que este Eu se d por
meio de uma intuio que o apreende por detrs da conscincia refletida, de forma
inadequada. Finalmente, neste terceiro ponto, Sartre afirma que este Eu, que umexistente e que apreendido como anterior conscincia refletida, aparece, ou
constitudo, pelo ato reflexivo. Ou seja, a reflexo que constitui este objeto
transcendente chamado Eu. Por este motivo que Sartre afirma que o Eu
transcendental deve ficar ao alcance da reduo fenomenolgica. H, com efeito, um
nvel mais bsico que a reflexo e por isso que para Sartre o cogito afirma demais.
Neste nvel o contedo certo do pseudo-Cogito no eu tenho conscincia desta
cadeira, mas h conscincia desta cadeira (Ibid., p.55).
As suspeitas com relao reflexo so confirmadas na crtica a Teoria da
Presena Materialdo Eu19, onde a discusso com relao presena material do Eu na
18 Grifo nosso.19 A crtica de Sartre a Teoria da Presena Materialdo Eu dirigida principalmente aos tericos do amorprprio. Segundo eles, o amor de si mesmo e, por conseguinte, o Eu [Moi] estaria dissimulado emtodos os sentimentos sob uma mirade de formas diversas. De um modo muito geral, o Eu [Moi], emfuno desse amor que ele se tem, desejaria para si mesmo todos os objetos que deseja. A estrutura
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conscincia, como uma espcie de inconsciente por trs de cada uma das minhas
conscincias fundado na confuso freqente dos psiclogos entre atos refletidos e
atos irrefletidos , leva Sartre a afirmar ainda mais a ciso dos nveis do irrefletido e da
reflexo.
2.1.3 Explicitao do processo de constituio do Ego
A segunda parte do texto deA Transcendncia do Ego dedicada ao que Sartre
chama de Constituio do Ego. Aps a crtica a presena formal e material do Eu naconscincia, torna-se necessrio explicitar como a conscincia constitui o Ego como
objeto transcendente.
A concluso da crtica da presena material do Eu, onde se trata de um estudo
psicolgico da conscincia intra-mundana, revela que, tal como no estudo
fenomenolgico da presena formal do Eu, [...] o eu no deve ser procurado nem nos
estados irrefletidos de conscincia nem por detrs deles (Ibid., p. 58), pois ele se
origina no ato reflexivo como correlato da reflexo. Sartre antecipa uma distino
importante para explicar o processo de constituio do Ego:
Comeamos a entrever que Eu e Mim20 [le Je et le Moi] no so seno um.Vamos tentar mostrar que este Ego, de que Eu e Mim no so seno duasfaces, constitui a unidade ideal (noemtica) e indireta da srie infinita dasnossas conscincias refletidas (Ibid., p. 58).
Estes dois Eus de que Sartre fala so o Euativo da conscincia refletinte e o
essencial de cada um dos meus atos seria uma chamada a mim. O retorno a mim seria constitutivo detoda conscincia (SARTRE, 1994a, p. 55). No trataremos especificamente deste tpico, em funo dele