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Acta Obstet Ginecol Port 2010;4(4):213-216
Caso Clínico/Case Report
ABSTRACT
Acute myocardial infarction (AMI) is a rare disease in women of reproductive age. The estimated incidence in pregnancy is 6.2/100.000, but this number may be increasing as women are postponing their pregnancies.The authors report the case of an AMI in a 33-year-old woman with a personal history of chronic hypertension, obesity and dyslipidaemia, and a family history of 3 irst-degree relatives with AMI.The episode occured at 29 weeks of pregnancy with a typical clinical presentation.Electrocardiographic changes and increased biochemical markers conirmed the clinical suspicion. Cardiac ultrasound showed no signiicant compromise in cardiac function. The woman simultane-ously developed moderate preeclampsia. After pharmacological treatment, no major complications of the AMI and preeclampsia ensued. At 33 weeks of gestation fetal growth restriction was diag-nosed, with absent diastolic low in the umbilical artery. A fetus weighing 1370g was delivered by caesarean section. Short-term maternal and neonatal evolution after delivery was normal.
Keywords: Myocardial infarction; pregnancy, high-risk; medical complications of pregnancy; preeclampsia; fetal growth restriction
INTRODUÇÃO
O Enfarte Agudo do Miocárdio (EAM) constitui uma ocorrência rara em mulheres em idade fértil, mas a gravidez parece aumentar o risco 3 a 4 vezes(1). Es-tima-se uma incidência de EAM de 6,2/100.000 ges-tações1, sendo mais frequente no terceiro trimestre da gravidez e nas primeiras 6 semanas após o parto2,3. Esta patologia tenderá a ser um problema cada vez mais prevalente na prática obstétrica, à medida que aumenta o número de mulheres a engravidar nas fai-xas etárias mais elevadas4.
Enfarte agudo do miocárdio na gravidez – caso clínico e
Acute myocardial infarction in pregnancy – case report
Samanta Soares*, Ângela Ferreira*, Ivone Lobo**, Jorge Mimoso***
Hospital de Faro
* Internato Complementar de Ginecologia/Obstetrícia** Assistente Hospitalar Graduada de Ginecologia /Obstetrícia*** Assistente Hospitalar Graduado de Cardiologia
O caso apresentado é paradigmático, tanto em ter-mos de factores de risco para patologia cardíaca is-quémica, como do quadro de apresentação. Apesar do desfecho favorável, realça a importância de uma inter-venção atempada que permita a instituição precoce de terapêutica de reperfusão coronária, factor essencial na melhoria da morbilidade e mortalidade pós-enfarte.
A necessidade de um diagnóstico e intervenção terapêutica precoces evidenciam a necessidade de di-vulgação e sensibilização para esta patologia.
CASO CLÍNICO
O presente caso clínico diz respeito a uma mulher de 33 anos de idade, de raça caucasiana e natural do Rei-no Unido.
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Apresentava história pessoal de hipertensão arterial, obesidade (índice de massa corporal de 31 Kg/m2), dis-lipidémia e doença bipolar. Relatava gravidez prévia com pré-eclâmpsia e parto pré-termo às 32 semanas.
A história familiar incluía: pai com 4 episódio de EAM, o primeiro dos quais aos 40 anos de idade; mãe com antecedentes de EAM aos 50 anos, hipertensão arterial e gravidez com pré-eclâmpsia; e irmão com EAM aos 42 anos.
A gravidez foi vigiada na Consulta de Obstetrícia de Alto Risco desde as 16 semanas, mantendo uma evolução normal e tensão arterial controlada com α-metildopa.
Às 29 semanas de gravidez, recorreu ao Serviço de Urgência com queixas de pré-cordialgia de instalação súbita, tipo aperto, com irradiação para o membro su-perior direito e acompanhada de mal-estar geral, náuse-as e vómitos. O electrocardiograma demonstrou supra-desnivelamento do segmento ST em DIII e aVF e onda Q patológica em DII, DIII e aVF (Figura 1). O nível sérico de Troponina I estava aumentado (21,99ng/ml – Normal<0,03ng/ml), assim como os de CK (1010UI/L – normal<170UI/L) e CK-MB (188,6ng/ml – Normal <3ng/ml). Com base nestas alterações, foi feito o diag-nóstico de EAM da parede inferior. O ecocardiograma revelou hipocinésia ligeira do septo e parede inferior com função ventricular esquerda mantida.
Paralelamente, a grávida desenvolveu um quadro de pré-eclâmpsia moderada, com valores de TA sis-tólica de 155mmHg e diastólica de 95mmHg e pro-teinúria ocasional de ++. Não se registaram outras alterações hemodinâmicas ou da frequência cardíaca.
Em ecograia obstétrica, observou-se feto com biometrias no percentil 25-50 e estimativa ponderal de 1079g. O peril biofísico fetal e a luxometria da artéria umbilical apresentavam-se normais.
Na Unidade de Cuidados Intensivos Coronários, foi instituída terapêutica com enoxaparina (40mg 12/12h), dinitrato de isosorbido (perfusão a 4mg/h), metopro-lol (100mg 12/12h), nifedipina (5mg 12/12h), AAS (100mg/dia) e dexametasona (10mg 12/12h). Conside-rou-se a promoção da maturidade pulmonar abrangida pela administração deste corticóide. Não foi instituído tratamento de reperfusão, dado já terem decorrido mais de 12 horas desde o início doa sintomatologia aquando da primeira observação por cardiologista. A evolução durante o internamento foi favorável, tanto em termos
da patologia cardíaca como da pré-eclâmpsia. Não hou-ve angor pós-enfarte, insuiciência cardíaca ou arritmia, nem sinais de compromisso fetal.
Teve alta a pedido ao 12º dia, mantendo a medi-cação com enoxaparina, nitroglicerina, metoprolol, nifedipina e AAS, e a vigilância nas consultas de Car-diologia e Obstetrícia de Alto Risco.
Às 33 semanas de gestação, a grávida foi re-inter-nada no Serviço de Obstetrícia por restrição do cres-cimento fetal simétrico com estimativa ponderal fetal de 1350g (< perc. 5 para idade gestacional).
Às 33 semanas e 4 dias, por luxo retrógrado na diástole e peril biofísico fetal 6/10, num contexto de colo com Índice de Bishop desfavorável, decidiu-se parto por cesariana. O recém-nascido pesava 1370g e teve Índice de Apgar de 6 e 10, respectivamente ao 1º e 5º minutos de vida.
O purpério imediato decorreu sem complicações, tendo mantido a terapêutica referida anteriormente durante o internamento e após a alta.
O cateterismo cardíaco realizado 6 semanas após o EAM revelou acinésia infero-apical e com fracção de ejecção de 71%. Apresentava doença coronária de um vaso (artéria circunlexa) sem indicação para re-vascularização.
O recém-nascido foi internado na Unidade de Cuida-dos Intensivos Neo-Natais por prematuridade. A evolu-ção clínica foi favorável, tendo alta ao 35º dia de vida. Manteve desenvolvimento normal até aos 9 meses de idade, altura em que abandonou a consulta de pediatria.
DISCUSSÃO
O EAM constitui um acontecimento raro nas mulhe-res em idade fértil, mas o risco aumenta com a idade, sendo 6,7 vezes mais frequente nas grávidas com idade entre os 30 e os 34 anos em relação à população geral de gestantes1.
São factores de risco conhecidos a idade, a história pessoal de hábitos tabágicos, síndrome metabólico (que abrange obesidade, resistência à insulina, dislipidémia e hipertensão arterial), tromboilia (particularmente factor V de Leiden e mutação G20210A da protrombina) e a história familiar de doença coronária1,5,6,7.
Em termos de etiopatogenia, a aterosclerose ace-lerada pode ser causa de EAM durante a gravidez ou
Soares S, Ferreira A, Lobo I, Mimoso J
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com bons resultados, o risco estimado de hemorragia
materna é de 8%18, constituindo a gravidez uma das
contra-indicações relativas a trombólise segundo as
recomendações do American College of Cardiology15. A
heparina, os β-bloqueantes, os nitratos e o ácido acetilsa-
licílico (AAS) em baixa dosagem, podem ser utilizados
com segurança3.
No presente caso clínico, a avaliação por cardiologista
ocorreu mais de 12h após o início da sintomatologia, mo-
tivo pelo qual não tinha indicação para terapêutica de re-
perfusão. Por outro lado tratava-se de um enfarte inferior
não complicado, com função cardíaca global mantida, o
qual tem um prognóstico mais favorável que o enfarte da
parede anterior19. Apesar do diagnóstico de acinésia do
miocárdio infero-apical em avaliação ulterior, a fracção
de ejecção ventricular esquerda manteve-se normal.
O parto deve ser evitado nas duas a três semanas após
o enfarte, dado estar associado a um aumento do risco
de morte materna20. Na ausência de instabilidade hemo-
dinâmica, a escolha da via de parto baseia-se em indica-
ções obstétricas. Para além de um controlo cuidado da
função cardiovascular, está indicada analgesia efectiva,
oxigenoterapia e, no parto vaginal, o recurso a forceps ou
ventosa para abreviar o período expulsivo3.
A programação do parto no caso apresentado teve em
consideração não só a indicação obstétrica, mas também
a necessidade de assegurar a disponibilidade de cuidados
médicos multidisciplinares por obstetras, cardiologistas,
anestesistas e neonatologistas.
A mortalidade materna ronda os 11%, sendo mais fre-
quente nas mulheres em que o enfarte ocorre no período
peri-parto. A incidência de morte fetal ronda os 9%, a
maioria das vezes associada a morte materna3.
Na mulher grávida, como na população geral, a ei-
cácia da intervenção terapêutica na diminuição da mor-
bilidade e mortalidade do EAM centra-se na rapidez de
acesso aos cuidados de saúde, diagnóstico e instituição
de tratamento adequado. De acordo com as recomenda-
ções da American College of Cardiology/American He-
art Association Task Force, concebidas para a generalida-
de da polpulação, no enfarte com supradesnivelamento
ST recomenda-se terapêutica trombolítica nos primeiros
30 minutos ou ACP nos primeiros 90 minutos após a en-
trada na instituição de saúde12.
O diagnóstico de EAM na gravidez é muitas vezes
protelado pela baixa incidência do evento e pela se-
melhança da sintomatologia com queixas frequentes e
inócuas da gravidez. O aumento de gestações em mu-
lheres de idade mais avançada e a necessidade de um
diagnóstico e intervenção terapêutica precoces realçam
a necessidade da sensibilização da comunidade médica
para esta patologia.
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Soares S, Ferreira A, Lobo I, Mimoso J
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e puerpério, especialmente na presença de factores de
risco conhecidos8,9. No entanto, 47-75% dos casos de
EAM durante a gestação têm as artérias coronárias nor-
mais, estando associados a espasmo de artéria coroná-
ria, embolia ou trombose in situ8,9. A origem do espasmo
coronário é desconhecida, tendo sido associada a hiper-
tensão arterial durante a gravidez9, à administração de
derivados de ergotamina10 e ao consumo de cocaína9. A
embolia coronária é rara, mas tem sido relatada em ca-
sos de endocardite(8). A trombose coronária pode ocorrer
em estados de hipercoagulabilidade, tais como: síndro-
me nefrótico, síndrome antifosfolipídico, deiciência de proteína S e do factor XII8,9. Outras causas potenciais de
EAM na gravidez e pós-parto são: doenças do colagé-
nio, doença de Kawasaki, anemia de células falciformes
e feocromocitoma8,9.
A doente em estudo apresentava uma história par-
ticularmente rica em factores de risco para patologia
cardíaca isquémica: antece-
dentes de hipertensão arte-
rial, obesidade e dislipidé-
mia e 3 parentes em primeiro
grau afectados por EAM.
Os critérios de diagnós-
tico para EAM na gravi-
dez são semelhantes aos da
população geral, incluindo
a presença de sintomatolo-
gia isquémica, as alterações
electrocardiográicas e o au-
mento dos níveis séricos dos
biomarcadores cardíacos,
particularmente das troponi-
nas T e I11.
No presente caso, o qua-
dro clínico de apresentação e
o facto de ter surgido no ter-
ceiro trimestre da gravidez
foram característicos, assim
como as alterações electro-
cardiográicas e dos níveis séricos de biomarcadores
cardíacos.
O desenvolvimento de
um quadro de pré-eclâmpsia
no contexto de EAM é típi-
co, ocorrendo em mais de metade dos casos12. Ambas
as patologias partilham hipótese etiológicas, incluin-
do disfunção endotelial, inlamação e hipercoagulabi-lidade13, e vários factores de risco, como obesidade,
resistência à insulina e dislipidémia14.
Não estão deinidos protocolos de actuação para EAM na mulher grávida, mas tudo indica que o tra-
tamento deva ser similar ao aplicado à generalidade
da população11,12, sendo o primeiro passo a rápida
instituição de terapêutica de reperfusão coronária. A
angioplastia coronária percutânea (ACP) com pro-
tecção fetal e minimização da exposição à radiação é
provavelmente uma escolha segura4, particularmente
no terceiro trimestre da gravidez, e não deve ser adia-
da na presença de indicação materna17. A terapêutica
trombolítica é mais controversa: apesar de não terem
sido reportados episódios de teratogenicidade e de te-
rem sido descritos vários casos em que foi instituída
Figura 1: Primeiro electrocardiograma pós enfarte demonstrando supradesnivelamento do segmento
ST em DIII e aVF e onda Q patológica em DII, DIII e aVF