A presença da Defensoria Pública no Processo Civil e o … · Carlos Ayres Britto em entrevista...
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A presença da Defensoria Pública no Processo Civil e o establishment
jurídico tracejado pela boa-fé: responsabilidade política ou atuação
estratégica? Ensaio sobre a ratio ôntico-ontológica de cariz
constitucional.
The presence of the Public Defenders’ Office at the Civil Process and the
legal establishment set in the context of good faith: political responsibility
or strategical actuation? Essay on the ontic and ontological ratio of
constitutional nature.
Gregory Victor Pinto de Farias1
Resumo:
É ressabido que todo estudo acadêmico visa à perquirição de um topos com a subsequente
explanação de vazantes fenomenológicas que lhes sejam inerentes. Em apertada síntese:
ventila-se uma problemática e se traz à ribalta uma proposta de solução. No artigo em
liça, todavia, navegar-se-á em águas diversas. Afirma-se isso porque o leitmotiv que se
traz à colação não apresenta, aprioristicamente, uma resposta a que se chegue – ao menos
no plano gnosiológico – a um patamar científico de conforto. Não se quer dizer, porém,
que se trata de um mysteria fidei. Longe disso. Apenas alerta-se que o status quaestionis
se cuida de matéria cuja doutrina ainda não abriu os olhos e que o presente artigo – cujo
título que melhor o colore é de ensaio – não se propõe a elucubrar com precisão cartesiana
(metaforicamente). Seria, a mais não poder, uma ousadia atroz. A atuação de todos os
atores do sistema de justiça no processo lato sensu (especificamente, in casu, no processo
civil) impõe seja alinhada, pari passu, com as comezinhas máximas inerentes à boa-fé e
suas variantes. Nos estertores do senso comum de um ordenamento jurídico, essa lógica
já sobressai como um princípio implícito. De há muito a doutrina já aventa essa base
estrutural, como, verbi gratia, a corrente chamada de neoprocessualista e o formalismo-
valorativo trazido por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. O legislador brasileiro quis se
distanciar da pena de Tântalo ao dispor no artigo 5º da Lei 13.105/2015 que todos os
participantes do processo devem se comportar de acordo com a boa-fé. Com efeito, não
se trata, na espécie, de positivismo de afirmação hiperbólica: quis e quer o legislador se
livrar do drama tantálico da morosidade processual (muita vez decorrente de atos
procrastinatórios imbuídos de má-fé), cancro fagedênico que custa caro ao ordenamento
1 O autor do escrito é Defensor Público na Defensoria Pública de Pernambuco e ex-Defensor Público na Defensoria Pública do Paraná (2013 a 2016).
jurídico brasileiro e aos seus jurisdicionados. Eis o punctum saliens que sincroniza essa
temática com a natureza ôntico-ontológica da Defensoria Pública e seu perfil de atuação
no processo civil: à luz de sua presença axiológica na Constituição Federal e à vista de
seu mister constitucional, deve o Defensor Público atuar com responsabilidade política
ou, assim como na advocacia privada, levar a cabo estratagemas situacionais, os quais,
não raras vezes, distanciam-se da boa-fé (objetiva e subjetiva) tão desejada pelo
legislador? O ensaio em testilha resumir-se-á a apontar os caminhos que levam a essa
vexata quaestio, exemplificar alguns problemas pragmáticos e sistematizar a
harmonização da Defensoria Pública, como instituição integrante do triângulo equilátero
do sistema de justiça, com a Constituição Federal e o Estado Democrático de Direito.
Palavras-Chave:
Defensoria Pública; Boa-fé processual; Perfil constitucional.
Abstract:
It is known that every academical study aims the research of a topos with the subsequent
explanation of phenomenological biases that are inherent to them. In summary: spreads a
problem and brings into focus a solution proposal. However, in the highlighted article,
other directions will be taken. That is affirmed because the leitmotiv that’s brought up to
discussion don’t presents, a priori, a answer that gives - at least on the gnosiological
atmosphere - a scientific level of comfort. Although, it does not mean that it portraits a
mysteria fidei. Far from that. Alerts only that the status quaestionis cares of a doctrine of
this matter that has not yet opened their eyes, and the present article - whose title that best
describes it is like an essay - does not propose to wonder with Cartesian accuracy
(metaphorically). It would be an atrocious daring. The actuation of all protagonists of the
justice system in the lato sensu process (specifically, in casu, in the civil process) imposes
the alignment, pari passu, with the maximum mundane matters inherent to the good faith
and its variations. In the deadlines of the common sense of a juridical order, this logic
remains as an implicit principle. It has been a long time that the doctrine has this structural
base, like, verbi gratia, the component denominated as neoprocessualista and the
evaluating formalism brought by Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. The brazilian
legislator distanced from the Tântalo’s penalty when he disposed in the article 5º from
law 13.105/2015 that all participants of the process must behave in good faith. In effect,
this is not about positivism of hyperbolical affirmation: wanted and wants the legislator
to get rid from the tantalic drama of the lengthening procedures (often caused by
procrastination acts in bad faith), problem that costs a high price to the juridical order of
Brazil and its court. There is the punctum saliens that synchronize this theme with the
ontic and ontological nature of the Public Defenders’ Office and its action profile in the
civil process: in the light of your axiological presence in the Federal Constitution and in
sight of your constitutional mister, must the Public Defender act with political
responsibility or, just like in private advocacy, manage situational stratagems that, in
many cases, distance themselves from the good faith (objective and subjective) so
intended by the legislator? The essay under discussion, in summary, is going to guide
some ways that leaves to this vexata quaestio, illustrate some pragmatic problems and
synthetize the harmonization of the Public Defenders’ Office, as institution constituent
part of the equilateral triangle of the system of justice, combined with the Federal
Constitution and the Democratic State based on the rule of law.
Keywords: Outsourcing; Secondary Activities; Specialized Service.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A Defensoria Pública na
Constituição Federal e sua autonomia de quatro feixes.
3. A boa-fé objetiva no Processo Civil. 4.
Responsabilidade política ou atuação estratégica? 5. À
guisa de conclusão. 6. Referências.
1. Introdução.
A Defensoria Pública já é realidade da vida vivida do sistema de justiça brasileiro.
Após a sua criação pela Constituição Federal de 1988, verificou-se, até há pouco, a inércia
de vários Estados-membros para levar a cabo o seu efetivo surgimento orgânico-
institucional, com a consequente estruturação – Amapá, Paraná e Santa Catarina foram
os três últimos (e morosos) Estados a concretizar essa implementação.
Com efeito, a missiva da Defensoria Pública exsurge como condição de
legitimidade para o Estado Democrático de Direito brasileiro. É que a Defensoria Pública,
entre diversos misteres que lhe incumbe, ecoa como a primaz ponte de interlocução da
sociedade civil com o Poder Judiciário – a Defensoria Pública assegura o direito a ter
direitos2.
2 Simbólica oração proferida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello.
Nesse vértice, para que a Defensoria Pública pudesse levar a efeito o seu dever
constitucional, o poder constituinte originário conferiu-lhe uma gama de prerrogativas,
inclusive e notadamente para se blindar das amarras políticas de outros Poderes e
instituições – não se ousa dizer, à evidência, que a Defensoria Pública é um Poder
constitucional; mas se lhe é possível atribuir o timbre de Poder Neutral, consoante
magistério de Alexandre Santos de Aragão, cujo teor será melhor minudenciado no
capítulo vindouro.
Destacada a emancipação político-jurídica da Defensoria Pública no ordenamento
jurídico brasileiro, é possível vislumbrar, ao descer um degrau epistemológico de sua
natureza ôntico-ontológica, um aparente entrechoque em relação à sua essência
republicana e democrática com o princípio de ordem fenomenológica e pragmática da
boa-fé objetiva, oriundo, fundamentalmente, do due process of law e positivado às
escâncaras no novel Código de Processo Civil.
Esclareça-se um pouco mais o busílis que ora é vazado: o Poder Judiciário e o
Ministério Público são agentes políticos e a eles se impõe a necessidade de atuar com
responsabilidade política. Assim, exempli gratia, não cabe ao membro do Poder
Judiciário decidir conforme a sua consciência, assim como ao membro do Ministério
Público não se abrem ensanchas a decidir se oferta, ou não, a denúncia – o primeiro decide
conforme a Constituição e o ordenamento jurídico e o segundo, verificado o delito,
oferece a denúncia.
Noutra vereda, o advogado privado detém com a parte que representa um contrato
de pano de fundo mercantil, via de regra. Logo, se lhe aza necessário um accountability
situacional com o seu cliente, o que faz com que o causídico defenda os interesses
(interesse é mais amplo do que direito) que lhes foram confiados a ferro e fogo, de sorte
a tracejar, não raras vezes, verdadeiros estratagemas processuais.
Estratagema pode rimar com problema – o agir estratégico do advogado a fim de
defender o direito de seu cliente poderá desembocar em menoscabo à boa-fé objetiva,
ainda que não seja esse o anseio que a ele subjaz. Indo mais além, não é rara a verificação
de postulações contumeliosas, coloridas por manifesta má-fé, ímpeto de que alguns se
valem para alcançar o objetivo fáustico a que se propõem.
Continuum: como deve agir o Defensor Público?
A Defensoria Pública faz parte do triângulo equilátero do sistema de justiça e o
poder constituinte derivado, por intermédio da Emenda à Constituição 80/2014, conferiu-
lhe as mesmas prerrogativas inerentes ao Poder Judiciário e ao Ministério Público,
consoante já plasmado pelo Supremo Tribunal Federal e verificado no artigo 134, §4º, da
Constituição Federal.
Diante desse cenário, chega-se a um paradoxo (e, consoante frase ventilada por
Carlos Ayres Britto em entrevista midiática, dos paradoxos extraímos a verdadeira
verdade): se o poder constituinte derivado (que, para alguns, apenas exteriorizou a
vontade imanente ao poder constituinte originário) equiparou a Defensoria Pública ao
Poder Judiciário e ao Ministério Público, qual a ratio essendi da natureza jurídica dela,
Defensoria Pública?
Rechaça-se, desde logo, que se lhe atribua uma natureza mista, híbrida ou mesmo
sui generis, uma vez que argumentação ou conclusão dessa envergadura não subsiste à
mais singela das análises, dado que quebranta e fere de morte, de antemão, três princípios
da gnosiologia científica detectado pela lógica de Aristóteles: princípio da identidade,
princípio da não contradição e princípio do terceiro excluído.
Quid juris?
2. A Defensoria Pública na Constituição Federal e sua autonomia de
quatro feixes.
O ponto nevrálgico do tópico em apreciação cinge-se à explanação da autonomia
latu sensu conferida à Defensoria Pública pela Constituição Federal, especialmente se
entreluzida com a sua lei de regência, Lei Complementar 80/1994, e sobretudo à luz do
olhar vigilante do Supremo Tribunal Federal, a quem se atribui a autoridade de dar o
derradeiro significado aos significantes contidos na Constituição Federal.
A Defensoria Pública foi introduzida, sob a batuta de instituição de cariz
constitucional, no establishment jurídico brasileiro pela Carta Altior de 1988. Pela
sabença das idiossincrasias pertinentes ao Brasil como país periférico (rectius: país de
modernidade tardia, consoante expressão vista em obra de João Mauricio Adeodato), a
essência finalística da Defensoria Pública emergiu como ponto de estofo do poder
constituinte originário para agasalhar alguns de seus anseios.
De efeito, a partir de um rápido passar d’olhos sob o texto constitucional, verifica-
se que só por intermédio da Defensoria Pública é que se pode obter o minimum
minimorum do núcleo essencial do artigo 1º, inciso III (dignidade da pessoa humana) e
do artigo 3º, incisos I, III e IV (respectivamente: construir uma sociedade livre, justa e
solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação).
No dia 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães ventilou as seguintes palavras:
A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes,
mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em
cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve,
mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa.
(...)
Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do
homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra:
temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela
desgrace homens e nações, principalmente na América Latina.
Especialmente nesse dia é que surgiu, em Terrae Brasilis, a Defensoria Pública
como instituição autônoma, a quem se atribuiu o mister de orientar, defender, assistir e
lutar, a pau e pedra e a ferro e fogo, por todos aqueles cidadãos que se encontrem em
situação de periclitância (vulnerabilidade) em diversas gamas de sentido.
Somente por intermédio da Defensoria Pública é que os marginalizados têm voz
e vez. Presta-se ela a servir (entre vários outros desígnios) como ponte de interlocução
entre os excluídos e o Poder Judiciário. Poder Judiciário que, sem a essencial função que
lhe subjaz (o mister da Defensoria Pública), enviesar-se-ia como função estatal dirigida à
pequena classe brasileira dos abastados.
Por e pela Defensoria Pública, não.
Quis o poder constituinte originário, ao alicerçar a Defensoria Pública como
instituição autônoma e desvinculada do Poder Executivo, retirar-lhe de toda e qualquer
amarra política para que o seu escopo de tutelar os interesses das minorias (que, num
paradoxo do cretense, muita vez é a maioria) fosse e seja alcançado na máxima plenitude
possível.
Nessa conjuntura, no plano gnosiológico do desejável, a Defensoria Pública
deveria ser robustecida, aparelhada e vista no cenário político tal qual o Poder Judiciário
e o Ministério Público, dada a natureza do seu mister, especialmente por se tratar, no
espectro criminal, da antítese da acusação (a trazer a reboque a lógica da paridade de
armas).
Seria oportuno e desejável dizer que, justamente pela ontologia de seu desiderato,
a Defensoria Pública deveria ser a menina dos olhos da República. No plano do mundo
vivido, cuida-se, infelizmente, de um non sequitur. A política tupiniquim ainda é atrelada,
no mais das vezes, a práxis oligárquicas, à cultura do biombo e ao viço e viso de cultuar
os interesses econômicos das classes dominantes – política elitista, pois.
A fim de combater o sufoco político por que passavam as Defensorias Públicas é
que a Emenda à Constituição 45/2004 e especialmente a Emenda à Constituição 80/2014
calharam à fiveleta. Diga-se: precisou o poder constituinte derivado reformador explicitar
no bojo da própria Constituição o anseio do poder constituinte originário.
Nesse contexto, empós esclarecer o mote político-jurígeno das citadas emendas e
a sucessão cronológica dos acontecimentos, traga-se à ribalta o texto constitucional dos
artigos 134 e 135 da Lex Matter. Não custa rememorar, nesta oportunidade, que a Emenda
à Constituição 80/2014 concedeu uma seção específica à Defensoria Pública – Seção IV
do Capítulo IV.
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do
regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos
direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos
direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados,
na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito
Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos
Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso
público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da
inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições
institucionais. (Renumerado do parágrafo único pela Emenda Constitucional
nº 45, de 2004)
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional
e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites
estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no
art. 99, § 2º. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
§ 3º Aplica-se o disposto no § 2º às Defensorias Públicas da União e do Distrito
Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 74, de 2013)
§ 4º São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a
indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que
couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal.
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)
Art. 135. Os servidores integrantes das carreiras disciplinadas nas Seções II e
III deste Capítulo serão remunerados na forma do art. 39, § 4º. (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Grassa a olhos vistos que a Constituição Federal atribuiu expressamente à
Defensoria Pública o que se chama, neste ensaio, de autonomia de quatro feixes:
funcional, administrativa, financeira e orçamentária. Concedeu-lhe autonomia plena,
equiparando-a ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, para que não mais sobejem
interferências políticas externas em seus misteres.
A assertiva de que a Defensoria Pública é robustecida por uma ampla autonomia
(funcional, administrativa, orçamentária e financeira) emerge como uma afirmação
insofismável. Não se faz necessário, hic et nunc, adentrar ao plano da hermenêutica stricto
sensu (à evidência que há uma atividade hermenêutica, ainda assim), uma vez que,
analiticamente, cuida-se do que Konrad Hesse chama de vontade de Constituição.
Abram-se parênteses, embora não se queira alargar essa digressão, a fim de
lembrar o que Hans-Georg Gadamer vaticina sobre a tarefa da consciência histórico-
efeitual (Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein), que, de acordo com Lenio Streck, é o
primeiro lugar no plano de uma situação hermenêutica. Fala-se, portanto, que o
entendimento é uma fusão de horizontes, porquanto um horizonte nunca pode excluir a
um outro, mas a ele somar. Logo, preleciona Streck, o entendimento não é um ato de um
sujeito ativo que projeta um significado sobre um objeto inerte, morto.
Pelo contrário: presente e passado têm horizontes que podem ser juntados
produtivamente, ou seja, a visão global do passado faz uma declaração, por meio do texto,
do presente. Desse modo, o evento do entendimento representa uma negação e afirmação
do presente e do passado: o poder constituinte derivado reformador, à vista do panorama
histórico-estrutural por que passaram as Defensorias Públicas, resolveu, por meio das
suprarreferidas emendas, reforçar a sua autonomia. É a fusão de horizontes entre o
passado e o presente.
Finalize-se essa linha de argumentação sob a indumentária do estudo da dialética
de Aristóteles: não há, quando se diz que a Defensoria Pública possui uma garantia de
quatro feixes, uma proposição ou um problema dialético, a gerar problemas de silogismos
(para o Estagirita, princípio dos argumentos polêmicos), porquanto a Constituição Federal
atribuiu ao sujeito (Defensoria Pública), no plano da propriedade, os predicados da
autonomia funcional, administrativa, orçamentária e financeira.
Lado outro, a afirmação de que a Defensoria Pública é equiparada ao Poder
Judiciário e ao Ministério Público é comprovada a partir de uma exegese sistemática da
Constituição Federal e notoriamente com base em sólido magistério jurisprudencial já
emanado do Supremo Tribunal Federal.
Rememore-se a famosa oração proferida pelo Ministro do Supremo Tribunal
Federal, aposentado em agosto de 2010, Eros Roberto Grau, segundo a qual a
Constituição e as leis não podem ser interpretadas em fatias. Cuida-se de regra
hermenêutica que, de tão óbvia, timbra-se como axiomática.
Logo, a partir de uma interpretação sistemática da Constituição Federal, verifica-
se que a parte final do artigo 134, §4º, ordena a aplicação à Defensoria Pública, no que
couber, do disposto no artigo 93 e no inciso II do artigo 96 da Constituição Federal.
Idêntico dispositivo (ôntico-ontológico...) é encontradiço na seção pertinente ao
Ministério Público. O artigo 129, §4º, dispõe que se aplica ao Ministério Público, no que
couber, o disposto no artigo 93. Especificamente desse artigo constitucional é que o Órgão
Ministerial extrai sua sincategoremática equiparação ao Poder Judiciário.
Cite-se o brocardo ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, traduzido por
Carlos Maximiliano nos seguintes termos, ipsis litteris: onde existe a mesma razão
fundamental, prevalece a mesma regra de Direito; os casos idênticos regem-se por
disposições idênticas.
Ora, os dispositivos concernentes ao Ministério Público e à Defensoria Pública
são idênticos. Sendo assim, por que razão a eles se dariam interpretações diversas? Ou,
ainda, melhor: far-se-á do dispositivo constitucional verdadeira retórica de veleidades,
em manifesta tabula rasa de seu anseio precípuo – a emancipação política da Defensoria
Pública? O que é isto – a recalcitrância em descumprir a Constituição Federal?
As afirmações acima plasmadas recebem o colorido e brilho do imperium do
Supremo Tribunal Federal em diversos cases já julgados. Começa-se trazendo a lume
excertos vazados pela Ministra Cármen Lúcia na Ação Direta de Inconstitucionalidade
5218:
Não por outro motivo, a Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americanos – OEA aprovou a Resolução 2.656, de 7 de junho de 2014, que
trata das “garantais de acesso à justiça: o papel dos defensores públicos
oficiais”.
Note-se que essa resolução foi o primeiro documento normativo aprovado pela
OEA sobre o acesso à justiça como um direito autônomo. O documento
reconhece, ainda, que a Defensoria Pública é a instituição eficaz para a garantia
desse direito, sobretudo para as pessoas em situação de especial
vulnerabilidade.
Um dos pontos contidos na resolução é a recomendação aos Estados membros
da OEA que já contam com o serviço de assistência jurídica gratuita para que
adotem medidas que garantam independência e autonomia funcional aos
Defensores Públicos.
Paralisa-se a transcrição apenas para, em obiter dictum, alertar: o compromisso
que o Brasil, como república e federação, tem com a Defensoria Pública é de abissal
magnitude que abrange até mesmo o Direito das Gentes – o Direito Internacional.
Volta-se a transcrever, por imperiosa necessidade, os excertos lapidados, com
cuidado de ourives, pela Ministra, verbo ad verbum:
Destaco que o Brasil, recentemente, dando cumprimento a essas diretrizes
estabelecidas pela OEA, aprovou a Emenda Constitucional 80, de 4/6/2014.
Essa emenda ficou conhecida no mundo jurídico como “PEC Defensoria Para
Todos”, “PEC das Comarcas” ou “PEC das Defensorias Públicas”, pois obriga
os entes federativos brasileiros, no prazo de 8 anos, a disponibilizar defensores
públicos para a população em todas as unidades jurisdicionais, observada a
proporcionalidade da efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública com
a respectiva população.
Arremata a Ministra:
De fato, essa emenda apresenta outros instrumentos que objetivam o
fortalecimento da independência e da autonomia funcional da Defensoria
Pública, dentre eles a constitucionalização dos princípios institucionais da
unidade, da indivisibilidade e da independência funcional, ampliando o
conceito e a missão da Instituição.
Foi a EC 80 que trouxe a garantia de iniciativa de lei à Defensoria Pública,
além do paralelismo natural entre os Tribunais de Justiça (TJs) e as DPEs, e,
no que couber, a aplicação de preceitos do Estatuto da Magistratura de
responsabilidade do Supremo Tribunal Federal, como: existência de três anos
de atividade jurídica para os concursos públicos de ingresso à carreira,
mudança nos critérios de promoção por merecimento e antiguidade, previsão
de cursos de preparação, aperfeiçoamento e promoção dos Defensores
Públicos, subsídios remuneratórios, além do incentivo à criação do Conselho
Nacional da Defensoria Pública (CNDP).
Entendo que, de acordo com o regramento constitucional, qualquer medida
normativa que venha a suprimir a autonomia da Defensoria Pública, jungindo-
a administrativamente ao Poder Executivo local, implica necessariamente
violação à Carta Magna.
A mais não poder, a mensagem impregnada no voto da Ministra Carmén Lúcia é
de meridiana clareza: à Defensoria Pública é conferida uma autonomia de quatro feixes –
administrativa, funcional, financeira e orçamentária –, de sorte que não há nenhuma
submissão e/ou qualquer tipo de ingerência/ligação entre a Defensoria Pública e o Poder
Executivo.
De outro bordo, traga-se à colação excertos avultados pelo Ministro Ricardo
Lewandowski, que, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5217, obtemperou a
inteligência esculpida nos trechos seguintes:
Com as mudanças estabelecidas pela EC 45/2004, o poder constituinte
derivado buscou incrementar a capacidade de autogoverno da Defensoria
Pública, assegurando-lhe, ao lado da autonomia funcional e administrativa, a
financeira, conforme menção expressa na Constituição Federal à iniciativa
para elaboração de sua proposta orçamentária.
(...)
Entendo que, de acordo com o regramento constitucional, qualquer medida
normativa que venha a suprimir a autonomia da Defensoria Pública, jungindo-
a administrativa ao Poder Executivo local, implica necessariamente a violação
à Carta Magna.
(...)
Vale ressaltar que o art. 134, §2º, da Constituição Federal, pela densidade
normativa que ostenta, é autoaplicável e de eficácia imediata. No dizer do
Professor José Afonso da Silva: ‘As condições gerais para essa aplicabilidade
são a existência apenas do aparato jurisdicional, o que significa: aplicam-se só
pelo fato de serem normas jurídicas, que pressupõem, no caso, a existência do
Estado e de seus órgãos’.
Assim, ainda que não seja pela densidade de seu conteúdo normativo, a
autoaplicabilidade do referido dispositivo decorre do simples fato de a
Defensoria Pública integrar o aparato organizacional do Estado como
instituição autônoma e livre de subordinação ao Executivo e aos demais
Poderes.
(...)
O entendimento assentado nesta Suprema Corte qualificou como preceito
fundamental a autonomia administrativa e financeira da Defensoria Pública,
considerando-se inconstitucional qualquer medida que subordine a Instituição
ao Poder Executivo, consoante exegese do art. 134, §2º da Constituição
Federal.
Destaque-se o apanágio constitucional inerente à Defensoria Pública que a avulta
como simétrica (segundo a Ministra Cármen Lúcia, pelo paralelismo das funções) ao
Poder Judiciário e ao Ministério Público, professado pelo Ministro Ricardo
Lewandowski: não obstante o conteúdo material, que a toda evidência demonstra
inconstitucional por ferir as garantias decorrentes da simetria e da autonomia da
Defensoria Pública (...).
Faça-se alusão, outrossim, ao voto da Ministra Carmén Lúcia na assentada em que
fora julgada a malsinada Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.943, movida pela
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, cuja res in
iudicium deducta buscava a restrição da legitimidade ativa para a propositura de ação
civil pública, a excluir a Defensoria Pública. As pujantes palavras da Ministra se aplicam,
mutatis mutandis e servatis servandis, à espécie:
Parece-me equivocado o argumento, impertinente à nova processualística das
sociedades de massa, supercomplexas, surgida no Brasil e no mundo como
reação à insuficiência dos modelos judiciários convencionais. De se indagar a
quem interessaria o alijamento da Defensoria Pública do espaço constitucional-
democrático do processo coletivo.
A quem aproveitaria a inação da Defensoria Pública, negando-se-lhe a
legitimidade para o ajuizamento de ação civil pública?
A quem interessaria restringir ou limitar, aos parcos instrumentos da
processualística civil, a tutela dos hipossuficientes (tônica dos direitos difusos
e individuais homogêneos do consumidor, portadores de necessidades
especiais e dos idosos)? A quem interessaria limitar os instrumentos e as vias
assecuratórias de direitos reconhecidos na própria Constituição em favor dos
desassistidos que padecem tantas limitações? Por que apenas a Defensoria
Pública deveria ser excluída do rol do art. 5º da Lei 7.347/1985?
A ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que
compõem o sistema constitucional de Estado Democrático de Direito.
Sendo assim, a afirmação de que há um triângulo equilátero no sistema de justiça
a envolver o Poder Judiciário, a Defensoria Pública e o Ministério Público não se trata de
uma petição de princípio ou alguma falácia afim. Tampouco de wishful thinking. Cuida-
se, pois, de afirmação da Constituição Federal com endosso e aval de seu guardião – o
Supremo Tribunal Federal.
3. A boa-fé objetiva no Processo Civil.
Consoante já assentado aliunde, o ensaio em tela não visa a um estudo com a
devida densidade de diâmetro vertical a que faz jus a vexata quaestio. Em verdade, a boa-
fé objetiva positivada no Código de Processo Civil e tida como princípio implícito do due
process of law fora usada sub color de provocar a temática da natureza jurídica da
Defensoria Pública – é que, diante da conclusão dessa premissa, ocorre inexorável efeito
prático na sua ordem de atuação processual. São lógicas que se interligam.
Dessarte, sobeja inviável um estudo mais pormenorizado sobre a boa-fé objetiva,
de sorte que apenas mostrar-se-á, perfunctoriamente, a lógica balizadora de que se valeu
o legislador do Código de Processo Civil e o anseio que lhe serve de força motriz – à boa-
fé objetiva – para incrementar os escopos da jurisdição3.
Nessa clave, já fora afirmado que a boa-fé objetiva é princípio diretamente
extraído (ou, para doutrinadores de proa, implicitamente) do devido processo legal
substancial, o qual é consectário, no ordenamento jurídico tupiniquim, dos princípios da
razoabilidade e proporcionalidade (não se aza necessário adentrar a esse debate).
A bem da verdade, positivar a ideia de que as partes devem agir em ode à boa-fé
objetiva chega a ser acaciano – a ausência da evidência não é a evidência da ausência.
É possível apontar que o legislador chegou a uma positivação panglossiana, de sorte a
lembrar, tal qual um ferro candente, a alvissareira necessidade de atuação à luz do fair
trial.
Dispôs o Código de Processo Civil, verbo ad verbum:
Art. 5o Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-
se de acordo com a boa-fé.
Seguindo essa démarche, ventile-se excerto da lição do maior processualista da
nova geração, da terra de todos os santos, encantos e axé, Salvador (DIDIER, 2017, p.
119), ad litteris:
Não se pode confundir o princípio (norma) da boa-fé com a exigência de boa-
fé (elemento subjetivo) para a configuração de alguns atos ilícitos processuais,
como o manifesto propósito protelatório, apto a permitir a tutela provisória
prevista no inciso I do art. 311 do CPC. A boa-fé subjetiva é elemento do
suporte fático de alguns fatos jurídicos; é fato, portanto. A boa-fé objetiva é
uma norma de conduta: impõe e proíbe condutas, além de criar situações
jurídicas ativas e passivas. Não existe princípio da boa-fé subjetiva. O art. 5º
do CPC não está relacionado à boa-fé subjetiva, à intenção do sujeito
processual: trata-se de norma que impõe condutas em conformidade com a
3 A atuação dos atores processuais segundo a boa-fé objetiva traz consigo diversas conclusões de ordem fenomenológica e pragmática, como, verbi gratia: a) maior legitimidade da atividade jurisdicional; b) credibilidade processual; c) eficiência de ordem temporal no procedimento, a satisfazer melhor a duração razoável do processo; d) maior efeito de pacificação social.
boa-fé objetivamente considerada, independentemente da existência de boas
ou más intenções.
Se é certo que a boa-fé objetiva cria normas de condutas (como, por exemplo, a
proibição de venire contra factum proprium, a criação do ônus da supressio processual,
a proibição de atuar com abuso de direito e outros) aferível in concreto de acordo com
normas do senso comum, não se pode negar que a boa-fé subjetiva, cujo reverso da moeda
é a má-fé, também constitui fato-signo a ser (possivelmente) verificado no bojo
processual.
Quer-se dizer, servatis servandis, que a boa-fé objetiva é um critério de conduta
criado em razão da impossibilidade de se imiscuir na esfera da consciência individual
alheia para verificar a existência de ato processual municiado de má-fé. Em outros termos:
é quase sempre impossível diagnosticar a boa-fé subjetiva, uma vez que o Direito, como
ciência, não adentra às raias da esfera metafísica.
Eis, portanto, a lógica pela qual se trabalha, no processo civil, com a boa-fé
objetiva.
4. Responsabilidade política ou atuação estratégica?
Consigne-se que a barafunda sobre a dicotomia da boa-fé (subjetiva e objetiva)
não serve como obstáculo para pôr em xeque a raiz medular da temática que deu ensejo
ao presente ensaio. Aventou-se esse assunto apenas e tão somente para afastar eventuais
argumentos apriorísticos no sentido de asseverar que o Defensor Público, assim como
todos os participantes do processo, deve atuar com boa-fé.
Exemplifique-se.
Consoante relatado alhures, o advogado particular possui contrato de prestação de
serviços com o seu cliente, de modo que, ipso facto, impõe-se-lhe, ao menos no plano das
ideias, sejam levadas a efeito todas as técnicas jurídicas possíveis (de direito material e
processual) a fim de que a parte que representa sobressaia vitoriosa4.
De outra vereda, o Defensor Público não tem esse accountability mercantil com a
parte que presta a orientação/assistência jurídica. Detecta-se, portanto, não raras vezes,
4 À evidência que se tem conhecimento de que a litigância judicial hodiernamente é vista como a ultima
ratio, uma vez que o ordenamento jurídico, assim como o sistema das ciências humanas, vem incentivando,
a mais não poder, sejam praticados atos de mediação, conciliação e arbitragem. Logo, o que fora relatado
acima se cuida, única e tão somente, de situação ilustrativa.
que vários atos que normalmente seriam aventados na advocacia privada se mostram
nebulosos para o manejo do Defensor Público – esse cenário é mais visível na área penal,
nas situações em que o acusado é manifesta e confessadamente culpado e o Defensor
Público se vê no embate entre insistir na negativa de autoria (fazendo, em tese, narrativas
mirabolantes e chicanas processuais) ou apenas observar a legalidade do procedimento.
Nesse contexto é que reside o busílis do ensaio que se traz à tona: se a Defensoria
Pública é um órgão de envergadura constitucional e munida de responsabilidade política,
assim como o Poder Judiciário e o Ministério Público, cabe ao Defensor Público traçar
estratégias processuais para que o assistido saia exitoso no caso que lhe afigura sub
examine ou deve agir em estrita observância ao princípio da juridicidade?
A latere da nebulosa questão envolvendo a natureza jurídica da Defensoria
Pública, consigne-se que é insofismável que o Poder Judiciário deve atuar e decidir com
responsabilidade política – e isso é mais claro do que o líquor da pessoa humana limpo
do vírus da meningite.
Deveras, o Magistrado não pode decidir conforme a sua consciência, mas sim
cumprir o ordenamento jurídico (applicatio), sob pena de se afigurar como um sujeito
solipsista, cuja figura já fora absolutamente ultrapassada com o giro ontológico-
linguístico promovido (transposição do sujeito-sujeito para sujeito-objeto) por Heidegger
e Gadamer e proclamado em Terrae Brasilis pela Crítica Hermenêutica do Direito de
Lenio Streck e Ernildo Stein.
Traga-se à ribalta excerto escrito por Lenio Streck5:
Com Dworkin: Juiz decide por princípios e não por políticas ou por
moral(ismos). Digo isso pela centésima vez. Democracia se faz a partir de
responsabilidade política. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é
emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas
encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais,
nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na
vontade individual do aplicador. Portanto, direito não é moral. Não é religião.
Não é futebol. Não é política.
Com efeito, o jurista do Rio Grande do Sul escreveu com precisão cirúrgica ao
assentar que democracia se faz a partir de responsabilidade política. Mutatis mutandis:
se a Defensoria Pública brilha e rima com democracia, é possível negar a sua natureza de
5 https://www.conjur.com.br/2014-mai-22/juiz-umbanda-solipsismo-ficam-discursos-intolerancia
instituição munida de responsabilidade política e afirmar que se lhe é cabível, à
Defensoria Pública, um agir estratégico?
Descortina-se no plano ôntico-ontológico da essência da atuação da Defensoria
Pública uma real paralaxe cognitiva se acaso seja endossada uma resposta desviante do
que fora sugerido acima: se pode a Defensoria Pública agir estrategicamente, ao arrepio
da responsabilidade política (que é a espinha dorsal das instituições democráticas),
afigura-se ela, Defensoria Pública, uma instituição democrática?
Paradoxo do cretense.
5. À guisa de conclusão.
O título do estudo já alertou o leitor do que se trata: apenas um ensaio. Ensaio que
é tido, no mais das vezes, como sinônimo de teste ou experiência. Valeu-se, no escrito
ora vazado, da rubrica que se usa na literatura, âmbito em que, de acordo com o Dicionário
Houaiss, ensaio se trata de uma prosa livre que versa sobre tema específico, sem esgotá-
lo, reunindo dissertações menores, menos definitivas que as de um tratado formal, feito
em profundidade.
Afigurar-se-ia uma audácia intelectual tentar conceituar metodológica e
analiticamente a natureza jurídica de uma instituição cuja nascença se deu pela eminência
da Constituição Federal de 1988. Ousadia essa que, afora a limitação vertical que se
impõe ao ensaio em cotejo, encontra travejamento no próprio plano de cognoscibilidade
do autor – falar de democracia e república exige uma plêiade de conhecimento
multidisciplinar, intangível, no presente momento, no seu substrato orgânico-intelectual.
Em forma de topoi, eis as conclusões a que se chegaram ao vislumbrar o status
quaestionis:
a) Se a Defensoria Pública tem natureza jurídica de instituição imbuída de
responsabilidade política, assim como o Poder Judiciário e o Ministério Público, não lhe
é curial um agir estratégico, de modo que ao Defensor Público cabe atuar cum grano salis
e em observância estrita ao princípio da juridicidade, de sorte a se desvencilhar de todo e
qualquer tipo de ato postulatório eivado de má-fé (objetiva ou subjetiva).
b) Se acaso se entender que a Defensoria Pública deve atuar estrategicamente, a
buscar a tutela da pretensão deduzida em juízo a todo e qualquer custo, não se lhe pode
atribuir o timbre de instituição com responsabilidade política e o rótulo de agente político
ao Defensor Público.
c) Ao fim e ao cabo, afasta-se veementemente a possibilidade de atribuir uma
natureza híbrida ou sui generis à Defensoria Pública, vale dizer, de instituição colorida
por responsabilidade política à qual se permite agir solipsista e estrategicamente, uma vez
que principum tertii exclusi ou tertium non datur.
6. Referências.
DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil – Volume 1. 19ª Edição.
Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva de direito. Volume 1.
Campinas: Bookseller, 2005.
MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva de direito. Volume 2.
Campinas: Bookseller, 2005.
MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva de direito. Volume 3.
Campinas: Bookseller, 2005.
MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva de direito. Volume 4.
Campinas: Bookseller, 2005.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias
discursivas. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Belo Horizonte. Casa do
Direito, 2017.