Canetadas militares: Compilação da legislação fundiária promulgada durante o regime militar...
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CANETADAS MILITARES
COMPILAÇÃO DA LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA PROMULGADA DURANTE O
REGIME MILITAR PARA A AMAZÔNIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO QUADRO
FUNDIÁRIO PARAENSE ATUAL.
THE MILITARY PEN
COMPILATION OF THE LEGISLATION ABOUT LAND PROMULGATED FOR
THE AMAZON DURING THE MILITARY REGIME AND IT’S CONSEQUENCES
FOR NOWADAYS LAND ISSUES ON THE STATE OF PARÁ.
Kerlley Diane Silva dos Santos - Universidade Federal do Oeste do Pará/Ufopa
RESUMO: A análise da legislação promulgada durante a ditadura militar apresenta-se como um
importante instrumento para a compreensão da estrutura agrária do Pará e das relações violentas
travadas no campo. Pretende-se, com este artigo, proceder a sistematização cronológica da
legislação fundiária, visando uma melhor compreensão sobre os seus efeitos. Busca-se mostrar
que o Estado brasileiro se utilizou de instrumentos normativos de modo a compatibilizar o
aparato legal e judiciário aos seus interesses políticos e econômicos, ressaltar como a utilização
desses instrumentos constitui-se como forma de espoliação de determinados segmentos sociais,
em favor do acúmulo e das prosperidades de uns poucos e abriu espaço para abusos, ilegalidades
e para a formação de um ambiente propício à grilagem.
Palavras-Chave: Legislação fundiária; Ditadura Militar; estrutura agrária; Pará.
ABSTRACT: The analysis of the laws approved during miltary rule in Brazil provides an
important mean to understand the land structure in the state of Pará, as well as its land conflicts.
We intend, with this paper, to build a chronology of land related legislation aiming to reach a
better understanding of its effects. It will be demonstrated that Brazil has used official regulations
in order to establish compatibility between the canon and the State’s political and economical
interests. In this sense, these legal measures resulted in forms of expropriating certain social
groups, in favor of others, and it also made way for abuse, illegalities and land grabbing.
Key-words: Land legislation; military rule; land structure; Pará.
1. INTRODUÇÃO
A legislação fundiária é um dos fatores que contribuíram para a edificação do atual
quadro fundiário do Pará1. Espera-se, aqui, depreender da legislação promulgada durante a
ditadura militar um viés de leitura para compreensão do mosaico fundiário e das violentas
relações travadas no campo no estado do Pará e.2
O objeto de análise deste artigo é, em síntese, a edição de diplomas legais, durante
o regime militar, incidente sobre o Pará e com influência na atual condição agrária do estado.
Para isso, a partir da sistematização cronológica dos principais atos da legislação fundiária
(federal), procedeu-se a análise de seu conteúdo e, também, da relação entre a forma específica
dos instrumentos normativos, a situação de autoritarismo vivida e as consequências de tal
legislação.
Inicialmente, abordamos as políticas e ações dos governos militares voltadas para
a Amazônia e os interesses que as revestiam. No segundo momento, busca-se mostrar como a
legislação fundiária refletia as associações entre as políticas públicas e os interesses econômicos
que cercavam o regime militar. Descreve-se, em seguida, as consequências para o quadro
fundiário paraense advindas da legislação promulgada neste período.
Partindo deste quadro, pretende-se, aqui, inquerir até que ponto os diplomas
legais editados durante o regime militar contribuíram para a atual situação fundiária do Pará,
marcada por abusos, ilegalidade e grilagem de terras.
2. A “TERRA SEM HOMENS” DO REGIME MILITAR
A história da ocupação não indígena na Amazônia é marcada por violentas
expropriações pautadas, em sua maioria, pela sanha de uma “racionalidade desenvolvimentista”
cujos olhos, “cegos” para os povos que habitavam essa terra, sempre estiveram voltados para o
lucro. Progresso e desenvolvimento, construções ideológicas incessantemente alardeadas através
1 Cf. OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”. In TORRES, Maurício (org.). Amazônia revelada: os descaminhos ao longo da BR-163. Brasília: CNPQ, 2005, p. 67-183. 2 CPT. 2010. Conflitos no Campo Brasil 2010. Disponível em: http://www.cptnacional.org.br/index.php?option =com_jdownloads&Itemid=23&view=viewdownload&catid=4&cid=192. Acessado em: setembro de 2011.
dos anos, legitimaram a implantação do grande capital e, em nome deste, a degradação do meio
ambiente e a eliminação de um concreto obstáculo: os povos da floresta3. Nesse enredo de saques
e expropriações, interessa-nos, por agora, abordar a etapa recente, marcada especificamente pelas
ações e políticas perpetradas pelos governos militares.4
O golpe de 64, protagonizado pelas Forças Armadas, estabeleceu no Brasil o
período amplamente conhecido como Regime Militar. Época de repressões e arbítrios em
diversas escalas, a ditadura marcou a ferro o imaginário do povo brasileiro e a história do país. Na
Amazônia, o período não apenas agravou os pontos de uma história secular de espoliação, mas
serviu de propulsor para a configuração de uma região marcada por conflitos violentos e
ilegalidades veladas e explícitas. Nessa linha Loureiro afirma:
[...] O projeto modernizador concebido pelos governos militares para a
Amazônia, posto em prática desde fins dos anos 60 e, especialmente nas
décadas de 70 e 80, deveria atrair grandes investimentos nacionais e
internacionais, criariam uma promissora base produtiva, apoiada em
empreendimentos considerados “racionais” (...) O Estado foi, na época,
o protagonista que engendrou a mudança e com ela, a violência e
conflito na região.5
No final da década de 1960, a Amazônia passa a ser alvo das políticas
desenvolvimentistas promovidas pelos governos militares. Associava-se, aquela época, a
Amazônia a idéia de vazio demográfico e do espaço selvagem subutilizado economicamente e,
ao mesmo tempo, promovia-se a imagem da terra promissora cujas vulnerabilidades ocasionadas
pela “inexistência de gente” deveriam ser suprimidas pela ação desbravadora de árduos
colonizadores.6
3 TORRES, Maurício. “A Pedra Muiraquitã: O caso do Rio Uruará no enfrentamento dos povos da floresta às madeireiras da região”. Revista de Direito Agrário. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Brasília: INCRA, 2007, p. 89-119. 4 OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”, citado. 5 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; GUIMARÃES, Ed Carlos. Reflexões sobre a Pistolagem e a Violência na Amazônia. Disponível em: http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/reflexoes_sobre_a_pistolagem_ e%20a_violencia_na_amazonia.pdf. Acessado em 20.05.2010. 6 NEAPSIDE et al. Avança Brasil: os custos ambientais para Amazônia. Belém: Alves, 2000. Disponível em: http://www.ipam.org.br/biblioteca/livro/AVAN-A-BRASIL-Os-Custos-Ambientais-para-a-Amazônia/127. Acessado em 10 maio de 2011.
“Terras sem homens para homens sem terra” teria afirmado o General e ditador
Emílio Garrastazu Médici, prometendo conectar “os homens sem terra do Nordeste” às “terras
sem homens da Amazônia”. A frase não apenas reproduzia o velho discurso colonizador de
negação da condição humana e dos direitos dos povos e populações locais, mas também
apresenta a linha de pensamento das justificativas nas quais a colonização oficial foi baseada. Por
trás de discursos carregados de ufanismo e de preocupação social, desconsiderava-se a
humanidade de pessoas, povos e populações, que habitavam a região a séculos e mascarava-se os
reais interesses do Estado.
As justificativas oficiais para a implantação dos programas de colonização na
Amazônia giravam em torno de fatores sociais. Sob o aspecto social, a pobreza e a seca no
Nordeste do Brasil foram anunciadas como uma das principais razões motivadoras para as
políticas de integração. Nesse contexto, a transferência de nordestinos para Amazônia era
apresentada como a solução mais viável para os graves problemas enfrentados no Nordeste.
Problemas que, segundo os registros oficiais, estavam associados principalmente ao excesso
populacional, não sendo mencionados quadros bem mais evidentes, como a concentração
fundiária e a desigualdade no acesso e na distribuição de terras. Falavam-se da seca e encobriam-
se as cercas do latifúndio.7
Sabe-se, entretanto, o programa de colonização oficial na Amazônia servia aos
militares de duas formas principais: válvula de escape de zonas de tensão social como o Nordeste
e o Sul; e a criação de condições que favorecessem a exploração dos recursos naturais da região
pelo grande capital, representado por destacados grupos econômicos.
Sobre as políticas de ocupação oficial da Amazônia, Oliveira afirma:
[...] as justificativas baseavam-se no princípio de que a solução para os
problemas sociais do Nordeste estava na migração para Amazônia. A
estratégia do desenvolvimento passa a ser concebida como
necessariamente concentrada, polarizada, sendo que a tarefa geopolítica
de ocupação das fronteiras do país ficaria por conta das populações
regionais. À iniciativa privada coube um papel singular: deveria atuar em
todos os setores rentáveis das atividades econômicas, ficando para o
7 FEARNSIDE, Philip M. 1987. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2. p. 7-25.
estado as atividades deficitárias, porém necessárias à política de
desenvolvimento.8
A colonização oficial da Amazônia não foi arquitetada em prol das populações
locais e dos migrantes que aqui desembarcaram. Ela foi pensada para o grande capital e para as
elites. Incentivou-se a migração do Nordeste e do Sul, não com a finalidade de integrar e
distribuir terras para os camponeses. Criou-se, na verdade, um simulacro de Reforma Agrária,
para evitar uma real modificação das estruturas e das oligarquias agrárias presentes nas regiões de
ocupação mais antiga.9
De um lado, o Estado promovia a repressão dos movimentos populares de luta
pelo acesso a terra presentes no Nordeste e no Sul e se utilizava dos projetos de colonização
oficial como instrumentos de contenção das convulsões sociais relacionadas a terra que
marcavam essas regiões. Do outro, apoiava os investidores nacionais e internacionais, por meio
de vultosos programas de incentivos fiscais e fazia dos mencionados projetos “viveiros de mão-
de-obra”. Nesse jogo, em que os pesos e medidas foram dados pelo grande capital, os direitos de
agricultores pobres e da população local foram ignorados.10
3. CANETADAS MILITARES: A LEGISLAÇÃO FUNDIÁRIA E AS OPÇÕES
POLÍTICAS DO ESTADO MILITAR.
Dentro da dinâmica “desenvolvimentista” que se descortinou na região, o regime
militar se utilizou de inúmeros instrumentos normativos de modo a compatibilizar o aparato legal
e judiciário aos seus interesses políticos e econômicos e dos grupos aos quais ele estava associado
e concretizar a política de integração nacional.11
8 OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”, citado. 9 Cf., entre outros, OLIVEIRA, A. U. de. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. São Paulo, 1997. Tese (Livre-docência em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo e IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979. 10 OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”, citado. 11 MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. “As politicas federais e as reconfigurações espaciais na Amazônia”. In Novos Cadernos do NAEA. Belém: UFPA, p. 91-122. Disponível em: http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/38/32. Acesso em: 10 mai. de 2011.
O Plano de Integração Nacional (PIN) foi instituído através do Decreto-Lei n°
1.106, de 16 de junho de 1970 e do Decreto-Lei n° 1.243, de 30 de outubro de 1972. O discurso
no qual se pautou a política de integração nacional promovida pelos militares voltava-se para os
esquemas de colonização oficial e construção de rodovias, ligando a região amazônica a outras do
Brasil.
De outro lado, para garantir o acesso a terra por parte de grandes grupos
econômicos e garantir a propriedade da terra ao grande capital, os governos militares conceberam
facilidades legais e promoveram alterações na legislação existente no país, criando dispositivos
legais extraordinários e de exceção.12
O principal sustentáculo jurídico, para as ações do regime relacionadas à terra foi
a Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida como o Estatuto da Terra, estabeleceu-se a
colonização pública e particular. Para além da clássica definição de colonização, a lei trazia em seu
bojo a propriedade familiar como uma das principais finalidades da colonização e assim a definia:
Art. 4º - Para os efeitos dessa lei, definem-se:
(...)
II. “Propriedade familiar”, o imóvel rural que direta e pessoalmente,
explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de
trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso econômico, com
área máxima fixada em cada região e tipo de exploração, e eventualmente
trabalho com a ajuda de terceiros.
Conforme o estabelecido no Decreto nº 67.557, de 12 de novembro de 1970, o
Estado por meio da colonização pública arquitetou o assentamento de 100.000 famílias no trecho
paraense entre São João do Araguaia e Itaituba, ao longo de uma faixa de 10 quilômetros de faixa
de cada lado, da, ainda, planejada rodovia Transamazônica. Ressalte-se, a colonização pensada
para o Pará era diferente da, simultaneamente, promovida no Norte do estado do Mato Grosso,
na qual predominava a expansão de centros pré-existentes e as grandes empresas de colonização
12 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; GUIMARÃES, Ed Carlos. Reflexões sobre a Pistolagem e a Violência na Amazônia, citado.
privada. No Pará, a colonização pública associou-se a abertura da floresta, com o trabalho de
migrantes e altos ônus para o Estado.13
Outra ação destacável, entre as facilidades legais promovidas pelos militares, foi a
edição e utilização indiscriminada de decretos-leis. Estes decretos visavam, entre outras coisas,
legitimar os esquemas ilegais orquestrados pelo governo e responder positivamente aos anseios
políticos e econômicos dos grandes capital a quem o Estado associara-se.
Os decretos-leis foram durantes anos figuras recorrentes da legislação brasileira
até a Constituição de 1988. Foram utilizados em dois momentos da história recente do país: 1937
a 1947, período marcado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1946) e 1965 a 1988, que
engloba boa parte dos anos do regime militar. A maior parte dos decretos-leis editados são
oriundos da época do regime militar.
Denominavam-se, normalmente, como decretos-leis, aqueles decretos que
possuíam força de lei, expedidos em momentos anormais, nos quais o Chefe do Estado
concentrava em suas mãos, também, o Poder Legislativo suspenso14. Sobre os decretos-leis
Aguiar afirma:
No Brasil, a figura típica se encontra nos decretos regulamentares,
interpretação sistemática, desenvolvida pelo próprio Poder Executivo de
norma emanada do Poder Legislativo ou mesmo do próprio Executivo,
dada a existência em nosso Direito da figura do decreto-lei, entidade
jurídica típica dos governos centralizadores e válvula de escape para os
arbítrios em forma de lei.15
A figura do decreto-lei foi amplamente utilizada pelos governos militares para
adequar o ordenamento jurídico brasileiro aos interesses que moviam as engrenagens do regime
posto. Por meio desses decretos, os militares utilizaram-se do direito legal, para estabelecer uma
13 CUNHA, Candido Neto da. "Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará". Agrária. Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. Nº 10/11, 2009, p. 20-56. 14 Cf. Definição Oficial de Decreto-lei no Glossário Econômico do Tesouro Nacional. Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/servicos/glossario/glossario_d.asp. Acessado em: 10 de maio de 2011. 15 AGUIAR, Roberto. Direito, Poder e Opressão. São Paulo, Alfa-Omega, 1984.
base jurídica que servisse de sustentáculo as suas ações e políticas e correspondesse aos anseios
do regime despótico e dos grupos ao qual este estava associado.
Obedecendo a esta lógica vieram a lume legislações como o Decreto-Lei n° 1.164,
de 01 de abril de 1971, conhecido por ter federalizado a faixa de 100 km de cada lado das
rodovias federais construídas, em construção ou apenas planejadas na Amazônia. Só no estado
do Pará, o ato federalizou cerca de 70% de sua área16. Dias antes, precisamente em 29 de março
de 1971, o governo havia editado o Decreto nº 64.443, o qual o criava o chamado Polígono
Desapropriado de Altamira. A incidência do novel decreto de abril sobre a área do Polígono foi
notável:
A maior parte do Polígono Desapropriado de Altamira era composta por
terras devolutas e, como todo o Polígono inseria-se na porção
federalizada pelo Decreto-Lei nº 1.164/71, ele foi, a partir da vigência do
decreto, repassado compulsoriamente a União.17
O argumento que pautou o referido decreto foi o da indispensabilidade à
segurança nacional e ao desenvolvimento do país das terras que margeavam as rodovias federais.
Nota-se, o discurso ideológico da “segurança nacional” e do “desenvolvimento” recorrentemente
utilizado durante o regime militar era mais uma das formas de mascarar a abertura das terras da
Amazônia ao grande capital e o conluio deste último com o Estado.
Segundo o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, sob o mote da Doutrina da
Segurança Nacional e do desenvolvimento do país, o governo utilizou-se de instrumentos
normativos como o Decreto nº 1.164/1971 para ordenar o território de modo a tornar possível o
acesso à terra, por parte dos grandes grupos econômicos18. Conjugava-se à referida facilidade
legal, a promoção de programas de incentivos fiscais para motivar investimentos e a implantação
de empreendimentos na Amazônia:
16 OLIVEIRA, Ariovaldo U. de. “BR-163 Cuiabá-Santarém: Geopolítica, grilagem, violência e mundialização”, citado. 17 CUNHA, Candido Neto da. “Pintou uma chance legal”, citado, p. 27. 18 OLIVEIRA, A. U. de. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência. São Paulo, 1997, citado.
A proposta baseava-se em oferecer inúmeras vantagens fiscais a grandes
empresários e grupos econômicos nacionais e internacionais que
quisessem investir novos capitais (...) na região. Seu principal
instrumento eram os incentivos fiscais, reorientados legalmente em 1967,
principalmente para a pecuária, a extração madeireira, a mineração (...).
Eram concedidos (via Sudam e Basa) aos empresários por longos
períodos (...). Além disso, o governo ainda disponibilizava recursos
financeiros a juros muito baixos e até negativos e concedia um sem-
número de outras facilidades.19
Entretanto, os incentivos fiscais promovidos pelo regime militar em favor de
empresas nacionais e internacionais não resultaram na implantação de empresas na região. Uma
parte dos beneficiados por esses programas destinou os recursos repassados para outras
finalidades como a compra de extensas áreas de terra e até mesmo o desvio dos referidos
recursos.
19 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia. Revista de Estudos Avançados. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000200005. Acessado em: setembro de 2011.
Mapa 1: Polígono Desapropriado de Altamira em relação a área federalizada pelo Decreto-Lei nº
1.164/1971
O Decreto 1.164/71 foi revogado pelo Decreto-Lei n° 2.375, de 24 de novembro
de 1987. Entretanto, este último, apesar de revogar o decreto anterior e devolver para os estados
as terras devolutas ainda existentes nas áreas anteriormente federalizadas, manteve, no oeste
paraense, sob a jurisdição da União as terras correspondentes aos então municípios de Altamira,
Itaituba e Marabá (entre outros municípios em diferentes estados amazônicos) e aquelas incluídas
na faixa de fronteira.
Naquela época, os municípios de Itaituba e Altamira possuíam uma imensa área
que incluía os atuais perímetros dos municípios de Água Azul do Norte, Brasil Novo,
Curionópolis, Canaã dos Carajás, Eldorado dos Carajás, Jacareacanga, Novo Progresso,
Parauapebas e Trairão que se constituíram como entes municipais anos após a edição do referido
decreto.
Posteriormente, foi sancionado o Decreto-Lei n° 95.859, de 22 de Março de 1988,
que, regulamentando alguns dispositivos do texto do decreto anterior, afetou determinadas áreas
ao uso especial do Ministério do Exército, entre elas oito glebas só contando o estado do Pará.
Após tal afetação, as terras federais devolutas remanescentes, não incluídas na faixa de fronteira,
foram repassadas aos respectivos estados.
Percebe-se, a dinâmica de ocupação e formação de situações fundiária do Pará
associou-se profundamente às políticas adotadas pelo regime militar para Amazônia20. Essas
políticas, sustentadas por um aparato legal constituído no período e baseadas nas facilidades
legais promovidas e na expropriação de direitos das populações locais e migrantes, trouxeram
consequências desastrosas e graves prejuízos sociais.
4. UM ESTADO DE CERCAS E COVAS
O Pará, “porta de entrada” dos pretensiosos projetos de colonização na
Amazônia, foi um dos estados que mais sofreu com o advento dos decretos-leis que se
sucederam durante a ditadura militar. As políticas adotadas e resguardadas por estes decretos
estabeleceram, no estado do Pará, relações de poder e controle da terra por meio da repressão e
violência.
Sobre este processo desencadeado no Pará pelas ações adotadas pelos militares,
Loureiro aduz:
[...] Trata-se de um processo perverso pelo qual o Estado brasileiro tem
historicamente produzido, sem cessar, a miséria social, por mecanismos
legais e administrativos que promovem exclusão das classes
desfavorecidas num extremo, e a concentração da riqueza por grupos
econômicos e setores da elite.21
20 IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia, citado. 21 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; GUIMARÃES, Ed Carlos. Reflexões sobre a Pistolagem e a Violência na Amazônia, citado.
Durante o regime militar, estreitou-se uma relação de convivência e até uma
conivência entre os interesses de grileiros, empresários e órgãos públicos federais com atuação na
região. Esta “aliança” não apenas marcou as ações do governo no período da ditadura, mas
sobreviveu à última e é, hoje, a marca de diversas relações políticas e econômicas que se
desenvolvem no Pará.22
O Estado foi o agente indutor da concentração fundiária de terras nas mãos de
determinados setores como o da pecuária, por meio da Superintendência de Desenvolvimento da
Amazônia (Sudam); o da soja, embalados pelos incentivos locais e, atualmente, pelos
financiamentos do Banco da Amazônia (Basa); o da madeira, pela liberação de planos de manejo
em áreas públicas e na destinação de terras para grupos que visam a especulação futura e veem na
aquisição de terras públicas na Amazônia uma poupança de longo prazo.23
Neste cenário, a obscuridade da legislação fundiária não apenas serviu de pano de
fundo perfeito para o agravamento dos conflitos e disputas de terra na região, mas também
constitui-se como um dos obstáculos à compreensão dos conflitos existentes no Pará e da
condição agrária do estado. Quando, por exemplo, o Decreto-Lei n° 1.164/1971 veio à luz, o
estado paraense já havia alienado parte das suas terras. No entanto, o estado não mantinha uma
sistematização eficiente das terras que haviam sido alienadas antes da federalização e não possuía
um controle efetivo sobre essas alienações.24
Além disso, as sucessivas sobreposições legislativas e as imprecisões cartográficas
trouxeram uma perigosa dificuldade para o cenário: a indefinição sobre determinadas porções de
terra. Assim, tornava-se difícil estabelecer efetivamente qual o status fundiário dessas áreas e,
consequentemente, qual o ente público com jurisdição sobre elas.
A revogação dos decretos editados no período militar trouxe problemas ainda
maiores. As situações fundiárias que haviam se consolidado foram mantidas e resultaram no
acirramento dos conflitos fundiários já existentes e o surgimento de outros.
Ressalte-se que o governo pouco fez para conter a grilagem de terras. Pelo
contrário, pautou suas ações na tolerância às irregularidades e desmandos e manteve uma política
de silêncio e omissão frente às inúmeras ilegalidades existentes no Pará, situação que estimulou e
22 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia, citado 23 BENATTI, José Heder. “Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia. In Novos Cadernos NAEA. Belém: UFPA, p. 85-122. 24 TORRES, Maurício. “Fronteira, um eco sem fim: Considerações sobre a ausência do Estado e a exclusão social nos municípios paraenses do eixo da BR-163”. In Amazônia revelada, citado. p. 271-319.
manteve um quadro violento, de iniquidade e de graves usurpações de direitos que se mantém até
hoje.25
Nesse contexto, tornou-se prática frequente das autoridades tornar obscura ou
translúcida a dinâmica dos conflitos e das relações violentas que se estabelecem em solo paraense
e acomodar os direitos de terra dos posseiros, ou de outros segmentos, e deixar que as partes
interessadas resolvam a disputa pela força e violência para depois regularizar o suposto direito do
vencedor.26
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Já se passaram mais de 20 anos do fim do regime militar e início da abertura
democrática do Brasil. Os decretos-leis já não são figuras usuais, apesar da existência de alguns
ainda em vigor no ordenamento jurídico. O Estado repressor cedeu lugar ao Estado Democrático
de Direito. Entretanto, o que mudou no quadro fundiário do Pará?
As marcas estabelecidas e as tensões acirradas e criadas no período militar
continuam presentes. A violência no campo, conflitos por terra, impunidade, trabalho escravo e
grilagem são palavras recorrentemente pronunciadas quando se fala da situação fundiária do Pará.
Estado, Justiça, Lei continuam, em muitos casos, os interesses políticos e econômicos de
determinados grupos.
Travam-se batalhas violentas entre “despossuídos” e expropriadores, nas quais
muitos já tombaram. Em todos os recantos deste estado reproduz-se o desumano, contam-se os
mortos, multiplicam-se os expropriados. O Estado permanece silente frente às ilegalidades e
continua a abrir as portas para o “racional” desenvolvimento promovido pelo grande capital.
A legislação agrária editada durante o regime militar continua a ser um importante
instrumento para compreensão da estrutura agrária estabelecida, das violentas relações travadas
no campo e das consequências e prejuízos que a obscuridade e a confusão dessa legislação
acarretaram através dos anos, tanto social, como ambientalmente.
Neste estado de cercas e covas, o governo e os códigos continuam servindo a
poucos e voltando-se contra muitos, o progresso é o audaz “herói” e os camponeses aqueles aos
quais as revoltas reprimidas, as vozes silenciadas e os direitos sufocados.
25 LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia, citado 26 FEARNSIDE, Philip M. Projetos de Colonização Amazônia Brasileira: objetivos conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências, n. 2, p 7-25.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Roberto. Direito, Poder e Opressão. São Paulo, Alfa-Omega, 1984.
BENATTI, José Heder. “Questão fundiária e sucessão da terra na fronteira oeste da Amazônia.
In Novos Cadernos NAEA. Belém: UFPA, p. 85-122
CPT. 2010. Conflitos no Campo Brasil 2010. Disponível em:
http://www.cptnacional.org.br/index.php?option=com_jdownloads&Itemid=23&view=viewdo
wnload&catid=4&cid=192. Acessado em: setembro de 2011
CUNHA, Candido Neto da. “Pintou uma chance legal: o programa Terra Legal no interior dos
Projetos Integrados de Colonização e do Polígono Desapropriado de Altamira, no Pará”. Agrária.
Laboratório de Geografia Agrária - DG/FFLCH/USP. ISSN 1808-1150. nº 10/11, 2009, p. 20-
56.
FEARNSIDE, Philip M. 1987. Projetos de Colonização na Amazônia Brasileira: objetivos
conflitantes e capacidade de suporte humano. Caderno de Geociências. n. 2. p. 7-25.
IANNI, Octávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979.
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky; PINTO, Jax Nildo Aragão. A questão fundiária na Amazônia.
Revista de Estudos Avançados. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142005000200005. Acessado
em: setembro de 2011.
MONTEIRO, Maurílio de Abreu; COELHO, Maria Célia Nunes. “As politicas federais e as
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