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Na história da urbanização da cidade do Salvador, os anos de 1890 a 1940 correspondem a uma fase de modernização ligada à expansão dos investimentos estrangeiros e do comércio interno. Paradoxalmente, tal modernização, marcada por algumas inovações urbanísticas, trouxe consigo o agravamento de problemas habitacionais, não solucionados ao longo do período e revelados na oferta de imóveis residenciais, na qualidade e no preço da moradia No final do século XIX, a cidade do Salvador era um dos maiores centros urbanos do Brasil. Além de sede político-administrativa era, ao mesmo tempo, capital de um estado dotado de características multirregionais 1 . Mesmo sem ter acompanhado o ritmo de certas transformações que se operavam no centro-sul do país, a Bahia, graças a uma produção diversificada de artigos tropicais, também se integrava na estrutura capitalista internacional, o que lhe assegurava uma dupla condição: intercâmbio comercial contínuo com mercados mundiais e possibilidade de tornar-se campo de investimentos de capitais estrangeiros. O escoamento da produção agromercantil fazia-se pelo porto de Salvador, um dos primeiros do Brasil, cujo movimento só era superado pelos do Rio e de Santos. Por outro lado, as próprias deficiências regionais de produção de subsistência e de bens de consumo industrializados alimentavam o fluxo de importações. Isto estimulava uma expansão do comércio em todos os seus níveis e ramos. Paralelamente à expansão do comércio interno, dava-se o avanço do capitalismo internacional sob formas variadas. Em virtude da descentralização republicana, foi possível a governos estaduais, como o da Bahl..l, e municipais, como o de Salvador, negociar em suas esferas com grupos internacionais. Disto resultaram investimentos estrangeiros que foram utilizados pelos poderes públicos para a realização de obras e serviços, enquanto também se adotava a forma mais direta de entregar a grupos externos a implantação e exploração de outros encargos urbanísticos. Nesse momento, a ampliação do comércio interno pressionava no sentido da expansão física da cidade e de sua modernização urbanística. O ingresso do capital estrangeiro tornava-as viáveis. Foi assim que, na última década do século XIX, Salvador ingressou em um novo momento de seu processo de urbanização, que se estenderia até o início dos anos quarenta do século XX. Não pretendemos avançar em uma discussão acerca da periodização aqui estabelecida. Todavia vale ressaltar que as balizas não são arbitrárias, não seguem meramente uma cronologia convencional e podem ser justificadas.

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  • Na histria da urbanizao da cidade do Salvador, os anos de 1890 a1940 correspondem a uma fase de modernizao ligada expanso dosinvestimentos estrangeiros e do comrcio interno. Paradoxalmente, talmodernizao, marcada por algumas inovaes urbansticas, trouxeconsigo o agravamento de problemas habitacionais, no solucionadosao longo do perodo e revelados na oferta de imveis residenciais, naqualidade e no preo da moradia

    No final do sculo XIX, a cidade do Salvador era um dos maiores centros urbanos doBrasil. Alm de sede poltico-administrativa era, ao mesmo tempo, capital de um estadodotado de caractersticas multirregionais1.

    Mesmo sem ter acompanhado o ritmo de certas transformaes que se operavam nocentro-sul do pas, a Bahia, graas a uma produo diversificada de artigos tropicais, tambmse integrava na estrutura capitalista internacional, o que lhe assegurava uma dupla condio:intercmbio comercial contnuo com mercados mundiais e possibilidade de tornar-se campode investimentos de capitais estrangeiros.

    O escoamento da produo agromercantil fazia-se pelo porto de Salvador, um dosprimeiros do Brasil, cujo movimento s era superado pelos do Rio e de Santos. Por outrolado, as prprias deficincias regionais de produo de subsistncia e de bens de consumoindustrializados alimentavam o fluxo de importaes. Isto estimulava uma expanso docomrcio em todos os seus nveis e ramos.

    Paralelamente expanso do comrcio interno, dava-se o avano do capitalismointernacional sob formas variadas. Em virtude da descentralizao republicana, foi possvel agovernos estaduais, como o da Bahl..l, e municipais, como o de Salvador, negociar em suasesferas com grupos internacionais. Disto resultaram investimentos estrangeiros que foramutilizados pelos poderes pblicos para a realizao de obras e servios, enquanto tambm seadotava a forma mais direta de entregar a grupos externos a implantao e explorao deoutros encargos urbansticos.

    Nesse momento, a ampliao do comrcio interno pressionava no sentido daexpanso fsica da cidade e de sua modernizao urbanstica. O ingresso do capitalestrangeiro tornava-as viveis. Foi assim que, na ltima dcada do sculo XIX, Salvadoringressou em um novo momento de seu processo de urbanizao, que se estenderia at oincio dos anos quarenta do sculo XX.

    No pretendemos avanar em uma discusso acerca da periodizao aquiestabelecida. Todavia vale ressaltar que as balizas no so arbitrrias, no seguemmeramente uma cronologia convencional e podem ser justificadas.

  • o ano de 1890 est obviamente ligado ao incio do regime republicano, que trouxeconsigo as conhecidas inovaes polticas, das quais algumas repercusses econmicasforam mencionadas linhas atrs. Alm disso, a prpria economia agroexportadora ingressouem uma fase de ascenso, acompanhando a tendncia do mundo capitalista.

    A baliza final de 1940 um marco mais fluido, principalmente porque no se associaa um fato to marcante quanto a passagem do Imprio Repblica. Contudo possvelapontar para a segunda metade dos anos quarenta modificaes significativas, sendoalgumas j visveis at mesmo na primeira metade da dcada. Podem ser mencionados o fimda depresso econmica dos anos 30 e o incio do perodo da 21Guerra Mundial, ao cabo daqual ocorreram inovaes em vrios aspectos da vida da cidade2 .

    Destaque deve ser dado ao dinamismo demogrfico que sucedeu estagnao daPrimeira Repblica e da dcada de 30. Tal dinamismo seria revelado no censo de 1950,tanto do ponto de vista do nmero total de habitantes quanto do ponto de vista dacomposio populacional. De 1940 a 1950 a populao da cidade cresceu em 44%,enquanto de 1920 a 1940 fizera-o em apenas 2%. Quanto renovao populacional, estaficou por conta dos imigrantes egressos do mundo rural: dos 126.792 habitantes que o censode 1950 acrescentou ao de 1940, 89.671 (70%) provinham de fora da capital. Nada decomparvel ocorrera de 1890 a 1940, quando a cidade praticamente no recebera imigrantesde qualquer procedncia3 .

    Ainda como elementos que marcam o fecho de um momento podem ser tomadasalgumas inovaes urbansticas ocorridas no centro e em outros pontos da cidade. Ogegrafo Milton Santos, fixando em 1940 o incio de um novo perodo na "evoluo urbana"de Salvador, menciona transformaes mais sensveis na paisagem, tais como opreenchimento de grandes espaos vazios na Cidade Baixa mediante a construo deprdios de mais de seis andares, a derrubada de prdios mais antigos e a abertura de largasavenidas. Na Cidade Alta tambm houve modificaes similares, sendo que, neste ponto, asdemolies atingiram tambm prdios construdos entre 1890 e 1940. Estes eram edifciosde quatro a seis andares, que o autor denomina de "casas de meia-idadti'4.

    Assim, fixamos o momento de 1890 a 1940 como uma etapa no processo deurbanizao de Salvador. As caractersticas desta etapa foram expanso fsica emodernizao urbanstica ligadas ao crescimento vegetativo da populao, expanso docomrcio local e aos investimentos extemos j mencionados.

    A expanso fsica revela-se na ocupao gradual de novas reas e demonstra-semais precisamente no nmero de prdios existentes: dos 14.698 do ano de 1893, pasSOU-!leaos 44.610 de 19405. No bojo desta expanso, o antigo centro da cidade tornava-se cadavez mais uma rea administrativa e de negcios e na qual as habitaes residenciaisdegradavam-se material e socialmente.

    A expanso do comrcio impelia abertura de novas reas residenciais distantes docentro. Para tais reas dirigiam-se principalmente os grandes comerciantes exportadores eimportadores. Outros pontos seriam ocupados pelo proletariado heterodxo que sedispersava pela cidade. Este segmento, apesar de ainda permanecer em zonas centrais,passou a criar novos aglomerados habitacionais. Isto, em hiptese, explicaria o grandecrescimento do distrito de Santo Antnio: com 2.359 edificaes em 1893, j apresentavaum total de 13.301 em 1940.

    Algo a se considerar sobre o proletariado que o perodo observado seguiu-seimediatamente extino do trabalho escravo. Tal fato pode ter ocasionado umamovimentao da massa liberta, uma parte da qual passaria a habitar zonas prprias,

  • localizveis principalmente nos distritos de Santo Antnio, Vitria e Brotas. Estes eram os demaiores reas verdes, aptos, portanto, a ser explorados mais livremente. Ter-se-ia, destaforma, o incio de bairros proletrios como o da Liberdade (distrito de Santo Antnio).

    Outra inovao desta etapa o surgimento de vilas operrias, embora elas nochegassem a se constituir modelo de habitao do proletariado, mesmo porque seusegmento fabril ainda era numericamente pouco significativo no conjunto.

    Traos caractersticos da modernizao urbanstica foram a implantao de serviosde canalizao de guas e esgotos, eletrificao em geral e telefonia. Introduziram-se novosveculos, como o automvel e o bonde eltrico.

    Para atender s necessidades do trfego de novos veculos, assim como a outrasimposies, a cidade ia perdendo algo de sua fisionomia "antiga". Cortavam-se ederrubavam-se velhas casas e casares para abertura e alargamento de ruas e para fins desaneamento.

    Nos anos vinte, apareceu um novo tipo de construo: o prdio de cimento armado.Os sobrados coloniais e do sculo XIX passaram a ser superados como unidades prediais demais de um pavimento. Apareceram construes de at seis andares a contar do trreo.Dentre as excees estavam um edifcio na Rua Chile e um na Praa Castro Alves, de oito esete andares.

    Nesta etapa de meio sculo, o ritmo da expanso urbana no foi constante. Houvemomentos mais dinmicos e outros mais lentos.

    O primeiro impulso urbanstico significativo foi o de 1906, ligado ao incio das obras doporto, que geraram a construo de 300 metros de cais, trs armazns e ruas pavimentadasnas adjacncias. O segundo foi o de 1910, quando se preparou a cidade para festejar oprimeiro centenrio da Associao Comercial: calamento de ruas, construo da AvenidaJequitaia e saneamento do bairro comerciai para livrar a cidade dos assaltos de febreamarela e peste bubnica, o que implicou a demolio de prdios dos distritos da Conceioe do Pilar.

    Um grande momento deu-se no primeiro governo de Seabra (1912-1916):alargamento de ruas da Cidade Baixa, abertura da Avenida Sete de Setembro como principalvia da Cidade Alta e construo da Avenida Ocenica para ligar a Barra a Amaralina.

    Houve uma desacelerao do ritmo nos anos de 1917 a 1923, perodo de guerra eps-guerra. Por isto, tornou-se difcil .mportar materiais de construo e capitais. Em 1921, aseconomias agroexportadoras sofreram duro golpe com a crise de reconverso da economiade guerra para a economia de paz na Europa, e, assim, para Salvador, foram escassas aspossibilidades de renovao urbanstica. J em 1924, retomada a curva econmica geralascendente, recuperou-se o ritmo anterior, do que um bom exemplo a construo do entochamado bairro das Naes (Rua da Grcia, Avenida da Frana, Praa da Inglaterra, etc.),na Cidade Baixa, em terrenos ganhos ao mar.

    Finalmente, caracterstica marcante desta etapa o lento crescimento demogrfico deSalvador. Os efetivos populacionais conferidos pelos recenseamentos oficiais nos permitemcalcular para 1890/1940 a taxa de 66,53% no incremento demogrfico. Este aumento insignificante para o espao de meio sculo, principalmente se considerarmos os do Rio eSo Paulo no mesmo perodo e o da prpria Salvador de 1940 em d,iante.

    Um movimento demogrfico to lento pode ser atribudo basicamente a dois fatores:as elevadas taxas de mortalidade e as entradas de imigrante quase nulas. A mortalidade emSalvador conheceu taxas elevadas, num coeficiente mdio de 20 por 1.000 no perodo de

  • 1890/1930. Nos anos de 1897 a 1919, as epidemias de varola fizeram o coeficienteaumentar para 34 e 28 respectivamente.

    As migraes para Salvador foram insignificantes. De 1890 a 1940 os ingressos deimigrantes, quer do exterior, quer de outros estados do Brasil ou mesmo da Bahia, foramextremamente baixos. A associao deste fator s elevadas taxas de mortalidade s nocausou o decrscimo populacional de Salvador por causa de uma forte natalidade6.

    Apesar de um to evidente marasmo demogrfico, a capital baiana passou pordificuldades que so mais comumente vividas por centros urbanos que conhecem grandesaumentos populacionais: os problemas de habitao.

    As questes habitacionais de Salvador, tal como aparecem neste momento da histriada cidade, tinham estreita vinculao com os elementos que apontamos no quadro geral daurbanizao. A ligao mais direta, ou a mais visvel, , porm, com a expanso do comrciointemo. Este ser o aspecto que agora iremos explorar.

    Em certas reas da cidade, deu-se uma expulso contnua dos moradores em favordo comrcio. Muitas unidades prediais deixaram de ser residncias para se tornaremestabelecimentos de negcios. Isto se deu com regularidade em distritos centrais como S,Conceio e Pilar.

    e distrito da S conservava sua antiga posio de centro administrativo e se tornavacada vez mais centro de negcios, onde se localizava a maioria das casas comerciais avarejo, de tecidos, de modas, etc. A tambm estavam muitos escritrios de advogados econsultrios mdicos. Como um prolongamento da S, o distrito de So Pedro j iarecebendo um afluxo dessas atividades, no perdendo' ainda, porm, sua fisionomiaresidencial.

    Na Conceio e no Pilar ficavam as instalaes porturias, trapiches, grandesarmazns e depsitos das maiores firmas de negcios em grosso. Na Rua ConselheiroSaraiva (Conceio) concentravam-se muitos consultrios mdicos e bancas de advogado,as maiores agncias bancrias e de companhias de seguro. No Largo das Princesas(Conceio) estavam os escritrios dos despachantes aduaneiros. Em outros distritoscentrais, como Santana e Nazar, os negcios limitavam-se praticamente ao pequenonegcio retalhista, principalmente de gneros alimentfcios.

    Se relacionarmos o nmero de prdios ao de casas de negcio existentes em cadadistrito, verificaremos que, nos centrais, elas tenderam a ocupar um espao cada vez maiorno perodo (ver quadro).

    Nos distritos de Conceio, S e So Pedro, a tendncia notvel para a reduo dasunidades prediais foi acompanhada de um aumento considervel dos estabelecimentos. NoPasso, assistiu-se estagnao das primeiras e quase quadruplicao dos segundos. NoPilar, parece ter havido um certo equilbrio. Nazar e Santana preservaram-se -comopredominantemente residenciais e, nesta condio, cresceram, de modo limitado suacondio de distritos centrais.

    Nos distritos perifricos deu-se o inverso: por serem reas abertas expansoQimitadosvagamente pelas grandes reas verdes at os confins da cidade) sustentaram ocrescimento predial da cidade.

  • DISTRITOS CENTRAIS DISTRITOS PERIFRICOS

    ANOS CONCEiO PILAR S PAOS.PEDRO SANTANA NAZAR MARES PENHA VITRIA BROTAS S.ANTNIO

    P N P N P N P N P N P N P N P N P N P N P N P N1895 471 711 837 270 1006 150 642 94 1939 131 2481 101 - - 703 55 1558 84 2072 82 1114 34 2527 1111900 473 822 897 343 1014 228 590 191 1951 183 1646 90 9n 57 1098 77 1863 104 2720 119 1320 62 2910 1421905 468 850 899 366 1027 469 655 199 1958 266 1621 105 1058 76 1184 85 1950 119 2984 154 1425 66 3069 1711910 471 814 984 389 1036 352 650 270 1950 218 1643 108 1110 83 1539 118 2408 148 3759 179 1749 71 3750 2181915 453 901 1043 394 974 307 639 289 1862 221 1712 99 1145 100 1644 135 2534 136 3952 192 2463 93 4162 2481920 425 988 1002 453 951 410 648 320 1831 305 1722 109 1174 93 ln4 152 2528 133 4270 202 2607 84 5506 2311925 424 1060 1039 394 966 518 663 365 1846 310 1764 121 1231 84 2080 155 2702 145 4819 202 2967 88 6355 2411930 436 1090 1070 424 949 684 684 342 1864 306 1822 119 1290 89 2411 180 2904 137 5332 221 3448 108 7110 284

    P(PRDIOS)N (NEGCiOS)

    Fontes: Dapartamento de Tributos Imobilirios de Salvador. Livro de cadastro Imobilirio,Livros dos 12 distritos urbanos, anos indicados.

    Arquivo Pblico do Estado da Bahia. Arrolamento das casas de neg6cio, Livros dos12 distritos urbanos, anos indicados.

    Obs: O distrito de Nazar foi desmembrado do de Santana pela Lei Municipal nll 310, de 30.10.1897.

  • Mas como foi possvel o crescimento de estabelecimentos comerciaissimultaneamente reduo do nmero de prdios nos distritos centrais? De duas formasinterligadas: subdiviso contnua dos edifcios e transferncia dos moradores de renda maiselevada para outras reas da cidade.

    Assim, uma zona central, que inclua o bairro comercial (Conceio e Pilar), distritosda S e Passo e parte do de So Pedro, tornou-se caracteristicamente de negcios e deresidncias de baixa qualidade. O comrcio criava formas peculiares de habitao e atcondies esdrxulas de acomodao pessoal nas moradias.

    No sculo XIX, constitura-se o conhecido uso de se dividirem os sobradospertencentes a comerciantes entre o negcio no trreo, a habitao do proprietrio noprimeiro andar, a dos empregados no segundo ou demais se houvesse. A prtica no eraexclusiva de Salvador, mas tambm seguida em outros pontos como Rio e Recife. EmSalvador, ainda se usava essa compartimentao dos sobrados at os anos vinte destesculo, principalmente entre os comerciantes portugueses, alguns dos quais j se haviammudado residencialmente para bairros dos distritos perifricos. Mantinham-se nos sobrados,nestes casos, apenas os empregados.

    Outra "instalao que se dava aos empregados do comrcio era a dormida sobrefardos de mercadorias, no prprio recinto do negcio, encerrado o expediente. Algunscomerciantes j comeavam a fazer adaptaes do espao a estas formas extremas deexplorao da mo-de-obra. Era o aluguel de casas apropriadas a negcio, na qual o saloda frente tinha armao e balco. Sobre o balco havia "um compartimento ou andarzinho demadeira para a dormida7. O empilhamento de empregados em prateleiras acima do balcod uma certa medida do quanto o comrcio pressionava contra a qualidade da habitao nacidade.

    Os sobrados de dois, trs ou mais andares, perdendo sua anterior funo de unidadehabitacional, multiplicavam-se em vrias unidades de negcio e de residncia, subdivididosdesde o subsolo at o sto. s vezes, um pavimento ainda se subdividia em cmodos,"quartos e "partes de andar para serem alugados a diferentes inquilinos.

    Os grandes e pequenos sobrados sofreram alteraes em suas fachadas, de modoque, dos pavimentos trreos, desapareciam as janelas, e as paredes eram vazadas emportas e mais portas. Eram as casas de negcio que se iam expandindo e, assim,determinando uma nova fisionomia s edificaes dos sculos XVIII e XIX. Mas os novostempos no se impunham apenas s fachadas. Tornava-se crucial o problema da habitao.

    Se alguns poucos privilegiados puderam abandonar o centro, instalando-se em novasreas onde construram seus palacetes, a exemplo do que fizeram os comerciantesportugueses no Campo Grande, Corredor da Vitria, Barra, BarraAvenida e Graa, um largosetor da populao ainda se via obrigado a residir no vf>Ihocentro, porque este oferecia asvantagens de uma maior proximidade dos locais de trabalho e aluguis mais acessveis porfora da depreciao da rea.

    Mas os negcios se ampliavam, e as residncias tinham de ceder-Ihes lugar. Oagravamento da falta de casas para morar chegou ao ponto de em 1924, o ConselhoMunicipal exigir que os prdios a serem construidos tivessem, pelo menos, um pavimentoresidencial e que os trreos dos existentes, se transformados em estabelecimentos denegcio, ganhassem o acrscimo de um pavimento superior para moradiaS.Neste mesmoano, dizia o Dirio da Bahia, as poucas edificaes que se faziam no eram aproveitadaspelas "clas~s pobres. O aluguel tornava-se mais difcil porque os proprietrios j fixavam onmero de moradores para cada imvel e no aceitavam crianas9.

  • A carncia de habitaes em Salvador matria de que se ocuparam intendentes e,conselheiros municipais nas falas oficiais. Aparecia como tema de estudo de tesesacadmicas e como objeto de artigos jornallsticos. Mas as solu~es propostas pelaadministrao pblica e por grupos profissionais foram todas ineficazes 0.

    A elevao do custo dos aluguis um dos indicadores mais importantes dosproblemas no setor habitacional da cidade. O acompanhamento dos preos de locao dosimveis da Santa casa de Misericrdia, que detinha umdos maiores patrimnios imobiliriosde Salvador, pode ser aqui tomado como procedimentode amostragem.

    Uma vez que no eram disciplinadas por legislao alguma, as majoraes dosaluguis eram feitas livremente pela Santa Casa de Misericrdia, tomando em consideraoas despesas que realizava para manter os prdios ou as compensaes que buscava pelasperdas de imveis nos surtos de urbanizao11.

    Os maiores percentuais de aumento comeam a ocorrer da 11Guerra em diante,quando se acentuavam os problemas de moradia. J ento, inquilinos de prdios localizadosna Cidade Alta no ousavam pedir Santa Casa reparos indispensveis sob temor dereviso do aluguel. s vezes, alguns propunham realizar as obras e manter os mesmospreos, mas a locadora no o permitia: fazia os trabalhos por sua conta e, em seguida,elevava os preos. o relatrio do provedor que informa sobre um prdio na Rua Nova deSo Bento, "inabitver segundo ele prprio: o inquilino no obteve permisso para financiaras obras, e a Santa Casa as realizou, passando o aluguel, que era de 175, a 300 mil-rismensais. O contrato foi transferido, uma vez que o ocupante do imvel no pde enfrentar oaument012.

    J ento, a Santa casa no conseguia alugar prdios grandes a um s inquilino, mastinha de subdividi-Ios. s vezes, os que j estavam alugados por inteiro eram sublocadospelo locatrio da irmandade.

    No binio 1919/1920, as majoraes eram justificadas no relatrio do provedor nopelas despesas de manuteno, mas pela necessidade de acompanhar a curva inflacionriade preos de artigos de consumo e fazer face s atividades assistenciais. Mas o prprio fatode que grande parte dos imveis da Santa casa localizava-se na S e na Conceio, deonde o comrcio ia expulsando as residncias, fazia com que os aluguis dasremanescenteS'passassem a ser revistos em compasso com os dos imveis destinados anegcios.

    Sem dvida, os melhores inquilinos eram os comerciantes porque suportavam osaumentos e pagavam em dia. Exemplar o caso de uma loja (pavimentodo subsolo) situadana Rua do Aouguinho (S): foi alugada para fins residenciais de 1890 at outubro de 1914;daI at dezembro de 1920, ficou sem inquilino, quando foi alugada a uma firma comercial porum preo 156% superior ao vigente em 1914; em 1927, a locao foi majorada em 250% e,em 1930, em 300%; de 1920 a 1930, manteve-se o mesmo locatrio comerciante13.

    Os aumentos de preos ligados manuteno dos prdios e s melhorias dainfra-estrutura urbana apontam para o fato de terem os inquilinos de baixa renda procuradohabitaes cada vez piores. Assim, paradoxalmente, enquanto se realizavam algunsprogressos da urbanizao, por fora deles mesmos, a moradia de grande parte dapopulao permanecia de pssima qualidade.

    A partir da observao de alguns testemunhos podemos recompor alguns traos dahabitao de boa parte dos habitantes da cidade. Nas reas centrais, localizavam-se ossobrados de dois, trs ou mais andares. Sua construo no obedecia a normas que

  • impusessem uma proporcionalidade entre a largura das ruas e a altura dos prdios, de modoque se formavam corredores mal iluminados e mal arejados. Iv? vezes, entre dois sobradosaltos comprimia-se uma casa trrea.

    Quando os sobrados comearam a ser sublocados, passaram a abrigar um nmerocrescente de habitantes por metro quadrado, acentuando-se a precariedade de renovao doar, mormente se levarmos em conta que havia cmodos sem janelas ou respiradouros dequalquer espcie. Isto obrigava os moradores ao emprego de iluminao artificial a qualquerhora do dia pela falta de luz natural.

    A limpeza do piso de madeira tornava-se uma operao extremamente diffcil, uma vezque a lavagem implicava molhar o andar inferior. As cozinhas careciam de ar e de luz e eramenegrecidas pela fumaa e pela gordura. Os banheiros, quando havia, em geral tinhamrecipientes de madeira, ao invs de alvenaria, para armazenar gua, o que facilitava apropagao de doenas de origem parasitria. Muito comum era a ausncia de vasossanitrios, substituidos por buracos nos quintais onde se lanavam os despejos, quando nodiretamente nas ruas.

    Nos sobrados havia ainda o andar do subsolo, abaixo do nivel da rua, acompanhandoo declive dos terrenos: era a loja. Aqui, se agravavam as precariedades observadas nosandares superiores: o mximo de aerao e iluminao se fazia atravs de pequenasaberturas que tocavam o piso das ruas - os "culos". As lojas no dispunham de guaencanada nem de instalaes sanitrias de espcie alguma.

    Em muitos becos e travessas, s vezes entre dois sobrados, havia as chamadas"casinhas" que, escorando-se umas nas outras, sem paredes prprias, formavam as"avenidas". Eram casas de porta e janela, ou s porta, sem sada para os fundos, sendo,justamente, uma parede lateral do sobrado.

    A falta de paredes prprias era um dos grandes obstculos aplicao das medidasde higiene pblica: nelas era impossvel pr-se em prtica o isolamento dos atingidos pordoenas contagiosas, que se propagavam rapidamente por todo um quarteiro. Por exemplo,o uso de queimar a casa onde houvesse um doente provocaria o incndio das demais, umavez que tinham paredes comuns. As "casinhas so comumente citadas nos testemunhosoficiais e de outra natureza como focos de epidemial4.

    Os sobrados, as lojas e as casinhas eram habitaes tpicas da rea central. Emdireo periferia, apareciam casas trreas, ditas "retiradas" ou "separadas". Estas tinhamdimenses reduzidas, algumas de teto to baixo que os moradores precisavam curvar-separa nelas penetrar. As casinha" no formavam aglomeraes compactas, pois possuamrea livre em volta. Neste tipo podem agrupar-se muitas gradaes: desde as de paredes detijolos, cho de cimento e cobertura de telha-v at o simples "barraco" de cho de terra eparedes e teto de materiais improvisados - folhas de zinco, folhas de madeira e papelo,latas velhas ou ramagem vegetal guisa de cobertura e, como arremedo de porta; umpedao de aniagem.

    Este tipo, que se aproxima das casas de favelas e "invases" de alguns centrosurbanos brasileiros atuais, no muito citado nas fontes porque suas observaes sobre ascondies habitacionais, via de regra, limitavam-se rea central. Mas, em 1921, umtestemunho dava estas caractersticas como prprias da moradia do "proletariado1S.

  • As tentativas de melhorar as condies sanitrias da cidade sempre encontravam umobstculo na questO da moradia. Certamente, sempre se podia apelar para os atos maisarbitrrios de que o poder lanava mo ocasionalmente: interditavam-se ou derrubavam-se"casinhas", despejavam-se inquilinos de casas condenadas pela Sade Pblica16 Quandose tratava de prdios de maior valor, os melhoramentos se faziam mediante acordo entreproprietrios e governantes. Mas, neste caso, os primeiros poderiam compensar-se atravsde majoraes de aluguis, como fazia a Santa Casa.

    Corno resolver, porm, a questo habitacional? Mediante a pura e simplesdestruio? Em 1915, a tese acadmica de Jos Monteiro de Almeida, que louvava a aoinovadora da Diretoria de Sade Pblica do Estado, reconhecia, ao mesmo tempo, quemuitos "antros ou cortioS' ainda no se haviam extinto por falta de "habitaes baratas" queos substitufssem.

    Claramente, a questo vinculava-se propriedade do imvel. Esses "antros oucortios" eram formados pela sublocao de sobrados, cujos possuidores tinham meios deinfluir sobre o poder pblico e, por isto, no poderiam ser simplesmente derrubados. Faziamparte do patrimnio de irmandades como a Santa casa, Ordem Terceira de So Francisco,So Bento e outras e de indivfduos como Brulio Xavier da Silva Pereira, que exercia cargosimportantes na magistratura e era um dos grandes proprietrios de imveis da cidade. Em1919, o jornal O Tempo acusava-o de "encher os bolsd' com seus pardieiros e casebres da"Vila Brulio Xavief, onde se aglomeravam seus inquilinos, que eram, na maioria, praas daBrigada Policial, operrios e artesos17 .

    No final, as tentativas de elevar o nfvel sanitrio, no que dependia da habitao,tinham de limitar-se a algumas medidas ocasionais que no solucionavam a questo. Aprpria distribuio de renda e os ganhos irrisrios da populao tornavam impossfvee e asatisfao das exigncias oficiais de melhoria de salubridade dos imveis. Daf calarem novazio as invectivas da imprensa contra os capitalistas que s construfam palacetes para"moradia dos felizeS', esquecendo-se de fazer casas "modesta5'18. Mas para quem? Osplanos habitacionais que surgiam .ocasionalmenteno eram capazes de atrair uma clientelaque mal ganhava para comer.

    Assim, ~avenidas de casinha.,", lojas e casebres continuaram, por todo o perfodo,como habitaes tpicas da maioria da populao. A falta de salubridade imposta por elas,certamente, estava associada aos problemas gerais de sade. Tais habitaes eram"fbricas de tuberculosoS', "matadouro de gado humand' e "caminhos mais curtos para ocemitrid', de que, to dramaticamente, falava Otvio Torres em 190819.

    Tantos problemas no solucionados derivavam do prprio modelo de urbanizao queento se processava. Uma marca desse modelo parece ter sido uma modernizaoorientada pelos interesses de capitais estrangeirose do comrcio interno, que se expandia.

    O crescimento do comrcio de Salvador gerou acmulo de capital que seria aplicadona formao de grandes patrimnios imobilirios. Isto ocasionaria a concentrao dapropriedade predial na cidade20 ou o aumento da concentrao j existente antes daRepblica. Tal fato daria aos poucos grandes detentores de imveis condies de impor populao em geral e ao mercado de locaes em particular os altos preos e a baixaqualidade acima referidos.

  • NOTAS E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS( 1) O tema deste artigo objeto de uma pesquisa que vimos desenvolvendo e que se beneficiou de

    uma Bolsa de Pesquisador e de uma Bolsa de Iniciao Pesquisa, ambas coricedidas pelo CNPq.Alguns dos aspectos aqui tratados, assim como outros, j foram estudados em:SANTOS, Mrio Augusto da Silva Sobrevivncia e tenses sociais: Salvador (1890-1930). So

    Paulo: 1982. (Tese Dout. Dep. Hist., Fac. Fi!. Let. Cin. Hum., USP (mimeogr.).____ o A cidade do Salvador: um estudo de expanso urbana (1890-1940). Comunicao

    apresentada ao 12 Simpsio Nacional de Professores Universitrios de Histria (ANPUH),realizado em Salvador, Bahia, de 17 a 22 de jul. de 1983 (datilogr.).

    ____ o O Cadastro Imobilirio de Salvador: sua explorao na anlise da questo habitllcional(1890-1940). Comunicao apresentada na VII Semana da Histria, realizada pelo Instituto deHistria e Servio Social da UNESP Campus de Franca, de 16 a 20 de set. de 1985 (datilogr.).

    ( 2) A afirmativa quanto ocorrncia de tais inovaes mais hipottica do que categrica, falta deestudos especficos sobre esses vrios aspectos da histria da cidade na passagem do imediatoaps 2' Guerra. A indicao sobre a modificao de certos costumes est na tradio oral recolhidapor Hildegardes Vianna: A BAHIA J FOI ASSIM at mais ou menos 1940. Depois, tudo mudou(VIANNA, Hildegardes. A Bshia j foi assim: crnica de costumes. Salvador, Ed. ltapu, 1973,Apresentao).

    ( 3) Ver SANTOS, Milton. O Centro de Cidade do Salvador: estudo de Geografia Urbana. Salvador:1959, passim.SANTOS, M. A. da S. Sobrevivncia ... passim.

    ( 4) Ver SANTOS, Milton. Op. cito p. 108 a 109.( 5) Os nmeros de prdios da cidade do Salvador aqui mencionados tm como fonte: Cadastro

    Imobiliria Arquivo do Departamento de Tributos Imobilirios da Prefeitura Municipal de Salvador.Livros dos 12 distritos urbanos, anos de 1893 a 1940 (manuscritos).

    ( 6) Ver SANTOS, M. A. da S. Sobrevivncia ... passim.( 7) Uvros de Notas. Arquivo Pblico do Estado da Bahia, ano de 1920 (manuscritos). Apud SANTOS,

    Mrio Augusto da Silva. Os Caixeiros da Bahia: seu papel conservador na Primeira Repblica.Salvador: 1974, p.81 , (mimeografado).

    ( 8) Leis e Resolues do Conselho Municipal. Arquivo Municipal de Salvador. Resolues nO658 de26.8.1924 e nO718 de 22.5.1925, Livro 38.2 (manuscritos).

    ( 9) Ver DIRIO DA BAHIA, ed. de 17.5.1924.(10) Com uma certa freqncia, aparece a proposta de se construrem vilas operrias ou casas isoladas

    a serem alugadas a baixo preo para, posteriormente, serem vendidas aos inquilinos. Exemplos: leismunicipais de 1895, 1896, 1925; resolues municipais de 1910 e 1925; projeto do deputadoestadual Cosme de Farias, datado de 1919 e alterado pelo Primeiro Congresso de TrabalhadoresBaianos, realizado no mesmo ano.

    (11) Ver Relatrio do Provedor da Santa Casa de Misericrdia da Bahia, binios de 1890 a 1930.(12) Ver Relatrio do Provedor da Santa Casa de Misericrdia da Bshia, anos de 1915/1916.(13) Os clculos dos percentuais foram realizados com base nas informaes de preos de locaes dos

    imveis nos anos de 1890 a 1930 em:Consignao das casas. Arquivo da Santa Casa de Misericrdia da Bahia, anos de 1890 a 1930,Livros 829 a 840 (manuscritos).

    (14) Exemplo de testemunho oficial so os relatrios da Secretaria de Sade ao governador do Estado.Testemunho de outra natureza so as teses da Faculdade de Medicina da Bahia

    (15) Cf. FREIXEIRAS, Raimundo. As provas de minhas idias: O Abrigo dos Filhos do Povo na causa dacriana e o conflito social. Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1921, p.62.

    (16) Ver MENSAGEM do Governador a Assemblia Legislativa do Estado da Bahia, ano de 1894.DIRIO DA BAHIA, ed. de 16 e 18.3.1913.Aes de Despejo. Arquivo Pblico do Estado da Bahia, anos de 1890 a 1930 (maos

    manuscritos).(17) Ver O TEMPO, ed. de 12.6.1919.(18) Ver DIRIO DA BAHIA, ed. de 20.8.1925 e 3.11.1927.(19) SILVA, Otvio Torres da. A Cidade do Salvador perante a Higiflfltl. Bahia: Tipografia Moderna,

    1908, p.22.(20) Conforme a observao dos dados do Cadastro Imobilirio.