Contos do absurdo 5

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ADRIANA BILLA - atriz, gÓtica, roqueira e wicca NESTA EDIÇÃO: Set 2013 #5

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Maior revista em quadrinhos publicada em esquema de guerrilha na internet no Brasil, a Contos do Absurdo oferece mais uma vez 100 páginas gratuitas de quadrinhos, pin ups e contos de terror, fantasia e sci-fi, além de entrevista e ensaio fotográfico. Em sua quinta edição, conta com a colaboração de quadrinistas tradicionais junto com novos talentos e estreantes em HQ. Entre os autores já conhecidos dos fãs, destaca-se Gary Andraus, um os principais editores e autores independentes de HQs adultas do Brasil, sempre voltadas ao fantástico e à reflexão filosófica, que colaborou com uma poesia ilustraa. Também participa o autor Altemar Domingos, que reapresenta, em pin-ups, personagens do universo de Jaguara, sua heroína indígena que lidera a tribo dos Krenakores, na misteriosa e fictícia região do Jaguaretama. Carlos Henry, criador do Lobo-Guará, marca presença com mais uma HQ curta, além de ilustraçóes. Entre trabalhos ainda pouco conhecidos do público, a edição destaca o prólogo da

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ADRIANA BILLA - atriz, gÓtica, roqueira e wicca

NESTA EDIÇÃO:

Set 2013#5

índiceCAPA Diody Shigaki (desenhos) - Rodrigo Garcia (cores)

Dragão da Terra:As Planicies Vermelhas (Prólogo).............................................Pág. 05 Texto e arte: Pedro Elefantes

Somniun: O Destruidor de sonhos (parte 1) .................................................................Pág. 11 Conto de André Roméro adaptado por Alexandre Winck com arte de Ronílson Caetano Leal

Escuro .................................................................................................................................Pág. 17 Texto e arte: Bira Dantas - Fotos: SXC.HU

Rato ....................................................................................................................................Pág. 24 Texto: Gustavo B. Rossato Arte Igor Santos

Realidade Delirante ........................................................................................................Pág. 33 Texto e arte: Gazy Andraus

Demonios nas Sombras .................................................................................................Pág. 34 Texto: Pat Kovacs- Desenho: Cesar Reis

Tres Irmãos...........................................................................................................................Pág. 40 Texto: Jerônimo de Souza Arte: Antônio Lima

Um Dia Qualquer................................................................................................................Pág. 44 Texto: Luciano Luiz Santos- Desenhos: Johanna Gyarfas

Adriana Billa (entrevista)...................................................................................................Pág. 52 Texto: Alexandre Winck - Fotos: Danie Vardi - Tratamento: Diody Shigaki

Um dia da Caça, Outro do colecionador....................................................................Pág. 62 Texto: Francisco Tupy - Arte: Christiano Carstensen Neto

Portfolio do Absurdo (Felipe Martins)...............................................................,.......Pág. 74 Texto: Alexandre Winck

Encontro Macabro.............................................................................................................Pág. 80 Texto e arte: Carlos Henry

A Fazenda do Diabo.- parte 2................................................Pág. 86 Texto: Daniel Vardi - Arte: Mhick Holderbaum

Anjo Industrial - A origem - parte 2..................................Pág. 94 Texto: Alexandre Winck - Arte: Daniel Lucavis

Ilustrações JURUPARI: Altemar Domingos....................................................................Págs. 23 DEMÔNIOS: Carlos Henry.............................................................................Págs. 43 LOBISOMEN: Ronílson Caetano Neto.........................................................Págs. 85 TONINHO DO DIABO: Robson Jr...................................................................Págs. 93

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CAPA Diody Shigaki (desenhos) - Rodrigo Garcia (cores)

Dragão da Terra:As Planicies Vermelhas (Prólogo).............................................Pág. 05 Texto e arte: Pedro Elefantes

Somniun: O Destruidor de sonhos (parte 1) .................................................................Pág. 11 Conto de André Roméro adaptado por Alexandre Winck com arte de Ronílson Caetano Leal

Escuro .................................................................................................................................Pág. 17 Texto e arte: Bira Dantas - Fotos: SXC.HU

Rato ....................................................................................................................................Pág. 24 Texto: Gustavo B. Rossato Arte Igor Santos

Realidade Delirante ........................................................................................................Pág. 33 Texto e arte: Gazy Andraus

Demonios nas Sombras .................................................................................................Pág. 34 Texto: Pat Kovacs- Desenho: Cesar Reis

Tres Irmãos...........................................................................................................................Pág. 40 Texto: Jerônimo de Souza Arte: Antônio Lima

Um Dia Qualquer................................................................................................................Pág. 44 Texto: Luciano Luiz Santos- Desenhos: Johanna Gyarfas

Adriana Billa (entrevista)...................................................................................................Pág. 52 Texto: Alexandre Winck - Fotos: Danie Vardi - Tratamento: Diody Shigaki

Um dia da Caça, Outro do colecionador....................................................................Pág. 62 Texto: Francisco Tupy - Arte: Christiano Carstensen Neto

Portfolio do Absurdo (Felipe Martins)...............................................................,.......Pág. 74 Texto: Alexandre Winck

Encontro Macabro.............................................................................................................Pág. 80 Texto e arte: Carlos Henry

A Fazenda do Diabo.- parte 2................................................Pág. 86 Texto: Daniel Vardi - Arte: Mhick Holderbaum

Anjo Industrial - A origem - parte 2..................................Pág. 94 Texto: Alexandre Winck - Arte: Daniel Lucavis

Ilustrações JURUPARI: Altemar Domingos....................................................................Págs. 23 DEMÔNIOS: Carlos Henry.............................................................................Págs. 43 LOBISOMEN: Ronílson Caetano Neto.........................................................Págs. 85 TONINHO DO DIABO: Robson Jr...................................................................Págs. 93 SX

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Somos Tão JovensUm dos grandes prazeres de produzir uma revista como a Contos

do Absurdo é a possibilidade de mesclar nomes consagrados com novos talentos. Aqueles que ainda são diamantes brutos,

não têm o texto ou o traço mais refinado, mas chegam com toda von-tade de mostrar serviço e aprender o ofício, junto com os que estão no meio do caminho e aqueles que há muito já provaram seu valor.Esta edição está repleta de histórias produzidas por gente nova e cheia de talento e garra. Para começar, o prólogo da fantástica “Dragão da Terra”, de Pedro Elefante, que será publicada em partes. A nova HQ em série Somnium, O Destruidor de Sonhos surgiu de um conto do jovem autor André Roméro que a Contos está transformando em quadrinhos no traço de Ronílson Caetano Leal, reunindo os talentos do texto e da arte. O conto O Rato, de Gustavo B. Rossato, vem com as belíssimas ilustrações de Igor Santos. Já Um Dia Qualquer, contada com grande senso de ironia por Luciano Luiz Santos, ganha mais vida com os jogos de luz e sombra das ilustrações de Johanna Gyarfas.Temos também nossas “crias da casa”, os colaboradores da Publigibi César Reis, Daniel Lucávis e Fábio Serrano Vardi, mostrando seus ta-lentos na arte, diagramação, letreirização e colorização. Envelopados pela Absurda capa feita por Diody Shigaki e cores de Rodrigo Garcia.Grandes e experientes quadrinistas também brilham em suas cola-borações com a revista. Entre eles, destaca-se Gary Andraus, um os principais editores e autores independentes de HQs adultas do Brasil, sempre voltadas ao fantástico e à reflexão filosófica, que colaborou com uma poesia ilustrada. Também participa o autor Altemar Domin-gos, que reapresenta, em pin-ups, personagens do universo de Jagua-ra, sua heroína indígena. Nossos grandes colaboraores habituais Bira Dantas, Carlos Henry e Francisco Tupy marcam presença.Nossa entrevista e ensaio será com Adriana Billa, proprietária de um bar voltado ao público gótico e de Rock, praticante de Wicca e forte candidata a se tornar uma nova musa do terror nacio-nal, que em breve também inspirará um persona-gem nas páginas da revista, a exemplo do Anjo Industrial e de Toninho do Diabo.Que venha o sangue novo! Nossos vampiros estão famintos, e eles não são menininhos com brilho de purpurina...

Alexandre Winck - Editor do [email protected]

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Cinco meses atrás...

Fizemos tudo que pudemos pelo

seu marido. Foi muito repentino...

Cinco horas atrás...

Guilherme! Guilherme! Você passou a tarde inteira dormindo?! Não te mandei ir comprar a

comida do jantar?!

Hmm? Ah, não, mãe, não comprei...

Esta noite.

A ruim é que tanto a vida dele quanto a da sua mãe

estão em risco. O acidente foi muito grave.

A boa notícia é que conseguimos retirar o bebê com vida.

Começo desta noite...

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Tá vendo, vou vou ter que sair

e comprar a essa hora!

Tá bom, tá bom. Foi mal, foi mal. Não estressa...

3 : 45

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Ih, por que esse carro parou logo aqui? A essa hora?

Melhor eu ir embora. Mas vou ter que passar por ele, não tem jeito.

Vai de boa, Guilherme. Não chama atenção.

Meio difícil quando se é um moleque de 13 anos andando sozinho numa rua deserta às quatro da manhã,

nenão gênio?

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Oh, queridinho! Está muito tarde!

Ah, você estava chorando?

Eu não gosto de ver menininhos tristes!

Por que você está chorando? Hnnngh!

Hein?

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Eu... eu estou perdido!

Oh! Não há porque se pre-ocupar, queridinho. Entre no carro, nós te levamos

de volta para casa.

É... Não, obrigado. Acho melhor eu ir...

Não!

Você não faria isso nem pela sua mãe?

O... O que você disse?

Sua mãe, Guilhermezinho... ela está doentinha!

Olha, eu não sei quem você é nem...

Mas eu sei quem você é, Guilherme, e eu estou te oferecendo uma chance. 15

SOMINUM

Já faz um tempo. Será que posso abrir os olhos?

Tá bem.

Feche os olhinhos!

Ainda não. Não abra ainda.

E, mesmo depois que abrir, quem garante que eles vão realmente estar abertos?

O-o quê? Quem disse isso?

Continua

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JURUPARI

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“A hierarquia e a disciplina gritam tão alto em nossos ouvidos que nossas ideias de jovem se tornam sussurros”

Existe muita dificuldade em decifrar os enigmas do mundo.

Sempre fui um curioso. Não que a vida era ruim antes do

“presente” indesejado. Contudo, viver simplesmente para

aproveitar o que estava sendo jogado em cima de nossas cabeças não

era um dos meus objetivos de vida.

Agora estou prestes a entrar por uma porta totalmente desconheci-

da. Não pela minha vontade e sim por uma necessidade mortal. A

luz forte me faz preferir confiar no meu tato e olfato. Ver nunca foi

meu forte. Talvez a escuridão tenha anestesiado meus olhos.

Próximo a dar o grande passo, minha memória evoca coisas do pas-

sado. A primeira lembrança são as brincadeiras com os outros

recém-nascidos nadando por entre os amontoados de lixo e piscinas

do esgoto. Aquilo era o paraíso. Uma vida boa e sem preocupações.

Rato

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Todas as famílias eram amigas

e prosperavam em conjunto,

obedecendo sempre à ordem da

grande mãe. A primeira vez que

a vi, tentava não rir, pois uma

piada sobre uma ratazana obesa

vinha sempre à mente. O que

poderia ser muito perigoso, pois

desrespeitar a grande mãe era o

pior castigo em nossa comuni-

dade. Mais tarde, compreende-

ria os resultados das blasfêmias

contra nossa guru da pior

maneira.

Na juventude, gostava de visitar

um dos becos do esgoto, conside-

rados o lar dos desajustados.

Meus pais diziam que não pas-

savam de vagabundos. Entre-

tanto, todos da nossa idade

tinham curiosidade de conhecê-

-los. Alguns ficavam tão impres-

sionados com o tipo de vida des-

regrada que não voltavam mais

para casa.

Em um dia quente, eu e meus

três irmãos decidimos conhecer

o tal famoso beco. Enganamos

Ela dizia que a natureza de um rato é compreender seu pequeno espaço no subsolo e conviver com o que é jogado como resto pelos seres da superfície.

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nossos pais e corremos a toda

velocidade com a ânsia de desco-

brir o que de tão assustador

tinham os moradores daquele

gueto.

Ao chegar, um rato sem rabo nos

recebeu com muita simpatia. O

ambiente era muito agradável e

descontraído. Tinham várias

rodas de indivíduos diferentes,

conversando sobre coisas que não

falávamos no lar da grande mãe.

Falavam alto, sorriam e comiam

comidas diferentes. Não era o nos-

so lixo de sempre.

O sujeito sem rabo nos chama pra

participar de uma roda e entrega

um delicioso pedaço de queijo. Pela

primeira vez, ouço da boca de outro

sobre o mundo que existe na super-

fície. Fico fascinado. Nosso anfi-

trião conta sua grande aventura

por aquelas terras. Disse serem

habitadas por gigantes. Seres com

formas muito esquisitas, capazes de

dominar o espaço com todo tipo de

lixo possível. Falavam de aventuras

fantásticas.

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Mas também comentavam os

perigos. Como na vez em que

nosso novo amigo subiu à super-

fície e sentiu o cheiro de um

delicioso pedaço de queijo.

Quando foi agarrá-lo, seu rabo

prendeu-se numa armadilha.

Mesmo amputado, conseguiu

descer de volta ao esgoto. Hoje,

ele só coordena os mais jovens

que querem se aventurar nas

terras de cima.

Quando retornamos, no fim do

dia, os adultos nos esperam com

reprovação. De algum modo,

descobriram o destino real do

nosso passeio. Fomos levados à

grande mãe e logo ela começou

a pregar a verdade sobre aqueles

sujeitos. Ela dizia que a natureza

de um rato é compreender seu

pequeno espaço no subsolo e

conviver com o que é jogado

como resto pelos seres da super-

fície. Comer o lixo era uma for-

ma de manter o mundo de cima

sustentável. Os ratos dos becos

dos desajustados não passam de

pensadores e aventureiros medí-

ocres que não querem se subme-

ter a essa verdade.

Depois de ouvir aquilo, senti

toda a raiva do mundo. Uma

vontade de tornar-me um desa-

justado e conhecer o mundo ilu-

minado da superfície. A grande

mãe não queria que saíssemos

da nossa comunidade porque

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talvez ela não fosse capaz de

viver em um mundo novo. Mais

claro que aquela eterna escuri-

dão.

Os dias se passaram e sempre

voltava aos becos, mesmo que os

outros não gostassem. Um dos

habitantes, um rato preto com

ar pretensioso, conversava

comigo sobre meu lar e de como

era um paraíso privilegiado.

Estava cansado de viver naquele

lugar e queria mais sossego.

Respondi pra ele dá dificuldade

que é ser aceito pela grande

mãe. Era um lugar cheio de dis-

ciplina. Logo ele deu-me um

presente e pediu gentilmente

pra entregar à famosa guru. Era

um pedaço de carne bem chei-

rosa. Qualquer um conseguia

sentir o seu sabor delicioso ape-

nas com seu cheiro a metros de

distância.

Todos me recebem com aquele

olhar, ludibriados com o naco.

Conto toda a história do meu

novo amigo. Ela diz que não vai

aceitar o presente e pede para

que eu coma na frente de todos a

deliciosa carne. Devoro cada

pedaço com desejo e brutalida-

de.

A mãe, no alto de sua sabedoria

A comunidade me olha como um traidor. Pela minha curiosidade, quase matei nossa mãe e agora envenenei meu corpo.

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e gordura, começa a pregar novamente. Ela diz que já teve a minha idade

e sabe o que existe no mundo da superfície. Pouco depois, começo a passar

mal.

Meu corpo endurece como pedra e minha visão fica turva. A mãe sabia

que a carne tinha o veneno dos homens. Ela sentia no apetitoso cheiro o

gosto amargo da mentira. Apesar de limpar a sujeira da superfície, os

gigantes faziam de tudo para acabar com nossa existência.

Sinto o peso da culpa. A comunidade me olha como um traidor. Pela

minha curiosidade, quase matei nossa mãe e agora envenenei meu corpo.

A mãe diz que a única forma de ser salvo é subir até a superfície e encon-

trar a cura. Finalmente, vou visitar o lugar a que sempre quis ir.

Antes da partida, a mãe revela que na vida não adianta viajar tão longe

pra descobrir a verdade. Ela sempre fica no lugar mais fácil de pegar. Nós

que a complicamos em jornadas sem sentido e acabamos presos em arma-

dilhas. A mentira é apetitosa e pomposa. A verdade é simples.

Agora meus olhos ardem com tanta luz. Os gigantes gritam assustados

com a minha chegada. Não entendo o medo deles. Sou um corpo mínimo

e indefeso. Talvez meu corpo represente algo demoníaco. Não tenho velo-

cidade para fugir. Meu sangue está todo contaminado.

Finalmente consigo enxergar. O homem vem em minha direção como um

deus furioso e o cetro em sua mão acerta minha cabeça. Durmo serena-

mente, relembrando as palavras sábias da grande mãe. Meu sacrifício foi

necessário. Meu legado é o exemplo para os novos ratos dos becos.

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Mas, se as crianças ainda são puras, desprovidas de

maldade e a mente ainda não está poluída pelos

monstros e perversidades existentes no mundo

real dos adultos, por que, então, elas imaginam que nas sombras

ocultam-se os objetos que devem ser temidos?

Pois não é a sombra ou a escuridão que assusta, que causa medo

e, em alguns casos, pavor. Mas sim o que elas ocultam... e só se

oculta aquilo que realmente existe.

Apesar de ser uma mulher adulta, Janete ainda preferia andar

sob a luz. Ela não temia mais as sombras como antigamente,

Demônios nas Sombras Há quem considere o medo do escuro algo irra-cional, que é um medo aceitável apenas no mundo infantil, cuja imaginação fértil floresce num cam-po tão propício quanto os lugares escuros, como, por exemplo, debaixo da cama, dentro do armário ou nos longos corredores das casas antigas.

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“A hierarquia e a disciplina gritam tão alto em nossos ouvidos que nossas ideias de jovem se tornam sussurros”

quando era criança, mas ela manti-

nha a prudência quanto a isso. Luga-

res escuros e ermos na cidade oculta-

vam demônios terríveis que não

existiam no interior, praias ou cam-

pos. Eram eles que suscitavam não só

o medo, mas também a maldade ine-

rente do ser humano. Aquele que

vibrasse na mesma faixa de sintonia

que eles facilmente se deixava levar

por sua lábia.

E eles deixavam....

Olhando de esguelha, Janete via as

ondulações pelos muros e calçadas

onde a luz não insidia. Tentava contro-

lar o calafrio que subia por sua espi-

nha. Sabia que, quanto mais ativas

eram essas movimentações nas som-

bras, mais era possível que algo muito

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ruim acontecesse. Sempre teve a

sorte de não presenciar nenhum

crime, mas soube de vários que

haviam acontecido nos locais onde

presenciara tais manifestações

intensas.

A noite estava chuvosa e muito fria,

de forma que apenas os obrigados

andavam pelas ruas. E Janete era

um desses obrigados.

Era véspera do Dia dos Namorados

e as lojas do shopping funciona-

ram muito além do horário nor-

mal. Janete era a gerente de uma

fina loja de presentes e, quando a

loja encerrou o expediente, o ôni-

bus que costumava pegar, que a

deixava em frente à entrada do seu

prédio, já havia parado de circu-

lar, de modo que fora obrigada a

pegar um outro que fazia um per-

curso diferente. Ela precisava

andar até três quadras para che-

gar em casa e já passava de uma

hora da manhã. As ruas estavam

completamente vazias. Nem carros

nem táxis eram avistados, embora

fosse uma sexta-feira.

Onde Janete morava era tranquilo,

com nada alarmante a acontecer

ou com que sepreocupar. E, nos

dias de hoje, andar por ruas deser-

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tas, à noite, não era mais perigoso

do que durante o dia e no meio da

multidão. Mas as movimentações

nas sombras davam-lhe arrepios e

mau augúrio como nunca antes

sentira.

A moça, instintivamente, apertou

os passos e o guarda-chuva em

suas mãos. Precisava controlar o

seu pânico, que dava mostras de

vir à tona depois de muitos anos.

Faltavam apenas duas esquinas

para chegar ao seu prédio. De

repente, um frio enregelante fê-la

parar abruptamente. Era como se a

temperatura tivesse desabado a

graus negativos de um segundo a

outro.

As sombras do muro avançaram

adiante dela, incorporando-se,

tomando a forma humana sem

abandonar a aparência de sombra.

E, pela primeira vez em sua vida,

Janete vislumbrou os olhos do

demônio, que a fascinavam e ater-

rorizavam ao mesmo tempo. Eram

olhos grandes e repuxados, porta-

dores de luz própria e apenas isso,

pois não possuíam íris ou pupilas.

O Demônio da Sombra estendeu a

mão escura e etérea, tocando o ros-

to apavorado de Janete. Foi um

choque para ela: além de ver e

ouvir, também podia sentir! Aque-

la constatação foi tão aterradora

que ela sequer percebeu com que

solenidade a criatura a tocava. Era

quase uma carícia.

Janete sufocou-se e engasgou-se,

dando dois passos para trás e

jogando no chão tudo que tinha

em mãos: guarda-chuva e bolsa.

Desviou-se da sombra demoníaca e

correu o máximo que conseguia

sobre os saltos altos de scarpin que

usava. Em seu desespero, não per-

cebeu para onde ia, entrando

numa rua estreita e erma entre

dois prédios enormes.

O Demônio nada fez. Permaneceu

parado, apenas observando a fuga

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da clarividente. Ele estava pesaroso, pois deveria fazê-la passar pelo pior

momento de sua vida. Gostaria de poder poupá-la de tal sofrimento, mas

era a única forma para ela fazer a passagem para as Sombras e para,

finalmente, a sua posse. Afinal, ela pertencia a ele e ao mundo dele. Em

seu pavor, Janete não percebeu que havia se enfiado numa ruela que só

não era completamente escura porquê uma lâmpada, num poste precá-

rio, tentava iluminar alguma coisa por ali. Apenas voltou a si quando viu

e ouviu as movimentações nas sombras com tal intensidade que jamais

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presenciara até então. Parou,

novamente estarrecida, quando

dois vultos avançaram em sua

direção. Apenas se deu conta de

que estes eram de carne e osso e

bastante humanos quando a agar-

raram com violência e a arrasta-

ram para dentro do vão de um dos

prédios, arrancando suas roupas

com brutalidade. Talvez fosse sorte

que a sua mente estivesse tão

embotada e confusa, pois não con-

seguia atinar com o constrangi-

mento que sofria nas mãos daque-

les dois homens. Somente pensava,

via e ouvia as Sombras, até que a

dor contundente no centro do seu

corpo a trouxe de volta àquela rea-

lidade, apenas para ter a infeliz e

total noção domal que lhe ocorria.

E outras dores mais se seguiram

em outras partes de seu corpo,

pelos dois homens que a estupra-

vam ao mesmo tempo e feriam a

sua carne violentamente.

Quando Janete pensou ter atingido

o seu limite do suportável e que

morreria nas mãos daqueles cana-

lhas, uma abençoada sensação de

torpor tomou conta dela, cessando

toda agonia e dor. Nem o frio mais

sentia. E as Sombras se aquieta-

ram e silenciaram. Uma sensação

morna de traquilidade se apossou

dela e onde antes a sua carne fora

brutalizada, estava sendo com-

pensada por carinhos ternos e

calmos, como jamais recebera em

sua vida.

Ao abrir os olhos, Janete se depa-

rou com aqueles olhos inumanos

de luz, que a fitavam de forma que

pareciam enxergar a sua alma. E,

desta vez, apenas sentiu o fascínio

que eles exerciam sobre ela. Final-

mente soube que fazia parte desse

Mundo das Sombras e do Demô-

nio que fundia seu corpo escuro e

etéreo ao dela.

E ela também se tornou escura como uma sombra, e etérea como o ar.

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DEMÔNIOS

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O lugar não era escuro. Nem precisava ser. Bastava que fosse como aquele outro dia.

Algo de seu cotidiano. Apenas entrar em casa após mais uma suada jornada de serviço.

Tudo o que precisava, encontrava ali, bem à sua frente.

Mas isso apenas se deu porque costumava faltar ao trabalho de vez em quando. E, a bem da verdade, ele pouco ligaria se fosse despedi-do. O ofício não lhe dava prazer. No máximo, pagava suas mirradas contas. Era mais um brasileiro que vivia a seu modo. Um modo um tanto preocupante, diriam seus amigos e vizi-nhos, caso realmente soubessem que ele era um cara perigoso.

Mas perigoso até que ponto?

Um dia qualquer

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Um dia qualquer

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nunca foi incerto. Pois o que amava fazer iniciou-se ainda na infância. E agora, sentado, pensava se esperava um pouco mais. Tinha um apreço especial por agir na escuridão. Mas isso não era uma regra. Às vezes, em locais banhados pela claridade (natural ou artificial, tanto fa-zia para ele), dava um aspecto de momento sagrado.

Nesse exato momento, chega-va à conclusão de que não era perigoso. Apenas agia de uma

forma diferente dos demais que preen-chiam a sociedade. Quem sabe um dia as outras pessoas se apercebessem e começassem a fazer algo similar. Ou até pior. Não dava para saber.

Quem teria sido o tolo que de-sencadeara a moral?

Quem poderia garantir que ti-rar a vida de outrem era mesmo algo ilícito?

Quem em sã consciência teria a capacidade de dizer se os mor-tos não estavam em situação infinitamente melhor que os vivos?

Isso ele não sabia. E com toda certeza, quem quer que o visse agora ali, em sua

agradável cozinha, pensaria sobre o que é ser extremamente perigoso.

Sentado se encontrava. A mesa estava posta. Ainda dava para ver o sol despontando no ho-rizonte cravejado de casas e prédios. Cena curiosa para ele. Pois via apenas as silhuetas. O dourado que irradiava chegava a lhe fazer pensar sobre o que ele era.

Podia ser luz e trevas.

Não importava.

Importava para outros.

Mas ele ali em sua cozinha, limpa, com o odor de algum produto de limpeza para a louça… bem, para ele em absolutamente nada im-portava.

Trabalhar.

Trabalhar era só uma parte da vida que servia de muleta. O que lhe dava tesão era em sua residência ficar. Não apenas na cozinha, mas em todos os cômodos. E isso porque mora-va sozinho. Ou quase sozinho. Estava na casa dos trinta, bei-rando os quarenta. O futuro

Gostava de ter a companhia feminina. As mulheres eram

o tudo e o todo...

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Para ele, a vida era uma pas-sagem. Assim como os outros atravessavam a porta, ele sabia que, a qualquer momento, tam-bém faria a travessia. Mas esta tinha de ser do seu jeito.

Olhou para o fogão e viu que algumas manchas insistiam em ali permanecer. Tudo bem. Ninguém além dele notaria. As grandes vantagens de viver uma (quase) solidão. Pois nem visitas existiam. O que era bom demais. A não ser quem ele para casa trazia para contar al-guma história verídica de sua vida. Mas não eram os colegas de trabalho. Deles, queria uma distância infindável.

Gostava de ter a companhia feminina. As mulheres eram o tudo e o todo. Mas tinham o seu tem-po. E para um cara como ele, grande, as mu-lheres deviam ser jovens. Ja-mais chegar a ter sequer um único fio de cabelo branco. Não chegar a uma idade em que elas se sentis-sem subtraídas de um mundo repleto de desi-gualdade.

O sol era agora um ponto que se ramificava em uma linha

horizontal. As sombras logo deixa-riam o ambiente doméstico sem a presença de vida.

Mas, sem a presença de qual vida?

Era uma pergunta que ele sempre se fazia.

Porém, o resultado era o mesmo. E a isso se somava a geladeira. Cos-tumava beber um litro de cerveja antes do ritual. Não no gargalo, mas sim no copo. Era antiético fa-zer tal afronta aos bons costumes.

A cidade era Francisco Alves do Sudoeste. Localizada en-tre Francisco Beltrão e Pato

Branco, no Paraná. Mas o homem da cozinha não era natural desse

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estado. Nascera em São Paulo e especializou-se no Rio de Janeiro em algo que poucos eram extraordinariamente interessados.

Nunca casara. Mas teve diversos filhos. Todos bastardos que nunca imagi-nariam quem pudesse ser o pai. Ele perambulara um tempo pelo Centro--Oeste. Chegara ao litoral do Nordeste. E também conhecera uma parte da floresta quando fora para Manaus.

Mas, acabou por aterrissar no Sul. Achava que a cidadezinha era perfeita. Lugar calmo. Sem consequências futuras.

Dava para arriscar?

Sim.

E foi muito mais longe do que podia imaginar.

Assim que o sol desapa-receu, a cozinha fora encoberta pela escu-

ridão. Estava na hora. Não que precisasse de um mo-mento certo para o que iria fazer. O que ele ansiava era o fazer. Sem arrependimen-to. Sem dó. Sem mágoa. Sem nenhum suspiro de tristeza, mas sim de alegria. Precisava de um incentivo para viver. E isso era o que para qualquer um se chama de fazer o ilí-cito. Adentrar em um campo onde a dor sustentava o sen-tido primordial. Ele amava a vida. E sabia que tirar a vida de outra pessoa era como dar a chance de escapar de um mundo onde o caos impera-va gradualmente a cada dia. Onde as chances de sucesso se mostravam cada vez mais ínfimas.

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Pegou a garrafa vazia e atirou contra a parede. Sempre tinha disso. Depois ele faria a limpeza. Era bom para treinar. Pois seu costume maior era causar sujeira. E sem que mais nenhuma outra pessoa per-cebesse.

Sua casa era localizada em um conjunto habitacional recentemen-te inaugurado pela prefeitura, que utilizara recursos do governo fe-deral. Ele desconfiava que uma boa parte da grana pública havia sido desviada. Pois não eram poucas as casas que ainda não estavam prontas. Mas, assim mesmo, o que já estava em pé, podia abrigar várias famílias. Ele mesmo achava que não conseguiria ter esse lar. Mas conseguiu…

E, graças a isso, sorriu cada vez mais.

A vantagem era a localização. O lar estava isolado das demais cons-truções. Ninguém o importunava. Podia ouvir música com o volume no máximo se assim desejasse. E, em verdade, o fazia. Mas uma mú-sica macabra.

Levantou-se e abriu a braguilha. A barriga pesava um pouco. Im-possível era manter a forma sem fazer algum exercício. Porém, isso não interessava. Foi até a janela e puxou as cortinas. Deu

uma olhadela na mesa e achou que não mais havia qualquer necessi-dade de ler o jornal. As notícias eram comumente as mesmas. A não ser manifestações pelo Brasil adentro. Mas, fora isso…

Tinha uma época em que ele adorava ler o caderno policial. E, hoje, apenas comprava o jornal para tentar parecer o cidadão de bem que quer se manter informado acerca da violência de sua própria cidade e região.

Quem diria, Francisco Alves do Sudoeste, mesmo sendo pequena, não era bem vista. Lembrava facilmente os grandes centros.

Ele esticou os braços e uniu os dedos. Sentiu o som e o leve impacto dos ossos. Suspirou e começou a andar para o quarto.

A casa podia ter sido construída pelo governo, mas ele andou traba-lhando nela. E, com muito esforço, fez um porão. Nada que compro-metesse a estrutura. A entrada era por um alçapão que ficava oculto pela cama. Não era algo magistral, mas funcional.

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Arrastou a cama, lembrando se todas as janelas estavam fechadas. A casa tinha duas portas. Uma na frente e outra nos fundos. Parou por um momento e pensou. Também não importava. Tudo que começava, um dia terminava.

Normal mesmo.

Abriu aquela portinhola e desceu.

Acendeu a lâmpada e começou a estu-dar a menina de vestido curto e pés descalços.

Franzina. Andava próxima de completar dez anos. Era branca. Um contraste com a pele negra do homem alto que a encarava. Ela estava estirada em um colchão. O chão de terra batida. O lugar era apertado, mas com ele ali, ficava ainda menor. A garotinha estava desacordada. Era apenas mais uma que ele pegara com facilidade. Tinha tanta experiência no assunto que chegava a se perguntar se não podia ministrar um curso para quem mais se interessasse em se tornar um assassino de primeiro nível. Deu um passo e sua cabeça encostou na lâmpada, que dançou. Fazendo um leve estalo. As sombras que foram desenhadas correram pela menina, que se remexeu rapidamente. Não haviam marcas de violência nela. Mas os olhos estavam marejados.

Ele sacou uma faca do bolso traseiro. Era pequena. Mas tão cortante quanto o seu desejo de fazer o mal. A menina abriu os olhos. E quando a isso fez, teve a certeza de que seria a última vez.

O homem não se daria por satisfeito apenas em cortar. Queria ejacular. Queria entrar onde houvessem buracos. Ele fazia isso porque tinha in-tenção de salvar. Tirar a menina desse mundo escroto. Por que fazê-la sofrer, então? Porque algo dentro dele dizia que era a única forma de poder atravessar a porta de uma maneira pura, deixando toda a podri-dão para trás.

E, por fim, ele avançou, imaginando se o jornal sobre a mesa conteria alguma informação sobre como fora encontrado o mais recente corpo… e, por isso, se arrependeu de não ter dado uma conferida… e prometeu a si mesmo que nunca mais deixaria de abrir o informativo de papel todas as manhãs durante o café…

Agarrou os cabelos da menina, que se debateu, gritou e chorou…

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O restante, dava para

acompanhar pelo jornal.

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A ATRIZGÓTICA WICCA

A atriz em formação Adriana Billa é assistente fiscal em uma indústria paulista. Passa seus dias lidando com a ciência exata dos números, com cifras, porcentagens, deduções. À noite, é hora de colocar espartilhos, braceletes com spikes, lentes de contato, muito lápis e entrar no universo gótico e do Rock. Billa é a proprietária do bar Billa Rock Café, voltado para o público roqueiro, na Avenida Brasil, em Ferraz de Vasconcellos, na cidade de São Paulo. “Quando chego em casa e mudo meu visual, me sinto como se fosse o Clark Kent virando o Superman” brinca. Para ela, esse universo é muito mais que um negócio, é um estilo de vida.

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BRUXINHACUIDADO COM SEUS ENCANTOS!!! 53

Criada em família evangélica, desde cedo ela começou a encarar a dificuldade que grande parte da sociedade tem em compre-ender essa ou outra tribo de jovens que fogem dos padrões de

comportamento convencionais. Tudo começou quando ela tinha em torno de 13 anos e se apaixonou por poesias sombrias, como as de Au-gusto dos Anjos, e por contos de terror. “Eu adorava a coisa intensa, fatalista”, explica. Ela começou a escrever seus próprios poemas que, admite, eram uma forma de lidar com seus problemas pessoais. “Era uma maneira de não afrontar minha família e ao mesmo tempo de desabafar o que eu sentia, aí depois que passava esse momento, eu rasgava e jogava fora sem mostrar pra ninguém”. Olhando com a perspectiva de adulta, a própria Billa reconhece que fazia muita tempestade em copo d´ água, criando dramas enormes por coisas insignificantes como, aliás, todo mundo faz aos 13 anos, mas acredita que esse processo ajudou no seu crescimento pessoal. “Hoje vejo que os problemas são muito mais sérios e que não posso deixar que me afetem tanto quanto nessa época”.

VISITADA POR MORCEGOSFoi por volta dos 18 anos que ela realmente começou a estudar mais a fundo essa cultura, incluindo a literatura e a música. Se interessou em especial pelo Rock pós-punk dos anos 1980. ela começou também a adotar o vestuário típico da tribo gótica, com as roupas pretas, as botas, espartilhos, braceletes, cintos e outros acessórios. Ninguém mais em sua família tinha essa tendência, então o visual causava um estranhamento enorme (ela tem uma irmã e um cunhado que hoje são pastores). “Meus amigos vinham me buscar para sair, usando sobretudo, roupas assim, e meu pai dizia “ tem uns morcegos aí na porta te chamando!”. Para completar o cenário, ela tinha o quarto cheio de posteres de banda colados em um tecido preto pois não po-dia pintar as paredes, hoje tem o quarto todo pintado de vermelho, enfeitado com bruxinhas, fadas e coisas do gênero. Apesar desse tipo de brincadeira, ela garante que nunca chegou a ter brigas pesadas por causa desse estilo diferente. Como Billa continua-va sendo, no geral, uma boa filha, responsável, que tirava boas notas na escola, a atitude era perdoada e encarada como uma fase normal da juventude. “Eles viram que era algo que não me prejudicava, aliás estava me ajudando a tirar boas notas, porque eu lia muito”, acres-centa. Mesmo na escola, ela conseguiu ser bem aceita, até porque evi-tava exageros no vestuário e tinha colegas que também faziam parte da tribo. “Conheci pessoas nessa época com quem tenho amizade até hoje”, reforça.

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PODER NAS MÃOS VOCÊ ENTREGARIA SUA VIDA PARA ELA?

LONGE DE ESTEREÓTIPOSDe fato, ao conversar com ela, não se vê nada da imagem este-reotipada pela televisão e filmes do gótico sempre mórbido, de-pressivo e obcecado com coisas

negativas e grotescas. Além de belíssima, Adriana Billa é sor-ridente, simpaticíssima, comu-nicativa e dinâmica. Exatamen-te por ser tão responsável, tão “normal” durante o dia, ela ad-mite que essa outra cultura, essa identidade podem ser formas de

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liberar um outro lado da sua personalidade. “Quem vê uma foto minha de dia e outra tirada na balada não diz que são a mesma pessoa”, ironiza. “Continuei com isso depois da adolescência porque me identifiquei com a cultura, com essa idéia de rejeitados, daquilo que as pessoas não gostam, queria ver o que tinha de bacana nisso e hoje descobri. No geral não, mas de vez em quando gosto de chocar um pouco, ver a reação das pessoas é interessante”.Ao lidar com os religiosos mais insistentes e menos compreensivos, ela procura contornar. “Não fico tentando mudar a pessoa, cada um tem a sua ideia do que é certo e errado. Se é assim que ela vê, tudo bem então”. Assegura que nunca sofreu episódios mais agressivos de preconceito, mas já viveu situações inusitadas no metrô. “Eu já cheguei com as roupas, ade-reços, a maquiagem bem pesada e as unhas pretas e compridas e, quando

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sentei no banco, teve gente do meu lado que levantou e foi pra outra parte, como se eu fosse atacar de repente”, relembra rindo. “As pessoas às vezes se chocam com poesias que eu leio falando da morte, até admirando, vendo ela como uma deusa”. Billa não entende o tabu que as pessoas têm de falar nesse assunto, “porque é algo pelo que todos vamos passar, é inevitável, mas não quer dizer que esteja querendo atrair isso, que fique pensando em morte a todo instante”. Ela fez faculdade de Letras, onde conheceu outros fãs da literatura gótica e de terror e, mais uma vez, ajudou a mudar opiniões ao mostrar a riqueza dessa cultura. “Existe toda uma lite-ratura clássica desses gêneros, como Allan Poe e Lovecraft, então me realizei, fiz muita gente ver porque eu curtia tanto isso”.Ela admite que existe uma minoria de fanáticos que exageram e acabam comprometendo toda a imagem dos góticos. “Você tem a pessoa que faz plás-

ENCANTADORA

VOCÊ VIAJARIA NO TAPETE MáGICO DELA?

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tica, serra os dentes, faz implantes para parecer vampiro. Cada um faz com seu corpo o que quiser, é claro, mas acho exagerado, quer dizer, você não vai realmente vi-rar um vampiro e sugar sangue se fizer isso, mas o fanatismo existe em qualquer grupo. Ser gótico vai além das roupas que usa ou do que aparenta ser”.

REUNIÃO DE AMIGOSOutro fato da vida de Billa que foge dos clichês sobre góticos é que sua ideia para o bar nasceu da sua adoração pela sitcom norte-ame-ricana Friends. “Eu adoro a série, queria um ambiente como aquele do Central Perk (um café que ser-via constantemente como ponto de encontro entre os protagonistas da série), um local para as pessoas se encontrarem, baterem papo, mas mais informal e descontraído”. Foi então que em uma conversa com pessoas próximas chegou a con-clusão de que um bar seria mais próximo do que ela pretendia. Ela lembra que o Billa Rock Café não é voltado exclusivamente ao público gótico e sim ao de Rock em geral, incluindo, entre outros, Metal, Hard Rock, Grunge e Punk. De fato, as tribos acabam se mis-turando no ambiente. “No começo, cheguei a ficar com medo, achan-do que podiam rolar brigas, mas não foi assim, o pessoal hoje não tem aquela visão tão radical do passado, de não se misturar, o que eu acho ótimo”, aponta. “Tem gen-te que curte Techno, por exemplo,

passa na frente, escuta o som, fica interessado e entra e, por incrível que pareça, ainda tem alguns que chegam na portaria e perguntam se podem entrar, se precisa estar vestido de preto, esse tipo de coisa, mas quando estão lá dentro aca-bam se divertindo”. Muitos, ga-rante ainda, estranham o visual dos frequentadores. “Alguns caras ficam até com medo de chegar nas meninas, acham que vão levar um soco, mas aí conversam e vêem que a garota é uma graça”. O bar tem atrações variadas. Inclui apresentações musicais, dança, li-teratura e teatro que se revezam no seu palco. Às quintas-feiras, abre espaço para outros estilos, como Pop/Rock, acústico e MPB, enquanto às sextas e sábados são voltados às tribos roqueiras. Nos domingos, faz eventos para o pú-blico roqueiro mais jovem, até as 22 horas. “São aqueles adolescen-tes que não têm idade para entrar nos outros dias, que estão ainda começando a aprender e fazer parte da cultura Rock and Roll”. Ela passou por um aperto entre os meses de janeiro e maio, quando o bar ficou fechado em meio à onda

“As pessoas às vezes se chocam com poesias que eu leio falando da morte, até admirando, vendo ela

como uma deusa”.

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de paranoia generalizada em relação à segurança de casas noturnas que se seguiu à tragédia da Boate Kiss. “Vieram falar coisas absurdas, que nossa saída de emergência não comportava o público, coisas as-sim. Conseguimos toda a documentação necessária, fomos até um juiz que emitiu um termo e, agora, se alguém vier questionar, é só mostrar esse documento”.

NÚMEROSMesmo com toda a paixão que tem por essa cultura, durante o dia Billa exerce uma atividade que não poderia estar mais distante, como

COINCIDÊNCIA? OU O EROTISMO SEGUE CADA PASSO QUE ELA Dá?

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ENCANTADORASABEDORIA, CHARME E FORÇA SOBRENATURAL

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assistente fiscal. Além de Letras, ela estudou em cursos de Admi-nistração e Contábil e voltou-se para a contabilidade. “Acabei me interessando pela área fis-cal, é bom saber o quanto você está pagando de impostos!”. Ao trabalhar no ambiente formal de um escritório, de início pre-cisou ser extra cuidadosa com o figurino, mas hoje fica num meio-termo, combinando calça social com bota e espartilhos e usando maquiagem discreta. “Novamente, depois de me co-nhecerem meus colegas muda-ram totalmente a forma como viam os góticos e roqueiros em um modo geral”.

SER QUEM QUISERComo se sua agenda já não fosse cheia o bastante, Billa está ali-mentando uma outra paixão, o teatro. “Eu sempre adorei essa coisa de poder ser outras pesso-as sem deixar de ser quem você realmente é, pessoas que você gostaria de ser mas não tem co-ragem”. Conta que o processo do ator a interessava desde muito cedo, quando via filmes. “Eu me perguntava como a pessoa vivia

aquilo, como criava uma perso-nagem”. Ela começou em uma oficina gratuita em Itaquera, São Paulo, depois em um de seus cursos administrativos ficou responsável pelo projeto teatral no qual precisou montar uma peça em pouco mais de um mês. Fez uma sobre os sete pecados capitais em que cada pecado era representado por uma mulher, um homem era a humanidade tentando conquistar o mundo, mas sendo impedido por elas. Atualmente, cursa uma oficina aos sábados, mais voltada à co-média, e outra às terças e quar-tas, que trabalha com ideias mais sombrias e “loucas”. Ela viu uma peça montada por eles chamada “O Velório” e ficou ad-mirada. “Assisti e pensei: nossa, tem tudo a ver com o univer-so gótico, com o lado negro da força”. Billa pretende continuar fazendo teatro, mas tem muita vontade de trabalhar também em filmes. Já a televisão não a empolga tanto. “Tem coisas de qualidade, como seriados e mi-nisséries, mas em novela não tenho muito interesse”. Já criar uma personagem voltada para o terror, como os da Contos do Absurdo, com certeza é algo que ela quer explorar.

MONSTRO SIM, BONITINHO NÃO!Para ela, a popularização atu-al do terror, do vampirismo e dos zumbis tem lado positivo e negativo. “A série The Walking Dead é muito bem trabalhada,

“As praticantes que eram perseguidas antigamente em geral estavam tentando curar pessoas, usando o poder medicinal natural das plantas”

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mas aí todo mundo começa a falar de zumbis, vêm outros filmes e seriados tipo Guerra Mundial Z, você acaba saturando, jogando muita informação sobre a mesma coisa”. Apesar de achar vampiros sexy, ela não se liga na onda Crepúsculo. “Agora tudo tem que ser bonitinho, mas monstros não são para ser bonitinhos, o pessoal que curte esses filmes de agora muitas vezes não conhece as coisas legais do passado, como um Christopher Lee”.

BRUXINHA DO BEMEla também levou o interesse por esse universo para o lado espiri-tual. Billa estuda e pratica Wicca, uma religião milenar que até hoje é mal vista por muitos cristãos como bruxaria e até adoração do diabo. “As praticantes que eram perseguidas antigamente em geral estavam tentando curar pessoas, usando o poder medicinal natu-ral das plantas”. Assim como ocorre com os góticos, ela lembra que existem alguns praticantes que agem mal e, mesmo sendo minoria, prejudicam a imagem de todos, quando de fato a Wicca é uma magia natural, que enfatiza o bem no ser humano. Ironicamente, hoje os tratamentos medicinais à base de plantas estão na moda. Ainda por cima, um dos pontos essenciais da Wicca é a adoração e preservação da natureza, numa época em que se fala o tempo todo em preservação do meio ambiente e desenvolvimento sustentável. Os mesmos que, no passado, estigmatizaram essas práticas como magia negra ou satanismo são, em grande parte, os responsáveis pela in-tensa degradação ambiental que coloca em risco o futuro da vida no planeta. “Se, no passado, tivessem dado mais ouvidos aos seguidores da Antiga Religião, talvez hoje a gente não vivesse essa situação de efeito estufa e outros problemas”, aponta Billa.Ela faz seus próprios preparados, mas que também passam longe dos velhos estereótipos de jogar pés de rato e asas de morcego em grandes caldeirões fumegantes. “Eu faço coisinhas para mim, um perfume que acho que vai ser bacana, algo para atrair boas vibra-ções, tenho um potinho com pedras que servem para diferentes coi-sas, como saúde e dinheiro”. Às vezes, no fim do dia, acende um incenso ao chegar em casa, principalmente depois de um dia difícil no trabalho. De fato, Billa vê nesse tipo de ritual um efeito mais psicológico do que literal, de estimular o poder da mente. “Não é que o incenso ne-cessariamente vai melhorar tudo em minha vida, mas o ato de acen-dê-lo me ajuda a mentalizar e atrair melhorias para ela e, no fundo, todas as religiões são isso, rituais que as pessoas praticam para se sentirem melhor. Um culto, uma missa é uma troca de energias en-tre as pessoas. Você se reúne com pessoas que pensam parecido, em busca de um bem comum”.

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Visão doPORTFOLIO DO ABSURDO

Você sempre foi fã de terror? Via muitos filmes desse tipo na infância e juventude?

Sempre fui muito fã de filmes de terror. Adoro “A Hora do Pesa-delo”. Acho que um dos melhores personagens de filmes do gê-nero, com certeza, é o Freddy Krueger. Recentemente, revisitei este filme para ver detalhes que haviam se apagado da memória. Excelente! ‘O Massacre da Serra elétrica’ é também um Clássico.

- Como você começou a se interessar por fotografia, especificamente voltada para o terror?

Esse tipo de fotografia começou a me interessar em 2010, quando fiz 1 Semestre de Fotografia na Escola São Paulo. Lá consegui ver o trabalho e analisar muitos fotógrafos incríveis. Depois comecei a ver que existia um caminho a percorrer que é muito pouco ex-plorado.

- A fotografia em geral enfatiza o belo, o estético. O terror em geral lida com o feio, o grotesco, o sombrio. É difícil para você trabalhar essa estética nesse meio? O seu trabalho é bem compreendido?

Não acho complicado, porque o belo e o estético são questões pes-soas e interpretação. Existe o belo no meio do terror. Assim como existe a estética. Você só precisa saber extrair e trabalhar com isso.

Fotografia

T ERRORFelipe Martins34 anosFotografo desde 1999Ganhei prêmio de fotógrafo revelação em 2010 na Escola São Paulo com a Foto ‘Fifties’

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Visão doT ERROR

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_ Além da fotografia, você se envolve com o universo do terror de ou-tras formas? Se envolve, por exemplo, com a tribo gótica ou vampira, esse estilo de música, o visual?

A única tribo que eu tenho são as do Rock, Heavy Metal. Ouço desde pequeno por influência do meu irmão mais velho. Toco gui-tarra desde os 14 anos, tive algumas bandas. Já fui cabeludo meta-leiro, andava sempre de preto. Minhas tatuagens, em sua maioria, são de caveiras, demônios e seres maléficos.

- Como o terror inspira sua fotografia? São filmes, literatura, situa-ções de terror da vida real?

Na verdade, andar por esse caminho foi muito natural, porque o que eu faço, eu tento sempre colocar em situações que poderiam acontecer realmente. Na fotografia, não tenho atração pelo exa-gero. São situações, em sua maioria, muito plausíveis. Acho que é daí que desperta o interesse nas pessoas.

- Que imagens você consiera mais assustadoras?Com certeza as imagens que me transporto para dentro daquela situação. Ela tem que mexer com você, te levantar lá no alto, sacu-dir e você sair de lá se perguntando: “Será que aconteceu mesmo?”

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LOBISOMEN

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Acalmem-se.Aqui vocês estão

seguros!!!

Obrigado, SENHOR!

Os cordeirinhos só estão assustados e

famintos!!!

Não sei como podemos agradecer...

Entrem no meu paraíso, comam e tomem banho.

Tentem descansar!!

preciso da carne de vocês macia, ops! quero dizer vocês terão camas bem

macias....

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Aqui é meu império!Graças ao pai de

luz e fé...

É maior que o Templo da UNIVERSÃO!!!

Chega de falsas esperanças...

Meu mordomo irá acompanhá-los até seus aposentos.

iremos servir o jantar logo, por favor. tro-quem essas roupas e renovem os perfumes

Chega de faltade carinho...

Chega de miséria...

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nossa que gatona!!!hi!hi!hi!

Shampoo e sabonetes da melhor qualidade, banho quente...

nada se compara com a vida que eles irão ter agora!!!

os problemas parecem descer pelo ralo, junto com a sujeira!

uma vida com fartura!!!

Peles cheirosas e macias

Roupas importadas que valorizam os corpos!

Jóias e tudo do bom e do melhor!

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É muita comida!!!

o senhor deve ser muito rico!!!

com o quê o Sr. trabalha?

A coisa está esquentando e vai

esquentar muito mais....

trabalho com compras e vendas. Sempre

compro barato o que eu quero....

hum...o senhor tem esposa???

olhares discretos

e muito tesão!

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nossa só tem uma cama...

não vamos preci-sar de outra

eh! eh! eh!

ai, que tesão!!!

isso seu otários!deixem a luxúria, a gula e

ganância tomarem con-tas de vocês...

Calm down! Here you’ll have all you

need. Come in, eat and get a bath!

vamos logo com isso....

hoje você vai ser nossa!!!

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acordem! está na hora de trabalhar.

nossa que noite deliciosa!!!

agora vocês serão fa-mosos! Atores pornôs

amadores

coloque uma roupa simples para ajudar.

vou colocar esse filme na internet!!!

vocês terão que ajudar, nada é de

graça....

Eu quero que vocês conheçam a minha fazen-da,aqui preparamos gado

de primeira

não!!!

você não pode fazer isso!

eh! eh! eh!

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Vocês foram atacados por um bando que fugiu do meu

rebanho

está cada vez mais difícil encontrar carne de primeira

para os meus bichinhos,

hoje nos vamos marca-los com ferro e fogo...

está na hora da raça de carne

deles...

apesar do investimento caro com comida, banho e

cama, o resultado é sempre satisfatório...rs...rs..rs.

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TONINHO D

O DIABO

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A ORIGEM - parte 2

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Gosto desses lugares assim. Grandes, vazios.

Me assustam, mas minha imaginação viaja. Qualquer

coisa pode sair daí.

É como andar no trem-fantasma...

... Mas sem aqueles bonecos nada-a-ver.

Viram? Falei que a princesinha ia entrar

na fábrica!

Menina doida! Não te contaram, não?

É aqui que o monstro ataca! Devora gente e joga os ossos

fora!

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Volta aqui, putinha!!

Viram? Tava só se fazendo de difícil! Assim

que é gostoso, né?

Olha só, tão novinha, tão princesinha... e já

tem peitinho!

NÃO!!

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G RRR

RRRO OO

O A AAAA !! !!

Continua.

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No Dia das Bruxas

Participe!Mande o seu trabalho - pode ser desenho, conto, roteiro para HQ, ilustra, matérias e ensaios fotográficos - para:

[email protected]

CriadorMario Mancuso

PublisherDaniel Vardi

Editor-chefeAlexandre Winck

Conselho editorial: Alexandre Winck, Daniel Vardi, Francisco Tupy, Mario Mancuso

Projeto Gráfico: Publigibi sob projeto inicial de Isabella Sarkis

Todos os direitos autorais pertencem aos respectivos autores, não podendo ser reproduzida sob quaisquer aspectos sem a devida autorização dos mesmos.As opiniões e fatos aqui expressos são totalmente de responsabilidades dos autores, não significando necessariamente a opinião da revista.

www.contosdoabsurdo.com.br

Rua João Moura, 1088Vila Madalena05412-0002 São Paulo - SP(11) 2366-8880

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Contos #6

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