Links e Mappings: Desvendando Espaços Mentais no Hipertexto
Jaqueline Barreto Lé (Mestre e Doutoranda em Lingüística, UFRJ, [email protected])* RESUMO:
Pautado na Teoria dos Espaços Mentais da Lingüística Cognitiva e nos estudos de gênero e
referenciação da Lingüística Textual, este artigo tem por objetivo investigar aspectos
cognitivo-textuais do hipertexto em gêneros digitais do ambiente virtual. São estudadas,
também, as relações entre domínios mentais e processos de referenciação, focalizando, mais
precisamente, o papel dos mappings na depreensão dos objetos do discurso. O corpus da
pesquisa é formado por edições do gênero plantão no jornal O Globo. No que se refere ao
tema abordado, três hipóteses são aqui apresentadas: (a) os mappings estabelecidos no gênero
plantão são apoiados nos links e nós do hipertexto; (b) a indicação da seção temática, antes da
notícia, é também essencial para que se estabeleça um frame associativo no gênero plantão;
(c) nos processos de referenciação anafórica indireta, especialmente nas anáforas associativas,
os objetos de discurso podem ser ativados a partir de esquemas mentais, mappings.
PALAVRAS-CHAVE: mapeamento, cognição, hipertexto, gêneros digitais.
ABSTRACT:
Based on the Mental Spaces Theory from cognitive linguistics and on the genres and
reference studies from textual linguistics, this paper aims to investigate cognitive and textual
aspects of the hypertext in the Internet digital genres. Besides, it will be seen here the
relations between mental domains and reference processes, focusing mainly the role of
mappings in the mental access of the anaphoric referent. The corpus of this research is
composed by editions of the genre plantão, in the journal O Globo. In relation to the theme of
this study three hypotheses are defended: (a) the mappings from the digital genres are
supported by the links and nods in the hypertext; (b) the thematic section, up the news, is
* Bolsista de Doutorado CNPq.
essential to the activation of associative frames in the digital genre plantão; (c) in the
anaphoric processes, mainly in the associative anaphors, the referents can also be identified
through mental schemes, mappings.
KEYWORDS: mapping, cognition, hypertext, digital genres.
1 Introdução
Fauconnier e Sweetser (1996) focalizam, em sua abordagem teórica, a relação entre estruturas
lingüísticas e construções cognitivas por meio de espaços mentais. Tal perspectiva, segundo
os autores, é vantajosa tanto para os estudos científicos da linguagem como para as ciências
cognitivas. Com base na teoria de espaços mentais pode-se, inclusive, reconhecer e analisar os
diferentes graus/tipos de complexidade cognitiva por ocasião do processamento discursivo.
Concebendo-se os espaços mentais como domínios que revelam determinados esquemas
cognitivos relativos às nossas experiências, sendo eles ativados por “pistas lingüísticas”,
torna-se crucial, aqui, o entendimento da dependência entre contexto e cognição, bem como
dos vários efeitos produzidos a partir dessa relação.
Em um mundo globalizado, onde se torna cada vez mais presente a comunicação mediada por
computador – denominada por Crystal (1995) de netspeak – quais implicações pode
apresentar a teoria dos espaços mentais na análise do processamento cognitivo de cadeia
hipertextual? Qual(is) domínio(s) de referência é(são) criado(s) por meio de links e nós do
hipertexto? Qual(is) o(s) efeito(s) produzido(s) pelo atualmente conhecido contexto virtual?
Os gêneros digitais emergentes revelam formas específicas de ativação dos espaços mentais?
Todas essas questões fazem parte do estudo que aqui se pretende levantar acerca de esquemas
cognitivos que podem ser ativados com base em ambientes virtuais de comunicação.
Obviamente, dada a necessidade de se visualizar a cognição atrelada à realidade sócio-
interacional do falante, a vertente teórica do cognitivismo experiencialista parece ser a mais
adequada para a investigação do referido fenômeno. Também servirão de apoio ao estudo
algumas noções apresentadas pelas recentes teorias do texto para se referir ao universo da
comunicação em ambiente virtual, quais sejam: hipertexto, links, nós, comunidades virtuais
etc. Nessa conexão entre mapeamento cognitivo e processamento da informação no
2
hipertexto, é importante destacar, ainda, que os domínios de referência que envolvem a
depreensão dos objetos do discurso (Mondada; Dubois, 2005) - mais precisamente, as
anáforas indiretas ou associativas - constituirão, também, tema desta pesquisa.
2 A lingüística cognitiva e a teoria dos espaços mentais
Fauconnier (1997, p. 1), na teoria dos espaços mentais, parte de uma idéia básica: o
mapeamento entre domínios mentais está no centro da faculdade humana de produzir,
transferir e processar significado. Ele destaca que, embora simples, essa idéia é poderosa de
duas formas: a) é capaz de dar conta de procedimentos e princípios para uma grande escala de
fenômenos argumentativos e de significado, incluindo projeção conceitual, integração
conceitual ou blending, analogia, referência e contrafactuais; 2) pode fornecer insights sobre a
organização de domínios cognitivos ao quais não temos nenhum acesso direto. Além disso,
conforme lembra o autor, esse estudo da construção do significado se refere às operações
mentais complexas em alto nível que se aplicam dentro e entre domínios quando o indivíduo
pensa, age e se comunica.
Um dos principais objetivos da lingüística cognitiva tem sido especificar a construção de
significado, suas operações, seus domínios e como estes são refletidos na linguagem.
Pesquisas nessa área têm desvendado, nos últimos anos, os misteriosos esquemas cognitivos
por trás da gramática cotidiana, a riqueza dos sistemas conceituais subjacentes e a
complexidade da configuração dos espaços mentais no discurso comum. Uma recente
descoberta tem sido a de que “that visible language is only the tip of the iceberg of invisible
meaning construction that goes on as we think and talk.”1(Fauconnier, 1997, p. 1) Essa
cognição “de fundo” ou “escondida” define nossa vida mental e social e, nesse contexto, a
linguagem é apenas uma das suas manifestações externas proeminentes.
Fauconnier (1997, p.2) ressalta que a ciência procede indiretamente; ela correlaciona
fenômenos da superfície interpretando-os de modo específico, num nível observacional,
criando hipóteses acerca das relações mais profundas, e mais gerais, subjacentes a tais
fenômenos. Com a ciência cognitiva não é diferente. Embora cérebros estejam fisicamente
1 “A linguagem visível é apenas a ponta do iceberg da invisível construção do significado que se dá quando nós pensamos e falamos”
3
próximos e acessíveis, muito do que se pode supor sobre a sua organização, num nível
neurobiológico fundamental, ou mesmo num nível mais abstrato da cognição, é apreendido
indiretamente, pela observação de vários tipos de entrada e saída (input e output).
No caso da mente/cérebro humano, um tipo de sinal é especialmente penetrante e livremente
acessível: a linguagem. Como se sabe que a linguagem está intimamente ligada a importantes
processos mentais, tem-se, em princípio, uma rica e virtualmente exaustiva fonte de dados
para se investigar alguns aspectos relevantes dos fenômenos cognitivos.
Mas, como lembra Fauconnier (1997), essa fonte dados é também, paradoxalmente, um
empecilho. Podem a linguagem e o pensamento servir, ao mesmo tempo, como instrumento e
objeto de análise? O problema de tal implicação metodológica é que, como os seres humanos
estão inseridos no contexto da vida diária, tem-se sempre uma série de noções baseadas no
senso comum a respeito do que eles pensam e falam - noções que, apesar de úteis em algum
sentido, são também bastante errôneas e facilmente questionáveis no processo de investigação
científica.
Outro desafio das ciências cognitivas é, segundo o referido autor, tornar aparente o
extraordinário mistério da linguagem. Ele afirma que, apesar de os dados lingüísticos serem
uma fonte rica e estruturada de sinais emanando da mente/cérebro, estes são freqüentemente
subestimados cientificamente e socialmente como uma poderosa veia de estudo da mente
humana. Na verdade, é correto dizer que a pesquisa lingüística tem focalizado muito mais a
estrutura do sinal lingüístico em si mesmo do que as construções não-lingüísticas às quais
esse sinal está conectado. É correto dizer, por outro lado, que a pesquisa não-lingüística tem
dado pouca atenção à natureza básica (estrutural) das construções do significado e às suas
conexões com a forma sintática.
A lingüística moderna, estruturalista ou gerativista, como destaca Fauconnier (1997, p.4), tem
tratado a linguagem como objeto de estudo autônomo. Não está preocupada, assim, em usar
os dados lingüísticos dentro de um projeto mais amplo para se ter acesso às ricas construções
de significado por meio das quais as línguas operam.
Para os lingüistas interessados na construção dinâmica do significado, a clássica versão da
autonomia da forma lingüística parece apresentar lacunas quando aplicada às línguas naturais.
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Reconhece-se, cada vez mais, que julgamentos de gramaticalidade e aceitabilidade são
dependentes, em vários graus, de muitos traços ligados ao contexto, significado e uso. E essa
importante propriedade das línguas naturais teve uma simples conseqüência para a pesquisa
de base estruturalista: ao passo que a lingüística avançava no estudo da forma, tropeçava-se
cada vez mais nas questões do significado.
Segundo Fauconnier (1997, p. 8), o certo é que os dados lingüísticos “sofrem” quando
restritos à língua, pela simples razão de que as interessantes construções cognitivas
subjacentes ao uso lingüístico têm a ver com situações completas que incluem conhecimentos
de mundo altamente estruturados, vários tipos de argumentação, construção on-line de
significado e negociação do significado.
No que tange aos estudos mais recentes, o referido autor ressalta que hoje os lingüistas
começam a se separar das concepções anteriores e comuns a respeito de como os homens
argumentam, falam e interagem e, também, a identificar alguns dos modelos, princípios de
organização e mecanismos biológicos que podem entrar em cena. O que se descobre, por sua
vez, é freqüentemente surpreendente e vai de encontro às crenças do senso comum e às
altamente sofisticadas teorias formais.
2.1 Tipos de mapping
Toda a discussão a respeito da importância do estudo do significado e do desenvolvimento
das ciências cognitivas tem a ver com a teoria dos espaços mentais, segundo a qual o
mapeamento (mapping) entre domínios cognitivos se estabelece quando nós pensamos e
falamos. Muito freqüentemente esses mappings, sendo desconhecidos na sua totalidade, eram
relegados à posição de fenômenos periféricos, tais como metáfora ou analogia. Recentemente,
contudo, há uma quantidade suficiente de evidências do seu papel central nas línguas naturais
e na argumentação diária. Três tipos básicos de mappings serão aqui ilustrados: projeções,
funções pragmáticas e esquemas.
Na projeção parte da estrutura de um domínio é projetada em outro. A idéia básica é a de que,
para falar e pensar sobre alguns domínios (domínios alvo), o falante usa a estrutura e o
vocabulário de outros domínios (domínios fonte). Algumas dessas projeções são usadas por
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todos os membros de uma cultura, como, por exemplo, em inglês, na metáfora do tempo como
espaço (Christmas is approaching / The weeks go by).
Os mappings tornam-se culturamente e lexicalmente enraizados e, como Turner (1998)
assinala, eles na verdade definem a estrutura ou categoria para a linguagem e cultura. Mais
curiosamente ainda é o fato de que, apesar de o vocabulário tornar o mapping transparente, os
falantes em geral não têm ciência do mapeamento durante o seu uso e costumam se sentir
surpresos quando o fenômeno lhes é apontado. Em tais casos, o mapping, ainda que
cognitivamente ativo, é opaco e a projeção de um domínio em outro é, de certa forma,
automática. As projeções podem, também, ser estabelecidas localmente, em contexto
específico, sendo então percebidas não propriamente como algo pertencente à língua, mas
como algo “criativo”, como parte da argumentação e construção discursivas. Pode-se citar
como exemplo, no discurso publicitário, a projeção do domínio do corpo feminino no domínio
de bebidas ao se usar a metáfora da cerveja como mulher (Uma loira gelada)
Outro importante tipo de conexão entre domínios são os mappings de função pragmática.
Neste caso, os dois domínios em questão, que podem ser estabelecidos localmente,
tipicamente correspondem a categorias de objetos que são “mapeados” por meio de uma
função pragmática. Por exemplo, autores são vinculados aos livros que eles escrevem, os
pacientes de hospital são associados à doença a cujo tratamento estão sendo submetidos, etc.
(A gastrite úlcera no quarto 12 deseja um café). Esse tipo de mapping exerce um papel
importante na estruturação do conhecimento e fornece meios de identificar elementos de um
domínio, via sua contraparte, em outro. Fauconnier (1997) afirma, também, que os mappings
de função pragmática, assim como os de projeção, são freqüentemente responsáveis por
mudanças semânticas ao longo do tempo.
Um terceiro caso de mapping são os esquemas, que operam quando um esquema geral, frame
ou modelo cognitivo é usado para estruturar uma situação em dado contexto. Para Langacker
(1987, 1981, apud FAUCONNIER, 1997, p.11), construções gramaticais e itens do
vocabulário podem ativar, por exemplo, esquemas de significado.
De um modo geral, pode-se dizer que os mappings operam para construir e relacionar espaços
mentais, que Fauconnier (1994) define como estruturas parciais que são produzidas quando
pensamos e falamos, permitindo um fracionamento lógico de nosso discurso e estruturas de
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conhecimento. Ao se dizer, por exemplo, Lis acha que Ricardo é maravilhoso, tem-se um
espaço mental para as crenças de Lis, com uma estrutura mínima explícita correspondente a
Ricardo é maravilhoso. Ao dizer No ano passado Riçado foi maravilhoso, nó construímos um
espaço para o último ano entrelaçado ao espaço de crenças, que por sua vez, é entrelaçado ao
espaço base2. Nesse caso, a expressão “no ano passado” funciona como um space builder3
que será responsável pela construção de um novo espaço mental.
O autor menciona, também, que espaços mentais são estruturados por MCI (modelos
cognitivos idealizados) e, sendo assim, eles podem ser vistos como uma espécie de esquema.
Tomemos como exemplo o frame ou MCI “compra e venda” apresentado a seguir, incluindo
comprador, vendedor, mercadoria, concorrência, preço, etc. Se uma sentença como
Jack compra ouro na mão de Bill ocorre no discurso, e se Jack, Bill e ouro são representados
pelos elementos a, b e c em um espaço mental, então esses elementos serão mapeados nos
pontos correspondentes do frame “compra e venda”, como se vê no esquema a seguir. O
simples uso de expressões definidas como “o vendedor” identifica papéis no frame
correspondente, fazendo com que o mapping entre o frame e o espaço seja direto.
a. comprador
b. vendedor
c. mercadoria
circulação
preço
...
etc.
Vale ressaltar, enfim, que os três tipos de mapping aqui mencionados – projeção,
função pragmática e esquema – são centrais a qualquer interpretação semântica e pragmática
da linguagem e de sua construção cognitiva. Uma vez que atentamos para esses processos,
eles nos mostram uma série de lugares inesperados. Fauconnier (1997) centraliza sua análise
nos mapeamentos de espaços mentais, os quais estabelecem ligações de espaços mentais
2 Espaço base representa um ponto de vista ou espaço mental a partir do qual outros espaços podem ser ativados. 3 Os space builders, segundo Fauconnier e Sweeter (1996, p. 10), correspondem a mecanismos usados pelo
falante (na forma de expressões lingüísticas contextualizadoras) que servem para induzir o ouvinte a estabelecer um novo espaço mental.
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ativados no discurso e dão conta de propriedades lógicas de vários tipos de fenômenos
lingüísticos tais como metáforas, analogias, metonímias, contrafactuais, hipóteses,
quantificações, uso atemporal do quando, tempos da narrativa, dêiticos, discurso direto e
indireto, etc.
3 Domínios mentais no hipertexto
O termo hipertexto surge em meados dos anos 60, criado por Theodore Nelson, para
“exprimir a idéia de escrita/leitura não linear em um sistema de informática”
(Lévy, 1999, p. 29). Tal definição já apontava, a essa época, para duas faces essenciais de
uma nova ferramenta comunicativa: o aspecto tecnológico e textual.
Do ponto de vista tecnológico, pode-se dizer, conforme Cavalcante (2005, p. 164), que
“o percurso desta ferramenta aponta para sua adequação, a partir da otimização dos sistemas
criados, visando à acessibilidade de um novo usuário, o doméstico”. É justamente quando
esses sistemas se tornam acessíveis a uma comunidade não especializada, principalmente a
partir da década de 90, que o hipertexto passa a suscitar, na área da lingüística e da
comunicação, variadas reflexões acerca do modo como a informação se apresenta no espaço
virtual.
A incorporação da tecnologia da Internet passa a se inserir, pouco a pouco, na rotina social, levando áreas do saber à reflexão do que viria a ser esta nova ferramenta virtual, qual a sua natureza e de que maneira ela disponibiliza a informação. É neste momento que a lingüística volta-se para o funcionamento virtual cuja materialidade é o seu objeto de análise: o(s) texto(s). (CAVALCANTE, 2005, p.165, grifo nosso)
A autora destaca que, para teóricos como Bolter (1991) e Douglas (1998), o hipertexto pode
ser entendido com um novo espaço de escrita, a escrita eletrônica, que possibilita que a
ordenação textual se estruture de maneira variada. Crystal (2005) enfatiza, também, o
surgimento de um novo tipo de linguagem a partir das ferramentas virtuais de comunicação,
motivado pelo advento da Internet: o netspeak.
Tendo em vista, então, a importância do hipertexto nos variados tipos de relações sociais
contemporâneas, o que constitui a sua identidade enquanto objeto lingüístico? O que o torna
particular em termos estruturais e funcionais, lingüisticamente falando? Como lembra
Cavalcante (2005), a tessitura textual representa o diferencial do hipertexto, ou seja, o que o
faz singular é justamente a presença e utilização de seus constituintes internos: os nós e links.
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Podemos dizer que os links promovem ligações entre blocos informacionais (outros textos; fragmentos de informação: palavra; parágrafo; endereçamento etc.) conhecidos como nós. No entanto, esses blocos não necessitam estabelecer uma relação sêmica entre si, isto é, as ligações possíveis não formam a tessitura daquele texto específico, mas promovem a abertura para outros textos, mas nunca para qualquer texto. (CAVALCANTE, 2005, p. 166)
Como se vê, para a autora, os links e os nós que caracterizam a rede hipertextual apenas
sinalizam as possibilidades de leitura, de acordo com o que é disponibilizado pelo autor na
organização de sua tessitura textual. Essa espécie de “mapeamento” de construção de sentido
não delimita o caminho exato que o leitor irá seguir naquele ambiente virtual específico. Em
outras palavras, o autor somente sugere, por meio de links, numa espécie de simulacro, as
direções do sentido que será percorrido, ativado. De certo modo, o leitor passa a assumir
papel semelhante ao do autor.
É interessante notar, ainda, que, ao mesmo tempo em que evidenciam as direções de leitura a
serem tomadas, os links e nós do hipertexto também são limitados pelo autor, ou seja, ele não
sugere “qualquer texto’ como trilha a ser seguida. Segundo Cavalcante (2005, p. 168), “a
discussão sobre a natureza do hipertexto permite pensar o próprio texto em sua materialidade,
bem como as estratégias de seu processamento ou do simulacro dele”.
Uma vez que, dentro dos estudos lingüísticos, o hipertexto é visto como uma forma de se
entender a construção de sentidos em seu processamento, assume-se, neste estudo, a
possibilidade de se relacionar o mapeamento não-linear dos links e nós (blocos
informacionais) ao mapeamento de domínios mentais. Sendo assim, parte-se do princípio de
que a informação processada na cadeia hipertextual, em seus diversos gêneros digitais,
depende essencialmente dos esquemas cognitivos que são ativados, mais precisamente dos
espaços mentais que se relacionam no ato discursivo.
No exemplo abaixo apresentado – extraído de um blog de jornal eletrônico – tem-se, já a
partir do título Transforme a brincadeira em arte, o mapeamento de espaços mentais por
projeção. Um domínio mental é projetado em outro por meio de uma relação metafórica (a
informática como arte). Vê-se que o mapping é reforçado ao longo do texto por meio de
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Expressões como “você pinta a tela e, de acordo com o mouse, muda a cor da tinta e a
espessura do traço”.
Transforme a brincadeira em arte
Jackson Pollock
Que tal criar obras de arte brincando? Em http://www.jacksonpollock.org/ você pinta a tela e, de acordo com o mouse, muda a cor da tinta e a espessura do traço. O site é inspirado na obra de Jackson Pollock, que trocou os pincéis por ferramentas como latas furadas e pedaços de madeira para compor suas obras, consideradas importantes exemplares da pintura do século 20. (STEFHANIE PIOVEZAN)
Escrito por Rafael Capanema às 11h22
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(exemplo extraído do Blog Circuito Integrado, da versão on-line da Folha de São Paulo, em 29/11/2008)
Por outro lado, o mapping também é reforçado na materialidade do hipertexto a partir de links
e nós que sinalizam e compõem, respectivamente, os pontos de acesso e os blocos de
informacionais. Dito de outra forma, ao clicar no link sinalizado pelo autor - site que remete a
um programa que simula uma tela de pintura – o leitor é conduzido a outro bloco
informacional (nó) e estabelece, igualmente, o mapping entre esses dois espaços mentais
(informática/arte). Um breve esquema dessa projeção conceitual entre domínios pode ser
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visto a seguir. Em tal exemplo, elementos de um domínio – tela, cor, traço – são projetados
em outro domínio.
MCI1 = Informática MCI2 = Artes Plásticas
s
aaaaaaaaaaaa a a’ b b’ c c’ d d’ espaço 1 espaço 2
tela cor traço mouse teclado webam programa ... etc.
pintura tela cor traço tinta pincel ... etc.
3.1 Gêneros digitais: novas formas de mapeamento do sentido
Conforme lembra Marcuschi (2008, p. 198), “mais do que em qualquer outra época, hoje
proliferam gêneros novos dentro de novas tecnologias, particularmente na mídia eletrônica
(digital)”. E, concordando com Erickson (1997), esse autor enfatiza que “a interação on-line
tem o potencial de acelerar enormemente a evolução dos gêneros, tendo em vista a natureza
do meio tecnológico e os modos como se desenvolve”.
Os gêneros emergentes dessa nova tecnologia são relativamente variados, mas a maioria deles tem similares em outros ambientes, tanto na oralidade como na escrita. Contudo, sequer se consolidaram, esses gêneros eletrônicos já provocaram polêmicas quanto à natureza e proporção de seu impactos da linguagem e na vida social. Isso porque os ambientes virtuais são extremamente versáteis e hoje competem, em importância, entre as atividades comunicativas, ao lado do papel e do som. (MARCUSCHI, 2005, p. 13)
Nesse contexto, é importante destacar que, mesmo que os gêneros emergentes se apresentem
muitas vezes como projeções ou transmutações de suas contrapartes prévias (e-mail/carta
pessoal, chat/conversação espontânea, conferência on line/reunião. etc.), existe, ainda, a
possibilidade de diferenciação de tais gêneros (ditos virtuais) em relação às suas contrapartes
reais. Marcuschi (2008, p. 198) frisa, também, que, ao concebermos o gênero enquanto texto
concreto, histórica e socialmente situado, “relativamente estável” do ponto de vista estilístico
e composicional, que funciona como instrumento comunicativo com propósitos específicos, é
fácil perceber que um novo meio tecnológico (o virtual), que interfere em boa parte dessas
11
condições, deve também interferir na natureza do gênero produzido. O chat virtual, por
exemplo, se comparado com a conversação espontânea, possui particularidades em sua
produção e sofre, naturalmente, adaptações do meio.
Do ponto de vista dos gêneros realizados, Crystal (2005) ressalta que a Internet transmuta de
maneira bastante radical os padrões comunicativos existentes, desenvolvendo alguns gêneros
realmente novos. E, ainda segundo esse autor, a relevância de se tratar dos gêneros digitais
reside em pelo menos quatro aspectos: (1) são os gêneros em franco desenvolvimento e fase
de fixação com o uso cada vez mais generalizado; (2) apresentam peculiaridades formais
próprias, não obstante terem contrapartes em gêneros prévios; (3) oferecerem a possibilidade
de se rever alguns conceitos tradicionais a respeito da textualidade; (4) mudam sensivelmente
nossa relação com a oralidade e a escrita, o que nos obriga a repensá-la.
Em sentido estrito, pode-se dizer que a rede “hipertextual” dos diversos gêneros digitais
constitui um ambiente revelador de poderosas estratégias de mapeamento de sentidos
(cognitivas) das quais os falantes lançam mão no ato comunicativo. Isso vale, naturalmente,
tanto para os gêneros que possuem uma contraparte real como para aqueles que se apresentam
como formas peculiares ao meio virtual.
Levando-se em conta o amplo universo dos gêneros jornalísticos, vê-se, por exemplo, que
nesse domínio se proliferam gêneros digitais e impressos, de modo que estes podem ter ou
não correspondentes em relação ao meio. Artigo, notícia, crônica, editorial são exemplos de
gêneros jornalísticos que se realizam tanto no jornal impresso como no jornal on-line. Por
outro lado, blog, plantão de notícias e fórum de discussões se materializam especificamente
no meio digital e, constituem assim, gêneros novos nesse amplo domínio discursivo.
Resta saber, enfim, em que medida esses gêneros emergentes contribuem para o surgimento
de novas formas de mapeamento do significado e construção do sentido. A esse propósito, a
interdisciplinaridade entre os estudos do texto e as teorias cognitivas parece constituir
fundamental ponto de partida na resolução de questões polêmicas. No que tange ao gênero
focalizado nesta pesquisa - o plantão de notícias- pretende-se, neste trabalho, apenas traçar
um pequeno esboço do mapeamento de sentido que nele se faz, considerando a ativação de
espaços mentais e, ainda, os processos de referenciação.
12
4 Referenciação e mapeamento cognitivo Ao tratar da questão da referência, ou, mais precisamente, dos processos de referenciação,
Mondada e Dubois (2003, p. 20) opõem duas visões de como a língua se refere ao mundo:
uma concepção de base filosófica e realista, expressa pela metáfora do espelho, segundo a
qual as estruturas lingüísticas refletem diretamente as coisas, e outra concepção, apoiada em
alguns princípios fenomenológicos, de acordo com a qual as categorias comportam uma
instabilidade constitutiva. Sob esse último prisma, “as práticas lingüísticas não são imputáveis
a um sujeito cognitivo abstrato, racional, intencional e ideal, solitário face ao mundo, mas a
uma construção de objetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociações, das
modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo.”
Os referentes – concebidos pelas autoras como “objetos do discurso” – podem, portanto, ser
vistos como construtos culturais, representações constantemente alimentadas pelas atividades
lingüísticas. E, em tal perspectiva, seria mais adequado falar em referenciação do que em
referência, de modo a ressaltar a idéia de processo que caracteriza o ato de referir. Nada teria,
portanto, uma segmentação a priori: tanto as categorias discursivas quanto as cognitivas
podem evoluir e se modificar de acordo com um contexto ou ponto de vista. As opções
lexicais se reconstroem se amoldam ao que está sendo negociado entre os interlocutores,
dependendo de seus propósitos enunciativos.
“Com efeito – no lugar de partir do pressuposto de uma segmentação a priori do discurso em nomes e do mundo em entidades objetivas, e, em seguida, de questionar a relação de correspondência entre uma e outra – parece-nos mais produtivo questionar os próprios processos de discretização. Desejamos, além disso, sublinhar que, no lugar de pressupor uma estabilidade a priori das entidades no mundo e na língua, é possível reconsiderar a questão partindo da instabilidade constitutiva das categorias por sua vez cognitivas e lingüísticas, assim como de seus processos de estabilização”. (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 19)
Ao tratar da instabilidade inerente às categorias e à prática discursiva, as autoras ressaltam
que ela é diretamente ligada às propriedades intersubjetivamente negociadas das
denominações e categorizações no processo de referenciação. Nesse contexto, os processos de
estabilização discursiva são vistos como processos “que se desenvolvem no seio das
interações individuais e sociais com o mundo e com os outros, e por meio de mediações
semióticas complexas.” (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 22)
13
Um dos processos de estabilização discursiva apontados pelas referidas lingüistas é a
referenciação anafórica. Como elas assinalam, a anáfora pode ser vista tanto como um modo
de ilustrar tipicamente o problema dos referentes evolutivos (Charolles; Schnedecker, 1994,
apud Mondada; Dubois, 2003, p. 43), quanto com um modo de estabilizar ou de focalizar uma
denominação particular, excluindo para isso outras possibilidades, mesmo se elas estiverem
potencialmente disponíveis no texto.
Os dois exemplos de objetos anafóricos em (1) e (2) - apresentados pelas autoras - revelam
como no discurso pode-se marcar, inclusive sintagmaticamente, a estabilização de uma
categoria:
(1) Eu vejo que M. de la Lande fala da beleza e da situação deste palácio. Efetivamente, eu
não vi nada que tenha ares de palácio. A situação certamente contribui muito. (Bergeret,
Voyage d’Italie 1773-1774, Paris, 1948, 41)
(2) A cidade, pois é uma cidade, é composta de quarenta a cinqüenta casas, que são
contornadas por uma alta e forte muralha para protegê-las dos bandidos de terra e de mar.
(Simond, Voyage em Italie et en Sicile, Paris, 1828, v 2, 34)
Esses tipos de referenciação corroboram ou reforçam, pela repetição, a utilização de um certo
descritor - palácio ou cidade – que tem como efeito estabilizar o objeto como prototípico.
Em tais exemplos, o uso redundante do mesmo designador e de sua ratificação ao longo do
desenvolvimento textual mostra a instabilidade dos descritores (categorias) particulares, que
correm constantemente o risco de serem descartados no processo discursivo.
Propõe-se, aqui, que os efeitos de estabilização das categorias discursivas também podem ser
vistos por meio do mapeamento de domínios mentais nos processo de referenciação, mais
precisamente em casos de anáfora indireta ou associativa, como será abordado a seguir.
4.1 Referenciação anafórica e procedimentos de estabilização discursiva
A estratégia textual anafórica pode ser estudada, no mínimo, sob duas perspectivas. Na
primeira, que contempla a visão tradicional, a anáfora assume um caráter correferencial, com
antecedente pontualizado, implicando operações de retomada (ou reativação) de um referente
textual. A segunda perspectiva – que efetivamente interessa a este estudo - pressupõe uma
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visão ampliada do fenômeno anafórico e firma-se na construção de “objetos-de-discurso”,
uma vez que o traço correferencial não é prioritário, não sendo obrigatória, portanto, a
vinculação da anáfora com a noção de retomada textual (ou reativação). Nesse caso, mesmo
se reconhecendo a inexistência de um antecedente pontual, o anafórico não deixa de evocar
uma âncora, podendo esta advir do contexto léxico, semântico ou pragmático.
Como aqui se pretende focalizar os procedimentos de estabilização discursiva envolvidos nas
estratégias de referenciação anafórica, a segunda perspectiva – a da referenciação indireta –
parecer ser mais propriamente esclarecedora da ampla rede semântica cognitiva ativada por
ocasião do processamento textual-discursivo.
Para Marcuschi (2001) as anáforas indiretas apresentam as seguintes características: 1) são
geralmente constituídas por expressões nominais definidas, indefinidas e pronomes
interpretados referencialmente, sem que lhes corresponda um antecedente (ou subseqüente)
explícito no texto; 2) correspondem a uma estratégia endofórica de ativação de referentes
novos e não de reativação de referentes já conhecidos; 3) freqüentes em todos os gêneros
textuais, podem ancorar cognitivamente em expressões nominais antecedentes que lhes dão
suporte; 4) como forma de progressão multilinear e não direta, reintroduzem aspectos
sociocognitivos em interface com a semântica e a pragmática; 5) são casos de referência
textual, isto é, de construção, indução ou ativação de referentes no processo textual-discursivo
que envolve atenção cognitiva conjunta de seus interlocutores; 6) não dependem de uma
congruência morfossintática.
A título de ilustração, tem-se a seguir um pequeno exemplo de anáfora indireta, extraído do
jornal O Globo, no plantão de notícias da sua versão eletrônica, em 06/01/2009. No caso
apresentado, a expressão fenômeno é inferida a partir de pistas textuais inespecíficas, uma vez
que esse SN não retoma explicitamente nenhuma informação prévia, mas é ativado por
algumas delas, fundamentais para compor a descrição implícita do referente: esportes, alvo de
elogios. Sendo assim, a anáfora indireta fenômeno é coerente com os elementos do texto e
encontra aprovação pelo conhecimento culturalmente compartilhado, resgatável pela memória
de longo prazo, ainda que não exista o critério correferencial. Ao SN fenômeno agregam-se,
portanto, informações de caráter enciclopédico e cultural que tornam possível a identificação
indireta de um referente preciso: o jogador de futebol Ronaldo.
15
(3) 00h09m | Esportes Fenômeno evolui e já é alvo de elogios
4.2 Anáfora indiretas ou associativas
Ao comparar anáforas associativas e anáforas indiretas, a distinção não se dá de modo
pacífico, se é que tal distinção efetivamente existe, pois ambas são estratégias de
referenciação com limites tênues e, com freqüência, idênticos procedimentos são ativados no
funcionamento da língua, quando se trata de anáforas sem antecedente explícito.
Marcuschi (2001a) afirma que as anáforas associativas são parte substantiva das anáforas
indiretas e que estas constituem um fenômeno mais amplo e mais abrangente do qual a
anáfora associativa faz parte. Dizer que as anáforas associativas são “parte substantiva” das
anáforas indiretas significa que toda anáfora associativa é indireta, mas nem toda anáfora
indireta é associativa. Assim, a partir da constatação de Marcuschi, é possível estender o
campo para outras modalidades indiretas de expressão anafórica como, por exemplo, as
anáforas esquemáticas e até as nominalizações, uma vez que essas construções não retomam
pontualmente objetos-do-discurso.
Quanto à noção de anáfora associativa que será aqui adotada – considerando que esse tipo de
referenciação indireta tem sido abordado de maneira diversificada por diferentes
pesquisadores -, segue-se a linha de Apothéloz. (1995), representante da visão mais ampla,
segundo a qual a anáfora associativa é toda anáfora não-correferencial. Dessa forma, em tal
perspectiva, até as anáforas indiretas seriam também associativas. E esse dado é oposto ao que
preconiza Marcuschi (2001), quando afirma que as anáforas associativas constituem um
subtipo de anáforas indiretas.
Apothéloz (2003, p. 75) afirma que a anáfora associativa pode ser concebida, de um modo
geral, como sintagmas nominais definidos que apresentam simultaneamente as duas
características seguintes: de um lado, uma certa dependência interpretativa relativamente a um
referente anteriormente (às vezes posteriormente) introduzido ou designado; (b) de outro
lado, a ausência de correferência com a expressão que introduziu ou designou anteriormente
(às vezes, posteriormente) esse referente. Um exemplo característico desse tipo de anáfora e
16
que foi comentado em diversos trabalhos sobre o fenômeno anafórico é a expressão a igreja
no contexto seguinte:
(4) Nós chegamos a uma cidade. A igreja estava fechada.
Segundo Hawkins (1977a, apud Apothéloz, 2003, p. 76), o mecanismo da anáfora associativa
(da associação propriamente dita) se baseia em conhecimentos gerais supostamente
partilhados, “exprimíveis sob a forma de proposições que colocam em relação referências
genéricas (por exemplo: uma cidade tem uma igreja). Dito de outra forma, a anáfora
associativa funciona sobre os estereótipos – como lembra Kleiber (1990a, apud Apothéloz,
2003, p. 76) – e, portanto, atua como procedimento de estabilização discursiva.
No caso do exemplo acima, a depreensão do objeto (referente) está intimamente ligada a um
processo de estereotipação/estabilização com base na cadeia associativa cidade-igreja,
considerando-se que tais expressões, tomadas separadamente e em contextos variados –
passariam a assumir um distanciamento em relação à referência genérica estereotipada,
revelando a sua instabilidade constitutiva.
E como esses procedimentos de estabilização discursiva presentes na anáfora associativa
podem se vincular à estratégia de mapeamento entre domínios mentais? Como foi assinalado
anteriormente, os mappings são estabelecidos para criar e relacionar espaços mentais, fazendo
que, na expressão discursiva, haja um fracionamento lógico da informação. Isso,
evidentemente, só é possível a partir da ativação cognitiva de esquemas genéricos (MCI’s)
compartilhados entre os interlocutores, tal como ocorre na anáfora associativa. A seguir,
tem-se um exemplo de anáfora associativa no hipertexto - extraído do gênero plantão de
notícias, do jornal O globo on line – a partir do qual se pode apresentar um mapping com base
em esquemas cognitivos.
17
(5) Procon-SP reúne-se com sindicatos de escolas sobre a lista negra de devedores. MCI= Educação MCI = Finanças Espaço M
sindicatos
escolas
alunos
pais
mensalidade
pagamento
lista de devedores
---
etc.
S. E. P. LD.
PROCON
consumo
lista de devedores
dinheiro
pagamento
contas
crédito
débito
SPC
SERASA
...
etc.
A notícia apresentada em (4) revela duas cadeias associativas por meio das quais o leitor pode
ativar o espaço mental M. A primeira delas corresponde à relação PROCON- lista negra de
devedores, que se estabelece com base nos conhecimentos de mundo dos interlocutores ou no
modelo cognitivo idealizado. Reconhece-se, neste caso, que os órgãos de defesa do
consumidor têm acesso direto às listas de devedores em serviços de proteção ao crédito. A
segunda cadeia associativa, por sua vez, encontra-se na ligação escolas-lista negra de
devedores é ativada pelo conhecimento de que as escolas privadas mantêm, em seu
gerenciamento, listas dos alunos com mensalidade em atraso ou cujos pais são devedores.
O que se pode depreender do exemplo acima apresentado é que os mecanismos de
referenciação anafórica – mais precisamente os que ocorrem nos casos de anáfora associativa
– dependem em grande medida da ativação de espaços mentais por meio de modelos
cognitivos idealizados (MCI’s), de vez que se estabelecem, discursivamente, no conjunto de
conhecimentos/crenças gerais dos interlocutores.
Também pode ser mencionado, aqui, que essas cadeias associativas responsáveis pelo
encadeamento anafórico, além de contribuírem para a progressão textual-discursiva,
18
permitem, do ponto de vista semântico-cognitivo, a estabilização das categorias ou objetos do
discurso. Isso só é possível, por outro lado, graças ao mapeamento ou correspondência de
domínios mentais, ativando-se, assim, os frames prototípicos que permitem reduzir a
instabilidade constitutiva das categorias.
5 Metodologia
O corpus deste estudo é formado por textos do gênero digital plantão de notícias, na versão
eletrônica do jornal O Globo. Na constituição da amostra, selecionaram-se 30 notícias das
edições do dias 11/12/08 e 06/01/09. Para o propósito da pesquisa, os dados foram analisados
com base em mappings de diferentes esquemas cognitivos. Posteriormente, numa segunda
etapa, investigaram-se alguns processos de referenciação relacionados aos mapeamentos
cognitivos ilustrados a partir das notícias.
A respeito do tema investigado, três hipóteses foram aqui levantadas: (a) os mappings
estabelecidos no gênero plantão são apoiados nos links e nós do hipertexto, já que os
esquemas ativados se confirmam ao se clicar no link da notícia, dirigindo-se aos blocos
informacionais a ela correspondentes; (b) a indicação da seção temática, antes da notícia, é
também essencial para que se estabeleça um frame associativo no gênero plantão;
(c) nos processos de referenciação anafórica, os objetos de discurso podem ser ativados a
partir de esquemas mentais, mappings.
19
6 Análise de Dados A investigação proposta neste trabalho se divide em duas partes principais: (1) análise de
esquemas mentais ou mappings; (2) análise processos de referenciação indireta. Para tanto,
foram selecionadas 30 notícias do gênero plantão, no jornal O Globo, nas edições de
11/12/2008 e 06/01/2009.
6.1 Análise dos esquemas mentais ou mappings
Consideram-se nesta análise três tipos de esquemas cognitivos: (a) correspondências que
envolvem 1 ou 2 espaços mentais; (b) correspondências que envolvem mesclagem (blending);
(c) correspondências que envolvem 1 espaço base e 1 espaço de fala. Esses mappings serão
ilustrados, aqui, com base em seis exemplos extraídos do gênero plantão de notícias.
(a) correspondências envolvendo a ativação de 1 ou 2 espaços mentais
22h48mPaís
Câmara aprova projeto que dá autonomia a perito criminal
MCI = governo MCI= investigação policial
C. PC.
P.
Espaço mental aprovar – C, P
Câmara
Senado
projeto
leis
...
etc.
perito criminal
inquérito
Provas
Perícia
...
etc.
dar autonomia – P, PC
20
11h35mViverMelhor
'Comilões' se transformam em celebridade no Japão
MCI = culinária MCI= televisão
C C’
receitas
menu
bebidas
comilões
...
etc.
audiência
telespectadores
celebridades
...
etc.
Base Espaço mental (no Japão)
transformar-se = C, C’
A partir desses dois exemplos, nota-se que, no primeiro esquema, há apenas a composição e
ativação de um espaço mental com base em dois MCI’s (governo e investigação policial). No
segundo, os MCI’s (culinária e televisão) promovem a ativação de um espaço base e de um
novo espaço mental a partir de um space builder, de uma expressão contextualizadora (no
Japão)
21
(b) correspondências que envolvem mesclagem ou blending
09h01m Esportes No Botafogo, uma batalha já está vencida
MCI = esportes MCI= guerra
B. B.
J. J. / B’.
futebol
time
Botafogo
fluminense
vasco
jogo
etc.
batalha
inimigo
obstáculo
vitória
derrota
...
etc.
Base Espaço M (no Botafogo)
vencer – B, B’
Neste exemplo, observa-se que há um espaço-mescla (blending) oriundo da metáfora futebol é
guerra. Além disso, vê-se que, em comparação com exemplos anteriores, embora todos
recorram a mais de um MCI, nos dois primeiros casos há apenas composição, sem mescla.
22
(b) correspondências que envolvem a ativação de 1 espaço base e 1 espaço de fala
21h52m São Paulo Kassab diz que ônibus não subirá em 2009 mesmo com corte de orçamento
MCI = prefeitura
C.O. O.
C.O.
CO P.O.
impostos
orçamento
política cultural
serviços públicos
ônibus
...
etc.
Espaço Base Espaço de fala Espaço mental (em 2009)
não subir = O.
P.O.= preço do ônibus
Vê-se, aqui, a ativação de um espaço de fala a partir de um espaço base e, em seguida, um
space builder (em 2009), contextualizador, que abre mais um novo espaço. Nesse caso, o
esquema cognitivo apresenta, para o espaço mental em 2009, a relação metonímica entre
ônibus-preço do ônibus.
Nos dois exemplos a seguir, que também são casos de discurso reportado, a formação de um
espaço de fala implica, por sua vez, na ativação de outros espaços mentais (de possibilidade e
suposição), representados, respectivamente, pelas expressões acordo e vítima. Observa-se,
por outro lado, que há um aspecto comum aos casos de discurso reportado: a presença de um
único MCI como desencadeador dos espaços mentais a serem ativados, sinalizando uma
espécie de “direcionamento temático” dos esquemas cognitivos.
23
13h51m Mundo Sarkozy diz que acordo sobre Gaza pode estar próximo MCI = política internacional
Espaço Base Espaço de fala Espaço de possibilidade
. G.
guerra santa
acordos
tratados
organizações
conflitos
Gaza
...
etc.
A. G.
G.
estar próximo = A.
08h09m Mundo China diz que "suposta" vítima de gripe aviária morreu MCI = epidemias
vítimas
mortes
saúde pública
gripe aviária
peste negra
dengue
...
V. G.A.
G.A
. G.A.
etc.
Espaço Base Espaço de fala Espaço de suposição
morrer = V.
24
De um modo geral, os exemplos aqui analisados revelam que a ativação de espaços mentais
no hipertexto, mais precisamente no gênero plantão de notícias, depende essencialmente dos
modelos cognitivos idealizados dos falantes e, também, que o mapeamento entre domínios é
ratificado materialmente na cadeia hipertextual por meio de seus links e nós, confirmando-se a
primeira hipótese da pesquisa. Considera-se, ainda, que a indicação da seção temática no
início de cada notícia (esportes, mundo, tecnologia, economia etc.) é também relevante na
formação de frames associativos e, conseqüentemente, no procedimento de estabilização das
categorias discursivas. Esse aspecto, além de corroborar a necessidade de correspondência
entre domínios mentais, valida a segunda hipótese aqui apresentada.
6.2 Análise dos processos de referenciação indireta
Os processos de referenciação indireta serão ilustrados, aqui, a partir dos mesmos exemplos
utilizados da análise dos mappings do gênero plantão de notícias. Embora esse gênero não
contemple, em primeiro plano, a notícia em toda a sua extensão, possibilita, como foi visto
antes, por meio de links e nós, o acesso cognitivo ao total da informação, fazendo com que a
mesma seja compartilhada discursivamente entre os interlocutores. Como o gênero plantão
revela, em seu formato, conteúdos variados através de uma lista de notícias, observa-se que
muitas associações indiretas (incluindo-se aí as anáforas indiretas ou associativas) se tornam
possíveis na construção textual-discursiva do(s) sentido(s), o que faz com o leitor recorra a
conhecimentos prévios e culturalmente partilhados, revelados pelo contexto léxico, semântico
e pragmático. Vejam-se, a seguir, alguns casos de referenciação indireta encontrados no
corpus investigado.
11h35mViverMelhor
'Comilões' se transformam em celebridade no Japão
Neste exemplo, vê-se que a depreensão da expressão comilões depende de alguns elementos
co-textuais engatilhadores (âncoras) que irão fornecer subsídios a sua interpretação, tais como
ViverMelhor e celebridade. Tendo como suporte, ainda, o seu conhecimento de mundo a
respeito do universo da culinária, bem como da sua relação com o meio midiático, o leitor é
capaz de identificar indiretamente esse referente, relacionando-o a indivíduos que participam
de concurso ou provas de degustação, o que é confirmado a partir do link que dá acesso ao
conteúdo completo da notícia. Assim, ainda que teia correferencial não seja instaurada,
25
trata-se de um caso de referenciação anafórica, uma vez que a ativação desse novo referente
(comilões) depende de pistas (ou âncoras) co-textuais e contextuais que viabilizam,
indiretamente, a sua identificação.
09h01m Esportes No Botafogo, uma batalha já está vencida
O termo batalha, no exemplo acima apresentado, tem uma interpretação metafórica também
dependente de redes associativas indiretas. Como se vê, elementos co-textuais como as
expressões Esportes e Botafogo já sinalizam cognitivamente uma ligação entre dois domínios
- futebol e guerra-, apoiada nos conhecimentos culturalmente partilhados entre os
interlocutores. A interpretação desse referente se dá, portanto, com base em modelos
cognitivos enraizados pela cultura e ativados por ocasião do processamento da informação,
diminuindo a instabilidade constitutiva das categorias discursivas.
21h52m São Paulo Kassab diz que ônibus não subirá em 2009 mesmo com corte de orçamento
Há, aqui, uma interpretação metonímica da expressão ônibus pautada em associações
cognitivas estabelecidas indiretamente por meio da rede sociodiscursiva. Elementos
co-textuais como São Paulo, Kassab e corte de orçamento reforçam tal dependência
interpretativa e, ao lado de conhecimentos enciclopédicos e culturais dos interlocutores (sobre
a Prefeitura da São Paulo), compõem a identificação dos objetos do discurso, que sinalizam
como referente, nesse caso, o preço do ônibus.
13h51m Mundo Sarkozy diz que acordo sobre Gaza pode estar próximo A expressão acordo revela, neste exemplo, uma instabilidade constitutiva que é resolvida
contextualmente no discurso através do processo indireto de referenciação. Sem implicar a
retomada ou reativação de referentes textuais, tal processo se estabelece a partir de pistas
co-textuais como Mundo, Sarkozy e Gaza, e, principalmente, dos conhecimentos de mundo
dos interlocutores a respeito de política internacional. Assim, o frame associativo indica, de
modo indireto, qual tipo de “acordo” pode ser atribuído a esse novo referente, diminuindo, no
âmbito textual-discursivo, a instabilidade das categorias.
26
08h09m Mundo China diz que "suposta" vítima de gripe aviária morreu
A ativação de um novo referente por meio da expressão suposta vítima requer, aqui, a
ativação indireta de um esquema associativo ligado ao contexto situacional da produção
textual-dicursiva. Termos presentes na cadeia co-textual como Mundo, China e gripe aviária
reforçam, igualmente, a identificação do objeto do discurso, que, nesse caso, se refere a
mulher contagiada pela gripe aviária, em Pequim, no início de 2009.
O que se observa, a partir dos exemplos de referenciação aqui apresentados, é que a
instabilidade das categorias discursivas contribui de modo significativo para a ativação de
frames associativos que possibilitam, via indireta, a depreensão dos objetos. No que tange ao
gênero plantão de notícias, o formato reduzido em que se apresenta a notícia, bem como
materialidade textual dos links e nós, propiciam ainda mais os processos indiretos de
identificação dos referentes, formando-se, assim, uma ampla teia anafórica que dá suporte à
progressão textual-discursiva do sentido.
Pode-se também concluir, com base nos casos apresentados, que a depreensão cognitiva dos
referentes tem ligação direta com os esquemas mentais ativados pelos interlocutores - o que
ratifica a terceira hipótese apresentada neste estudo. Conforme foi ilustrado nos mappings do
gênero plantão de notícias, todos os esquemas ou frames de associação mental dependem
essencialmente, na sua conexão, dos modelos cognitivos idealizados pelos interlocutores, bem
como de elementos contextuais, tal como ocorre nas anáforas indiretas ou associativas.
7 Considerações finais
A Teoria dos Espaços Mentais, defendida por lingüistas como Fauconnier e Sweetser, aponta
interessantes caminhos a serem desvendados pela Lingüística Cognitiva e pelas demais
abordagens do significado na compreensão da relação entre estrutura lingüística e fenômenos
mentais. Ainda que o estudo de conexões entre linguagem e cognição pressuponha uma
investigação interdisciplinar – envolvendo lingüística, psicologia, neurociência etc. – e uma
longa trilha a ser percorrida, a noção de mapping, como lembra Fauconnier (1997), já é em si
bastante útil e poderosa, uma vez que dá conta de uma diversidade de processos cognitivos
responsáveis pela construção do significado.
27
Conforme foi apontado neste estudo, a cadeia hipertextual também favorece materialmente,
por meio de seus links e nós, a ativação de espaços mentais e correspondência entre domínios,
o que caracteriza de modo fundamental o mapeamento de sentido no meio discursivo virtual.
Outra questão abordada foi uma possível relação entre referenciação e mapping, dada a
natureza das atividades cognitivas envolvidas nos processos de referência, saindo-se de um
ponto de instabilidade constitutiva das categorias para a sua estabilização via contexto
discursivo.
Enfim, a breve pesquisa aqui apresentada sugere, ainda, um estreitamento de laços entre a
Lingüística Cognitiva e as teorias do texto, considerando que as recentes descobertas nessas
duas áreas podem efetivamente contribuir para um entendimento mais amplo daquilo que
chamamos de “significado”. Quem sabe a conexão entre mapping, hipertexto e processos de
referenciação não seja apenas a ponta visível de outro “iceberg”? Isso tornaria, talvez, um
pouco mais aparente o extraordinário mistério da linguagem.
8 Referências APOTHÉLOZ, D.. Papel e funcionamento da anáfora na dinâmica textual. In: CALVACANTE, M. M., RODRIGUES, B. B., CIULA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. BONINI, A. Gêneros textuais e cognição: um estudo sobre a organização cognitiva da identidade dos textos. Florianópolis: Insular, 2002. CALVACANTE, M. C. B.. Mapeamento e produção de Sentidos: os links no hipertexto. In: MARCUSCHI, L. A.; XAVIER, A. C. (orgs.) Hipertexto e Gêneros Digitais. 2 ed. São Paulo: Lucerna, 2005. CRYSTAL, D. A revolução da linguagem. Trad. por Ricardo Quintana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. MARCUSCHI, L. A.. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. In: Koch, Ingedore et al. (orgs.) Referenciação e Discurso. São Paulo Contexto, 2001. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In: MARCUSCHI, L. A., XAVIER, A. C. (orgs.) Hipertexto e Gêneros Digitais. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. MEURER, J. L., BONINI, A., MOTTA-ROTH, D. (orgs.) Gêneros: teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola, 2005.
28
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MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CALVACANTE, M. M., RODRIGUES, B. B., CIULA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. ERICKSON, T. Social Interaction on the Net: Virtual Community as participatory Genre. Proceedings of the Thirty-Third Hawaii Internacional Conference on System Science. Mauai, Hawaii. Jan. 1997. Disponível em: http:/www.pliant.org/personal/Tom Erickson/VC as Genre.html. Acesso em 08 dez. 2008. FAUCONNIER, G. Mental Spaces: Aspects of Meaning Construction in Natural Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. FAUCONNIER, G. Mappings in Thought and Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. FAUCONNIER, G.; SWEETSER, E. (eds.) Spaces Worlds and Grammar. Chicago: The University of Chicago Press, 1996. GEERAERTS, D. (ed.) Cognitive linguistics: Basic Readings. Berlin: Moriton de Gruyter, 2006. LÉVY, P. Cibercultura. Trad. por Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. TUNER, M. The Literary Mind: The Origins of Thought and Language. Oxford: Oxford Univerity Press, 1998.
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