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    Literatura comparada:questes metodolgicas

    e estratgias crticas

    Joo Manuel dos Santos Cunha (Org.)

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    Obra publicada pela Universidade Federal de PelotasReitor: Prof. Dr. Antonio Cesar Gonalves Borges

    Vice-Reitor: Prof. Dr. Telmo Pagana Xavier

    Pr-Reitor de Extenso e Cultura: Prof. Dr. Vitor Hugo Borba ManzkePr-Reitor de Graduao: Prof. Dra. Eliana Pvoas BritoPr-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao: Prof. Dr. Manoel de Souza MaiaPr-Reitor Administrativo: Eng. Francisco Carlos Gomes LuzzardiPr-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Prof. Ms. lio Paulo ZontaPr-Reitor de Recursos Humanos: Admin. Mauro Joubert Goulart CunhaPr-Reitor de Infra-Estrutura: Mario Renato Cardoso AmaralPr-Reitoria de Assistncia Estudantil: Ms. Ana Catarina Rilling da Nova Cruz

    CONSELHO EDITORIAL

    Prof: Dr. Antonio Jorge Amaral Bezerra Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro TambaraProf. Dra. Isabel Porto Nogueira Prof. Dr. Jos Justino FaleirosProfa. Lgia Antunes Leivas Profa Dra. Neusa Mariza Leite Rodrigues FelixProf. Dr. Renato Luiz Mello Varoto Prof. Ms. Valter Eliogabalos AzambujaProf. Dr. Volmar Geraldo da Silva Nunes Prof. Dr. Wilson Marcelino Miranda

    Editora e Grfica UniversitriaR. Lobo da Costa, 447 Pelotas, RS CEP 96010-150Fone/fax: (53) 3227 8411E-mail: [email protected]

    Diretor da Editora e Grfica Universitria: Prof. Dr. Volmar Geraldo da Silva NunesGerencia Operacional: Bel. Daniela da Silva PieperChefe da Seo Grfica: Carlos Gilberto Costa da Silva

    Impresso no BrasilEdio: 2008ISSN 0102-9576

    CADERNO DE LETRAS / Faculdade de Letras. UniversidadeFederal de Pelotas. Pelotas, 2008. n.14 (2008, p.001-132).-

    ISSN 0102-9576Ttulo da capa: Literatura comparada: questes metodolgi-cas e estratgias crticas. Org. por Joo Manuel dos SantosCunha.

    1. Letras - Peridicos. 2. Literatura comparada 3. Lingus-tica. I. Cunha, Joo Manuel dos Santos

    CDD: 406.31

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    Caderno de Letras - UFPel - n.14, 2008 - ISSN 0102-9576

    Revista da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Pelotas

    Literatura comparada:questes metodolgicase estratgias crticas

    Joo Manuel dos Santos Cunha (Org.)

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    Caderno de LetrasRevista da Faculdade de Letras - Universidade Federal de Pelotas

    Av. Bento Gonalves, 3395 CEP 96015-140 Pelotas-RS

    Comisso editorialIsabella Ferreira Mozzillo

    Joo Manuel dos Santos CunhaLuis Isaas Centeno do AmaralPaulo Ricardo Silveira Borges

    Conselho editorialAlckmar Luiz dos Santos UFSCAna Maria Stahl Zilles UnisinosAndr Luis Gomes UNBAulus Mandagar Martins UFPelElena Palmero FURG

    Evelyne Dogliani UFMGGilvan Mller de Oliveira UFSCIsabella Mozzillo UFPel

    Joo Manuel dos Santos Cunha UFPelJoo Luis Ourique UFPelJorge Campos PUCRSLuis Ernesto Behares UR UruguayMarcia Ivana de Lima e Silva UFRGSPaulo Coimbra Guedes UFRGSRenata Azevedo Requio UFPelRita Terezinha Schmidt UFRGS

    Rosngela Hammes Rodrigues UFSCRosely Perez Xavier UFSCSilvia Costa Kurtz dos Santos UFPelTerezinha Kuhn Junkes UFSC

    Alunos monitores (preparao dos originais)Daniel Andrioli RaschLuciane Ribeiro

    Projeto grfico e diagramao: Ana Bandeira ([email protected])

    Imagem da capa: Livro aberto, de Paul Klee, 1930Impresso: Editora e Grfica da UFPel

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    SUMRIO

    APRESENTAO

    Literatura comparada: questes metodolgicas e estratgias crticas 7Joo Manuel dos Santos Cunha

    O Barroco literrio de Francisco de Quevedo e Gregrio de Matos 13Andra Cesco

    Discursos biogrficos no mesmo texto e contexto:a comparao existe? 23

    Andr Luis Mitidieri

    O gnero autobiogrfico e a representao da infncia na literatura:Minha vida de menina, Infnciae Os bichos que tive 33

    Celdon Fritzen e Gladir da Silva Cabral

    Mos de Cavalono um livro sobre o pessimismo(ao contrrio do que andam dizendo por a) 43

    Daniel Andrioli Rasch

    Antropologia cultural e literatura comparada: uma conexo relevanteaos estudos relativos obra infantil de Monteiro Lobato 53

    Flvia Mara de Macedo

    Memrias do crceree Meu testemunho:histrias de abandono e sofrimento 69

    Joselaine Brondani Medeiros

    Os contos e o regionalismo em Domingos Pellegrini 81Lucas Vieira de Arajo

    Grafito para Li-Po: o poema de Murilo Mendes 89Paula Cogno Lermen

    O Bernheimer report: ressonncias no mundo do comparatismo 99Paulo Csar Silva de Oliveira

    Acrobacias textuais em O vo da trapezista,de Amilcar Bettega Barbosa 111

    Rafael Dias Ferreira

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    APRESENTAO

    Literatura comparada:

    questes metodolgicas e estratgias crticasJoo Manuel dos Santos Cunha

    (Organizador)

    Se os anos oitenta foram decisivos para o estatuto institucio-nal da Literatura Comparada no Brasil (introduzida por Antonio Can-

    dido, na USP, em 1962), a criao da Associao Brasileira de Literatu-ra Comparada ABRALIC, em 1986, com a conseqente, sucessiva eininterrupta realizao de congressos e encontros acadmicos, constitui-se em fator determinante para a consolidao da prtica comparatistaentre ns. Observando em panormica a produo acadmica brasileiranesses ltimos trinta anos, identificaremos um amplo arco de preocu-paes terico-crticas que tm chamado a ateno de pesquisadores

    que se detiveram em afinar os mtodos e os procedimentos comparatis-tas disponibilizados pela teoria para o exame do literrio. Nos ltimosanos, essa prtica tem buscado responder a questes cruciais impostasem uma cena contempornea na qual as fronteiras, ao mesmo tempoem que se esgaram, impem o alargamento do espectro das preocupa-es do comparatismo, de maneira que este possa dar conta da com-plexidade do fato literrio, hoje enfocado em contextos mltiplos e apartir de transformaes resultantes de condies histricas e culturais

    muitas vezes adversas, mas sempre instigantes para o olhar desarmadodo pesquisador em Literatura Comparada.

    Consciente desse intenso trnsito da literatura, em temposde globalizao cultural, a Faculdade de Letras da Universidade Federalde Pelotas, com a criao de Linha de Pesquisa especfica junto aoDepartamento de Letras Vernculas (Estudos de intertextualidade)e ao Curso de Especializao em Letras (com rea de concentrao em

    Literatura Comparada) , vinculada ao Grupo de Pesquisa certificadopelo CNPq Estudos de intertextualidade: cdigos estticos e culturais;sistemas literrios, possibilitou espao privilegiado para o exerccio deinvestigao sistematizada sobre as relaes intertextuais semiticas e

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    intersemiticas , vistas em contexto amplo e amplificador de influxosde ordem geogrfica e histrica, poltica e cultural, racial e sexual, eco-nmica e religiosa, tica e esttica.

    Conseqncia natural dessa oportuna visada acadmico-pe-daggica foi a deciso da Comisso Editorial do Caderno de Letras daFaculdade de Letras da UFPel de dedicar nmero exclusivo para a pu-blicao de estudos recentes sobre a prtica comparatista no meio aca-dmico brasileiro. Dezenas de pesquisadores atenderam ao chamado,

    vinculados a diversos centros acadmicos de ensino e pesquisa, desdeos estados do Sul Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul at

    outros mais distantes, como Rio de Janeiro e Minas Gerais. Com ostextos publicados aqui, a Comisso Editorial e o Organizador desta edi-o temtica esperam oferecer aos leitores a oportunidade de conhecerinstigantes artigos decorrentes de pesquisas realizadas no quadro docomparatismo brasileiro, bem como acompanhar a aplicao de estrat-gias crticas na produo de sentido para o texto literrio e a discussode questes metodolgicas relevantes para os estudos comparados emLiteratura na contemporaneidade. Apresento, ento, os textos que com-pem esta edio temtica do Caderno de Letras, no sem antes agradeceraos qualificados pareceristas do Conselho Editorial, agora renovado,ampliado e de abrangncia nacional, que aceitaram ler e analisar ostextos submetidos a esta publicao.

    Andra Cesco, com O barroco literrio de Francisco de Que-vedo e Gregrio de Matos, enfoca a obra Sueos, do espanhol Franciscode Quevedo, por meio de leitura comparativa com alguns textos de Gre-

    grio de Matos, aproximando as textualidades para analisar, contextual-mente, semelhanas e diferenas na escritura dos dois poetas barrocos.

    A anlise lhe permite concluir que ambos vivenciaram e absorveramas circunstncias histricas e sociais do seu tempo e do seu pas, e astransformaram em material de denncia, cada um a sua maneira, de-monstrando conscincia dos problemas existentes em seu tempo e emseu lugar.

    Andr Luis Mitidieri, em Discursos biogrficos no mesmocontexto e contexto: a comparao existe?, discute e compara algunsdiscursos biogrficos contidos em cinco artigos da obra Nenhum Brasil

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    Apresentao 9

    existe: pequenaenciclopdia, texto organizado por Joo Cezar de CastroRocha e Valdei Lopes de Araujo. Os textos comentados dos autoresSabrina Karpa-Wilson, sobre a escritura feminina de Adalgisa Nery; deEnrique Rodriguez Larreta, sobre Gilberto Freyre e seu Casa-grande eSenzala; de Marcelo Jasmin, sobre a obra de Raymundo Faoro; de Sergio

    Alcides, sobre textos de Luiz Costa Lima em seu O controle do imaginrio;e de Jorge Ruffinelli sobre a obra flmica de Walter Salles , apresen-tam-se, na leitura do articulista, como breves apontamentos que podemconfigurar uma histria da literatura nacional.

    Em O gnero autobiogrfico e a representao da infncia

    na literatura: Minha vida de menina, Infncia e Os bichos que tive, osautores Celdon Fritzen e Gladir da Silva Cabral abordam, em leituraentrecruzada, as obras de Helena Morley, Graciliano Ramos e SylviaOrthof. Ao se proporem a problematizar os modos pelos quais a infn-cia representada em trs obras de natureza autobiogrfica da literaturabrasileira, os articulistas concluem que, ainda que circunstancialmentese construam em contextos diferentes, h linhas enunciativas de centra-lizao do eu que prevalecem nas trs narrativas.

    Daniel Andriloli Rasch, em Mos de cavalo no um livro so-bre o pessimismo (ao contrrio do que andam dizendo por a), ao abor-dar um texto de fatura recente, evidencia a prtica intertextualizadoraque o dilogo com outras obras literrias da tradio brasileira e comoutros textos formatados por meio de cdigos estticos da comunicaode massa, como as histrias em quadrinhos e o cinema, levada a efeitopor um dos mais instigantes escritores da atualidade, Daniel Galera, faz

    avanar a discusso sobre a natureza e o atual estado da literatura brasi-leira contempornea. Conclui, o articulista, que a coerncia da criaode Galera at aqui indica a gestao de um autor no caminho da execu-o de um verdadeiro projeto literrio, o qual se insere numa tradioliterria que se revela explicitada e intertextualizada em sua obra e queinclui outros sistemas estticos que ele incorpora originalmente ao seutexto de fico.

    Flavia Mara de Azevedo, com Antropologia cultural e lite-ratura comparada: uma conexo relevante aos estudos relativos obrainfantil de Monteiro Lobato, estabelece uma ligao entre a literatura

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    infantil de Monteiro Lobato, a Literatura Comparada e a Antropologiacultural, revelando o cenrio lobatiano, no qual reconhece as invarian-tes encontradas na mitizao do grupo e do espao-tempo, capaz detornar coerentes as insuficincias do mundo da criana lobatiana,ligado ao primitivo (primeiras idades), mas atualizado pela magia damodernidade (Histria).

    Com Memrias do crceree Meu testemunho, Joselaine Bron-dani Medeiros apresenta sua leitura contrastada dos textos de Gracilia-no Ramos e Anatoly Marchenko, na interseco de contextos literrios,histricos e sociolgicos, nos quais v a representao de perodos de ex-

    ceo que confirmariam a idia de que, independentemente do regimepoltico e ideolgico vigente, governos totalitrios constituem-se comoespao para o aniquilamento das liberdades individuais e para a repres-so moral e fsica. Nessa circunstncia, conclui a articulista, a literaturase torna uma forma de reao brutalidade e um meio de denncia sditaduras e a todas as formas de represso.

    Lucas Vieira de Arajo, em Os contos e o regionalismo emDomingos Pellegrini, analisa cinco livros de contos do autor, produzi-dos de 1977 a 1998, para verificar como os textos poderiam ser caracte-rizados como sendo de temtica regional, a partir do fato da instalaode seu universo ficcional no interior do Paran.

    Investindo na anlise de um texto em verso, Paula Cogno Ler-men, em Grafito para Li-Po: o poema de Murilo Mendes, investiga asrecorrncias internas do texto e seu contexto extra-textual de produoa partir da semiologia estrutural proposta por Iuri Lotman e de refle-

    xo sobre o conceito de intertextualidade, para concluir que o poema dialgico e palimpsstico, formalizando-se, mesmo assim, em plenitudeesttica, sem precisar explicitar sua origem.

    Em O Bernheimer report: ressonncias no mundo do compa-ratismo, Paulo Csar Silva de Oliveira faz um balano crtico das dis-cusses sobre o estgio recente da Literatura Comparada a partir dopronunciamento de Charles Bernheimer, em Comparative Literature inthe Age of Multiculturalism, e traa um panorama das discusses crti-cas acerca dos rumos e desafios do comparatismo contemporneo. Emum mundo cada vez mais hbrido, conclui, h urgncia em se negociar

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    com as vrias instncias estticas, polticas e ideolgicas, papel a que aLiteratura Comparada se entrega, na dimenso mesma de um desafioinfindvel, porm necessrio, e que faz de suas interrogaes sua pr-pria marca.

    No ensaio Acrobacias textuais em O vo da trapezista, de Aml-car Bettega Barbosa, Rafael Dias Ferreira, no mbito de ampla pesqui-sa que tem por objetivo analisar a obra completa do escritor gacho,explicita sua interpretao para o primeiro livro do contista, intituladoO vo da trapezista(1994). A inteno a de averiguar a evoluo de seuprojeto literrio e sua possvel filiao a linhas intertextuais cannicas

    da literatura narrativa. Operando em campo caro ao comparatismo con-temporneo, o articulista l os contos no sentido de que, sendo textosque representam a estria de Barbosa, j expem as propostas que serolevadas adiante, de forma mais ambiciosa, em textos posteriores. Res-salta ainda a presena das intervenes metalingsticas que do a pistapara o leitor investigar em que linha intertextual essa obra pode ser lida,sugerindo sua ligao com a metafico, aspecto que ser determinantepara a natureza transtextual de seus trabalhos subseqentes.

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    O Barroco literrio de Francisco de Quevedo eGregrio de Matos

    Andra Cesco

    ResumoEste artigo tem como enfoque estabelecer um paralelo entre

    a obra Sueos, do espanhol Francisco de Quevedo e alguns textos deGregrio de Matos, ambos do Barroco, identificando semelhanas ediferenas na escritura.

    Palavras-chave: Quevedo Barroco Gregrio

    AbstractThis paper intends to establish a parallel between Sueos, by

    Spanish writer Franciso de Quevedo, and the satirical work of Brazilianpoet Gregrio de Matos, both from the Baroque age, identifying theresemblances and differences in their writing.

    Keywords:Quevedo Baroque Gregrio

    Este artigo tem como enfoque estabelecer um paralelo entrea obra Sueos(1627) do espanhol Francisco de Quevedo e alguns textosde Gregrio de Matos, ambos do Barroco, identificando semelhanase diferenas na escritura. A edio utilizada, de James Crosby (1993), composta por cinco narrativas: Sueo del Juicio, Alguacil ende-moniado, Infierno, El mundo por de dentro e El sueo de laMuerte. Escritas entre 1605 e 1621, elas esto dispostas em forma dedilogo e satirizam os costumes e os personagens de seu tempo, de todasas classes sociais.

    Os espanhis do sculo XVII se apresentam abalados pela gra-ve crise e isso se traduz num estado de inquietao e angstia, conscien-tes da irremedivel decadncia. O repertrio corresponde a este estadode conscincia. Existe a busca de um estilo lingstico violento, que es-

    teja altura da violncia dos acontecimentos histricos (BENJAMIN,1984:77).

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    Maravall acredita que o Barroco uma cultura que consistena resposta dada, em torno do sculo XVII, por grupos ativos perten-centes a uma sociedade que entrou em dura e difcil crise, relacionadacom flutuaes crticas na economia desse perodo (1997:65). E esseacelerado processo de decadncia coincide com uma extraordinria flo-rao das artes.

    O Barroco espanhol divide-se em duas vertentes: o culteranis-mo, cujo maior nome Gngora, e o conceptismo, representado pelasfiguras de Quevedo e Caldern de La Barca. Os culteranistas cultivama forma das palavras deixando seu contedo em segundo plano, pre-

    tendendo criar um mundo de beleza, com uma linguagem culta e in-trincada. Os conceptistas, ao invs, se preocupam principalmente pelacompreenso do pensamento, aprofundam no sentido ou no conceitodas palavras. Os recursos utilizados so as freqentes metforas, paraimpressionar a inteligncia; os jogos de palavras; o estilo breve e conci-so; a anttese de palavras, frases ou idias, para impressionar e aguar amente.

    Quevedo (1580-1645) passa para a histria da literatura es-panhola caracterizado, de maneira fundamental, como produtor destiras. Escreve, ademais, textos lricos, morais e polticos. Jos Mon-tesinos, Dmaso Alonso e Octavio Paz, em artigo escrito em conjunto,em Historia y crtica de la literatura espaola. Siglos de oro: Barroco, afirmamque Quevedo no teve rival no seu sculo e nem o tem agora. Para eles,sem dvida, Quevedo os atrai tanto, por nele existir algo demonaco: oorgulho (ou o rancor) da inteligncia. Cito o comentrio:

    Hay que leerlo para saber qu son, realmente, las no-ches y los das del solitario, el acicate del apetito insa-ciado, el peso de la sombra de la muerte en la concien-cia, las vigilias del rencor, las cadas en la melancola, elencontrado ir y venir de la clera al ludibrio y, en fin,toda esa gama de sentimientos y sensaciones que va dela desesperacin a la resignacin orgullosa. [...] (MON-TESINOS, ALONSO e PAZ, in RICO, 1983:157).

    No Brasil-colnia, o incio das manifestaes literrias se apre-senta favorecido pelo impulso social e econmico que o pas toma a

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    partir da segunda metade do sculo XVI. Para o artista Barroco a dupli-cidade a nica atitude compatvel. Entretanto, alm das caractersticasportuguesas e tambm espanholas, o barroquismo brasileiro apresentapeculiaridades prprias. De acordo com ngela M. Dias (1981:66), aaliana Imprio/F jamais esteve to forte como nesta poca em que aprpria Companhia de Jesus emprega o prazer da ostentao e da rique-za. E nunca o prestgio das ordens religiosas esteve to ligado ao poderestatal. E justamente contra os abusos do poder, contra a exploraoeconmica e as transgresses que vai surgir o primeiro grande surto deformalizao satrica da literatura brasileira. Trata-se da poca Gregrio

    de Matos.So recorrentes as contradies em seus poemas, oscilando

    entre sagrado e profano, sublime e grotesco, amor e pecado, a buscade Deus e os apelos terrenos. Por usar palavras grosseiras ou vulgares,ganhou a alcunha de Boca do inferno. Para Afrnio Coutinho Gre-grio o Quevedo brasileiro, o primeiro a dar o grito de independnciaantilusa na lngua [...] (1994:303).

    Conforme com a esttica do Barroco, abusa de figuras de lin-guagem; faz uso do estilo cultista e conceptista, atravs de jogos de pala-

    vras e raciocnios sutis, assim como Quevedo.Uma tendncia na obra de Gregrio consiste na inteno

    moralizante, como instrumento reparador de deformaes sociais atri-buda stira, dentro de uma linha problematizante de repdio ao esta-belecido e desmascaramento da casca, do verniz, da aparncia (DIAS,1981:78). O poeta, nessas dcimas abaixo citadas, fingindo que interce-

    de pelas honras da cidade, entra para fazer justia em seus moradores,sinalizando-lhes vcios, falta de grandeza e dignidade. Logo abaixo da ci-tao de Gregrio cito Quevedo, que faz o mesmo no Infierno (1608),dando a conhecer as intenes ocultas de cada um.

    O fidalgo de solar/se d por envergonhado/de um tos-to pedir prestado/para o ventre sustentar:/diz, que an-tes o quer furtar/por manter a negra honra, que passarpela desonra,/[...] A donzela embiocada/mal trajada, emal comida,/antes quer na sua vida/ter saia, que serhonrada [...] (MATOS, 1988:43-5).

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    Muere de hambre un caballero pobre, no tiene con quvestirse, ndase roto y remendado o da en ladrn, y nolo pide porque dice que tiene honra, ni quiere servirporque dice que es deshonra. [] Por la honra sin sa-ber qu es hombre ni qu es gusto, se pasa la doncellacasada treinta aos con sus deseos [...] (QUEVEDO YVILLEGAS, 1993:217-8).

    Tanto Gregrio quanto Quevedo tambm denunciam, ata-cam e condenam ferozmente vrios tipos acusados de roubar, entre eles,os oficiais de justia daquela poca, que tanto abominam. Para ambosos escrives, meirinhos, juzes e advogados so corruptos, falsrios e la-dres, uma corja de delinqentes cuja palavra no tinha valor. Assimdiz Gregrio: E que justia a resguarda? Bastarda/ grtis distribuda?

    Vendida/Que tem, que a todos assusta? Injusta (MATOS in PLVO-RA, 1974:66). Estes oficiais so mostrados no com as virtudes que oDireito neles exige, mas com vcios opostos, at o ponto em que aparecenos principais responsveis o defeituoso funcionamento do aparelhoprocessual. E no s porque seus atos sejam intrinsecamente imorais,

    mas porque seu comportamento significa estmulo corrupo, incen-tivo ao sistemtico atropelo dos valores ticos e jurdicos cuja defesateriam que assumir. Vejamos primeiro os ataques de Gregrio, seguidospelos de Quevedo:

    Para o escrivo falsrio,/que sem chegar-lhe pousa-da,/ dando a parte por citada, d f, e cobra o salrio:/e sendo o feito ordinrio,/como corre revelia,/sai asentena num dia/mais amarga que piornos: [...] (MA-TOS, 1992:353).

    Que haja Escrives que mal lem/Letra, que bem sesoletra,/e que fazendo m Letra,/contudo escrevemmui bem:/que a este dando o parabm/as alvssaras lhepeam,/e a estoutro logo despeam/com fico conso-latria!/Boa histria / (MATOS, 1992:376).

    Y not que no hay cosa que crezca tanto en tan poco

    tiempo como culpa en poder de escribano, pues en uninstante tena una resma al cabo (QUEVEDO Y VIL-LEGAS, 1993:292).

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    Nos dois trechos da poesia de Gregrio, o escrivo acusadode perjuro por falsificar documentos, pois este se aproveita do poderlegal a ele conferido de garantir a autenticidade do relato. Na seqncia,o poeta denuncia que o documento alterado acaba transcorrendo semo conhecimento do ru, que ignora o contedo errneo; e na hora dasentena, o que prevalece a vontade de quem suborna os ambiciososescrives. O mesmo ocorre no trecho de El mundo por de dentro(1612), de Quevedo, em que o escritor expressa a sua preocupao comas falsificaes dos escrives, pois estando o ru nas mos destes, suaculpa no pra de crescer, e isso tudo sem ele saber.

    A seguir, nessas duas passagens de Gregrio e Quevedo, am-bos jogam com as palavras direito e torto (antteses) para mostrar aatuao dos avarentos juzes, alvos tradicionais naquela poca:

    Que o Juiz pelo respeito/profira a sentena absorto,/fazendo o direito torto,/mas isto a torto, e direito:/quecuide, que pode o feito/no agravo, ou na apelao/ me-lhorar na Relao/s pela conservatria!/Boa histria/ (MATOS, 1992:375).

    [...] y aqul fue juez maldito, y tambin est entre ellos,pues por dar gusto no hizo justicia, y a los derechosqueno hizo tuertos, hizo bizcos (QUEVEDO Y VILLEGAS,1993:210).

    Ao invs do direito ser justo, ntegro, reto e conforme lei,ele torto, torcido e desleal, servindo de matria aos satricos. Gregrio

    ainda joga com as palavras aplicando a expresso a torto e direito,como uma prtica realizada habitualmente.

    E para completar a lista de oficiais ladres no poderia faltara figura do meirinho e do advogado. Ento, na seqncia, cito a tercei-ra e quarta estrofes, de um total de doze, de um poema de Gregrio,em que ele critica a forma como a Bahia governada, principalmen-te naquele momento em que a cidade padece de fome universal. Noprimeiro exemplo, elas esto direcionadas s ardilezas dos meirinhos,guardas e sargentos; j no segundo, a acusao de larpio dirigida aosadvogados.

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    Quem faz os crios mesquinhos?...Meirinhos/Quem fazas farinhas tardas?...Guardas/Quem as tem nos aposen-tos?...Sargentos./Os crios l vm aos centos,/e a terrafica esfaimando,/porque os vo atravessando/ Meiri-

    nhos, Guardas e Sargentos (in PLVORA, 1974:65).

    Entre outros ladres/vero um letrado/na mente gra-duado /de quatro asneires:/Na cara pontes/na idianem ponto,/e ou tonto, ou no tonto,/de rico blasona(MATOS, 1992:364).

    Em Alguacil endemoniado (1608), de Quevedo, tambm

    encontramos uma crtica feroz dirigida aos meirinhos e advogados:

    Quin podr negar que demonios y alguaciles no tene-mos un mismo oficio? [] nosotros procuramos conde-nar, los alguaciles tambin; nosotros, que haya vicios enel mundo y pecados, y los alguaciles los desean con msahnco porque ellos lo han menester para su sustento[] (QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993:162).

    Y habis de advertir, que la codicia de los hombres hahecho instrumento para hurtar todas sus partes, [...]No hurta con el entendimiento el letrado que le damalo y torcido a la ley? (QUEVEDO Y VILLEGAS,1993:178).

    No primeiro exemplo, o demnio equipara sua funo domeirinho, afirmando que ambos procuram condenar e querem que

    haja vcios e pecados no mundo, diferindo, porm, na finalidade, poisos meirinhos necessitam condenar para viver, enquanto que os dem-nios precisam condenar para ganhar companhia. No segundo exemplo,o advogado acusado de furtar com inteligncia, pois atribui lei umsignificado errado e corrompido.

    No entanto, outras profisses e ofcios, como de mdico,boticrio e alfaiate, tambm aparecem constantemente ridicularizadospor Gregrio e Quevedo. Quanto ao mdico, seu diagnstico se baseia,

    segundo testemunho dos satricos do sculo XVI e XVII, somente natomada do pulso e na anlise mais ou menos competente da urina; e

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    sua teraputica se limita a purgar, sangrar e tambm aplicar ventosas.Ademais, este profissional acusado no s de ser incapaz de curar odoente, mas tambm de mat-lo com sua interveno. Vejamos a seguircomo Gregrio e Quevedo se referem a ele:

    [...] Que haja mdicos, que tratam/s de jogos, e deamores,/sendo como os caadores,/que vivem s, doque matam:/que estes, que no se recatam,/venhamcom pressa esquisita,/vo-se, e est feita a visita/depoisda purga expulsria!/ [...] Mas que outros, que pem raa,/e se prezam de estafermos,/no o tomando aosenfermos,/s tomem o pulso casa:/que haja enfermo,

    que se abrasa/em febre, e dores mortais,/e que se curecom tais,/que s estudam na frasqueira!/[...] (MATOS,1992:377-395).

    [...], sortijn en el pulgar de piedra tan grande quecuando toma el pulso, pronostica al enfermo la losa(p.318-9) [...] son diablos los mdicos, pues unos y otrosandan tras los malos y huyen de los buenos, y todo sufin es que los buenos sean malos y que los malos no

    sean buenos jams (p.321). [...] Solos los mdicos nin-guno ha habido con don, y todos tienen don de matar,y quieren ms dan al despedirse que don al llamarlos(QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993:332).

    Quanto ao boticrio, que tambm deveria ajudar a restabele-cer a sade, este considerado o armeiro do mdico, pois lhe forneceremdios que so, segundo afirma Quevedo no exemplo a seguir, reti-

    rado do Sueo de la Muerte (1621), verdadeiras armas; estes vendemmedicamentos que j esto caducando, por pura ambio em conseguirdinheiro. Por isso, a ele atribuda tambm a culpa pela morte de mui-tos doentes, juntamente com os mdicos. Gregrio, no segundo exem-plo, um pouco mais prudente na acusao, tambm satiriza e denunciao boticrio.

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    Los medicamentos que stos venden (aunque estn ca-ducando en las redomas de puro aejos, y los socrociostengan telaraas), los dan, y as son medicinas redo-madas las suyas. [...] No hay gente ms fiera que estosboticarios: son armeros de los doctores: ellos les danarmas. [...] si se toca la tecla de las purgas, sus tiendasson purgatorios y ellos son infiernos. (QUEVEDO YVILLEGAS, 1993:320).

    [...] Acabada esta parlenda/mui tico do espinhao/so-bre a muleta das pernas/se levantou outro gato:/Dizen-do: h anos, que sirvo/na casa de um Boticrio,/que arcipe de pancadas/me tem os bofes purgado./Quei-

    xa-se, que lhe comi/um boio de ungento branco, ebebi-lhe a mesma noite/um canjiro de ruibarbo/ [...](MATOS, 1992:357-8).

    O alfaiate, outro ofcio duramente atacado, acusado pelossatricos principalmente de ladro e desonesto, porque contabiliza no

    valor cobrado o material utilizado na confeco das roupas alm do querealmente preciso. Gregrio assim o delata:

    [...] Pelo menos quando eu corto,/nunca dobro a telaem quatro,/por dar um colete ao demo,/e outro a mimpelo trabalho./Nem peo dinheiro/para retrs e o nogasto,/ porque o gaveto do cisco/me d o retrs ne-cessrio./No cirzo cvado, e meio/por dar um coleteao diabo,/nem vendo de tela fina/retalhinhos de trspalmos/ [...] (MATOS, 1992:358-9).

    Ademais, costuma-se retratar os alfaiates fisicamente com ca-ractersticas pejorativas para aquela poca, pois se acredita que denun-ciam um pssimo carter, como neste trecho do Infierno, de Queve-do:

    Uno de los sastres, pequeo de cuerpo, redondo decara, de malas barbas y peores hechos, no haca sinodecir a los otros: -Qu pude yo hurtar, si andaba siem-

    pre muerto de hambre? (QUEVEDO Y VILLEGAS,1993:129).

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    Ainda com relao ao alfaiate, outra passagem bastante curio-sa de um poema de Gregrio, e que marca a influncia de Quevedosobre o escritor brasileiro, essa: [...] Mais fidalgo que as mesmas estre-las,/Que s doze do dia viu sempre luzir,/Porque o Pai, por no sei quedesastre,/Tudo, o que comia, vinha pelo giz. [...] (MATOS, 2001:227).

    Agora, comparemos a mesma com a passagem de Quevedo: A quinno matarn las mentiras y largas de los sastres, y los hurtos? Y son talesque para llamar a la desdicha peor nombre, le llaman desastre, [...](QUEVEDO Y VILLEGAS, 1993:338). Ambos jogam com as palavrassastre (alfaiate) e desastre (indicando fracasso, ou ainda um aconte-

    cimento calamitoso), para enfatizar a mentira, porm em Quevedo issofica mais claro. Em Gregrio, s percebemos que o Pai um alfaiateporque ele usa giz para marcar o tecido que vai cortar. Gregrio querressaltar que o filho do alfaiate, que se diz fidalgo, no tem realmentesangue nobre, enquanto Quevedo destaca os roubos e mentiras dos al-faiates, afirmando que eles so chamados de desastre porque ocasio-nam dano e prejuzo aos clientes, alm de serem fracassados.

    Assim, percebeu-se que tanto Quevedo quanto Gregrio viven-ciaram e absorveram as circunstncias histricas e sociais do seu tempoe do seu pas, e as transformaram em material de denncia, cada um asua maneira, demonstrando conscincia dos problemas existentes.

    Referncias Bibliogrficas

    BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemo. Trad. SergioPaulo Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1984.

    COUTINHO, Afrnio. Do Barroco. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,Tempo Brasileiro, 1994.

    DIAS, ngela Maria. O resgate da dissonncia:stira e projetoliterrio brasileiro. Rio de Janeiro: Edies Antares: Inelivro, 1981.

    QUEVEDO Y VILLEGAS, Francisco de. (Edio anotada de James

    O. Crosby). Sueos y Discursos.Madrid: Castalia, 1993.

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    MARAVALL, Jos Antonio.A cultura do Barroco:anlise de umaestrutura histrica (prefcio de Guilherme S. Gomes Jr, trad. deSilvana Garcia). So Paulo: EdUSP, 1997.

    MATOS, Gregrio de. Gregrio de Matos(seleo de textos, notas,est. biogrfico, hist. e crtico de Antnio Dimas). 2.ed. So Paulo:Nova Cultural, 1988.

    MATOS, Gregrio de. Gregrio de Matos:obra potica (edio deJames Amado; preparao e notas de Emanuel de Arajo). 3.ed. Riode Janeiro: Record, 1992.

    MATOS, Gregrio de.Antologia Gregrio de Matos Guerra(seleoe notas de Higino Barros). Porto Alegre: L&PM, 2001.

    PLVORA, Hlio. Para conhecer melhor Gregrio de Matos. Rio deJaneiro: Bloch, 1974.

    WARDROPPER, Bruce, et. al. Siglos de oro: Barroco. In: RICO,Francisco (org.). Historia y crtica de la literatura espaola.Barcelona:Crtica, 1983.

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    Andr Luis Mitidieri

    ResumoDiscuto e comparo alguns discursos biogrficos contidos em

    cinco artigos da obraNenhum Brasil existe:pequena enciclopdia1. Ostextos, indicados nessa nota n.1, e a seguir comentados neste trabalho,constituem breves apontamentos que podem configurar uma histria

    da literatura biogrfica nacional.Palavras-chave: Histria Literatura Biogrfica Historio-grafia Literria.

    AbstractThis paper aims at discussing and comparing some biographi-

    cal discourses contained in the work Brazil 2001:A Revisionary Historyof Brazilian Literature and Culture2. These appointments, which are

    indicated in the corresponding note number one, and are commentedin this paper, may configure a history of the Brazilian biographical lite-rature.

    Key-words: History Biographical Literature Literary His-toriography.

    1ROCHA, Joo Cezar de Castro; ARAUJO, Valdei Lopes de (Orgs.).Nenhum Brasilexiste:pequena enciclopdia. Rio de Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 2003. Os arti-gos dessa obra, logo comentados, so os seguintes: KARPA-WILSON, Sabrina. A escritaautobiogrfica feminina no Brasil contemporneo e o caso de Adalgisa Nery (op.cit.:695-702). RODRGUEZ LARRETA, Enrique. O caminho para Casa-grande & senzala:Itinerrios de Gilberto Freyre (op.cit.:195-204). JASMIN, Marcelo. A viagem redondade Raymundo Faoro (op.cit.:357-365). ALCIDES, Sergio. Os caminhos de uma ques-to: Luiz Costa Lima e o controle do imaginrio (op.cit.:929-938). RUFFINELLI, Jorge.Brasil 2001 e Walter Salles: um cinema para a aldeia global? (op.cit.:1005-1021).

    2A primeira verso de Nenhum Brasil existesurgiu como um nmero especial da revistanorte-americana Portuguese Literary and Cultural Studies, com o ttulo assim destacado nopresente Abstract.

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    Alguns passeios por trabalhos que versam sobre a temtica daautobiografia e seus gneros vizinhos, extrados da pequena enciclop-dia organizada por Rocha e Araujo, operam no sentido de revisitar acultura brasileira. Comparados entre si, tais apontamentos ainda con-figuram uma histria da literatura biogrfica3e visam contribuir paraoxigenar os mtodos da historiografia literria.

    A literatura biogrfica e a histria da literatura parecem aten-tar s reformulaes por que passam os campos do saber histrico e lite-rrio. Desse modo, tentam desvencilhar-se do positivismo oitocentista,o qual, no entanto, ainda seduz muitos pesquisadores. O carter de ci-

    ncia rgida, muitas vezes, atribudo histria, vem sendo combatidopor meio da insero do sujeito e do reconhecimento da subjetividadenos discursos cientficos e em suas metodologias4.

    Por sua vez, o lugar de onde fala o pesquisador5 integra asmolduras que enformam os diferentes modelos de historiografias li-terrias, de acordo com Siegfried Schmidt6. O estudioso alemo pensaque o aspecto mais problemtico verificado nas historiografias literriasconsiste em suas interconexes com o corpo social, j que os dados

    3Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) empregou ineditamente a palavra literatura,como grupo de textos reunidos, no estudo Briefe, die Neueste Literatur Betreffend(1758). Se a palavra literatura no existia at o sculo XVIII, ento resulta inapropriadoo emprego do termo literatura biogrfica para classificar as obras de teor autobiogr-fico, biogrfico e similares, anteriores a tal centria.

    4 Nenhum Brasil existe admite, como literatura, as memrias e gneros aproximados,pois os elenca e os analisa, mostrando que o contexto est dentro, j que determina as

    prprias fronteiras do que pode vir a ser considerado como texto. Em outras palavras,o contexto no se reduziria a envolver ou circundar o texto porque, na medida em quefornece as normas a partir das quais se delimita o que texto, torna-se tambm parteconstitutiva deste. (JOBIM, 1992:130) JOBIM, Jos Luis. Histria da literatura. In:JOBIM, Jos Luis (Org.). Palavras da crtica.Rio de Janeiro: Imago, 1992. p.127-150.

    5Vide: ACHUGAR, Hugo. La fundacin por la palabra. Montevideo: FHCE, 1998.ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Belo Horizonte: EDUFMG, 2006. MIGNO-LO, Walter. Local Histories/Global Designs:Coloniality, Subaltern Knowledges andBorder Thinking. Princeton, NJ: Princeton UP, 2000.

    6Cf. SCHMIDT, Siegfried J. Sobre a escrita de histrias da literatura: observaes deum ponto de vista construtivista. In: OLINTO, Heidrun Krieger. Histrias da literatu-ra:as novas teorias alems. So Paulo: tica, 1996. p.101-131.

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    passam por avaliao e interpretao, preliminares s escritas das his-trias.

    Para Schmidt, uma histria da literatura deveria levar em con-ta suas prprias relaes nos sistemas literrios, pois esses igualmente seconectam a outros sistemas sociais, como os meios de comunicao, apoltica, a economia, o esporte, as cincias etc. O estgio de uma pesqui-sa implica-se diretamente trajetria de uma vida, com uma biografiade experincias.

    Da que a presente seleo dos cinco artigos de Nenhum Brasilexiste, indicados na nota de rodap n. 1, leve em conta as informaes

    biogrficas das quais so portadores, embora no despreze suas zonas decontato com outros discursos, como o o cinematogrfico, o historiogr-fico, o literrio etc. Os dados aqui recolhidos so dispostos em nova or-dem que, sem excluir o fator cronolgico, permite aos textos dialogarementre si, mas de maneira a percorrerem uma trajetria lacunar.

    Terminando ao final do sculo XX, o percurso inaugura-secom A escrita autobiogrfica feminina no Brasil contemporneo e ocaso de Adalgisa Nery7. Nesse primeiro ensaio, a base em Antonio Can-dido leva sua autora a inferir que so poucos os exemplos brasileiros deautobiografia antecedentes a 1933. Em tal quadro, Candido sublinhariaas memrias de Humberto Campos e, dos traos autobiogrficos vistosem alguma que outra poesia rcade, retroagiria imediatamente aos anosde 1800, nos quais teria observado um reduzido nmero de memrias,em sua maioria, de estadistas.

    Karpa-Wilson e o professor da Universidade de So Paulo,

    no qual se apia, deixam de citar Minha formao, de Joaquim Nabuco,obra muito referida quando se fala no gnero memorialstico. A autorae o conceituado pesquisador a que ela recorre tambm elidem as obrascom teor autobiogrfico de Jlia Lopes de Almeida. de se estranhartamanho silncio, j que as publicaes da escritora carioca, bem comodemais histrias de vidas escritas por mulheres no sculo XIX, vm sen-

    7KARPA-WILSON, Sabrina. A escrita autobiogrfica feminina no Brasil contempor-neo e o caso de Adalgisa Nery. In: ROCHA; ARAUJO, 2003: 695-702.

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    do bastante divulgadas pela prof Zaid Muzart8, da Universidade Fede-ral de Santa Catarina.

    Ainda diz Karpa-Wilson que os modernistas brasileiros ha-viam-se voltado em massa para as escritas do eu. A professora deIndiana, entretanto, no informa quando, como, nem onde isso teriaocorrido, ao mesmo tempo em que no esclarece se tais escritas abarca-riam os casos fronteirios da literatura biogrfica: romances autobiogr-ficos ou biogrficos, memrias falseadas e outros exemplos.

    Karpa-Wilson tenta ler o Brasil atravs dos lentes da USP,neste caso, filia-se pejorativa categorizao pr-modernista de Alfre-

    do Bosi. Da o desprezo a Lima Barreto (Recordaes do escrivo IsaasCaminha); Machado de Assis (Dom Casmurro, Memrias pstumas de BrsCubas, Memorial de Aires); Monteiro Lobato (Memrias de Emilia); Gra-ciliano Ramos (Infncia), dentre outros escritores localizados antes oudepois dos modernistas, e do intumescimento de sua importncia, pelafora da grana que ergue e destri coisas belas9.

    A fecundidade das obras que entrelaavam fico e memriaatingiu a biografia de Gilberto Freyre, estudado no artigo de RodrguezLarreta10. O autor identifica a conferncia Vida diplomtica, de Ma-nuel Oliveira Lima, como um dos primeiros opsculos lidos pelo soci-logo pernambucano, cujo primeiro ensaio de crtica cultural teve comoobjeto a obra do mesmo Oliveira Lima: Histria da civilizao11.

    Atravs desse conterrneo, Freyre conheceu o antroplogoalemo Franz Boas (1858-1943), decidindo estudar na Columbia Uni-versity de Nova York. A travou contato com Rudiger Bilden, o qual

    viajaria ao Brasil em 1926, para realizar pesquisas sobre raa, e seriamuito importante elaborao de Casa-grande & Senzala. O brasileiro

    8A esse respeito, conferir: MUZART, Zahid Lupinacci. Escritoras brasileiras do sculoXIX. Santa Cruz do Sul: EDUNISC; Florianpolis: Editora Mulheres, 1999.

    9VELOSO, Caetano. Sampa. In: CAETANO VELOSO. Disponvel em:. Acesso em: 09 out. 2007.

    10

    RODRGUEZ LARRETA, Enrique. O caminho para Casa-grande & senzala: Itiner-rios de Gilberto Freyre. In: ROCHA, ARAUJO, 2003:195-204.

    11O ensaio foi publicado em 1921, na Revista do Brasil, dirigida por Monteiro Lobato.

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    teria contribudo, do mesmo modo, aos pensamentos de Bilden e Boas,outorgando miscigenao um papel civilizatrio.

    O dilogo expandiu-se ao mestrado de Freyre, conforme suatese, a que intitulou Vida social no Brasil em meados do sculo XIX (1922).O plano da futura Casa-grandeainda no estava definido, mas, desde1926, seu autor pensava escrever uma histria do menino brasileiro,dando asas a projeto concebido ainda em Nova York, no ano de 1921, econtinuado aps visita Alemanha, mais propriamente, a Nuremberg,cidade dos meninos.

    Em 1930, durante seu exlio em Lisboa, o intelectual pernam-

    bucano acessou novas bibliotecas. Na Universidade norte-americanade Stanford, ministrou cursos, testemunhados por cadernos de manus-critos que enfocam, principalmente, as leituras freirianas a respeito dacolonizao. Em seu dirio Tempo morto e outros tempos, destaca-se umapassagem de 1922, na qual figura o crtico cultural Henry Mencken.Numa carta do mesmo ano, esse abria oportunidade para o brasileirocolaborar com o peridico The American Mercury.

    Entre as correspondncias trocadas pelos intelectuais no de-correr de 1931, cobra importncia uma carta do dia 18 de agosto, naqual Mencken acusava o recebimento da dissertao de mestrado deFreyre, recomendando public-la. A Histria do menino seria entosubstituda pelo novo projeto do livro Casa-grande & senzala, cujos doisprimeiros captulos viriam a ser concludos em 1932.

    O ensaio que d conta dessas histrias biogrficas insere ofragmento de uma entrevista concedida por Freyre a Austregsilo de

    Athaide em 1931. Aquele refutava o fazer histrico poltico e diplom-tico, voltando-se s histrias de teor ntimo e social. Enquadrado comointrprete do Brasil, junto a Caio Prado Jr. e a Srgio Buarque, Freyrelabora na reformulao do tema das raas no Brasil.

    Sua obra-prima traz informaes relativas vida cotidiana, alimentao, famlia e sexualidade. Esse contedo sugere que sejalida, em partes, como autobiografia e memrias. Rodrguez Larreta che-ga a sugerir sua leitura como texto ficcional, por reviver espectros dopassado que no conseguimos purgar definitivamente. E o faz com uma

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    maestria literria que assegura a Casa-grande & Senzalaum lugar entre asgrandes obras da imaginao histrica moderna12.

    Retorno agora para o ensaio de Karpa-Wilson, que indica apublicao, na dcada de 1940, do dirio Minha vida de menina. Escritopor Helena Morley, o relato autobiogrfico se converteu em best-seller poca13. A pesquisadora convoca tambm Graciliano Ramos para seurol, atravs do primeiro volume das Memrias do crcere(1953).

    A ensasta afirma que, em 1959, a deputada e jornalista Adal-gisa Nery publicouA imaginria, cuja primeira edio logo se esgotaria. Aromancista apresentada em biografemas14, neste ensaio que se abre

    a outro artigo, do poeta brasileiro Affonso Romano de SantAnna15.Ele afirma que a obra de Adalgisa fundamental para o estu-

    do da voz feminina na moderna narrativa ficcional brasileira. Confor-me o articulista, o nome prprio se embasaria no modelo masculino deautoridade/autor, mas o nome da mulher no vinha funcionado como

    veculo de autoridade; era preterido por pseudnimos ou se escondiaem disfarces ficcionais. Ao acontecimento, ligado histria masculina,a autora deA imaginriateria preferido a experincia (feminina e nti-ma), escrevendo a vida de Berenice como uma falsa autobiografia.

    Karpa-Wilson tambm cita o livro de Carolina Maria de Jesus:Quarto de despejo (1960). Nesse, que veio a ser um sucesso editorial, amulher-autora deixava de se esconder nos biombos da fico, configu-rando uma escrita autobiogrfica feminina que vem aumentando desde

    12RODRGUEZ LARRETA, 2003:204.

    13O dirio, contudo, narra o tempo transcorrido entre 1893 e 1895.

    14Barthes desejava que sua vida fosse lembrada por detalhes, reduzida a alguns por-menores, a alguns gostos, a algumas inflexes, digamos: biografemas, cuja distino emobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, maneira dos tomosepicurianos, algum corpo futuro, prometido mesma disperso. BARTHES, Roland.Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mrio Laranjeira. So Paulo: Brasiliense, 1990. p.12.

    15SANTANNA, Affonso Romano de. Masculine Vampirism or the Denunciation ofPygmalion: A Reading of Adalgisa Nerys A imaginria. In: JOHNSON, Randal (Org.).Tropical Paths: Essays on Modern Brazilian Literature. New York: Garland, 1993. p.91-99.

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    a onda dos dirios polticos, desencadeada a partir da segunda metadeda dcada de 1970.

    Conforme a pesquisa de Marcelo Jasmin16, Raymundo Fao-ro publicou Os donos do poder no ano de 1958. Em 1975, a segundaedio dessa obra viu-se ampliada para dois volumes, num xito talvezjustificado pelo clima de oposio ditadura militar, que se exauria. Aorganizao da sociedade civil, fixando-se no trip da ABI, da CNBBe da OAB, de cuja seo guanabarina Faoro se notabilizou presiden-te, oferece abertura de sua obra a uma leitura memorialstica, em queganha relevo a convivncia de estruturas arcaicas e modernizantes no

    mundo social brasileiro.Por um lado, Faoro situa-se como pesquisador de fontes e,

    por outro, como testemunha dos fatos que analisa. Abrir seu livro comDom Joo I e fech-lo com Getlio Vargas no seria um sinal da ten-tao biogrfica, que parecia instaurada naqueles tempos? Alm disso,as diferenas quanto recepo das edies a primeira, pela Globode Porto Alegre; a segunda, pela Editora da USP no se vinculariam posio do conhecido jurista no cenrio nacional, como defensor doEstado de Direito?

    Na mesma ao de resistncia aos mecanismos ditatoriais,Luiz Costa Lima17ento publicava O controle do imaginrio (1984). Doisanos aps esse livro ganhar traduo na Europa e nos Estados Unidos,lanou Sociedade e discurso ficcional(1986). A edio brasileira de O fin-

    gidor e o censor (1988) constituiu o terceiro volume de uma trilogia, cujaconfigurao no havia sido prevista por seu autor.

    Nesses tempos que se entrecruzam, Walter Salles Jr. produziadocumentrios sobre msicos populares, como Chico Buarque e Cae-tano Veloso, alm de um outro, sobre Frans Krajcberg: o poeta dos ves-

    16JASMIN, Marcelo. A viagem redonda de Raymundo Faoro. In: ROCHA, ARAUJO,

    2003, p.357-365.17Cf. ALCIDES, Sergio. Os caminhos de uma questo: Luiz Costa Lima e O controledo imaginrio. In: ROCHA, ARAUJO, 2003, p.929-938.

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    tgios (1987). Centrava-se na vida desse escultor polons, emigrado aoBrasil aps ver toda sua famlia exterminada pelos nazistas18.

    No mundo real, o ditador chileno caiu, o muro alemo, tam-bm, e Collor de Melo elegeu-se presidente do Brasil. O cinema nacio-nal renascia e a televiso vinha exibindo a telenovela Renascer. Entretais renascimentos, encontram-se dois filmes de Walter Salles:A grandearte(1991) e Socorro Nobre. Nesse curta-metragem, a personagem-ttulose baseava na pessoa real que assistiu ao documentrio sobre o artis-ta polaco. Desejando encontr-lo, Socorro valeu-se de uma carta, quetransformaria sua existncia.

    Depois disso, Costa Lima publicou Limites da voz (1993) eVida e mmesis(1995). Nessa obra, inseria um Esboo de autobiografiaintelectual, dando conta da falncia do seu projeto de examinar deti-damente o tema do controle do imaginrio. Esses fatos ocorreram noconjunto das suas relaes com o grupo ligado Esttica da Recepoe do Efeito.

    Com efeito e em preto-e-branco, Terra Estrangeiratornou Wal-ter Salles mais conhecido mundialmente. Embora datado de 1995, ofilme aborda vidas de emigrantes brasileiros, desencantados com o ne-oliberalismo collorido, que se dirigiram Pennsula Ibrica. O pro-tagonista, de nome Paco, arranja uma srie de encrencas at conhecerFernanda Torres, no papel de Alex, e deseja conhecer San Sebastian, deonde sua me procedera.

    H algum tempo, esse tema vinha-me provocando, j que osexlios e auto-exlios, as migraes e interrupes de trajetrias integram

    as biografias de grande parte dos brasileiros. Ao fim dos anos 90, WalterSalles lanava Central do Brasil. O filme trata da viagem de um menino busca do pai, na qual se acompanha da personagem vivida por Fernan-da Montenegro: umaghost-writerde cartas para pessoas que no sabemescrever.

    Ciente de experimentar, em simultneo, a face hegemnicae os lados da dependncia, Costa Lima publicou O pai e o trickster

    18Cf. RUFFINELLI, Jorge. Brasil 2001 e Walter Salles: um cinema para a aldeia global?In: ROCHA, ARAUJO, 2003, p.1005-1021.

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    (1997). O autor estabelece os laos entre indivduo e cultura nos cam-pos metropolitano e marginal, recorrendo quele que burla a lei fixadapelo outro, como ele mesmo procede, nesse texto, com Sigmund Freud.Sergio Alcides salienta a necessidade de uma leitura desconfiada, qualtambm submete Costa Lima, cuja prtica de escrita e leitura permitiu-lhe desler outros autores.

    por isso que venho propondo a desleitura da historiogra-fia literria, da literatura biogrfica, do modernismo brasileiro e seusbaluartes. Com semelhante propsito, Walter Salles dirigiu O PrimeiroDia (1998), filme curto e perfeito. Por sua vez, Rachel de Queiroz pa-

    recia visar a um final feliz, quando publicou Tantos anos, mistura deautobiografia e biografia19.

    Nos textos que ditou a sua irm Maria Luza, ou at mesmoque essa precisou escrever, a intelectual cearense louva o recato e o re-traimento, noes associadas a uma posio masculinista. Para compen-sar, Ana Arruda Calado lanou a pblico sua biografia Adalgisa Nery:muito amada e muito s (1999).

    Por meio dos ensaios aqui selecionados, e apesar da seleo, possvel afirmar a existncia da literatura biogrfica no Brasil, desde ostraos dos rcades no sculo XVIII. Esse panorama se amplia com infor-maes externas a Nenhum Brasil existe, a exemplo das contidas no ndicede biobibliografia brasileira, organizado por Galante de Sousa20.

    Da, ento, admitir a existncia da biografia no Brasil, antesmesmo da origem pressuposta pelos artigos que integram a obra co-ordenada por Rocha e Araujo. Ao desenvolver um gnero em vigor no

    Ocidente desde a 18 centria, alguns escritos brasileiros ainda com-pem o espao biogrfico, quer dizer, o leque de formas precedentes instituio da biografia, da autobiografia e assemelhados enquantogneros narrativos.

    Dessa forma, o espao biogrfico brasileiro preexiste s pro-dues rcades, do mesmo modo que a literatura biogrfica demonstra

    19

    Cf. KARPA-WILSON, 2003.20INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO. ndice de biobibliografia brasileira. Rio deJaneiro: INL, 1963.

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    32 Caderno de Letras, n.14: 23-32, 2008

    seu vigor anteriormente aos escritos modernistas nesse campo, basta verque o dirio de Helena Morley foi produzido no sculo XIX. Sendo as-sim, preciso trabalhar com a idia das contaminaes entre os gnerosque formam o espao biogrfico e a literatura biogrfica no Brasil.

    O amlgama de tais espcies com a fico no escondia so-mente as mulheres, mas tambm os escritores off-centro, vide LimaBarreto. Isso contraria a tese de Karpa-Wilson, j desmontada por elamesma, ao citar a autobiografia biogrfica de Rachel como um trabalhoda linguagem em que o eu feminino se oculta na prpria escrita do eu,por meio de algumas estratgias, a exemplo do retraimento.

    Citaes, reenvios, notas de rodap e outros expedientes utili-zados nos ensaios ora vistos autenticam o discurso historiogrfico, masno impedem sua reconstruo em outra ordem. Constituindo tambmuma saudvel contaminao, a literatura biogrfica aqui visibilizadanas obras de Ana Arruda e Helena Morley.

    Esse feixe de gneros cresce em lugares inusitados: numa obrade sociologia, nos ensaios de Costa Lima e Faoro, assim como nos dis-farces ficcionais de Adalgisa Nery e Rachel de Queiroz. Ao Quarto dedespejo, lembrado em Nenhum Brasil existe, poderiam somar-se as obras

    Joo Felcio dos Santos, esquecidas por essa coletnea e pelo cnonenacional21.

    Os textos do escritor carioca e outros, que precisei recordar,operam como um termo fantasmtico de comparao: mostrando queo reprimido pode retornar a qualquer hora, juntam-se aos fragmentosautobiogrficos de Walter Salles. Num deles, recolhido da entrevista

    citada por Ruffinelli, o cineasta justifica o sucesso de seus filmes por umdetalhe da prpria biografia: a capacidade de se emocionar22.

    21Desde a dcada de 1960, Joo Felcio vinha escrevendo romances de teor histrico-biogrfico: Carlota Joaquina, Cristo de Lama, Ganga-Zumba, Joo Abade, Major Calabar,Xica da Silva, entre outros.

    22 MATTOS, Carlos Alberto; BENTES, Ivana; AVELLAR, Jos Carlos. Conversa comWalter Salles: o documental como socorro nobre da fico. Cinemais, Rio de Janeiro,n.9, p.7-40, jan./fev. 1998.

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    O gnero autobiogrfico e a representao da infnciana literatura: Minha vida de menina, Infncia, e

    Os bichos que tive

    Celdon FritzenGladir da Silva Cabral

    ResumoEste trabalho1se prope a problematizar os modos pelos quais

    a infncia representada em trs obras de natureza autobiogrfica da

    literatura brasileira: Minha vida de menina, Infncia e Os bichos que tive.Palavras-chave: Infncia Autobiografia Literatura

    AbstractThis paper aims at studying how childhood is represented in

    three important autobiographies in the Brazilian literature: Minha vidade menina, by Helena Morley; Infncia, by Graciliano Ramos, and Osbichos que tive, by Sylvia Orthof.

    Keywords: Childhood Autobiography Literature

    Desvelada como uma categoria social de gnese recente(ARIS, 1981), a infncia se constitui hodiernamente num objeto deinteresse de mltiplas disciplinas. Sua emergncia combina-se com asistematizao de saberes especficos que sobre ela incidem tentando

    apreender-lhe sua natureza ou historicidade. De sua parte, a literaturatambm se mostrou interessada pela infncia, seja com a criao de umcabedal de leituras de cunho pedaggico, seja com o compromisso deaproximar-se da experincia infantil com o fito de dar voz quele que,numa viso adultocntrica, no o teria (in fans= sem fala) (ZILBER-MAN; MAGALHES, 1984).

    1Este artigo resultado do projeto de pesquisa Culturas infantis: processos de apropria-o e produo, financiado pelo edital CNPq n 50/2006.

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    O foco deste artigo, voltado para a literatura infantil, centra-seem um tipo particular de representao literria da infncia: a autobio-grafia. Embora escrito no necessariamente para crianas, as formas dodiscurso autobiogrfico no se mostraram alheias s interrogaes doque seja a infncia; no deixaram de atribuir valor, descrever uma pers-pectiva histrica, dar singularidade ou esvaziamento cultural ao modopelo qual se vive ou viveu a experincia de ser criana.

    Problematizar os modos pelos quais a infncia representadaem trs obras de natureza autobiogrfica da literatura brasileira o quepropomos aqui: Minha vida de menina, de Helena Morley (1998), Infn-

    cia, de Graciliano Ramos (1984) e Os bichos que tive, de Sylvia Orthof(2004). A discusso passa por um enfoque conceitual que no compre-ende a infncia numa perspectiva romntica, mas como uma dimensoem que se produz cultura por meio da participao no entorno scio-histrico em que est inserida. Acredita-se nas crianas como produto-ras de um tipo particular de cultura: as culturas da infncia (SARMEN-TO, 2004).

    Numa de suas afirmaes surpreendentes, Borges (1993) sus-tentava que toda a literatura autobiogrfica. Ora, o prprio surgimen-to da literatura como uma linguagem com especificidade prpria nos recente (dataria, segundo Foucault (1987), de fins do sculo XVIII).

    A mxima de Borges salienta o que h de dilogo entre literatura, me-mria e esquecimento. Ainda mais sintomtico desse dilogo a emer-gncia e prtica do gnero autobiogrfico que, como props o escritorargentino, reveladora de modos pelos quais o ser humano historica-

    mente se relaciona consigo e representa a si. Laffitte & Laffitte (1996),ao abordarem as maneiras pelas quais o gnero autobiogrfico se conso-lidou, distinguem entre a cultura crist e a greco-romana uma diferenacrucial: enquanto para esta a escrita de si no tem um carter vinculado historicidade particular de cada homem, mas ao aprimoramento ticoda alma, para a tradio crist ser o percurso histrico de uma vidadisposta entre as tentaes e o chamado de Deus que caracterizar talescrita. a histria de um indivduo, relatada segundo as figuras dopecado e da salvao crist, que se pode observar nas Confissesde San-to Agostinho. Contudo, a estrutura crist da autobiografia agostiniana

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    ainda carece de uma orientao que o gnero modernamente assumiu.Laffitte & Laffitte entendem, seguindo um amplo consenso, que emRousseau que se encontra a ilustrao exemplar da autobiografia nomundo contemporneo: trata-se da laicizao do relato autobiogrfico,escrito por um homem que se dirige a outros.

    Alm da obra de Rousseau, uma srie de circunstncias sedesenvolve concomitantemente, lembra Miraux (1996), as quais cola-boraram no interesse pela autobiografia. Durante o sculo XVIII, a im-portncia com que o indivduo foi revestido na sociedade burguesa,culminando na Declarao dos Direitos Universais do Homem, mostra

    esse cuidado poltico. Aliadas incipiente industrializao e urbaniza-o, ainda para Miraux, as condies epistemolgicas tambm se torna-ram propcias consolidao e difuso do gnero autobiogrfico, queinstauraram no sculo das Luzes o indivduo como objeto central doconhecimento (1996:24).

    A escrita autobiogrfica rene todos os casos em que o sujeitohumano se toma como prprio objeto do que ele escreve, constituindoassim uma identidade entre autor, narrador e protagonista do relato.

    Ainda, segundo Lejeune, tanto a biografia quanto a autobiografia de-vem atender a um pacto com o leitor. Este espera que o que est sendorelatado impermevel fico, garantido pela verificao dos fatosapresentados em provas do mundo ao qual a narrativa de si faz refern-cia. o que Lejeune chama de pacto autobiogrfico.

    Escrito entre os anos de 1893 e 1894, Minha vida de menina um dirio que registra episdios vivenciados por Helena Morley em

    Diamantina, Minas Gerais. O pai, ingls radicado no Pas e casado combrasileira, explora lavras na regio em busca de diamantes. Trabalhoincerto que no garante famlia uma estabilidade econmica, situa-o que aparece relatada eventualmente no dirio. O escrito recendede uma felicidade primitiva vivida por uma menina em uma cidademineira do interior, suas atividades na Escola Normal, seus brinquedos,passeios pelo campo e anseios.

    Se na autobiografia acompanhamos um processo de escritaque retoma o passado com o fito de ordenar os episdios segundo umasignificao que esclarea a personalidade que o indivduo historica-

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    mente se tornou quando escreve, no dirio temos um texto que se vaiproduzindo sem a clareza de um rumo hermenutico. Alm disso, adiferena entre o tempo vivido e o tempo de registro se constitui dife-rentemente no dirio e na autobiografia (MIRAUX, 1996:13).

    Essa proximidade com o passado recente que foi elaboradopela escrita sugere leitura do dirio de Morley um contato aparentecom uma auto-representao vvida da infncia. A mesma gratuidadeda escrita do dirio espalha-se para o modo como so-nos relatados epi-sdios envolvendo trabalhos domsticos, a escola, travessuras, brinca-deiras de boneca, o fazer comidinha, representar teatro ou a prpria

    ausncia de matria narrvel.

    Eu estava com a pena na mo pensando que havia deescrever, pois h dias no acontece nada. Tem chovidoa semana toda, s hoje estiou. Fui janela para ver seolhando o cu e as estrelas me vinha alguma coisa cabea. Nada. Passa um enterro que subia do Rio Gran-de. Pensei: Vai me dar assunto? No, pois se no seiquem . Volto para dentro, pensando em copiar o exer-

    ccio dos Ornamentos de memria e dizer ao professoramanh que no tive tempo para a redao. Quandoviro as costas vejo mame desorientada com meus ir-mos que dormiam a sono solto, pelejando para p-losde p enquanto o defunto passava. Sofri isso tambmquando pequena. Fiquei contente por ter um assunto.(p.173)

    Ao leve relato que o narrador vai fazendo de sua infncia,

    acrescenta-se o questionamento brando da autoridade adulta, o contatocom a natureza e a rotina pacata de uma cidade do interior com outrasformas de ser criana que so tambm ali relatadas, particularmente,a dos negros. Crianas negras, crianas discriminadas por serem mui-to brancas, crianas pobres, crianas ricas, crianas doentes, crianasperversas: a enumerao poderia se entender mostrando a diversidadede figuras que a infncia pode assumir no dirio. Todavia, so figurasacidentais que cruzam o relato de modo mais furtivo.

    Quanto ao destinatrio, poderamos localizar trs nveis derecepo. O primeiro prprio do momento do registro e diz respeito

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    natureza do dirio, texto produzido para o seu produtor. Estimuladapelo pai e o professor de portugus da Escola Normal, o dirio se tor-na, para Morley, espao de intimidade de si ao qual s ela ter acesso.Decidida a publicar, j av, em 1942, os vrios cadernos e notas comsua vida de menina, na apresentao que fez da obra, o destinatrio semostra duplo: num nvel, so as meninas de um modo geral; noutro,so as suas netas. Para ambos leitores, a mensagem a mesma: mostrars meninas de hoje a diferena entre a vida atual e a existncia simplesque levvamos naquela poca (p.13).

    Se no dirio de Morley temos a sensao de encontrar a fres-

    cura de uma infncia recentemente relatada, no livro de Graciliano Ra-mos ela j se mostra a partir da distncia das lembranas de adulto. Apalavra casual e descompromissada do dirio substituda pela mem-ria conscientemente autobiogrfica; ou seja, em Infncia, encontraremosuma ordem narrativa que organiza os fatos, como tambm interpreta ascondies nas quais se formou o escritor Graciliano: a hermenuticade si que articula o eixo das lembranas apresentadas.

    Relato sombrio e introspectivo, raramente as memrias de in-fncia de Graciliano nos conduzem ao singelo reencontro do seu olharinfantil sobre o mundo. As memrias do vivido so atravessadas de con-sideraes que depositam sobre o passado a compreenso posterior doseu significado.

    Infncia um relato que exemplifica a afirmao de Miraux,segundo a qual a autobiografia uma escrita gensica. O que busca oescritor de autobiografia lorigine de soi, le petit moment essentiel qui

    a programm sa personnalit et a mis en jeu son devenir (p.29). No casode Graciliano, pode-se dizer que o percurso efetivado do presente daenunciao para o passado enunciado determinado pelo interesse emconhecer a autotransformao de um sofrvel aprendiz em um escritor.Infnciapercorre os episdios mais decisivos pelos quais se poderia com-preender o acesso de um menino extraviado no serto alagoano, ape-quenado pelo ambiente e pelas dificuldades de alfabetizar-se, ao mundoda leitura libertadora e da escrita literria.

    o caso, por exemplo, do episdio relatado no captulo Osastrnomos. Fracassadas as tentativas domsticas e na escola, aos nove

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    38 Caderno de Letras, n.14: 33-41, 2008

    anos ainda analfabeto, Graciliano pensa que a decifrao da escrita sejaalgo inatingvel para suas limitaes. Uma noite, o pai que costumei-ramente lhe era rude e spero, convida-o a pegar um romance e l-lo.Como um carro em estrada cheia de buracos, o menino vai tropican-do pela pgina, at que o pai surpreendentemente lhe pergunta se esta-

    va entendendo, lhe explica a aventura em que uma famlia perseguidapor lobos na f loresta invernal. Primeiro estmulo, que depois retoma-do em outra noite, at que o pai, por um mau humor contumaz, recusamanter a leitura com ele. Graciliano se diz j enfeitiado pela leitura,interessado em seu desdobramento. A soluo foi recorrer boa prima

    Emlia, que lhe props lesse sozinho.

    Longamente lhe expus a minha fraqueza mental, aimpossibilidade de compreender as palavras difceis,sobretudo na ordem terrvel em que se juntavam. [...]Emlia combateu minha convico, falou-me dos astr-nomos, indivduos que liam no cu, percebiam tudoquanto h no cu. [...] Ora, se eles enxergavam coisasto distantes, por que no conseguiria eu adivinhar a

    pgina aberta diante dos meus olhos? [...] E tomei cora-gem, fui esconder-me no quintal, com os lobos, o ho-mem, a mulher, os pequenos, a tempestade na f loresta,a cabana do lenhador. (p.190-1)

    Assim como esse, outros momentos da obra caminham nomesmo sentido do arquelogo de si, que busca nas camadas mais pre-tritas de sua existncia elementos capazes de mostrar o destino de es-critor que nele se fez. Trabalho de memorialista que por essa mesmamedida tambm busca frisar a importncia que os livros tiveram nasuperao das adversidades que povoaram sua infncia quele que nopresente l suas memrias. a atividade de leitura que salvou a si, dizGraciliano, do infortnio da opresso silenciosa.

    Um trabalho de visitao do passado o que tambm se apre-senta no livro de Orthof, porm sua relao com o leitor mediadapor uma linguagem que encarna o objetivo de aproximar-se do univer-

    so infantil por meio da transgresso da memria efetivada pelos jogosimaginrios. Com o subttulo memrias zoolgicas, o livro apresen-

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    ta uma srie de episdios envolvendo animais de estimao. Estes tmuma ampla diversidade, desde um coelho a um bicho-de-p, de um cobasset a um elefante de circo. Nesse rol de lembranas, a fico assumiuum papel decisivo. O filho G Orthof, ilustrador do livro, comentaque muitos dos bichos reinventados por mame foram tambm nossos meus e de meus irmos e os leitores vo se identificar com esse uni-

    verso, to marcante de qualquer infncia, que so os bichos que todostivemos, dentro e fora de nossas cabeas (ORTHOF, 2004:77).

    Esse trabalho de imaginao que confessado por G poderiadesqualificar Os bichos que tive como obra autobiogrfica, principal-

    mente se levssemos em conta que o pacto autobiogrfico sobre o qualanteriormente falamos estabelece que h uma funo referencial quedeve ser cumprida pelo gnero em questo. H vrios momentos, por-tanto, em que se percebe nas lembranas narradas de Orthof uma extra-polao do possvel, como a lavagem intestinal do elefante com prisode ventre por meio de uma bomba de posto de combustvel adaptadacom gua. Apertado, o elefante educadamente pergunta onde fica obanheiro antes de soltar o intestino. Pouco abaixo a narradora conclui:no sei se esta histria aconteceu mesmo. Quem me contou foi Faro-fa, o palhao. Palhao inventa cada uma! (p.50). Os bichos que tive, aotransgredir a expectativa de sinceridade, desloca-se em relao ao gneroautobiogrfico.

    No se deve esquecer que escrever sobre si escrever sobreum outro, porque entre uma e outra instncia, a que escreve e a que escrita, h uma separao que implica a reconstituio do passado, a

    recriao do mundo pela linguagem. E esta tanto pode ser transparn-cia como tambm opacidade: o que lembrado nunca o sem adotaruma forma que tambm criao, imaginao de um modo de reapre-sentar pela palavra a experincia vivida.

    Da que a prpria fantasia que se apresenta em Os bichos quetive pode, sob certo ponto de vista, dar uma representao mais veros-smil da infncia. Isso porque a apropriao fantasiosa do mundo, aatribuio de verdade ao imaginrio prpria do que Sarmento chama-ria de culturas da infncia. Se, entre adultos, a indefinio do que sejaimaginao ou realidade torna-se problemtico, nas culturas infantis,

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    este processo de imaginao do real fundacional do modo de inteligi-bilidade (SARMENTO, 2004:26). O que Orthof buscaria com a trans-gresso do gnero autobiogrfico seria, ento, antes uma aproximaocom o modo de a criana experienciar o mundo do que propriamente areferencialidade honesta de Graciliano e Morley. De forma que, pormeio de processos ficcionais vinculados s culturas da infncia, Orthofparece mais pactuar com o leitor, seja criana ou adulto, ao oferecer-lheuma representao autobiogrfica moldada pela fantasia do real.

    Diga-se, por fim, que Os bichos que tive tambm um relatoque, como os outros dois aqui analisados, no deixa de realizar uma

    representao de si que tambm dilogo com o outro. Jacques Le Goff(1988) alertava ser possvel estabelecer nexos entre os elementos nar-rativos prprios aos relatos de vida com o mundo histrico no qual asaes dos protagonistas ocorriam. Isto porque a ao narrativa do indi-

    vduo no pode ser dissociada de sua sociedade, de sua cultura, de seucontexto; pois no h oposio entre indivduo e sociedade, mas umapermanente interao entre eles (LE GOFF, 1998:261). Se a relaocom o mundo histrico se apresenta muito mais evidente em Minhavida de meninaou Infncia, pelas quais se pode acessar, por exemplo, osprocessos de ensino-aprendizagem, a organizao escolar de uma poca,os livros que ali circulavam, ela no menos visvel no livro de Orthof,seja pela referncia factual, seja pelo dilogo que estabelece com os mo-dos autobiogrficos de representao da infncia.

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    Mos de Cavalono um livro sobre o pessimismo(ao contrrio do que andam dizendo por a)

    Daniel Andrioli Rasch1

    Joo Manuel dos Santos Cunha (Orientador)

    ResumoEste trabalho busca esboar em linhas gerais como Daniel Ga-

    lera, no seu romance Mos de Cavalo, dialoga com outras obras da tradi-o literria e com outros cdigos estticos de comunicao de massa.

    Palavras-chave: Daniel Galera Literatura Comparada Comunicao de massa

    AbstractThis work intends to outline in general terms how Daniel Ga-

    lera, in his novel Mos de Cavalo, dialogs with other works of the literarytradition as well as with other mass media aesthetic codes.

    Keywords:Daniel Galera Comparative Literature Mass

    media.

    Daniel Galera j foi acusado de possuir uma escrita muitodetalhista, de no se importar com o gosto do leitor e da crtica m-dios contemporneos, de ter escrito um romance que mais parece umquebra-cabea e, por ltimo, o sacrilgio maior de ter misturado jogosde vdeo-gamee outros entretenimentos infantis com essa coisa muitosria e adulta chamada literatura. Mas nada disso preo paraabalar esse escritor que, com os dons da sua escrita mutante, capaz defulminar qualquer inimigo da literatura com uma simples rajada da suasuperpistola de palavras-laser.

    Se voc achou algo de familiar no modo como a segunda par-te do pargrafo anterior foi construda, provavelmente porque voc

    1Pesquisador PIC-UFPel, sob orientao do Prof. Dr. Joo Manuel dos Santos Cunha,2007-2008, no quadro do projeto de pesquisa Literatura brasileira contempornea:fluxos e influxos transtextuais.

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    44 Caderno de Letras, n.14: 43-52, 2008

    um daqueles que no deu ouvidos aos seus pais quando eles diziam quejogos de vdeo-game, histrias em quadrinhos (HQs) e aqueles filmesde ao e aventura que so exibidos mais ou menos umas quinhentas

    vezes por ano na Sesso da Tardeno so coisas srias e so destinadosunicamente para crianas. quase como se o amadurecimento da crian-a dependesse nica e exclusivamente do abandono pelo gosto a essasprodues estticas fantasiosas, inconseqentes e de mau-gosto.

    Esse discurso, repetido exausto, incorporado pelos adul-tos em formao que ento os repassam aos seus futuros filhos, os quais,entretanto, pelo exemplo de Daniel Galera, no andam mais dando

    tanta importncia ao que seus pais dizem ou talvez tenham sido osprprios pais que se renderam ao apelo desses produtos da comunica-o de massa e deixaram que o discurso do amadurecimento entrassenum ouvido e sasse imediatamente pelo outro.

    E claro que as HQs, os jogos devdeo-game, os filmes daSesso da Tarde e outros do gnero no perderiam a chance de incor-porar metalinguisticamente esse mesmo discurso, difundido pela socie-dade como um todo, nas prprias histrias que contam. Apenas paraficar com um exemplo: Todd McFarlaine, roteirista e desenhista doscomics americanos de super-heris, numa das histrias do seu persona-gem Spawn (1998), apresenta um garoto que constantemente vtimada violncia dos colegas de escola por gostar de ler HQs e de ser f desuper-heris. At que o prprio Spawn aparece para ajud-lo a dar umalio (leia-se surra) naqueles moleques que o incomodavam, mos-trando que to real quanto outros personagens ilustres criados pela

    fico e que habitam o imaginrio do homem contemporneo.A mesma crtica conservadora que prega a seriedade da lite-

    ratura em comparao com as artes ligadas s mdias da comunicaode massa, a mesma que capaz de sintetizar o ltimo romance deDaniel Galera como sendo um livro que trata sobre o pessimismo(ver JNIOR, 2006:72). Tal exerccio de sntese seria espantoso, casono encobrisse a incapacidade de grande parte da crtica literria con-tempornea de lidar com as mudanas pelas quais a literatura passouao longo do sculo XX. J no comeo do sculo passado os modernistasfaziam a crtica da literatura como o nico meio possvel de apreenso e

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    expresso do real. Para eles a literatura estava sria e carrancuda demais,distante da realidade e, diante das rpidas mudanas por que passavaa sociedade da poca, perdia terreno para artes emergentes como o ci-nema que estava se dando melhor na tarefa de criar uma linguagemque expressasse melhor o esprito agitado e inquieto das novas cidadesmodernas, industrializadas, superpovoadas e poludas. Para reverter odescompasso entre literatura e sociedade eles propem uma profundarenovao literria, sendo que um dos pontos principais dessa propostaera a necessidade de a literatura dialogar com as formas de expressoconcorrentes, notadamente o cinema. Alm disso, um pouco depois

    dos primeiros modernistas, Oswald de Andrade e Mrio de Andrade,Graciliano Ramos iria mostrar que a linguagem literria deve se adaptar realidade retratada, deixando claro que a literatura (e os escritores,por extenso) tinha que descer do pedestal onde se encontrava at pelomenos o fim do sculo XIX e humildemente mergulhar e banhar-sena realidade para, ento, melhor retrat-la. E, depois disso, a literaturanunca mais foi a mesma.

    O mais interessante de tudo isso que, quase um sculo de-pois dos modernistas, Daniel Galera vai fazer a mesma coisa. S queagora os concorrentes da literatura so vrios, e a realidade que se apre-senta neste comeo de sculo to ou mais complexa do que aquela docomeo do sculo passado. As formas de expresso validadas socialmen-te so muitas. Por que escolher ento especificamente a j combalidaliteratura? At o comeo do sculo XX e algumas dcadas adentro deste,a escolha pela literatura era completamente normal, justificvel e plau-

    svel. Agora, no entanto, nos tempos ps-modernos do sculo XXI, fazerliteratura um contnuo justificar-se pela sua escolha.

    Mas ser que ao escolher a literatura como meio principal deexpresso se est deixando todas as outras possibilidades de lado? EmMos de CavaloDaniel Galera nos diz que no. No s diz como mostraque todas as mudanas sofridas pela literatura desde o modernismo e nodecorrer do sculo passado a deixaram mais flexvel, dinmica e compe-titiva como a sociedade contempornea e que, sim, possvel fazer HQ,cinema, jogos de vdeo-gameao se fazer literatura. Seno, vejamos.

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    46 Caderno de Letras, n.14: 43-52, 2008

    O livro comea com a seguinte frase: No h terreno im-possvel para o Ciclista Urbano (GALERA, 2006:9). Sem nenhumaexplicao prvia, o narrador introduz um personagem que, pelas qua-lidades superiores e pelo nome, composto por um substantivo mais umtermo qualificador/diferenciador (tal como Homem Morcego, Homemde Ferro, Surfista Prateado, Super-Homem e inmeros outros), imedia-tamente remete o leitor para o universo das HQs de super-heris. Onarrador segue se utilizando da retrica das HQs para descrever o per-curso do Ciclista Urbano pelas ruas da zona Sul de Porto Alegre, ou me-lhor, por uma zona inspita (op.cit.:12)2 ora descrevendo os dons

    sobre-humanos desse personagem, ora ressaltando as dificuldades quaseintransponveis oferecidas pelo terreno, contrapondo com as qualida-des superiores que o personagem possui para transp-las. Alm disso, opercurso dividido em pontos que vo gradativamente aumentando emdificuldade, o que remete aos jogos de vdeo-game, tambm divididos emfases que vo igualmente exigindo cada vez mais habilidade do jogador.

    E precisamente na fase mais difcil do jogo/percurso queo super-heri imbatvel comete um erro e cai. Ento descobrimos queo Ciclista Urbano , na verdade, apenas uma fantasia de um garoto dedez anos. Com a queda, a realidade se impe para, logo depois, ser no-

    vamente negada, pois O verdadeiro Ciclista Urbano no pode se abalardiante de ferimentos e hemorragias, resultado dos acidentes que cedo outarde acontecem (p.20). O sangue, que na queda era real, se transformaagora em objeto esttico, maquiagem cenogrfica, smbolo do heri que,mesmo abatido, consegue reerguer-se e continuar a batalha. Tudo devi-

    damente registrado por cmeras, as quais descobriremos serem operadaspela prpria imaginao desse personagem que procura na fico umprotagonismo que no encontra na vida real. Temos, ento, um narra-dor que, para melhor dar conta do conflito entre a realidade e a fico,alterna entre um registro fantasioso, incorporando narrativa literria alinguagem tpica das HQs, e um registro mais realista, responsvel porjogar o personagem ao seu devido lugar na realidade. um narrador,portanto, que ora adere ora se afasta da imaginao do personagem.

    2Doravante apenas indicarei o nmero da pgina referente a este livro.

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    Mos de Cavalono um livro sobre o pessimismo... 47

    O prximo captulo aparentemente no apresenta nenhumaconexo com o anterior. O narrador adota um registro uniforme e re-alista e fala de um homem no nomeado que est prestes a partir aoencontro do que promete ser a maior aventura de sua vida (p.21). Noentanto, se prestarmos ateno, veremos que Galera se utiliza de umprocedimento mais tecnicamente flmico do que literrio, a montagemde cenas por corte profundo no tempo e no espao, para aproximar asimagens da bicicleta e do carro Mitsubushi Pajero, elementos que serevelaro importantes no decorrer da narrativa, na medida em que soeles o principal instrumento a dar margem fantasia dos personagens.

    Esta primeira pista, dentre as vrias distribudas ao longo do livro, asquais levaro descoberta de que os dois personagens o garoto e ohomem so um s.

    A partir da a narrativa se desenvolve em dois sentidos opos-tos, porm complementares: a histria do garoto e do adolescente emdireo vida adulta, enfrentando diversos rituais de iniciao de passa-gem tpicos dessa idade, e a narrativa do homem em crise de identidadeque parte em busca de um passado que por muito tempo procurouesquecer, mas que agora se apresenta como a nica alternativa para so-lucionar a sua crise.

    Para integrar essas duas narrativas, Daniel Galera cria uma di-nmica temporal inovadora. A interpolao (e aqui novamente o autorlana mo de um outro procedimento narrativo tpico do cinema, o damontagem paralela) entre captulos da infncia e da adolescncia comcaptulos da vida adulta, sugere o quanto a passado ainda est presente

    e exerce influncia ativa no presente desse personagem. Alm disso,os captulos que se referem ao presente diegtico a vida adulta dopersonagem so nomeados com a hora exata com que dura o seudeslocamento pelo espao. Com isso o autor consegue recriar literaria-mente a dinmica temporal, j que conseguimos localizar facilmente opersonagem no tempo e no espao atravs da relao tempo-espao-pala-

    vra. Como o personagem est em constante movimento a bordo da suacaminhonete Pajero, ao ler, o leitor tambm est se deslocando com ele. possvel identificar, ento, uma relao do narrador com literrioe o procedimento de cmara subjetiva do cinema, numa interlocuo

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    com o narrador de Mrio de Andrade emAmar, verbo intransitivo(1927).Dentro do eixo do tempo, a palavra que estamos lendo corresponde aopresente, a que j lemos, ao passado, e a que ainda no lemos, ao futuro.No entanto, como na maior parte desses captulos o narrador se ocupamenos com o presente do que em acompanhar o fluxo de memria dopersonagem, apenas temos a iluso de que avanamos juntos com ele.

    Aos poucos o personagem vai percebendo o quanto o passado aindaest presente em sua vida: o nome da filha, Nara, dado em homenagema Naiara, primeiro relacionamento amoroso que teve; a aproximaocom Renan, o colega de alpinismo, tem o mesmo carter daquele esta-

    belecido na adolescncia com Bonobo, isto , o flerte com um mundototalmente oposto ao seu; e, finalmente, percebe que o alpinista ape-nas mais um personagem, como o Ciclista Urbano, destinado a preen-cher sua necessidade de fuga da realidade.

    A verdade sobre quem ele no est no cume do Cerro Bo-nete, em algum ponto remoto e distante do mundo, mas sim no seupassado. E para l que ele na verdade percebe que realmente est sedirigindo, pro cenrio da sua juventude (p.105). Tal qual Mad Max einmeros outros super-heris, essa a maior aventura da sua vida.

    O paradoxo de todo super-heri uma questo de memria,tempo e espao. Toda a ao significativa realizada no presente temcomo objetivo reparar uma ao significativa que deixou de ser feitano passado. Na origem da maioria dos super-heris h um trauma ge-ralmente envolvendo a perda de pessoas da famlia de forma extrema-mente violenta, a qual gera um sentimento de frustrao e impotncia.

    Esse trauma precisa ser reparado continuamente por meio da ao nopresente, a qual, porm, s pode se dar no espao da memria, visto que impossvel voltar ao passado e reparar diretamente o incidente que

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    deu origem ao trauma. E somente por esse contnuo acerto de contascom o passado, peso que o heri precisa carregar pelo resto da vida, quelhe garante a possibilidade de seguir em frente3.

    Esse o caso de Hermano (o protagonista de Mos de Cavalo).Quando a realidade lhe deu a oportunidade de realizar o herosmo queidealizava na fico, ele se acovardou e permitiu que o amigo Bono-bo fosse espancado at a morte. O trauma da no-ao do passado fazcom que ele, na vida adulta, encontre no alpinismo uma oportunidadede ao reparadora, onde ele constantemente arrisca a vida, coisa quedeixou de fazer naquela ocasio do passado. S que essa ao ainda se

    d no plano da fantasia /fico, j que os modernos equipamentos deescalada utilizados por ele, exaustiva e propositadamente descritos pelonarrador, lhe garantem uma ao reparadora planejada e segura, ondeos imprevistos da vida real pouco interferem. , em outras palavras,um personagem que Hermano assume nos fins de semana. Nos outrosdias ele o cirurgio plstico bem-sucedido que capaz de dar forma sidentidades idealizadas pelos outros, mas que incapaz de dar forma asua prpria identidade.

    Nesse sentido, Galera insere Mos de Cavalona longa tradiodos romances de memrias, refletindo sobre a vertente temtica da re-parao e do tema da segunda chance, que tem no polons JosephConrad um de seus principais cultores. Mas, ao dialogar com a psicolo-gia dos super-heris de HQ e de cinema, imprime um carter inovador a