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A metáfora da matrioshka animada pelo logos como princípio criador de dramaturgias
A METÁFORA DA MATRIOSHKA* ANIMADA PELO LOGOS COMO
PRINCÍPIO CRIADOR DE DRAMATURGIAS
THE METAPHOR OF THE MATRYOSHKA DOLLS ANIMATED BY THE LOGOS AS THE CREATIVE PRINCIPLE
OF DRAMATURGY
LA METÁFORA DE LA MATRIOSHKA ANIMADA POR EL LOGOS COMO PRINCIPIO CREADOR DE
DRAMATURGIAS
Alexandre Gil França
Alexandre Gil FrançaEscritor, diretor teatral, músico e
pesquisador, encenou, com a sua companhia, a Dezoito Zero Um, cinco
das peças que escreveu, entre elas Habitué (2010), Mínimo contato (2011) e
Billie (2014). Atualmente, é mestrando em artes cênicas na ECA/USP, sob orientação do Prof. Dr. Felisberto
Sabino da Costa, estudando trânsitos possíveis entre mitologia e dramaturgia
contemporânea
Artigos
DOI: 10.11606/issn.2238-3999.v5i2p41-5341
Espetáculo Ninguém Falou que Seria Fácil (2011). Texto de Felipe Rocha, que também codirige o espetáculo junto com Alex Cassal. Foto: Dalton Valerio
*Boneca russa tradicional que abrange um conjunto de bonecas de madeira idênticas, de
tamanhos decrescentes e que são colocadas umas dentro das outras
Alexandre Gil França
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ResumoO objetivo deste trabalho é fazer uma aproximação das ideias rela-
cionadas à über-marionette de Edward Gordon Craig com duas obras
recentes: uma do teatro, Ninguém falou que seria fácil (2011), texto
de Felipe Rocha, e outra do cinema, Synecdoque, New York (2008),
roteiro de Charlie Kaufman. A hipótese é a de que a ideia de ator na
über-marionette de Craig encontra uma possível resposta em termos
de criação de papéis nessas duas dramaturgias, nas quais as perso-
nagens como matrioshkas animadas assumem o lugar de marionetes
de outras personagens do texto, resultando em um jogo lógico de
teatralidade e na diluição de seus caracteres realistas.
Palavras-chave: Craig, Dramaturgia, Deleuze, Über-marionette.
AbstractThe object of this study is to trace an approximation between the ideas
related to Edward Gordon Craig’s über-marionette and two contempo-
rary works: the first in theatre, Ninguém falou que seria fácil (2011),
written by Felipe Rocha, and the second in cinema, Synecdoche, New
York (2008), script written by Charlie Kaufman. The hypothesis is that
the idea of the actor in Craig’s über-marionette finds an echo, in terms
of creating roles, in these two dramatic texts, in which the characters,
as animated matryoshkas, behave as puppets of the other characters
in the text, resulting in a logic game of theatricality and in the dissolu-
tion of their realistic characteristics.
Keywords: Craig, Dramatic text, Deleuze, Über-marionette.
ResumenEl objetivo del presente trabajo es promover un acercamiento de las
ideas relacionadas a la über-marionette de Edward Gordon Craig a
dos obras recientes: la primera en el teatro, Ninguém falou que seria
fácil (2011), texto de Felipe Rocha, y la segunda en el cine, Synec-
doque, New York (2008), dirigido por Charlie Kaufman. La hipótesis
es de que la idea del actor en la über-marionette de Craig encuentra
una posible respuesta en términos de creación de roles en esas dos
obras dramatúrgicas, en las que los personajes como matrioshkas
animadas toman el lugar de marionetas de otros personajes del texto,
resultando en un juego lógico de teatralidad y en la dilución de sus
caracteres realistas.
Palabras clave: Craig, Dramaturgía, Deleuze, Über-marionette.
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A metáfora da matrioshka animada pelo logos como princípio criador de dramaturgias
O sentido amplo da dança
A dança fora dos limites impostos pela natureza física é aquela indagada
por Heinrich von Kleist na utilização de marionetes. No entanto, é uma dan-
ça pensada para que indivíduos a executem – ou melhor, deuses (KLEIST,
1997). Pois esses indivíduos, embora carreguem as limitações de um corpo,
possuem uma singularidade submersa por uma construção cultural de sujei-
to. Portanto, a questão de Kleist poderia ser colocada na seguinte pergunta:
como limpar essa singularidade das suas afetações culturais, a fim de se ob-
ter uma depuração pulsional da obra? O que seria impossível para um sujeito
executar seria, contudo, substancialmente crível de ser colocado em prática
por marionetes conscientes. Esse modo de operação da máquina corpórea
constituiria o gatilho para uma revolução no campo criativo do ator, desenvol-
vida teoricamente por Edward Gordon Craig. “O ator desaparecerá e em seu
lugar veremos uma personagem inanimada que usará, se quereis, o nome
de Über-Marionette – até que se tenha conquistado um nome mais glorioso”
(CRAIG, 2004, p. 52).
Mas o que chama a atenção em Gordon Craig é a tentativa de se colocar
em prática um tipo de configuração teatral que aponta para uma abstração
utilizando ainda a figura humana, ou, melhor, insistindo nesta figura, apostan-
do agora em uma perfeita máquina de criação – a supermarionete. Seguindo
esse raciocínio, podemos questionar: por que não substituir simplesmente o
que parece humano por linhas e formas, cores e luzes, numa radicalização
extra-humana, na qual essa dança assumiria definitivamente o lugar do “fa-
zer sentido” dramático? Para Craig, que cresceu no ambiente teatral inglês,
tendo uma mãe atriz de reconhecido prestígio na Inglaterra, Helen Terry, essa
parece não ser uma saída simples para a criação de seu novo teatro. Linhas,
formas, cores e luzes devem dançar junto com a figura do homem. A maqui-
naria do teatro deve ser levada em conta, em um novo tipo de desdobramento
teatral, no qual as sutilezas da abstração flertam com as próprias sutilezas da
natureza (NEWMAN, 1989).
Essa necessidade de emancipação das partes (no caso de Craig e
Kleist, a cultura e o corpo) ressoa em manifestações artísticas mais próxi-
mas do nosso tempo, nas quais é radicalizada a separação dos elementos
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de maneira a se explorar novos territórios de construção artística, como por
exemplo na dança sem música de Rudolf von Laban ou na música sem notas
de John Cage. Não podemos afirmar que Craig, lidando com dramaturgias
tão enraizadamente humanas (como Hamlet de Shakespeare) visava a essa
separação de forma tão radical – resultando em um abstracionismo puro. Vi-
sava, sim, a um romper de limites impostos pela natureza física desse corpo
e pela cultura a fim de ir além do humano já estabelecido, um romper de li-
mites no qual a questão do homem nos serve de cama de sentido, substrato
espiritual da obra de arte: “A über-marionette não competirá com a vida – ao
invés disso, ela irá além dela”1 (apud BABLET, 1981, p. 109, tradução minha).
Talvez essa separação das partes seja a conclusão do indizível em
Craig de que trata Luiz Fernando Ramos (2014). Ou seja, esse quebra-ca-
beça do ator ideal para Craig nunca se deu em vida, no entanto suas ideias
ecoaram posteriormente na contemporaneidade, onde finalmente uma sepa-
ração pode ser possível. Esse diálogo se dá também em relação ao paralelo
existente entre a obra de Craig e os processos criativos da contemporanei-
dade “em que, muitas vezes, a não obra, o não objeto e a pura virtualidade
oferecem ao espectador suas próprias potências imaginativas como o que há
para fruir” (RAMOS, 2014, p. 74-75).
Para nós, neste artigo, o que talvez seja mais importante identificar na
época de Craig e que, certamente, em termos de dramaturgia, ouviremos
ecos de inspiração mais recentes, é a tentativa de se escrever tangencial-
mente a questão da razão – ou melhor, emancipado da razão. Ou seja, mais
do que a configuração de um ideal (que em Craig demonstra, pelo menos
durante sua vida em termos de concretização, ser um fracasso) é a motivação
dos artistas de sua geração em fugir de uma configuração sacramentada de
humano (RANCIÈRE, 2009).
Uma das respostas possíveis da dramaturgia contemporânea a esse
ideal craiguiano de ator em supermarionetes e, principalmente, aos objetivos
que ele procurou atingir se configura de maneira inusitada em Ninguém falou
que seria fácil. Na peça de Felipe Rocha, o desaparecimento de Marina, filha
do casal Pedro e Ana, dá vazão a um desdobramento barroco quando as per-
1. No original: “The über-marionette will not compete with life – rather will it go beyond it”.
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sonagens tentam assumir o papel da criança desaparecida para dar continui-
dade à ação. Aqui, o ideal de Craig se materializa na progressiva subtração do
preenchimento cultural dos significantes postos em cena (pai, mãe, filha) pela
via dramatúrgica. Esses significantes tornam-se, portanto, bailarinos da lógica
dançando no que Gilles Deleuze (DELEUZE; GUATTARI, 1995) chamará de
território liso, do acoplamento de hecceidades, dentro dos contornos da forma
teatral através da fala.
O elemento propulsor da configuração da über-marionette de Craig está
presente nessa dramaturgia sob um prisma simbólico: a diluição do caráter
realista, do que Craig considera o falso teatral. A diferença principal entre
Craig e Rocha está justamente no ponto de partida que cada um possui para
dar início ao jogo que lhes cabe. Em Craig, das marionetes para um logos
simbolista. Em Rocha, de um logos realista para as marionetes.
Über-marionette e marionete-personagem
Pensemos agora na diferença existente entre a über-marionette de Craig
e a marionete-personagem de Rocha. Podemos traçar um paralelo de dife-
renças entre dois tipos de abordagens, sabendo que, antes de ser o mo-
delo ideal, uma marionete em si é um objeto de representação conduzido
por alguém. Devemos levar em conta, portanto, a questão da consciência do
ator, como bem fala Denis Bablet: “Mas por que über-marionette, por que não
simplesmente marionette? Por que o ator, como uma über-marionette, possui
uma vantagem sobre a marionete – ele tem consciência dos seus gestos e
movimentos” (BABLET, 1981, p. 109, tradução minha).2
Em Craig, então, a marionete, um objeto, mais do que um substituto
perfeito para o corpo “defeituoso” do ser-humano, é um ideal a ser seguido.
Já em Rocha, é justamente pela falha da representação humana – ou seja,
pela diferença que uma marionete-personagem representa dentro do sistema
dramatúrgico – que o jogo se dá. Assim, em Ninguém falou que seria fácil é
na raia do equívoco da relocação (de um adulto para uma criança) que o fluxo
2. No original: “But why the über-marionette, why not simply the marionette? Because the actor, as über-marionette, will retain one advantage over the marionette – he will be cons-cious of his gestures and movements.”
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teatral se desenvolve, como se o choque entre essa falha e o objeto repre-
sentado pedisse ainda mais evidências de seu erro, desembocando em um
barroquismo lógico, no qual o fim se dá não através de uma linha narrativa,
mas por soldas entre momentos.
Aqui devemos voltar nosso olhar para as forças motoras que perpassam
a peça. Ou seja, a aproximação de Ninguém falou... com a über-marionette
de Craig – ou com qualquer outra marionete enquanto objeto manipulável –
só é possível no campo simbólico, entendendo ainda que as personagens
de Rocha se colocam como objetos para representar um outro, dando, desta
forma, continuidade ao que está sendo teatralizado. É muito mais a ideia de
ser uma marionete que está em jogo aqui do que a materialização de um ideal
de construção estética. Neste sentido, a marionete-personagem que Felipe
Rocha cria tem como engrenagem principal de funcionamento o jogo entre
reproduções imperfeitas, como o montar e desmontar de uma matrioshka,
boneca russa constituída por suas cópias reduzidas. É, portanto, uma ma-
trioshka animada pelo logos, ou seja, pelos significantes esvaziados nesta
troca de personagens, o que se revela em camadas.
O resultado disso é a lenta diluição da integridade da personagem em
função de sua substituta marionete-personagem. Ao invés de depararmos
com um individuo, deparamos com visões multifocadas da infância, nas quais
a linha dramática é fraturada a todo instante para que surta determinado efeito.
Finalmente, surge a aproximação que procuramos entre a über-marionette e a
marionete-personagem. Em Craig, a über-marionette aparece como um ata-
que ao realismo de sua época, um ataque ao tipo de interpretação que se faz
nesse realismo3. E é exatamente esse percurso que presenciamos na peça de
Rocha, só que em relação à personagem realista. A marionete-personagem
em Ninguém falou… é construída em oposição aos vetores da verossimilhan-
ça. É uma resposta não realista à pergunta que se segue, “onde está Marina?”,
e se diferencia tanto de sua inspiração original a ponto de constituir uma outra
coisa fora do escopo do simples representar da realidade (o que estaria den-
tro da boneca, uma representação da mesma – uma representação que se dá
pela diferença de tamanho, contornos, etc.).
3. É preciso entender, portanto, que quando Craig fala sobre o desaparecimento do ator em lugar de uma supermarionete, ele fala sobre o ator do realismo (CRAIG, 2004).
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A metáfora da matrioshka animada pelo logos como princípio criador de dramaturgias
Assim, o que se configura distorcidamente em Ninguém falou… é o pró-
prio percurso do ideal craiguiano, visando não à perfeita harmonia de formas
e movimentos, mas, no mínimo, à diluição da verossimilhança pela diferença.
“Nos nossos dias, o ator aplica-se a personificar um caráter e a interpretá-lo;
amanhã, tentará representá-lo e interpretá-lo; um dia, criará ele próprio. As-
sim renascerá o estilo” (CRAIG, 2004, p. 42) Mas o que em Craig daria lugar
à criação de um novo sujeito em Rocha dá lugar ao equívoco que não para
de se equivocar. É o mesmo princípio de dízimas periódicas, de algarismos
que poderiam ser representados infinitamente sempre com o acréscimo de
mais um número, mas que nunca concluem de maneira perfeita um resultado.
As personagens representadas pelas marionetes-personagens nunca fecham
sua configuração, seu caráter – mas vislumbram, exaustivamente, esse fe-
chamento.
Synecdoque, New York – a sociedade como marionete
Se em Ninguém falou que seria fácil presenciamos o começo de uma
matrioshka animada pelo logos, ou seja, a atuação de uma marionete-perso-
nagem diluindo aos poucos outras personagens na construção de um terceiro
e distorcido caractere, em Synecdoque, New York, filme escrito e dirigido por
Charlie Kaufman, vislumbramos de maneira efetiva o montar e desmontar
dessa matrioshka: o surgimento da marionete-sociedade4. Uma ampliação do
conceito de marionete-personagem, que no cinema ganha contornos grandi-
loquentes, com um nível de dificuldade alto de se colocar em prática no teatro.
Aqui, em uma aglutinação de marionetes-personagens, temos o surgimento
de uma sociedade ficcional, com as mesmas lógicas de funcionamento da
sociedade assentada no escopo da ficção. É através da representação pela
diferença de todos os personagens envolvidos na trama que Kaufman busca
desenhar sua dramaturgia. E será no trânsito entre as duas ou mais socieda-
des fictícias – a original e suas marionetes – que a dízima periódica apontada
anteriormente se dará.
4. A imagem da marionete já aparece em outro filme de Kaufman, Quero ser John Malkovi-ch, no qual a personagem principal e condutora de marionetes, curiosamente, chama-se Craig.
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Mas se pensarmos que são inumeráveis os fatores que influenciam o
funcionamento de uma sociedade, como desenhar uma marionete que a re-
presente? Em Synecdoque, depois de assistir ao filme algumas vezes, tenho
a impressão de que os elementos todos que influenciam aquela sociedade
ficcional foram marionetizados. Como? Kaufman fatia as diversas camadas
existentes dentro de cada uma das peças para construir novas marionetes
nas etapas de separação. Por exemplo, no princípio a cidade ganha uma
marionete, no entanto, uma casa da cidade original também gera uma outra
marionete, assim como a casa da marionete-cidade anteriormente construí-
da. Há aqui um jogo de lentes – um zoom de aproximação e afastamento. Ou,
como nos fala Deleuze (2000), a repetição gerando seu próprio fundamento
– as nuvens nos surpreendendo com raios.
O que acontece é que ao utilizar essas diversas marionetes de dife-
rentes tempos e espaços na mesma linha narrativa, Kaufman amplia para o
infinito o leque de interações, incrivelmente ainda dentro de uma estrutura
dramática do possível. Ou seja, diferentemente de Ninguém falou que seria
fácil, onde o jogo entre marionete e objeto tende para o absurdo, em Syne-
cdoque, esse jogo aparenta ser dialético. As ações, embora estejam nesse
campo da marionete-personagem, ainda possuem um diálogo entre o que se
passou e a ação presente. Temos a impressão do começo-meio-e-fim. E isso
ocorre pela constituição ao longo da obra de uma falsa capa épica centrada
na condução de marionetes realizada pela personagem principal. Tudo leva a
crer que a história nos coloca um grande evento teatral de gigantesca propor-
ção (uma peça materializando a totalidade da vida em Nova York) distanciado
do microcosmo do protagonista, para, ao fim, nos revelar que, na verdade,
tratava-se, enfim, da singularidade deste indivíduo.
É através do filtro desta personagem que as marionetes-personagens se
aglutinam para, finalmente, formar uma marionete-sociedade. Assim, o que
parece ser um mundo à parte, um salto épico, é na verdade um pedaço da
personagem central, uma sinédoque (figura de linguagem que representa a
parte pelo todo). Caden Cotard, interpretado no filme por Philip Seymour Ho-
ffman, serve como centro magnético do funcionamento dessa marionete-so-
ciedade. Os elementos contidos nela só funcionam como marionetes a partir
do momento em que entendemos serem eles reflexos existenciais de Cotard.
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A metáfora da matrioshka animada pelo logos como princípio criador de dramaturgias
Mesmo o tempo transcorre em sua função; o diário de sua filha é preenchido
por seus pensamentos, e a televisão transmite sinais de sua hipocondria.
Tudo está contido em Caden e ao mesmo tempo fora de Caden. Não por
acaso Cotard, em certo momento do filme, cogita dar o nome a sua peça de
“simulacro”.
Em uma visão deleuziana, simulacro seria justamente aquele momen-
to supostamente equivocado da representação na consciência – a diferença
pura – daquilo que não faz parte do invólucro sedimentado da ideia platônica
e que, portanto, não corresponderia ao DNA da identidade.
Platão tentava disciplinar o eterno retorno, fazendo dele um efeito das Ideias, isto é, fazendo com que ele copiasse um modelo. Mas, no movi-mento infinito da semelhança degradada, de cópia em cópia, atingimos este ponto em que tudo muda de natureza, em que a própria cópia se re-verte em simulacro, em que a semelhança, em que a imitação espiritual, enfim, dá lugar a repetição. (DELEUZE, 2000, p. 223)
É a perfeita imagem da matrioshka desmontada, agora animada pelos
afetos do protagonista.
No entanto, no decorrer do filme, a própria personagem se torna uma
marionete conduzida por outro. Aqui sim, numa virada épica, entendemos por
que aos poucos Caden perde a capacidade de chorar (ele utiliza lágrima arti-
ficial para isso) e de salivar. É adicionada uma camada a mais ao fato dele ter
obsessão por limpeza – é que agora ele, como uma marionete, é conduzido
por uma faxineira chamada Ellen. Kaufman brinca com as bonecas contidas
na matrioshka. Ele as reposiciona, muda de lugar. A menor, a última, agora se
torna a condutora dos afetos da maior. Contudo, esse movimento nos aparen-
ta não ser ocasional. Desconfiamos dele, como desconfiamos dos sinais da
vida. Assim como em Craig, há um flerte dessa obra com as sutilezas da na-
tureza humana. A fuga do real acaba se contaminando do real. E assim como
em Craig, Caden fracassa em sua tentativa de montar um espetáculo com a
sua visão artística. É curioso pensarmos que esse paralelo vai além: de acor-
do com Daniel Shaw, segundo os críticos do filme, esse fracasso também se
daria na construção do filme como processo5.
5. No original: “He spends the next forty years (and the second half of the movie) trying to
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O terreno liso da marionete-sociedade
O trunfo dramatúrgico de Synecdoque está na indiscernibilida-
de da sua cama de sentido. Cama de sentido que nos permitiria, por
exemplo, reinterpretar um sonho. Ou seja, um lugar posterior ao que foi
sonhado de reposicionamento de acontecimentos puros. No entanto,
no filme de Kaufman não sabemos os limites do que nos é imposto. Ele
não justifica os fenômenos da obra, e esses fenômenos não são vistos
como fenômenos pelas personagens (como na ficção cientifica, por
exemplo) – tudo é incorporado à lógica dramática da narrativa. Essa in-
discernibilidade da cama de sentido nos permite, por exemplo, ter ver-
sões múltiplas dos acontecimentos, assim como permite ao autor ter
uma incrível diversidade de opções interacionais entre os elementos.
Por exemplo, a casa que fica em chamas o filme inteiro, onde mora
Hazel, a bilheteira, pode ser interpretada como reflexo dos sentimentos
do protagonista pelo seu objeto de desejo. Ao mesmo tempo, no último
terço do filme, a personagem morre literalmente asfixiada pela inalação
constante da fumaça de sua residência em chamas, o que também po-
deria ser interpretado metaforicamente como a personagem sufocada
pelo próprio desejo. Essas camadas metafóricas e o trânsito que elas
promovem entre uma interpretação poética e uma outra ao pé da letra
fazem com que desconfiemos das situações, ao passo que precisamos
delas para que o filme ganhe algum contorno narrativo. O que acontece
– e essa é a estratégia principal da dramaturgia de Synedocque – é que
o filme dilui pouco a pouco suas perspectivas metafóricas pela afirmação
da diferença. O campo reflexivo, que poderia nos ser dado pelas metáfo-
ras, é borrado e transformado em território movediço pela asseveração
do simulacro que é criado momento após momento pela personagem
principal. Esse simulacro se mistura a uma outra camada do possível –
entrelaçados, formam juntos a areia movediça da diferença a todo custo
–, a metáfora é cegada pelo punhal da falta de limites.
do so, and fails miserably. According to critical consensus, Kaufman’s film also becomes a failure in the process.” (LARROCA, 2011, p. 264)
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A metáfora da matrioshka animada pelo logos como princípio criador de dramaturgias
A repetição de Caden Cotard e a diferença de Charlie Kaufman
Cotard busca se repetir. Busca algo que ficou perdido em um momento
ou outro de sua própria vida. Mas Kaufman, o seu criador, diz “sim” à diferen-
ça. As marionetes acompanham Caden e o colocam sempre em uma nova
perspectiva, embora a personagem procure também o enclausuramento da
repetição. É como em um ensaio de teatro de uma peça que nunca se realiza
– esta é a própria narrativa do filme – no qual novas evidências são colocadas
hora após hora pelos atores. Esse também é o modus vivendi de Cotard na
busca de sentidos concernentes à aceitação do fim de seu relacionamento
com sua primeira esposa. O conflito se encontra na falta de saída que ele
forja a si mesmo, gerando ainda mais repetições e mais situações nas quais
as marionetes possam interagir. É interessante percebermos que isso se dá
com a própria fruição do filme. Engendrando esconderijos visuais e lógicos, a
obra se revela muito diferente cada vez que a assistimos6.
Caden, a cada parte do filme, anuncia um novo título para a sua obra
teatral que nunca estreia. O mote, que se repete obsessivamente, possui as
modulações em que a personagem vive em determinado momento. E ela se
repete sempre em atraso ao que está acontecendo – em posição contemplati-
va. Sua função de marionete parece ser a de demarcar um final que já foi fina-
lizado através de outras repetições – e isso está contido no próprio processo
de criação de Kaufman, como ele nos fala em entrevista contida em Larroca:
A linguagem sempre nos coloca em cena tarde demais. “Para viver onde realmente estamos” parece ser algo pressuposto – a coisa mais fácil do mundo - e em certo sentido o é. Porque nós somos criaturas de linguagem, no entanto, nada é mais difícil. “Eu luto muito com isso quando eu estou es-crevendo”, conclui Kaufman, “porque as minhas coisas tendem a ser muito prolixas. Eu gosto de palavras”.7 (LARROCA, 2011, p. 252, tradução minha)
6. No mínimo instigante descobrir, após algumas assistidas, que a marionete que repre-sentará Cotard sempre esteve escondida no filme observando sua inspiração. Ou que o tempo, em Synedoque, atravessa meses, anos em uma sequência de diálogo.
7. No original: “Language always puts us on the scene too late. “To live where we really are” would seem to be a given—the easiest thing in the world—and in a sense it is. Because we are creatures of language, however, nothing is more difficult. “I struggle with that a lot when I’m writing,” Kaufman concludes, “because my things tend to be very wordy. I like words.”
Alexandre Gil França
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Por outro lado, quando o logos é acionado, uma outra boneca surge da
matrioshka pronta para ser animada. Isso se dá à exaustão, mas parece ter
uma pilha. Quando a personagem se sente cansada, quando o logos parece
não fazer mais sentido em animar marionetes, uma outra personagem (antes
uma marionete-personagem) a conduz até o seu falecimento que é a própria
representação da morte do condutor: a faxineira Helen. Aqui, mais uma vez,
pela via deleuziana, presenciamos uma aproximação contemporânea com as
ideias de Craig. Uma aproximação ontológica. O sentido das marionetes-so-
ciedades, que no fundo passeiam de acordo com o centro magnético da per-
sonagem principal, flerta com a constituição do sujeito no social, ou melhor,
com sua singularidade primeva conduzida por sujeitos. Se em Craig, há uma
procura por uma essência do homem, em Synecdoque essa procura se dá
através de um movimento ondular – primeiro pelo acúmulo de fragmentos de
sujeitos em uma singularidade; depois pelo esvaziamento destes fragmentos
– a morte de Caden carrega, no DNA de sua existência, todos os que fizeram
parte de sua sinédoque existencial.
Marionete-sociedade e teatro relacional
Levando em consideração que o ponto abordado neste artigo sempre
esteve conectado às interações (interações de obras, de personagens, ma-
rionetes), um passo adiante em termos de um outro tipo de realização seria
o do teatro relacional (de uma estrutura na qual o público também participe
da ação) acoplado a essa ideia de marionete-sociedade, como Felipe Rocha
já fez em relação à marionete-personagem (no texto, Rocha explica que a
construção da dramaturgia foi completada durante o processo, e, em alguns
momentos da obra, as personagens interagem com a plateia). Em termos
de multiplicação de possibilidades, a interação entre os atores e a plateia,
e mesmo durante a construção do espetáculo (tomando a marionete-perso-
nagem, por exemplo, como um caminho a ser percorrido), elevaria o nível
de estratégias dramatúrgicas a serem utilizadas pelos participantes do jogo
teatral. Essa é uma questão que, se colocada em prática, certamente será um
desafio para futuros artistas da cena. A encenação da marionete-sociedade
em uma estrutura de teatro relacional certamente é um tema de largo alcan-
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A metáfora da matrioshka animada pelo logos como princípio criador de dramaturgias
ce, tanto de referenciais filosóficos quanto teatrais, que nos pede um tempo a
mais de estudo e empenho, e que pode abrir múltiplas possibilidades em um
novo campo de criação artística.
Referências bibliográficas
BABLET, D. The theatre of Edward Gordon Craig. Londres: Eyre Methuen, 1981.
CRAIG, Edward Gordon. Da arte do teatro. Tradução Redondo Júnior. 2 ed. Amado-
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DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D’Água, 2000.
_______. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs, vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.
KLEIST, H. Sobre o teatro de marionetes. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1997.
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NEWMAN, L. M. (org.). Edward Gordon Craig: black figures. Wellingborough:
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SINEDÓQUE, Nova York. Direção de Charlie Kaufman. 2009, 123 min.
Recebido em 10/08/2015
Aprovado em 30/09/2015
Publicado em 21/12/2015