Cobra d´água

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Livro de poesia de A.M.Pires Cabral

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COBRA-D’ÁGUA

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Título: Cobra-d’água

© A. M. Pires Cabrale Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2011

ISBN: 978-972-795-324-0

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A. M. Pires Cabral

Cobra-d’água

Cotovia

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Índice

I Parte: Sarabanda p. 9

Elegia do reencontro 11A chaga 14Bipolar 20A grossa língua 22Tétano 25O Seringador 27Haendel, Sarabanda 30Entreabre-me a porta 31Explicações 32O canal 33Não me mostres nenhum norte 34Perguntas 35Poetas e deuses 36Noite escura 39Uma outra Primavera 40Vaqueiro 42Não sejas arrogante em demasia 43Via láctea, estrada-de-Santiago 44

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II Parte: Requiem p. 47

A única diferença 49Ao meu dedo mínimo 50Como a cobra 51Defeito de fabrico 53O ónus dos órgãos 54As carnes gastadas 57A tua asa 58Árvores e poços 59Mozart, Requiem 60Como faz um verme 62Cães que brincam 63O que diz a rã 66O que diz o rato 68Serpentário 69Volume de tráfego 70Uma toupeira na calçada 71Figura triste 73Túnel 75

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I Parte

SARABANDA

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ELEGIA DO REENCONTRO

Diz-me que sim, que voltarei a vê-los,aqueles de quem fui contemporâneoe a quem amei sem nunca lho ter ditonem sequer sinalizado com um gestoque fosse de amor e rigorosamente nada mais que de amor,e quero indemnizar dessa omissão.Aqueles que chorei ao ver que o tempo se lhes ia escoando e escoou, como se escoa a luz numa candeiapor escassez de azeite e a contragosto.

Dá-me a palavra de honra de que um dia voltarei a ver aqueles que me deram risocomo quem dá um doce a uma criança,e que me deram choro também como quem dáum doce a uma criança.

Eles eram meus e fizeram-se-me em fumo. Eles tinham um invólucro, de que foramdesapossados à força.Mas diz-me que sim, que voltarei a tê-loscapazes de fogo, sob os dedos dóceis,não apenas em memória, cujas asas friáveisa simples chama da vela pode invalidar,mas em presença, nos seus corpos e naquiloque parecia ser uma alma, mas tambémàs vezes parecia não o ser.

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Diz-me que ainda uma vez terei aquelesque agora, incapacitados em extremo,desfigurados em simples lascas de osso,estão depositados num promíscuo lugarentre esquírolas de madeira e farrapos de galões(a negra sumptuária), e tudo são detritos que não fazem sentido onde de restonenhuma outra coisa parece fazê-lo — a esses,de novo alvoroçados pelo sangue,diz-me que sim, que voltarei a vê-lose a chamar pelo nome.

Diz-me que voltarei a encontrá-lose, apesar de tanta ausência, me reconhecerão e todos poremos no rosto indícios de prazer.E que todo o tempo será estreito para abraços — oh, diz-me que voltarei avaramentea tê-los entre os braços.

Inteiros, a carne re-havida,o inverso do pó — diz-me que sim,que tornarei a vê-los e a falar-lhes,a sentá-los comigo à minha mesa,e que não serei eu que me sentarei jamaisà sua mesa de terra.

Diz-me que sim, que a fala lhes serárestituída, e farão dela um uso festivoe terão uma palavra para cada coisae calar-se-ão nos momentos de calar.

Sei que parecerei então pai do meu pai(que morreu novo) —

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mas deve haver na tua oficina alguma maquilhagem para casos como este.E, mesmo que não haja, até há-de ter graça invertermos os papéise ser a minha vez de ralhar e aconselhar e esmagar entre os dedos uma lágrimacomo eu o vi esmagar algumas vezesa pretexto de mim.

Diz-me que não foram eficazesas diligências do tempo para os corroer,diz-me que carne e pele triunfarão no dia do reencontro e proclamarão a sua gloriosa suficiência, a sua genuína aptidão de único fulcro das alavancas do tempo.

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A CHAGA

I

Dou-me conta que é sempre a mesma chaga que tenho coçado com audácia todos estes anos que levo de jacobino.

O utensílio com o qual a coçotambém é sempre o mesmo: as prestimosas e solidárias unhas da minha mão direita.

Podia coçá-la com uma folha de lixa, um caco de telha ou vidro partidos ao acaso, um garfo velho comido de ferrugem, qualquer fortuito dispositivo apropriado e insultuoso —

— mas é às unhas que recorro sempre,creio que um pouco por rotina,mas outro tanto por respeito pela chaga,que jamais confiaria o seu pruridoa nada que não seja uma parte de mim.

E tão-pouco se altera o gesto de coçar:coçar foi desde sempre um acto lascivo, de eficácia provada se bem que fugaz — pois que depressa

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a comichão se reinstala, acaso mais premente,na crosta da chaga.

E ando nisto há décadas, senhores.

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II

De quando em quando dou comigo a pensarque convém talvez tratar a chagaantes que alastre e já não tenha cura.

É provável que nalguma gaveta — daquelas gavetas em que apenas se amontoam a esmo gloriosas futilidades cheias de história amortecidaprestes a extinguir-se ou já extinta,e que só frequentamos em maré de nostalgia —tenha ainda uns restos da pomada antigaque a seu tempo me foi distribuída

— e cuja eficácia, verdade seja dita,nunca me dei ao trabalho de testar.

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III

Mas a pomada deve ter secado há muito e perdido a validade.A chaga, por seu turno, estabilizou. E, palavra de honra, custa-me despedir um partenairecom que, no fim de contas, mantenho uma relação tão cordial —manancial de salutares consumições,espécie de pequeno-almoço de buffetcom queijos e compotas, como eu gosto.

De modo que o melhor é mesmo pactuar, encolher-me um pouco, repartir com ela o espaço disponível no meu crânio.

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IV

Uma espécie de coabitação civilizada. Ou simbiose. Ou melhor ainda: um pas-de-deux devasso, pouco recomendável a gente de bem, coreografadono palco nocturno do meu quarto.

A minha chaga e eu, o par da noite,a flutuar na pista valsas lentas:um-dois-três, um-dois-três, um-dois-três.

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V

De bem pouca matéria precisamos afinalpara fabricar uma renúncia.

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