Auto da Barca do Inferno

40

description

Trabalho de grupo: maria, pedro n., rui e joao p.

Transcript of Auto da Barca do Inferno

Page 1: Auto da Barca do Inferno

Auto da Barcado Inferno

Gil Vicente

Page 2: Auto da Barca do Inferno

Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação dasereníssima e muito catól ica rainha Lianor, nossa senhora, erepresentado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto reiManuel, primeiro de Portugal deste nome. Começa a declaração eargumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se feguraque, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente aum rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéisque naquele porto estão, sci l icet, um deles passa pera o paraíso e ooutro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais naproa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e umcompanheiro.

Introdução

Page 3: Auto da Barca do Inferno

À barca, à barca, houlá! que temos genti lmaré! - Ora venha o carro a ré!

Feito, feito! Bem está! Vai tu muitieramá, eatesa aquele palanco e despeja aquelebanco, pera a gente que virá.

À barca, à barca, hu-u! Asinha, que se quer ir!Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu! -Ora, sus! que fazes tu? Despeja todo esseleito!

Em boa hora! Feito, feito!

Abaixa aramá esse cu!Faze aquela poja lesta e ali ja aquela driça.

Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!

Oh, que caravela esta! Põe bandeiras, que éfesta. Verga alta! Âncora a pique! - Ópoderoso dom Anrique, cá vindes vós?. . . Quecousa é esta?. . .

DIABO

COMPANHEIRO

DIABO

COMPANHEIRO

DIABO

.

COMPANHEIRO

DIABO

Page 4: Auto da Barca do Inferno

FFii ddaall ggoo

Page 5: Auto da Barca do Inferno

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

Esta barca onde vai ora, que assi estáapercebida?

Vai pera a ilha perdida, e há-de partir logoess'ora.

Pera lá vai a senhora?

Senhor, a vosso serviço.

Parece-me isso cortiço. . .

Porque a vedes lá de fora.

Porém, a que terra passais?

Pera o inferno, senhor.

Terra é bem sem-sabor.

Quê?. . . E também cá zombais?

E passageiros achais pera tal habitação?

Vejo-vos eu em feição pera ir ao nosso cais. . .

Parece-te a ti assi! . . .

Em que esperas ter guarida?

Que leixo na outra vida quem reze sempre pormi.

Quem reze sempre por ti?! . . Hi, hi , hi , hi , hi , hi ,hi ! . . . E tu viveste a teu prazer, cuidando cáguarecer por que rezam lá por ti?! . . .

Embarca - ou embarcai. . . que haveis de ir àderradeira! Mandai meter a cadeira, que assipassou vosso pai.

Page 6: Auto da Barca do Inferno

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

ANJO

FIDALGO

ANJO

FIDALGO

ANJO

Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!

Vai ou vem! Embarcai prestes! Segundo láescolhestes, assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes, haveis depassar o rio.

Não há aqui outro navio?

Não, senhor, que este fretastes, e primeiro queexpirastes me destes logo sinal.

Que sinal foi esse tal?

Do que vós vos contentastes.

A estoutra barca me vou. Hou da barca! Paraonde is? Ah, barqueiros! Não me ouvis?Respondei-me! Houlá! Hou! . . . (Pardeus,aviado estou! Cant'a isto é já pior. . . ) Ouejericocins, salvanor! Cuidam cá que são eugrou?

Que quereis?

Que me digais, pois parti tão sem aviso, se abarca do Paraíso é esta em que navegais.

Esta é; que demandais?

Que me leixeis embarcar. Sou fidalgo de solar,é bem que me recolhais.

Não se embarca tirania neste batel divinal.

Page 7: Auto da Barca do Inferno

FIDALGO

ANJO

FIDALGO

ANJO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

Não sei porque haveis por mal que entre aminha senhoria. . .

Pera vossa fantesia mui estreita é esta barca.

Pera senhor de tal marca nom há aqui maiscortesia?

Venha a prancha e atavio! Levai-me destaribeira!

Não vindes vós de maneira pera entrar nestenavio. Essoutro vai mais vazio: a cadeiraentrará e o rabo caberá e todo vosso senhorio.

I reis lá mais espaçoso, vós e vossa senhoria,cuidando na tirania do pobre povo queixoso. Eporque, de generoso, desprezastes ospequenos, achar-vos-eis tanto menos quantomais fostes fumoso.

à barca, senhores! Oh! que maré tão de prata!Um ventozinho que mata e valentesremadores!

Diz, cantando:

Vós me veniredes a la mano, a la mano meveniredes.

Ao Inferno, todavia! Inferno há i pera mi? Ohtriste! Enquanto vivi não cuidei que o i havia:Tive que era fantesia! Folgava ser adorado,confiei em meu estado e não vi que me perdia.

Venha essa prancha! Veremos esta barca detristura.

Page 8: Auto da Barca do Inferno

DIABO

FIDALGO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

Embarque vossa doçura, que cá nosentenderemos. . . Tomarês um par de remos,veremos como remais, e, chegando ao nossocais, todos bem vos serviremos.

Esperar-me-ês vós aqui, tornarei à outra vida verminha dama querida que se quer matar por mi.Dia, Que se quer matar por ti?! . . .

Isto bem certo o sei eu.

Ó namorado sandeu, o maior que nunca vi! . . .

Como pod'rá isso ser, que m'escrevia mil dias?

Quantas mentiras que lias, e tu. . . morto deprazer! . . .

Pera que é escarnecer, quem nom havia mais nobem?

Assi vivas tu, amém, como te tinha querer!

Isto quanto ao que eu conheço. . .

Pois estando tu expirando, se estava elarequebrando com outro de menos preço.

Dá-me licença, te peço, que vá ver minha mulher.

E ela, por não te ver, despenhar-se-á dumcabeço!

Quanto ela hoje rezou, antre seus gritos e gritas,foi dar graças infinitas a quem a desassombrou.

Cant'a ela, bem chorou!

Nom há i choro de alegria?. .

Page 9: Auto da Barca do Inferno

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

DIABO

FIDALGO

Diz o Diabo ao Moço da cadeira:

DIABO

E as lástimas que dezia?

Sua mãe lhas ensinou. . .

Entrai, meu senhor, entrai: Ei la prancha!Ponde o pé. . .

Entremos, pois que assi é.

Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai.Em tanto virá mais gente.

Ó barca, como és ardente! Maldito quem emti vai!

Nom entras cá! Vai-te d'i ! A cadeira é cásobeja; cousa que esteve na igreja nom sehá-de embarcar aqui. Cá lha darão de marfi,marchetada de dolores, com tais modos delavores, que estará fora de si. . .

À barca, à barca, boa gente, que queremosdar à vela! Chegar ela! Chegar ela! Muitos ede boamente! Oh! que barca tão valente!

Page 10: Auto da Barca do Inferno

OOnnzzeenneeii rroo

Page 11: Auto da Barca do Inferno

Vem um Onzeneiro, epergunta ao Arrais doInferno, dizendo:

ONZENEIRO

DIABO

ONZENEIRO

DIABO

ONZENEIRO

DIABO

ONZENEIRO

DIABO

ONZENEIRO

DIABO

ONZENEIRO

DIABO

ONZENEIRO

DIABO

ONZENEIRO

Pera onde caminhais?

Oh! que má-hora venhais, onzeneiro, meuparente!

Como tardastes vós tanto?

Mais quisera eu lá tardar. . . Na safra doapanhar me deu Saturno quebranto.

Ora mui muito m'espanto nom vos livrar odinheiro! . . .

Solamente para o barqueiro nom meleixaram nem tanto. . .

Ora entrai, entrai aqui!

Não hei eu i d'embarcar!

Oh! que genti l recear, e que cousas perami! . . .

Ainda agora faleci, leixa-me buscar batel!

Pesar de Jam Pimentel! Porque não irásaqui?. . .

E pera onde é a viagem?

Pera onde tu hás-de ir.

Havemos logo de partir?

Não cures de mais l inguagem.

Mas pera onde é a passagem?

Page 12: Auto da Barca do Inferno

DIABO

ONZENEIRO

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

ONZENEIRO

ANJO

ONZENEIRO

ANJO

ONZENEIRO

ANJO

ONZENEIRO

ANJO.

ONZENEIRO

ANJO

Torna o Onzeneiro à barca doInferno e diz:

ONZENEIRO

DIABO

ONZENEIRO

DIABO

Pera a infernal comarca.

Dix! Nom vou eu tal barca. Estoutra temavantagem.

Hou da barca! Houlá! Hou! Haveis logo departir?

E onde queres tu ir?

Eu pera o Paraíso vou.

Pois cant'eu mui fora estou de te levar para lá.Essoutra te levará; vai pera quem te enganou!

Porquê?

Porque esse bolsão tomará todo o navio.

Juro a Deus que vai vazio!

Não já no teu coração.

Lá me fica, de rondão, minha fazenda e alhea.

Ó onzena, como és fea e fi lha de maldição!

A Bibl ioteca Virtual do Estudante Brasileiro

Houlá! Hou! Demo barqueiro! Sabês vós noque me fundo? Quero lá tornar ao mundo etrazer o meu dinheiro. que aqueloutromarinheiro, porque me vê vir sem nada, dá-metanta borregada como arrais lá do Barreiro.

Entra, entra, e remarás! Nom percamos maismaré!

Todavia. . .

Per força é! Que te pês, cá entrarás! Irás servirSatanás, pois que sempre te ajudou.

Page 13: Auto da Barca do Inferno

PPaarrvvoo

Page 14: Auto da Barca do Inferno

ONZENEIRO

DIABO

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou oFidalgo embarcado, diz tirando o barrete:

ONZENEIRO

FIDALGO

DIABO

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

PARVO

DIABO

PARVO

DIABO

PARVO

DIABO

PARVO

DIABO

PARVO

DIABO

PARVO

DIABO

Oh! Triste, quem me cegou?

Cal'te, que cá chorarás.

Santa Joana de Valdês! Cá é vossa senhoria?

Dá ò demo a cortesia!

Ouvis? Falai vós cortês! Vós, fidalgo,cuidareis que estais na vossa pousada? Dar-vos-ei tanta pancada com um remo querenegueis!

Hou daquesta!

Quem é?

Eu soo. É esta a naviarra nossa?

De quem?

Dos tolos.

Vossa. Entra!

De pulo ou de voo? Hou! Pesar de meu avô!Soma, vim adoecer e fui má-hora morrer, enela, pera mi só.

De que morreste?

De quê? Samicas de caganeira.

De quê?

De caga merdeira! Má rabugem que te dê!

Entra! Põe aqui o pé!

Page 15: Auto da Barca do Inferno

PARVO

DIABO

PARVO

DIABO

PARVO

DIABO

PARVO

Chega o Parvo ao bateldo Anjo e dlz:

PARVO

ANJO

PARVO

ANJO

PARVO

Houlá! Nom tombe o zambuco!

Entra, tolaço eunuco, que se nos vai a maré!

Aguardai, aguardai, houlá! E onde havemosnós d'ir ter?

Ao porto de Lucifer.

Ha-á-a. . .

Ó Inferno! Entra cá!

Ò Inferno?. . . Eramá. . . Hiu! Hiu! Barca docornudo. Pêro Vinagre, beiçudo, rachadord'Alverca, huhá! Sapateiro da Candosa!Antrecosto de carrapato! Hiu! Hiu! Caga nosapato, fi lho da grande aleivosa! Tua mulheré tinhosa e há-de parir um sapo chantado noguardanapo! Neto de cagarrinhosa!

Furta cebolas! Hiu! Hiu! Excomungado naserguejas! Burrela, cornudo sejas! Toma o pãoque te caiu! A mulher que te fugiu per'a I lhada Madeira! Cornudo atá mangueira, toma opão que te caiu!

Hiu! Hiu! Lanço-te üa pulha! Dê-dê! Picanàquela! Hump! Hump! Caga na vela! Hio,cabeça de grulha! Perna de cigarra velha,caganita de coelha, pelourinho da Pampulha!Mija n'agulha, mija n'agulha!

Hou da barca!

Que me queres?

Queres-me passar além?

Quem és tu?

Samica alguém.

Page 16: Auto da Barca do Inferno

SSaappaatteeii rroo

Page 17: Auto da Barca do Inferno

ANJO

Vem um Sapateiro com seu avental e carregado deformas, e chega ao batel infernal, e diz:

SAPATEIRO

DIABO

SAPATEIRO

DIABO

SAPATEIRO

DIABO

SAPATEIRO

DIABO

SAPATEIRO

Tu passarás, se quiseres; porque em todosteus fazeres per malícia nom erraste. Tuasimpreza t'abaste pera gozar dos prazeres.

Espera entanto per i: veremos se vemalguém, merecedor de tal bem, que deva deentrar aqui.

Hou da barca!

Quem vem i? Santo sapateiro honrado, comovens tão carregado?. . .

Mandaram-me vir assi. . .

E pera onde é a viagem?

Pera o lago dos danados.

Os que morrem confessados onde têm suapassagem?

Nom cures de mais l inguagem! Esta é a tuabarca, esta!

Renegaria eu da festa e da puta dabarcagem!

Como poderá isso ser, confessado ecomungado?! . . .

Tu morreste excomungado: Nom o quisestedizer. Esperavas de viver, calaste dous milenganos. . . Tu roubaste bem trint'anos o povocom teu mester.

Embarca, eramá pera ti , que há já muito quet'espero!

Pois digo-te que nom quero!

Page 18: Auto da Barca do Inferno

DIABO

SAPATEIRO

DIABO

SAPATEIRO

DIABO

SAPATEIRO

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

ANJO

SAPATEIRO

ANJO

SAPATEIRO

ANJO

SAPATEIRO

ANJO

Que te pês, hás-de ir, si , si !

Quantas missas eu ouvi, nom me hão elas deprestar?

Ouvir missa, então roubar, é caminhoper'aqui.

E as ofertas que darão? E as horas dosfinados?

E os dinheiros mal levados, que foi dasatisfação?

Ah! Nom praza ò cordovão, nem à puta dabadana, se é esta boa traquitana em que sevê Jan Antão!

Ora juro a Deus que é graça!

Vai-se à barca do Anjo, e diz:

Hou da santa caravela, poderês levar-menela?

A cárrega t'embaraça.

Nom há mercê que me Deus faça? Istouxiquer irá.

Essa barca que lá está Leva quem rouba depraça.

Oh! almas embaraçadas!

Ora eu me maravilho haverdes por grãopeguilho quatro forminhas cagadas quepodem bem ir i chantadas num cantinhodesse leito!

Se tu viveras dereito, Elas foram cáescusadas.

Assi que determinais que vá cozer ò Inferno?

Escrito estás no caderno das ementasinfernais.

Page 19: Auto da Barca do Inferno

Torna-se à barca dos danados, e diz:

SAPATEIRO Hou barqueiros! Que aguardais? Vamos,venha a prancha logo e levai-me àquele fogo!Não nos detenhamos mais!

Page 20: Auto da Barca do Inferno

FFrraaddee

Page 21: Auto da Barca do Inferno

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã; ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã: tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!

Que é isso, padre?! Que vai lá?

Deo gratias! Som cortesão.

Sabês também o tordião?

Porque não? Como ora sei!

Pois entrai! Eu tangerei e faremos um serão.

Essa dama é ela vossa?

Por minha la tenho eu, e sempre a tive de meu,

Fezestes bem, que é fermosa! E não vos punham lá grosa novosso convento santo?

E eles fazem outro tanto!

Que cousa tão preciosa. . .

Entrai, padre reverendo!

Para onde levais gente?

Pera aquele fogo ardente que nom temestes vivendo.

Juro a Deus que nom t'entendo! E este hábito no me val?

Genti l padre mundanal, a Berzebu vos encomendo!

Vem um Frade com üa Moça pela mão, e um broquel e üa espada na outra, e um cascodebaixo do capelo; e, ele mesmo fazendo a baixa, começou de dançar, dizendo:

Page 22: Auto da Barca do Inferno

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

FRADE

DIABO

Corpo de Deus consagrado! Pela fé de Jesu Cristo, que eu nomposso entender isto! Eu hei-de ser condenado?! . . . Um padre tãonamorado e tanto dado à virtude? Assi Deus me dê saúde, queeu estou maravilhado!

Não curês de mais detença. Embarcai e partiremos: tomareisum par de ramos.

Nom ficou isso n'avença.

Pois dada está já a sentença!

Pardeus! Essa seria ela! Não vai em tal caravela minha senhoraFlorença.

Como? Por ser namorado e folgar com üa mulher se há umfrade de perder, com tanto salmo rezado?! . . .

Ora estás bem aviado!

Mais estás bem corregido!Dovoto padre marido, haveis de ser cá pingado. . .

Mantenha Deus esta c'oroa!

ó padre Frei Capacete! Cuidei que tínheis barrete. . .

Sabê que fui da pessoa! Esta espada é roloa e este broquel,rolão.

Dê Vossa Reverença lição d'esgrima, que é cousa boa!

Page 23: Auto da Barca do Inferno

FRADE

DIABO

FRADE

Tornou a tomar a Moça pelamão, dizendo:

FRADE

Começou o Frade a fazer otordião e foram dançando até obatel do Anjo desta maneira:

FRADE

PARVO

FRADE

DIABO

FRADE

Deo gratias! Demos caçada! Pera sempre contra sus! Umfendente! Ora sus! Esta é a primeira levada. Alto! Levantaia espada! Talho largo, e um revés! E logo colher os pés,que todo o al no é nada!Quando o recolher se tarda o ferir nom é prudente. Ora,sus! Mui largamente, cortai na segunda guarda! - Guarde-me Deus d'espingarda mais de homem denodado. Aquiestou tão bem guardado como a palhá n'albarda.Saio com meia espada. . . Hou lá! Guardai as queixadas!

Oh que valentes levadas!

Ainda isto nom é nada. . . Demos outra vez caçada! Contrasus e um fendente, e, cortando largamente, eis aqui sextafeitada.Daqui saio com üa guia e um revés da primeira: esta é aquinta verdadeira. - Oh! quantos daqui feria! . . . Padre quetal aprendia no Inferno há-de haver pingos?! . . . Ah! Nompraza a São Domingos com tanta descortesia!

Vamos à barca da Glória!

Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã; rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã.Huhá!Deo gratias! Há lugar cá pera minha reverença? E asenhora Florença polo meu entrará lá!

Andar, muitieramá! Furtaste esse trinchão, frade?

Senhora, dá-me à vontade que este feito mal está.Vamos onde havemos d'ir! Não praza a Deus coa aribeira! Eu não vejo aqui maneira senão, enfim, concrudir.

Haveis, padre, de viir.

Agasalhai-me lá Florença, e compra-se esta sentença:ordenemos de partir.

Page 24: Auto da Barca do Inferno

BBrríízzii ddaa

Page 25: Auto da Barca do Inferno

Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qualchegando à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍZIDA

DIABO

BRÍZIDA

DIABO

COMPANHEIRO

DIABO

BRÍZIDA

DIABO

BRÍZIDA

DIABO

BRÍZIDA

BRÍZIDA

Hou lá da barca, hou lá!

Quem chama?

Brízida Vaz.

E aguarda-me, rapaz? Como nom vem ela já?

Diz que nom há-de vir cá sem Joana de Valdês.

Entrai vós, e remarês.

Nom quero eu entrar lá

Que sabroso arrecear!

No é essa barca que eu cato.

E trazês vós muito fato?

O que me convém levar. Día. Que é o que havês d'embarcar?

Seiscentos virgos postiços e três arcas de feitiços que nompodem mais levar.Três almários de mentir, e cinco cofres de enlheos, e algunsfurtos alheos, assi em jóias de vestir, guarda-roupa d'encobrir,enfim - casa movediça; um estrado de cortiça com dous coxinsd'encobrir.A mor cárrega que é: essas moças que vendia. Daquestramercadoria trago eu muita, à bofé!

Page 26: Auto da Barca do Inferno

DIABO

BRÍZIDA

DIABO

BRÍZIDA

ANJO

BRÍZIDA

ANJO

BRÍZIDA

ANJO

BRÍZIDA

BRÍZIDA

DIABO

Ora ponde aqui o pé. . .

Hui! E eu vou pera o Paraíso!

E quem te dixe a ti isso?

Lá hei-de ir desta maré.Eu sô üa mártela tal! . . . Açoutes tenho levados e tormentossuportados que ninguém me foi igual. Se fosse ò fogo infernal, láiria todo o mundo! A estoutra barca, cá fundo, me vou, que émais real.Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:Barqueiro mano, meus olhos, prancha a Brísida Vaz.

Eu não sei quem te cá traz. . .

Peço-vo-lo de giolhos! Cuidais que trago piolhos, anjo de Deos,minha rosa? Eu sô aquela preciosa que dava as moças amolhos,a que criava as meninas pera os cónegos da Sé. . . Passai-me,por vossa fé, meu amor, minhas boninas, olho de perl inhas finas!E eu som apostolada, angelada e martelada, e fiz cousas muidivinas.Santa Úrsula nom converteu tantas cachopas como eu: todassalvas polo meu que nenhüa se perdeu. E prouve Àquele doCéu que todas acharam dono. Cuidais que dormia eu sono?Nem ponto se me perdeu!

Ora vai lá embarcar, não estês importunando.

Pois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar.

Não cures de importunar, que não podes vir aqui.

E que má-hora eu servi, pois não me há-de aproveitar! . . .Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

Hou barqueiros da má-hora, que é da prancha, que eis me vou?E já há muito que aqui estou, e pareço mal cá de fora.

Ora entrai, minha senhora, e sereis bem recebida; se vivestessanta vida, vós o sentirês agora. . .

Page 27: Auto da Barca do Inferno

JJuuddeeuu

Page 28: Auto da Barca do Inferno

Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e,chegando ao batel dos danados, diz:

JUDEU

DIABO

JUDEU

DIABO

JUDEU.

DIABO

JUDEU

DIABO

JUDEU

DIABO

JUDEU

DIABO

Que vai cá? Hou marinheiro!

Oh! que má-hora vieste! . . .

Cuj 'é esta barca que preste?

Esta barca é do barqueiro.

Passai-me por meu dinheiro.

E o bode há cá de vir?

Pois também o bode há-de vir.

Que escusado passageiro!

Sem bode, como irei lá?

Nem eu nom passo cabrões.

Eis aqui quatro tostões e mais se vos pagará. Por vida doSemifará que me passeis o cabrão! Querês maisoutro tostão?

Nem tu nom hás-de vir cá.

Page 29: Auto da Barca do Inferno

JUDEU

DIABO

JUDEU

PARVO

DIABO

PARVO

DIABO

Porque nom irá o judeu onde vai Brísida Vaz? Ao senhormeirinho apraz? Senhor meirinho, irei eu?

E o fidalgo, quem lhe deu. . .

O mando, dizês, do batel? Corregedor, coronel, castigai estesandeu!Azará, pedra miúda, lodo, chanto, fogo, lenha, caganeira quete venha! Má corrença que te acuda! Par el Deu, que tesacuda coa beca nos focinhos! Fazes burla dos meirinhos?Dize, fi lho da cornuda!

Furtaste a chiba cabrão? Parecês-me vós a mim gafanhotod'Almeirim chacinado em um seirão.

Judeu, lá te passarão, porque vão mais despejados.

E ele mijou nos finados n'ergueja de São Gião!E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor! E apertao salvador, e mija na caravela!

Sus, sus! Demos à vela! Vós, Judeu, irês à toa, que sois muiruim pessoa. Levai o cabrão na trela!

Page 30: Auto da Barca do Inferno

CCoorrrreeggeeddoorr

Page 31: Auto da Barca do Inferno

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEOR

DIABO

Hou da barca!

Que quereis?

Está aqui o senhor juiz?

Oh amador de perdiz. genti l cárrega trazeis!

No meu ar conhecereis que nom é ela do meu jeito.

Como vai lá o direito?

Nestes feitos o vereis.

Ora, pois, entrai. Veremos que diz i nesse papel. . .

E onde vai o batel?

No Inferno vos poeremos.

Como? À terra dos demos há-de ir um corregedor?

Santo descorregedor, embarcai, e remaremos!Ora, entrai, pois que viestes!

Non est de regulae juris, não!

I ta, I ta! Dai cá a mão! Remaremos um remo destes. Fazeiconta que nacestes pera nosso companheiro. - Que fazes tu,barzoneiro? Faze-lhe essa prancha prestes!

Oh! Renego da viagem e de quem me há-de levar! Há 'quimeirinho do mar?

Não há tal costumagem.

Nom entendo esta barcagem, nem hoc nom potest esse.

Se ora vos parecesse que nom sei mais que linguagem.. .Entrai, entrai, corregedor!

Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara namão, diz

Page 32: Auto da Barca do Inferno

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

DIABO

CORREGEDOR

PROCURADOR

DIABO

Hou! Videtis qui petatis - Super jure magestatis temvosso mando vigor?

Quando éreis ouvidor nonne accepistis rapina? Poisireis pela bolina onde nossa mercê for. . .Oh! que isca esse papel pera um fogo que eu sei!

Domine, memento mei!

Non es tempus, bacharel! Imbarquemini in batel quiaJudicastis malitia.

Sempre ego justitia fecit, e bem por nivel.

E as peitas dos judeus que a vossa mulher levava?

Isso eu não o tomava eram lá percalços seus. Nomsom pecatus meus, peccavit uxore mea.

Et vobis quoque cum ea, não temuistis Deus.A largo modo adquiristis sanguinis laboratorumignorantis peccatorum. Ut quid eos non audistis?

Vós, arrais, nonne legistis que o dar quebra ospinedos? Os direitos estão quedos, sed aliquidtradidistis. . .

Ora entrai, nos negros fados! Ireis ao lago dos cães evereis os escrivães como estão tão prosperados.

E na terra dos danados estão os Evangelistas?

Os mestres das burlas vistas lá estão bem fraguados.Estando o Corregedor nesta prática com o Arraisinfernal chegou um Procurador, carregado de livros, ediz o Corregedor ao Procurador:

Ó senhor Procurador!

Bejo-vo-las mãos, Juiz! Que diz esse arrais? Que diz?

Que serês bom remador. Entrai, bacharel doutor, eireis dando na bomba.

Page 33: Auto da Barca do Inferno

PPrrooccuurraaddoorr

Page 34: Auto da Barca do Inferno

PROCURADOR

DIABO

PROCURADOR

DIABO

CORREGEDOR

PROCURADOR

CORREGEDOR

DIABO

PROCURADOR

DIABO

CORREGEDOR

ANJO

CORREGEDOR

PARVO

E este barqueiro zomba. . . Jogatais de zombador?Essa gente que aí está pera onde a levais?

Pera as penas infernais.

Dix! Nom vou eu pera lá! Outro navio está cá, muito milhorassombrado.

Ora estás bem aviado! Entra, muitieramá!

Confessaste-vos, doutor?

Bacharel som. Dou-me à Demo! Não cuidei que eraextremo, nem de morte minha dor. E vós, senhorCorregedor?

Eu mui bem me confessei, mas tudo quanto roubei encobriao confessor. . .Porque, se o nom tornais, não vos querem absolver, e émui mau de volver depois que o apanhais.

Pois porque nom embarcais?

Quia speramus in Deo.

Imbarquemini in barco meo. . . Pera que esperatis mais?Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz oCorregedor ao Anjo:

Ó arrais dos gloriosos, passai-nos neste batel!

Oh! pragas pera papel, pera as almas odiosos! Comovindes preciosos, sendo fi lhos da ciência!

Oh! habeatis clemência e passai-nos como vossos!

Hou, homens dos breviairos, rapinastis coelhorum etpernis perdigotorum e mijais nos campanairos!

Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais infernal chegou um Procurador, carregado delivros, e diz o Corregedor ao Procurador:

Page 35: Auto da Barca do Inferno

CORREGEDOR

PARVO

ANJO

CORREGEDOR

PROCURADOR

PARVO

CORREGEDOR

PROCURADOR

DIABO

CORREGEDOR

BRÍZIDA

CORREGEDOR

BRÍZIDA

Oh! não nos sejais contrairos, pois nom temos outraponte!

Belequinis ubi sunt? Ego latinus macairos.

A justiça divinal vos manda vir carregados porquevades embarcados nesse batel infernal.

Oh! nom praza a São Marçal! coa ribeira, nem co rio!Cuidam lá que é desvario haver cá tamanho mal!

Que ribeira é esta tal!

Parecês-me vós a mi como cagado nebri, mandado noSardoal. Embarquetis in zambuquis!

Venha a negra prancha cá! Vamos ver este segredo.

Diz um texto do Degredo. . .

Entrai, que cá se dirá!

Oh! esteis muitieramá, senhora Brízida Vaz!

Já siquer estou em paz, que não me leixáveis lá.Cada hora sentenciada: «Justiça que manda fazer. . . .»

E vós. . . tornar a tecer e urdir outra meada.

Dizede, juiz d'alçada: vem lá Pêro de Lixboa? Levá-lo-emos à toa e irá nesta barcada.

E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brízida Vaz, porque aconhecia:

Page 36: Auto da Barca do Inferno

EEnnffoorrccaaddoo

Page 37: Auto da Barca do Inferno

DIABO

ENFORCACO

DIABO

ENFORCADO

DIABO

ENFORCADO

DIABO

ENFORCADO

DIABO

ENFORCADO

DIABO

Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse oArrais, tanto que chegou:

Venhais embora, enforcado! Que diz lá Garcia Moniz?

Eu te direi que ele diz: que fui bem-aventurado emmorrer dependurado como o tordo na buiz, e diz queos feitos que eu fiz me fazem canonizado.

Entra cá, governarás atá as portas do Inferno.

Nom é essa a nau que eu governo.

Mando-te eu que aqui irás.

Oh! nom praza a Barrabás! Se Garcia Moniz diz queos que morrem como eu fiz são livres de Satanás. . .

Dava-te consolação isso, ou algum esforço?

Com o baraço no pescoço, mui mal presta apregação. . . E ele leva a devação que há-de tornar ajentar. . . Mas quem há-de estar no ar avorrece-lhe osermão.

Entra, entra no batel, que ao Inferno hás-de ir!

O Moniz há-de mentir? Disse-me que com São Migueljentaria pão e mel tanto que fosse enforcado. Ora, jápassei meu fado, e já feito é o burel.Agora não sei que é isso: não me falou em ribeira,nem barqueiro, nem barqueira, senão - logo òParaíso. Isto muito em seu siso. e era santo o meubaraço. . . Eu não sei que aqui faço: que é desta glóriaemproviso?

Falou-te no Purgatório?

E disse que a Deus prouvera que fora ele o enforcado; e que fosse Deus louvado que embo'hora eu cá nacera; e que o Senhor m'escolhera; e por bem vi beleguins. E com isto millatins, mui l indos, feitos de cera.E, no passo derradeiro, me disse nos meus ouvidos que o lugardos escolhidos era a forca e o Limoeiro; nem guardião do moesteiro nom tinha tão santa gentecomo Afonso Valente que é agora carcereiro.

Page 38: Auto da Barca do Inferno

ENFORCADO

DIABO

Disse que era o Limoeiro, e ora por ele o salteiro e opregão vitatório; e que era mui notório que àquelesdeciprinados eram horas dos finados e missas deSão Gregório.

Quero-te desenganar: se o que disse tomaras, certoé que te salvaras. Não o quiseste tomar. . . - Alto!Todos a tirar, que está em seco o batel! - Saí vós, FreiBabriel! Ajudai al i a botar!

Page 39: Auto da Barca do Inferno

44 CCaavvaall ee ii rrooss

Page 40: Auto da Barca do Inferno

CAVALEIROS

DIABO

1 º CAVALEIRO

2º CAVALEIRO

DIABO

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhore acrecentamento de Sua santa fé catól ica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa epena per privi légio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quempadecem, outorgados por todos os Presi- dentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E acantiga que assi cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

À barca, à barca segura, barca bem guarnecida, àbarca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais pola vida transitória, memória, por Deus, memória deste temeroso cais! À barca, àbarca, mortais, Barca bem guarnecida, à barca, àbarca da vida!

Vigiai-vos, pecadores, que, depois da sepultura, nesterio está a ventura de prazeres ou dolores! À barca, àbarca, senhores, barca mui nobrecida, à barca, àbarca da vida!

Cavaleiros, vós passais e nom perguntais onde is?

Vós, Satanás, presumis?Atentai com quem falais!

Vós que nos demandais? Siquer conhecê-nos bem:morremos nas Partes d'Além, e não queirais sabermais.

Entrai cá! Que cousa é essa? Eu nom posso entenderisto!

E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando, com suas espadas eescudos, disse o Arrais da perdição desta maneira: