Rosi GiordanoSticky Notehttp://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/3302/2015
Rosi GiordanoSticky NoteAccepted set by Rosi Giordano
COMIT EDITORIAL
Osmar Fvero (UFF) CoordenadorJacques Therrien (UFCE)
Marlia Gouvea de Miranda (UFG)Marisa Vorraber Costa (UFRGS)
Romualdo Portela (USP)Rosa Helena Dias da Silva (Ufam)
Rosa Maria Bueno Fischer (UFRGS)Walter Garcia (CNPq)
CONSELHO EDITORIAL
Nacional:Alceu Ravanello Ferraro UFRGS
Ana Maria Saul PUC-SP Carlos Roberto Jamil Cury PUC-MG
Celso de Rui Beisiegel USPCipriano Luckesi UFBA
Clarissa Baeta Neves UFRGSDelcele Mascarenhas Queiroz Uneb
Guacira Lopes Louro UFRGSJader de Medeiros Britto UFRJJanete Lins de Azevedo UFPE
Leda Scheibe UFSCLuiz Carlos de Freitas Unicamp
Magda Becker Soares UFMGMaria Clara di Pierro Ao Educativa USP
Marta Kohl de Oliveira USPMiguel Arroyo UFMG
Nilda Alves UERJPetronilha Beatriz Gonalves Silva UFSCar
Rosa Helena Dias da Silva UfamRosngela Tenrio Carvalho UFPE
Internacional:Almerindo Janela Afonso Universidade do Minho, Portugal
Carlos Prez Rasetti Universidad Nacional de la Patagonia Austral, ArgentinaDomingos Fernandes Universidade de Lisboa
Guiselle M. Garbanzo Vargas Universidad de Costa RicaJuan Carlos Tedesco Instituto Internacional de Planeamiento de la Educacin
IIPE/Unesco, Buenos AiresMargarita Poggi Instituto Internacional de Planeamiento de la Educacin IIPE/Unesco,
Buenos Aires
90
Sobre as 40 horas de Angicos,
50 anos depoisMarcos GuerraClio da Cunha
(Organizadores)
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 1-226, jul./dez. 2013
ISSN 0104-1037
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep) permitida a reproduo total ou parcial desta publicao, desde que citada a fonte.
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Digitao Amanda Mendes Casal | [email protected] Lilian dos Santos Lopes | [email protected]
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Tiragem 2.600 exemplares.
Em Aberto online
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EM ABERTO: uma publicao monotemtica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep), destinada veiculao de questes atuais da educao brasileira. A exatido das informaes e os conceitos e as opinies emitidos neste peridico so de exclusiva responsabilidade dos autores.
Indexada em: BibliografiaBrasileiradeEducao(BBE)/Inep Edubase/Unicamp Latindex
Publicado on-line em fevereiro de 2014.
ESTA PUBLICAO NO PODE SER VENDIDA. DISTRIBUIO GRATUITA.
Em Aberto / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira. v. 1, n. 1, (nov. 1981- ). Braslia : O Instituto, 1981- .
Irregular. Irregular at 1985. Bimestral 1986-1990. Suspensa de jul. 1996 a dez. 1999.Suspensa de jan. 2004 a dez. 2006Suspensa de jan. a dez. 2008Semestral desde 2010
ndices de autores e assuntos: 1981-1987, 1981-2001.Verso eletrnica (desde 2007):
ISSN 0104-1037 (impresso) 2176-6673 (online)
1. Educao Brasil. I. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira.
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 5-7, jul./dez. 2013
apresentao ...................................... 15
enfoqueQual a questo?
Sobre as 40 horas de AngicosMarcos Guerra .............................................. 21
pontos de vistaO que pensam outros especialistas?
Paulo Freire: primeiros temposOsmar Fvero ............................................... 47
Paulo Freire: o homem e o mtodo um ensaioGeniberto Paiva Campos .................................... 63
Por que a pedagogia do oprimido de Paulo Freire incomodava?Alceu Ravanello Ferraro .................................... 75
Das quarenta horas de Angicos aos quarenta anos da Pedagogia do oprimidoCelso de Rui Beisiegel ...................................... 95
6Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 5-7, jul./dez. 2013
De Canudos a Angicos: a ideia de um Brasil alfabetizado e conscienteClio da Cunha .................................................................105
A experincia de AngicosLuiz Lobo .......................................................................123
Cara Valquria, como teria sido? Quem poder dizer? Angicos 40 horas, 1962/1963Valquria Felix da Silva ........................................................131
espao abertoManifestaes rpidas, entrevistas, propostas, experincias, tradues, etc.
Relatrio final do Seminrio Regional de Educao de Adultos, preparatrio ao II Congresso Nacional de Educao de Adultos Pernambuco [1958] ..................................................145
Relao dos alunos e coordenadores segundo a localizao das turmas ......157
Sesso de encerramento do curso de alfabetizao, realizada em Angicos no dia 2 de abril de 1963 .............................................163
Discurso do governador / Alusio AlvesDiscurso do presidente / Joo GoulartDiscurso do aluno j alfabetizado / Antnio Ferreira
Da grande mentira s primeiras slabas da verdade Antnio Callado ...............................................................169
Primeiro livro: revi tudoPaulo Freire .....................................................................175
Poo da Panela: um testemunhoCarlos Augusto Nicas de Almeida ............................................179
As 40 horas e o Mestre da Esperana: discurso proferido no recebimento do Ttulo de Cidad Honorria AngicanaValquria Felix da Silva ........................................................181
7resenhas
A experincia da esperana: um golpe na alma da intelectualidade
brasileira ps-1964
Dimas Brasileiro Veras
Francisco Aristides de Oliveira Santos Filho ..................................191CORTEZ, Marcius. O golpe na alma. So Paulo: P-de-chinelo Editorial, 2008. 96 p.
Em busca de uma educao conscientizadora
Osmar Fvero ..................................................................201BEISIEGEL, Celso de Rui. Poltica e educao popular: a teoria e a prtica de Paulo Freire no Brasil. So Paulo: tica, 1982. 304 p. [4. ed. rev. Braslia: Liber Livro, 2008. 378 p.].
Alfabetizao, conscientizao
Paulo Rosas ....................................................................205FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 150 p.
bibliografia comentada
Bibliografia comentada sobre as 40 horas de alfabetizao
de adultos em Angicos
Rosa dos Anjos Oliveira ........................................................211
nmeros publicados ..............................................225
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 5-7, jul./dez. 2013
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 9-11, jul./dez. 2013
presentation ....................................... 15
focusWhats the point?
The 40 hours of AngicosMarcos Guerra .............................................. 21
points of viewWhat other experts think about it?
Paulo Freire: first timesOsmar Fvero ............................................... 47
Paulo Freire: the man and the method an essayGeniberto Paiva Campos .................................... 63
Why was Paulo Freires Pedagogy of the
Oppressed considered a threat?Alceu Ravanello Ferraro .................................... 75
From the 40 hours of Angicos to the 40 years
of Pedagogy of the OppressedCelso de Rui Beisiegel ...................................... 95
10
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 9-11, jul./dez. 2013
From Canudos to Angicos: the idea of a literate conscious BrazilClio da Cunha .................................................................105
The experience of AngicosLuiz Lobo .......................................................................123
Dear Valquria, how would it have been? Who will be able to say? Angicos 40 hours, 1962/1963Valquria Felix da Silva ........................................................131
open spaceComments, interviews, proposals, experiments, translations etc.
Final Report of the Regional Seminar on Adult Education,
preparatory to the Second National Congress of Adult Education
Pernambuco [1958] ...........................................................145
List of students and coordinators, according to the location of classes .......157
Closing session of the alphabetization course, which happened
on the 2nd of April of 1963, in Angicos .........................................163The Governors speech / Alusio Alves
The Presidents speech / Joo GoularSpeech by the already literate student / Antnio Ferreira
From the big lie to the syllables of truth Antnio Callado ...............................................................169
First book: I reviewed everythingPaulo Freire .....................................................................175
Poo da Panela: a testimonyCarlos Augusto Nicas de Almeida ............................................179
The 40 hours and the Master of Hope: speech delivered at
the conferral of the title of Honorary Angicano CitizenValquria Felix da Silva ........................................................181
11
reviews
The hope experience: a soul stroke in the Brazilian intellectuality
after 1964
Dimas Brasileiro Veras
Francisco Aristides de Oliveira Santos Filho ..................................191CORTEZ, Marcius. O golpe na alma. So Paulo: P-de-chinelo Editorial, 2008. 96 p.
In search of a conscientization education
Osmar Fvero ..................................................................201BEISIEGEL, Celso de Rui. Poltica e educao popular: a teoria e a prtica de Paulo Freire no Brasil. So Paulo: tica, 1982. 304 p. [4. ed. rev. Braslia: Liber Livro, 2008. 378 p.].
Alphabetization, conscientization
Paulo Rosas .....................................................................205FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 150 p.
annotated bibliography
Commented bibliography on the 40 hours of adults
alphabetization in Angicos
Rosa dos Anjos Oliveira ........................................................211
published issues ....................................................225
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 9-11, jul./dez. 2013
Na primeira hora de alfabetizao, o aluno escreve a palavra belotaFonte: LYRA, Carlos. As quarentas horas de Angicos. So Paulo: Cortez, 1996.
Reunio de coordenadores com Paulo FreireFonte: LYRA, Carlos. As quarentas horas de Angicos. So Paulo: Cortez, 1996.
15
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 15-18, jul./dez. 2013
Este nmero da revista Em Aberto tem um objetivo diferenciado e preenche
uma lacuna: dando nfase s prticas, ressalta questes pouco conhecidas num
universo de literatura sobre Paulo Freire que privilegiou as teorias: Como e por que
efetivamente ocorreram as 40 horas de Angicos? Quais os desafios, quais os
antecedentes, qual o contexto, quais os principais resultados, por que em Angicos?
Que aprendizagem nos trouxe? Que novos paradigmas desafiam a partir da a
alfabetizao de jovens e adultos? Qual montagem institucional e poltica viabilizou,
h 50 anos, tal experincia?
Quais foras se mobilizaram para viabilizar essa experincia de alfabetizao
de adultos e, logo em seguida, quais as que decidiram interromper sua expanso
em todo o Brasil? E por que, desde ento, essas atividades no foram retomadas nos
moldes preconizados por Paulo Freire: metodologias e contedos especficos, garantia
efetiva de universalizar o direito educao, baixo custo, aprendizagem rpida?
Como explicar que tenhamos hoje mais analfabetos do que naquela poca?
No cinquentenrio das 40 horas de Angicos a primeira experincia utilizando
o Mtodo Paulo Freire , incentivamos participantes daquele momento histrico e
outros estudiosos a refletirem sobre algumas das questes postas e, assim, ampliar
o dilogo e iluminar novos caminhos na rota do legado de Paulo Freire.
Na seo a, um relato de Marcos Guerra, com detalhes operacionais e
contextualizao, contendo informaes inditas e algumas revelaes que at agora
foram pouco divulgadas. O autor coordenou as atividades desenvolvidas em Angicos,
inclusive um dos crculos de cultura, e dirigiu, na Secretaria da Educao do Rio
16
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 15-18, jul./dez. 2013
Grande do Norte, o setor criado especificamente para atender aos objetivos do
programa e s exigncias de Paulo Freire. Como um dos coautores do que se
desenvolveu em Angicos, experincia que inegavelmente enriqueceu a proposta
inicial do Mtodo, relata a partir da vivncia. Escreve sobre o ambiente favorvel e,
em seguida, sobre o ambiente hostil. Vincula estreitamente a represso Guerra
Fria e revela que o governo brasileiro atuou junto Unesco, aps o golpe militar de
31 de maro, opondo-se a uma maior influncia direta das ideias aplicadas em
Angicos e no Brasil.
Na seo Pontos de Vista, especialistas em educao e de outras reas
procuram mostrar pontos relevantes da experincia de Angicos e a evoluo do
legado. No primeiro artigo Paulo Freire: primeiros tempos , Osmar Fvero,
profundo conhecedor do assunto e atuante na rea desde meados do sculo passado,
desvenda o contexto dos movimentos de cultura e educao popular no incio dos
anos de 1960 e o caldo ideolgico em que se definiu a teoria e foi sistematizada
a prtica de alfabetizao de adultos de Paulo Freire.
O cardiologista Geniberto Paiva Campos apresenta-nos Paulo Freire: o homem
e o mtodo, um ensaio, com informaes sobre os debates relativos ao financiamento
da Aliana para o Progresso, e uma viso sobre a magia das 40 horas, assim como
sobre as razes da represso aos movimentos de educao popular. Na poca, era
lder estudantil e trabalhava diretamente na campanha De P no Cho Tambm se
Aprende a Ler, do municpio de Natal, com a qual Paulo Freire contribuiu diretamente.
Participou tambm das primeiras atividades de identificao das condies de
trabalho em Angicos, e foi coordenador de um crculo de cultura, cooperando num
momento de necessidade.
Alceu Ravanello Ferraro pergunta Por que a pedagogia do oprimido de Paulo
Freire incomodava? e revela o preocupante desafio que o sculo 20 legou para o
sculo 21, no que se refere ao analfabetismo. Permite que compartilhemos de sua
reflexo sobre alfabetizao, movimentos sociais e as razes da represso, situando
o confronto entre a pedagogia do Mobral e a pedagogia do oprimido de Freire.
Celso de Rui Beisiegel, conhecedor profundo da obra de Paulo Freire, mostra,
em um texto de referncia, a trajetria do campo terico de Paulo Freire Das quarenta
horas de Angicos aos quarenta anos da Pedagogia do oprimido.
Clio da Cunha apresenta uma contribuio original De Canudos a Angicos:
sobre a ideia de um Brasil alfabetizado e consciente , em que salienta o aporte de
alguns pensadores e educadores do Brasil na luta histrica por um pas independente
e justo, revelando a ousadia de Paulo Freire que, em Angicos, mostrou como tornar
isso possvel.
Luiz Lobo nos fornece um texto tambm original sobre A experincia de
Angicos, baseado em suas lembranas quase 50 anos depois e na sua vivncia
naquele perodo. O consagrado jornalista autor do mais conhecido documentrio
sobre as 40 horas de Angicos, que realizou para a Secretaria da Educao do Rio
Grande do Norte, destinado motivao de outras comunidades no Estado.
Valquria Felix da Silva, ento estudante de Direito, integrante da primeira
equipe de coordenadores de crculos de cultura em Angicos, nos d duas contribuies.
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Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 15-18, jul./dez. 2013
No artigo Cara Valquria, como teria sido? Quem poder dizer? Angicos 40 horas,
1962/1963, em que sintetiza um dilogo mantido com outras coordenadoras dessa
primeira equipe, relata a mobilizao dos estudantes universitrios, a formao dos
coordenadores de crculos de cultura, a pesquisa do universo vocabular e temas
geradores, alm da mobilizao na cidade de Angicos.
Na seo Espao Aberto, o leitor encontrar, em ordem cronolgica, algumas
contribuies que permitem melhor situar o trabalho realizado em Angicos, seus
antecedentes e consequncias. A primeira o relatrio final do Seminrio Regional
de Educao de Adultos, realizado em Pernambuco, com data de 17 de maio de 1958,
preparatrio ao II Congresso Nacional de Educao de Adultos, realizado em julho
desse ano. Nesse seminrio regional, Paulo Freire, relator da 3 Comisso, que
discutiu o tema A educao de adultos e as populaes marginais: o problema dos
mocambos, apresenta um novo modo de compreender o analfabetismo e uma nova
forma de super-lo .
A seguir, dois documentos da experincia: a relao de alunos e coordenadores
dos crculos de cultura e a sua distribuio na cidade de Angicos; e os discursos da
sesso de encerramento do curso de alfabetizao, em 2 de abril de 1963: do
governador Alusio Alves, do presidente Joo Goulart, e do recm-alfabetizado
Antnio Ferreira.
A experincia de Angicos foi noticiada em muitos jornais e, como exemplo,
reproduzimos o artigo de Antnio Callado, Da grande mentira s primeiras slabas
da verdade, publicado no Jornal do Brasil em 15 de janeiro de 1964.
No exlio, Paulo Freire publicou, em 1967, Educao como prtica da liberdade,
cujos originais, antes de deixar o Brasil, ele enviara para uma amiga na Frana e,
quando chegou ao Chile, recebeu-os de volta. No trecho de uma entrevista Primeiro
livro: revi tudo , tirado da obra Aprendendo com a prpria histria, de 1987, ele
conta sobre a ajuda recebida de brasileiros tambm exilados naquele pas e sobre a
dificuldade que teve com a primeira editora francesa interessada na sua publicao.
Carlos Augusto Nicas de Almeida o estudante de medicina a quem Paulo
Freire se refere como parceiro da primeira experincia no Poo da Panela, em Recife.
Nunca havia relatado essa atividade e ficou surpreso com o convite. Com sua
generosidade e sempre disponvel, brinda-nos com seu depoimento.
A segunda contribuio de Valquria Felix da Silva a este nmero sobre a
experincia pioneira de Angicos o seu discurso por ocasio do recebimento do
Ttulo de Cidad Honorria Angicana, em abril de 2013, com um relato sobre o
trabalho dos voluntrios que atuaram como coordenadores de crculos de cultura.
Na seo Resenhas, trs obras instigantes sobre o tema. O livro de Marcius
Cortez, O golpe na alma, foi analisado por Dimas Veras e Francisco Aristides de
Oliveira Santos Filho. Poltica e educao popular: a teoria e a prtica de Paulo Freire,
de Celso de Rui Beisiegel, coube a Osmar Fvero. Educao como prtica da liberdade,
de Paulo Freire, teve uma excelente anlise feita por Paulo Rosas, que aqui
reproduzimos.
18
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 15-18, jul./dez. 2013
A seo Bibliografia Comentada traz um levantamento de obras publicadas
sobre Angicos, indicando os stios na internet onde a maioria desses documentos
pode ser lida na ntegra.
Desejamos que os leitores possam ler e refletir sobre os diversos textos,
depoimentos e testemunhos de uma fase emblemtica de nossa educao, que teve
em Angicos a ousadia de levar para a prtica ideias e concepes de uma educao
emancipadora. Com a superao da ditadura e redemocratizao do Pas, as
universidades, inspiradas no legado de Angicos, esto pesquisando e conduzindo
experincias prticas para dar continuidade ao sonho libertador de Paulo Freire. As
vozes da diversidade, antes silenciadas, podem agora indicar alternativas para a
construo e operacionalizao de polticas de educao com sentido e rumo. Rumo
a um pas que reconhece em suas matrizes formadoras de origem indgena, negra
e europeia os fundamentos de sua nacionalidade.
Esperamos tambm, com esta edio, contribuir para uma efetiva retomada
das aes visando alfabetizao de jovens e adultos nos moldes preconizados por
Paulo Freire, com quem aprendemos, em relao ao analfabeto, o que mais tarde
Betinho cunhou em relao a quem tem fome: quem tem fome tem pressa.
Os analfabetos tm pressa! Negar-lhes este primeiro direito negar-lhes um
dos instrumentos para que possam melhor exercer sua cidadania, e que muitas vezes
afronta sua dignidade. Alm do indivduo, perde tambm sua comunidade, sua
famlia e o prprio Brasil. Todos condenados a uma participao diferenciada, que
exige vencer barreiras e preconceitos, visto que lhes foi negado um dos instrumentos
que multiplicam seu potencial.
Marcos GuerraClio da CunhaOrganizadores
Qual a questo?
Seminrios de coordenadoresFonte: LYRA, Carlos. As quarentas horas de Angicos. So Paulo: Cortez, 1996.
Reunio de coordenadores com Paulo FreireFonte: Acervo pessoal de Marcos Guerra.
21
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013
Sobre as 40 horas de AngicosMarcos Guerra
Resumo
Para melhor entender o que foram as 40 horas de Angicos, apresenta uma
breve anlise dos primeiros textos escritos sobre essa experincia. A seguir, um
esboo do contexto poltico no Estado do Rio Grande do Norte com a eleio do
governador Alusio Alves e seu programa para alfabetizar 100 mil pessoas. Um dos
fatores favorveis para a realizao das 40 horas foi a mobilizao da Unio Nacional
dos Estudantes (UNE) e da Unio Estadual dos Estudantes (UEE), que facilitou o
recrutamento de 20 voluntrios, entretanto, devido a decises radicais dessas
entidades quanto participao de seus dirigentes numa ao que recebia
financiamento da Aliana para o Progresso, Marcos Guerra renuncia presidncia
da UEE/RN e aceita o convite de Paulo Freire para coordenar os crculos de cultura
em Angicos. Aps a assinatura de um Acordo de Cooperao entre o Brasil e os
Estados Unidos, foi criado o Servio Cooperativo de Educao do Rio Grande do Norte
(Secern), em 9 de dezembro de 1962, que providenciou a infraestrutura necessria.
Em 18 janeiro de 1963 teve incio a experincia de Angicos e, em 2 de abril, na 40
hora, realizou-se a solenidade de encerramento, com discurso do presidente Joo
Goulart. O mtodo de alfabetizao experimentado em Angicos teve repercusso
nacional e internacional. Em 1964, com o golpe militar, todos os coordenadores e
alfabetizandos sofreram perseguies e muitos, o exlio.
Palavras-chave: alfabetizao de adultos; Mtodo Paulo Freire; histria da
educao; dcada 1960-1969.
22
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013
AbstractThe 40 hours of Angicos
In order to better understand what the 40 hours of Angicos were, this study
presents a brief analysis of the first written texts about the experience. An outline
of the political context in the state of Rio Grande do Norte, with Governor Alusio
Alves election and his program to alphabetize 100,000 people, is showed. One
favorable factor for the completion of the 40 hours was the mobilization of the Unio
Nacional dos Estudantes UNE (in English, National Students Union NSU) as well
as the Unio Estadual dos Estudantes UEE (in English, State Students Union
SSU). This facilitated the recruitment of 20 volunteers; however, due to radical
decisions of these two institutions, regarding the participation of their leaders in an
action financed by the Aliana para o Progresso (in English, Alliance for Progress),
Marcos Guerra gave up the presidency of UEE in Rio Grande do Norte and accepted
Paulo Freires invitation to coordinate the culture circles in Angicos. After the signing
of a Cooperation Agreement between Brazil and the United States, the Servio
Cooperativo de Educao do Rio Grande do Norte SECERN (in English, Cooperative
Educational Services of Rio Grande do Norte CESRN) was created. With the creation
of SECERN, which was on the 9th of December of 1962, all the needed infrastructure
for the project was provided. On the 18th of January of 1963, the experience of
Angicos started and, on the 2nd of April of the same year, at the 40th hour, the closing
solemnity took place, with President Joo Goularts speech. The alphabetizing method
experienced in Angicos reverberated nationally and internationally. In 1964, with
the military coup, all the coordinators and students of the project were persecuted
and, many of them, exiled.
Keywords: adult literacy; Paulo Freires method; history of education; 1960s
decade.
Precisvamos, ainda, de algo com que ajudssemos o analfabeto a iniciar aquela modificao de suas atitudes bsicas diante da realidade. Com que ele desse comeo reformulao de seu saber preponderantemente mgico.
Precisvamos tambm de que esse algo fosse uma fonte de motivao para o analfabeto querer ele mesmo montar o seu sistema de sinalizaes. Motivao que viesse se somar sua apetncia educativa em relao direta, como j foi dito, com a transitivao de conscincia. (Freire, 1963, p. 14).
Ao enunciar o que precisvamos fazer, Paulo Freire nos lanou um desafio.
Referia-se ao mesmo tempo a objetivos finais e a novos meios a implantar numa
experincia pioneira. Assim o entendemos, quando aceitamos o desafio para o qual
nos convidou. Menos de vinte jovens preparados por ele e sua equipe dedicamo-nos
ao que veio a ficar conhecido como as 40 horas de Angicos.
Tirar do papel aquelas ideias e afirmaes inovadoras. Algo que nos permitisse
aprender e ensinar, confrontar teoria e prtica, questionar a teoria, renov-la. Fazer
23
Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013
em Angicos a primeira experincia em massa, em tamanho real. Identificar o que
fazer, como fazer, quais as condies para executar uma resposta possvel
democratizao da cultura dentro do quadro geral da democratizao fundamental
(Freire, 1967, p. 101). Aprender como fazer algo que pudesse ser ampliado para
todo o Brasil.
Responder ao desafio tornando operacional sua nova viso do processo de
alfabetizao, associando a conscientizao como facilitador e no como algo
impossvel ou encargo suplementar. Paulo Freire j afirmava que, na alfabetizao
de adultos, [...] o que se h de fazer proporcionar-lhes que se conscientizem, para
que se alfabetizem (p. 119).
No desafio, era preciso enfrentar os alarmantes dficits quantitativos1 e
qualitativos de nossa educao (p. 101), que, na poca, excluam os analfabetos do
direito de votar, sobre os quais Weffort (1967) nos recorda em seu prefcio ao livro
Educao como prtica da liberdade, uma odisseia sobre a qual nesta revista podemos
ler o artigo de Alceu Ferraro.
Os primeiros relatos
Para melhor entender o que foram as 40 horas de Angicos e, depois, o que
fizemos em outras cidades do Rio Grande do Norte, consolidando a experincia,
convidamos que se retome a leitura dos primeiros textos.
Comecemos pelo artigo de Paulo Freire (1963), em que explicita sua nova
viso do processo de conscientizao e alfabetizao antes de detalhar o que chamou,
ento, de fases do mtodo, que se aplicam preparao dos contedos e materiais
educativos, a partir do universo vocabular do grupo. Tratava-se de um magistral
detalhamento de como estimular nos analfabetos uma nova viso, na qual viessem
a perceber-se, afinal, no mundo e com o mundo, como sujeito e no como objeto
e com base na qual comearia a operao de mudana de suas atitudes anteriores.
No mesmo nmero da revista Estudos Universitrios, os demais artigos de
integrantes de sua equipe do Servio de Extenso Cultural (SEC), da Universidade
do Recife, tm o sabor primaveril do que ouvamos, fazamos e conversvamos na
poca. Em particular, os artigos A fundamentao terica do Sistema Paulo Freire,
de Jarbas Maciel (1963), Conscientizao e alfabetizao: uma viso prtica do
Sistema Paulo Freire, de Aurenice Cardoso (1963), e Educao de adultos e
unificao da cultura, de Jomard Muniz de Britto (1963), restituem-nos na verso
original o primeiro contedo da formao inicial dos coordenadores dos crculos de
cultura de Angicos. Quando ns, que iramos atuar como educadores nessa nova
viso, trabalhamos sobre conceitos e categorias bsicas, percebemos uma insistncia
particular no dilogo socrtico, na escuta, na construo coletiva do conhecimento.
A mesma metodologia e os mesmos contedos foram utilizados tambm na formao
inicial dos coordenadores de crculos de cultura das Quintas (em Natal), de Mossor
e, pelo que soubemos, dos que atuaram na Campanha de Educao Popular (Ceplar)
1 Paulo Freire (1967) referia-se a 4 milhes de crianas em idade escolar sem escola e a 16 milhes de analfabetos entre os brasileiros com mais de 14 anos de idade.
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da Paraba e dos que atuaram em Braslia estes j no mbito do Programa Nacional
de Alfabetizao.
Aps Angicos, alguns de ns continuamos a atuar como coordenadores e
como supervisores ao ampliar-se o trabalho no bairro das Quintas, em Natal, e, logo
depois, em Mossor. Comeamos a preparar as aes previstas para outros bairros
de Natal e para as cidades de Caic e Macau, j se pensando na segunda fase.
Enquanto isso, outros j se organizavam para impedir que tal iniciativa viesse a se
alastrar, taxando-a de subversiva.
Entre os primeiros relatos, destaca-se o livro As quarenta horas de Angicos;
uma experincia pioneira de educao, extrado de um dirio escrito pelo colega
Carlos Lyra (1996), um dos coordenadores dos crculos de cultura. Um relato, sem
retoques, do dia a dia da experincia, em seus pontos e momentos mais marcantes.
Em seguida, Educao como prtica da liberdade, livro escrito em Santiago
do Chile, no qual Paulo Freire (1967) retoma a temtica que abordara na revista
Estudos Universitrios. No captulo Educao e conscientizao, ele relata algumas
das experincias realizadas no Brasil e refere-se s fases de elaborao, j
mencionadas, acrescentando dados sobre o que chamou de execuo prtica do
mtodo com maior detalhamento do que ocorre aps o debate suscitado pela situao
geradora, quando se inicia o trabalho criativo de ler e escrever com base na palavra
geradora.
No mesmo livro, uma leitura obrigatria desvenda-nos o contexto da poca.
Trata-se do prefcio de Francisco C. Weffort, sob o ttulo Educao e poltica:
reflexes sociolgicas sobre uma pedagogia da liberdade, que descreve com riqueza
o que chamou despertar do movimento popular brasileiro na poca, referindo-se
aos vnculos do trabalho de Paulo Freire com a ascenso popular no perodo, sem
esquecer o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra
qualquer governo democrtico da Amrica Latina (Weffort, 1967, p. 10). Ele lembra
tambm algo importante para Paulo Freire: a correlao entre estagnao econmica
e social e o analfabetismo e, ainda, o esforo das elites no poder, para acomodar as
classes populares emergentes (...) sem que passem dos limites(p. 50).
Sobre a experincia de Angicos existe ainda um livro com informaes de
primeira mo, 40 horas de esperana, no qual o ento secretrio da Educao do
Rio Grande do Norte, Calazans Fernandes (1994), em coautoria com Antnia Terra,
revela, entre outros temas, parte das dificuldades de montagem institucional entre
o governo do Rio Grande do Norte, a Superintendncia do Desenvolvimento do
Nordeste (Sudene), o Ministrio da Educao (MEC) e a Aliana para o Progresso. Na
primeira parte, Calazans, com sua experincia profissional de jornalista, contextualiza
o que chamou de Revoluo no Serto. Na segunda, Antnia Terra aprofunda uma
abordagem sobre a experincia em si, tendo por base relatos diversos, desde a
formao inicial dos futuros coordenadores at uma breve sntese de cada uma das
40 horas, citando ainda os desdobramentos para o bairro das Quintas, em Natal, e
o de Boa Vista, em Mossor, e os preparativos, ainda em 1963, para implantar as
aes em Macau e Caic.
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Para informao, ressalte-se que prevamos a alfabetizao de 100 mil jovens
e adultos no planejamento (1963-1965) das atividades do Servio Cooperativo de
Educao do Rio Grande do Norte (Secern). Criado como autarquia, tinha como
diretor executivo o secretrio da Educao do Estado. Entidade autnoma, que iria
garantir a agilidade que a pesada mquina da Administrao no permitia.
Corrida contra o tempo
O governo Alusio Alves (1961-1966) tinha pouco tempo para executar seu
ambicioso programa. Isso explica porque ao eleger-se procurou rapidamente obter
ajuda financeira e tcnica na Sudene, no governo federal, na Comisso Econmica
para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal) com a qual inovou em matria de
planejamento. Deparou-se com o programa da Aliana para o Progresso, recm-
lanado pelo presidente Kennedy. Para acelerar o desenvolvimento econmico e
social da Amrica Latina, Kennedy afirmou que dois sculos de progresso precisam
ser comprimidos num espao de dcadas ou mesmo de anos. Em sua Mensagem
Anual Assembleia Legislativa, em junho de 1963, o governador Alusio Alves dizia
o mesmo para a educao: Fazer em trs anos o que no se fez em trs sculos.
Educao era uma das prioridades, ao lado de investimentos em infraestrutura
(estradas, energia, telecomunicaes). Segundo a referida Mensagem Anual, as
estatsticas indicavam que 65% da populao era analfabeta e que perto de 80% da
populao sabia apenas assinar o nome. A rede pblica acolhia apenas 20% da
populao em idade escolar, por falta de professores e de prdios escolares.
Em 3 de dezembro de 1962 foi assinado um convnio com a Aliana para o
Progresso, com vigncia de trs anos, baseado no Acordo de Cooperao para a
Promoo do Desenvolvimento Socioeconmico do Nordeste Brasileiro entre o Brasil
e os Estados Unidos, de abril do mesmo ano.
Logo em seguida, pelo Decreto n 3.995, de 9 de dezembro de 1962, foi criado
o Secern, j mencionado. Entre as onze metas, todas de suma importncia para o
Estado, a meta nmero nove interessava-nos diretamente:
1) formar e aperfeioar professores;
2) revisar ou elaborar os currculos do ensino elementar e normal;
3) instalar um servio de estatstica educacional;
4) organizar o Servio de Produo de Material Didtico;
5) construir e equipar um centro audiovisual;
6) assegurar o ensino primrio populao de 7 a 14 anos;
7) intensificar pesquisas e experincias sobre as condies regionais que
possibilitem melhor integrao do aluno e sua famlia na vida da
comunidade;
8) promover melhorias salariais para os professores e valorizao da carreira
do magistrio pblico;
9) promover a alfabetizao e educao de base para adolescentes e adultos,
assegurando o atendimento, no perodo, de at 100.000 pessoas acima da
idade escolar primria;
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10) promover a extenso da escolaridade e a iniciao pr-profissional, por
meio da instalao de pelo menos 10 oficinas de artes industriais; e
11) promover a assistncia escolar no que se refere alimentao, servios
mdicos e dentrios.
Em 10 de dezembro de 1962 fui contratado pelo Secern para coordenar as
atividades do Departamento de Alfabetizao, em uma corrida contra o tempo, diante
das metas ousadas da superviso da Sudene prxima e exigente e do contexto
geral brasileiro num clima de reivindicaes sociais e polticas e de mudanas. No
curto prazo, era preciso elaborar um programa altura dos desafios do programa
de governo, cumprindo nossa meta de 100 mil alfabetizados. Meta que, entusiasmado,
no encerramento das 40 horas de Angicos, o governador elevou para 300 mil ao
ouvir as metas anunciadas pelo presidente da Repblica, que visava a seis milhes
de alfabetizados em trs anos.
O que passamos a relatar foi possvel por causa de uma equipe de abnegados,
com responsabilidade profissional e dedicao mpar, resultantes de seu compromisso
social e poltico.
Ambiente favorvel
Tnhamos no Rio Grande do Norte um ambiente favorvel alfabetizao de
adultos com, pelo menos, duas experincias inovadoras e significativas: o Movimento
de Educao de Base (MEB) e a campanha municipal De P no Cho Tambm se
Aprende a Ler.
Em 1958, Dom Eugnio Sales criou a escola radiofnica, no conhecido
Movimento de Natal. Por meio da Rdio Rural comeara uma experincia que foi
mais alm do que a alfabetizao e a educao poltica, revelando-se catalisadora
das aes comunitrias em defesa dos direitos e da cidadania. O trabalho inspirou
a Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) a criar em 1961 o MEB, que
deveria instalar 15 mil escolas radiofnicas e que assumiu a conscientizao como
seu objetivo principal.
Em 1961, o prefeito Djalma Maranho iniciou, em Natal, a campanha De P
no Cho Tambm se Aprende a Ler, matriculando as crianas dos bairros pobres no
que se chamava o ensino primrio, com durao de quatro anos. Como as moradias
populares dos mesmos bairros, as escolas eram cobertas de palha e tinham cho
batido, diferenciando-se por oferecer ensino de qualidade e valorizar a cultura popular
em todos os seus aspectos. Disponibilizaram bibliotecas populares e ofereceram
cursos profissionalizantes, alm de alfabetizao para jovens e adultos analfabetos.
O ambiente favorvel era estimulado pela influncia da Unio Nacional dos
Estudantes (UNE), que tinha grande repercusso no Rio Grande do Norte, por meio
da Unio Estadual dos Estudantes (UEE). Finalmente, vrios grupos organizados de
jovens, como os da Ao Catlica, e grupos juvenis estimulados por partidos polticos
levaram a uma intensa participao dos estudantes nas diferentes aes de educao
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e alfabetizao popular. Sem medo de errar, afirmamos que os jovens universitrios
ramos a principal fora de trabalho nas trs atividades at agora mencionadas,
inclusive em nvel de direo.
A grande mobilizao social e poltica em curso gerou um ambiente geral
favorvel ao nosso trabalho, que se traduzia pelo apoio de toda natureza, vindo da
comunidade, de entidades locais, das Igrejas. Em Angicos, moradores chegaram a
ceder suas salas para que nelas fossem instaladas as carteiras escolares, que ali
ficaram de meados de janeiro at fins de maro de 1963. Na mesma cidade, o vigrio
recebeu-nos nas instalaes da parquia. Como coincidia com as frias escolares,
cedeu as instalaes do internato de dois colgios. Os homens foram acolhidos num
dormitrio do colgio masculino e as mulheres, no colgio feminino, no qual, alis,
fazamos as refeies e todas as reunies pedaggicas, que chamvamos seminrios,
sobre os quais escreverei adiante.
Em todo o Brasil, uma grande efervescncia permitia lutar por conquistas
sociais e polticas, ocupando as ruas, os sindicatos, o parlamento. Lutas que
acompanharam a campanha presidencial da qual saram vitoriosos Jnio Quadros e
Joo Goulart. No cabe detalhar aqui, mas elas esto presentes no contexto que
viabilizou inovaes e respostas de programas de cultura e educao popular na
poca.
No mundo, um ambiente igualmente favorvel a algumas mudanas.
Acentuavam-se as lutas pela independncia de antigas colnias europeias. Basta
verificar que, aps a independncia de trs pases entre 1957 e 1960 (Malsia, Gana
e Nigria), outros 27 se tornaram independentes at 1964. Em 1960, pases
exportadores de petrleo criaram a Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo
(Opep). Em 1961, a primeira conferncia internacional dos pases no alinhados
reuniu 25 pases. No mesmo ano, Kennedy anunciava a Aliana para o Progresso e
criava seu Peace Corps. Por sua vez, a ONU cria em 1963 o Programa Alimentar
Mundial (PAM), em 1964 a Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e
Desenvolvimento (CNUCED) e, em 1966, procurando maior agilidade, cria seu
Programa para o Desenvolvimento (Pnud). Na Igreja Catlica, o ambiente favorvel
s mudanas fica conhecido como o aggiornamento, que se traduziu no Conclio
Vaticano II e nas duas encclicas mais significativas no contexto: Pacem in Terris
(1963) e Populorum Progressio (1967).
Ambiente instvel e que se revelou hostil
J o ambiente poltico era de grande instabilidade e logo revelou sua
hostilidade.
Em nvel nacional, houve a renncia de Jnio Quadros (agosto de 1961) e a
recusa a dar posse a Joo Goulart, vice-presidente constitucional, suscitando, no
perodo, a transio para o parlamentarismo (setembro de 1961 a janeiro de 1963),
com trs primeiros-ministros, sucessivamente: Tancredo Neves, Brochado da Rocha
e Hermes Lima.
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No Estado do Rio Grande do Norte, as reaes naturais dos coronis que
lideravam currais eleitorais, mesmo entre os aliados do governador. Um exemplo
clssico foi o conflito inesperado quando, depois de Angicos, fomos para Mossor,
segunda cidade do Estado, e o chefe poltico do grupo aliado ao governador recusou-
se a nos receber e avisou explicitamente que no poderamos entrar em sua cidade
com aquele tipo de atividade. Impasse que foi contornado e explica porque Angicos
fora escolhida para a primeira experincia. Comeando por sua terra, o governador
ganhou autoridade moral para poder trabalhar em qualquer outra cidade.
Um pequeno conflito surgiu em Angicos depois que foram estudadas questes
relacionadas ao trabalho, suscitadas nos dilogos dos crculos de cultura, quando os
alunos puderam ler artigos da CLT e da Constituio Federal sobre direitos dos
trabalhadores. Alguns dos alunos eram pedreiros numa obra de construo civil,
exatamente a de uma escola pblica que tambm fazia parte do programa implantado
com o apoio da Aliana para o Progresso, e passaram a exigir o repouso semanal
remunerado, entre outros direitos que descobriam que no eram reconhecidos pelos
construtores. Sem sucesso, decidiram fazer greve. O construtor telefonou para o
secretrio da Educao dizendo que assim no poderia cumprir os prazos. Informou
que havia chamado operrios na cidade vizinha, Fernando Pedroza, mas que o
caminho da empresa fora impedido de entrar em Angicos, os operrios em greve
tendo convencido os outros a retornarem para casa, explicando-lhes a situao. No
sem humor, Calazans Fernandes convenceu o empresrio a assinar a carteira de
trabalho e respeitar os direitos trabalhistas.
Em nvel internacional, vivia-se uma exacerbao da Guerra Fria, com
repercusses em nosso continente, desde a vitria de Fidel Castro em Cuba (1959).
Entre os fatos mais significativos, esto a derrota do desembarque norte-americano
na Baa dos Porcos (abril de 1961), a construo do muro de Berlim (agosto de 1961)
e a crise dos msseis (outubro de 1962), tudo num clima de corrida espacial e de
perigosa corrida armamentista nuclear. O acirramento entre as partes parecia
caminhar inexoravelmente para uma hecatombe quando, em 25 de outubro, o Papa
Joo XXIII dirige um telegrama pessoal aos presidentes da Rssia e dos Estados
Unidos, cobrando responsabilidade e lembrando os efeitos nefastos de uma guerra
atmica, publicado no dia seguinte no Pravda e em jornais da Europa e dos Estados
Unidos.
A instabilidade e o acirramento das diferenas poltico-partidrias faziam
parte do contexto, gerando hostilidade a programas que poderiam significar
conscientizao de alguns brasileiros. Adversrios, que no queriam perder o poder,
temiam que os novos eleitores viessem desequilibrar seu eleitorado.
Em nosso caso, uma divergncia suplementar. As alianas naturais do
governador Alusio Alves aproximavam-no dos adversrios do presidente Joo
Goulart, do governador pernambucano Miguel Arraes, e do prefeito de Natal, Djalma
Maranho. Enquanto Paulo Freire e os estudantes filiados UNE naturalmente
tenderiam a encontrar-se numa futura eleio presidencial em campos opostos ao
governador Alusio Alves, aliado natural de Carlos Lacerda e Magalhes Pinto. J se
falava em potenciais candidatos do Nordeste. No Estado, o prefeito poderia vir a ser
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candidato a governador, como opositor ao candidato de Alusio Alves. Para apimentar,
as divergncias em torno do apoio da Aliana para o Progresso. A esquerda latino-
americana, com base no pronunciamento do representante de Cuba, Che Guevara,
opunha-se Aliana criada por Kennedy, desde seu lanamento na Conferncia da
Organizao dos Estados Americanos (OEA) em Punta del Este (1961). Nessa
Conferncia, Che denunciara o que chamou de uma tentativa de enfraquecer a
influncia cubana no continente.
Esta ltima questo levou-nos a mltiplas reunies entre as equipes do
governo de Pernambuco e da prefeitura de Natal, os dirigentes da UEE e os
representantes da UNE, a equipe de Paulo Freire no SEC da Universidade do Recife
e os estudantes convidados para participar de Angicos e do Secern. Voltaremos
rapidamente ao assunto na parte relativa montagem institucional, por ser algo
que no poderia ser ignorado e que exigiu delicada negociao, sob pena de impactar
mais adiante as atividades.
A Guerra Fria
No temos dvidas quanto influncia da Guerra Fria na paralisao das
atividades do Secern, em primeiro lugar as de alfabetizao. H um relacionamento
direto pouco conhecido no Brasil e tratado com detalhes pelo historiador da
Universidade do Texas, Andrew J. Kirkendall (2010).
Inicialmente, prevaleceu a Aliana para o Progresso em sua verso original,
criada pelos democratas, conforme anunciou o presidente Kennedy em maro de
1961. Viso que influenciou as primeiras equipes que conversaram com o secretrio
Calazans Fernandes e, entre os que visitaram as 40 horas de Angicos, os primeiros
relatrios favorveis, como as declaraes publicadas no The New York Times pelo
professor Phillip Schwab, diretor de educao da United States Agency for
International Development (Usaid): pretendemos fazer com que esse povo seja
cidado (...). Os adultos so instrudos de que o voto a arma do povo (...) a educao
para o rico e para o pobre (...) a reforma agrria uma necessidade urgente. Ou,
ainda, uma primeira reao escrita do ento embaixador Lincoln Gordon, na qual
afirma ao governador Alusio Alves: estou sugerindo aos governos estaduais do
Brasil conveniados com a Aliana que adotem o experimento de Angicos. triste
constatar que tudo isso terminaria num presidente assassinado, e com ele, o sonho
de alguma mudana para milhes de americanos. E na submisso aos vendedores
de armas
Num segundo momento, passou a predominar o pensamento dos norte-
americanos mais chegados ao Pentgono e seus aliados locais, para quem a atividade
surge como um projeto subversivo visando tomada do poder pelas armas e
pretendendo transformar o Nordeste brasileiro numa nova Cuba. Veja-se a extensa
literatura disponvel sobre as razes do golpe no Brasil, a selvagem e rpida represso
s atividades de alfabetizao e a precria argumentao contida nos Inquritos
Policiais Militares (IPM). Foram reprimidas no somente as do Secern, mas tambm
as do MEB e da campanha De P no Cho Tambm se Aprende a Ler.
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Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013
Aqui teramos outro captulo, que no cabe na presente publicao sobre as
40 horas. Com diferentes testemunhos, de alunos e coordenadores, alm de
inquritos existentes, esta parte resta a escrever. No tem somente interesse
histrico, mas ensinamentos sobre modos de agir e pensar dos que se opem
frontalmente alfabetizao de jovens e adultos e que, finalmente, so os grandes
vitoriosos na medida em que nenhum programa retomou as atividades.
Montagem institucional
Dos relatos, podemos deduzir certa complexidade do que chamaria de
montagem institucional para tornar possveis as 40 horas de Angicos e o que se
seguiria no Rio Grande do Norte. Para viabilizar um segundo objetivo do professor
Paulo Freire, era preciso levar ao prprio MEC uma corajosa e inovadora poltica
visando universalizar o acesso alfabetizao para todos os jovens e adultos
brasileiros.
No poderamos deixar de trazer a pblico alguns dos dados que seguem. O
sucesso ou o fracasso de programas de educao deveu-se, em alguns casos, ao fato
de atribuir importncia ou ser pego de surpresa por questes sobre as quais vamos
tentar trazer esclarecimentos. Esses dados foram importantes para as 40 horas de
Angicos e faziam parte de nosso painel de navegao enquanto gestores, uma vez
que respondemos positivamente ao convite de Paulo Freire para implantar o trabalho
em Angicos e, a partir da, em outras regies do Estado.
As questes macroinstitucionais foram resolvidas por Calazans Fernandes,
secretrio da Educao que acumulava as funes de diretor executivo do Secern,
e esto relatadas com preciso e humor por ele mesmo, na obra j citada, 40 horas
de esperana. Foi laborioso o parto do Acordo de Cooperao finalmente assinado
entre o governo brasileiro e a Usaid/Brasil, tornado possvel com a participao do
MEC e da Sudene, e no o acordo direto entre uma unidade da Federao e a Usaid,
pretenso inicial ultrapassada.
Vale lembrar que a convite do ministro Darcy Ribeiro, Paulo Freire j
representava o MEC junto Sudene, nos dilogos com a Usaid. Foi ouvido em muitos
outros projetos, sempre exigindo respeito soberania brasileira em seus diferentes
aspectos, no que foi apoiado por Celso Furtado, ministro do Planejamento que
acumulava a superintendncia da Sudene, e por Nailton Santos, um dos diretores
da Sudene.
Quanto ao nosso posicionamento em relao a participar de um programa do
governo do Estado financiado com doao da Aliana para o Progresso, tivemos
mltiplas reunies, sem chegar a consenso. Cada um possua suas convices, a
partir da anlise que fazia e da projeo futura sobre as consequncias da ao.
Estavam claros os objetivos do presidente Kennedy para a Amrica Latina, os riscos
de projetar nacionalmente o governador Alusio Alves em caso de sucesso do
empreendimento, o que poderia benefici-lo num embate eleitoral contra candidatos
da esquerda, sobretudo no Nordeste.
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Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013
Na UNE e na UEE, as decises foram radicais: impossvel compactuar com a
Aliana para o Progresso. Deveramos sair, ou no entrar, e denunciar os riscos da
operao claramente imperialista. Esta foi a deciso clara num Conselho da UNE
que reuniu, em Vitria do Esprito Santo, dirigentes da Unio Nacional e presidentes
das Unies Estaduais de todo o Brasil. Eleito presidente da UEE/RN em 1962, aps
memorvel campanha, a primeira com eleies diretas, cabia-me acatar a deciso
ou fazer o que fiz: renunciar presidncia da entidade.
Nos dilogos francos e respeitosos com os amigos que defendiam as posies
anunciadas por colegas do Movimento de Cultura Popular (MCP) pernambucano e
da campanha De P no Cho Tambm se Aprende a Ler, que trabalhavam
respectivamente com Miguel Arraes e Djalma Maranho, chegamos perto de um
impasse da mesma natureza. Vale salientar que, ciente dos questionamentos, o
secretrio Calazans Fernandes aguardava a deciso, no sem manifestar impacincia,
temendo atrasos. Tivemos mltiplas reunies em Natal e no Recife, estas no gabinete
de Paulo Freire, no SEC da Universidade do Recife. Lembro-me de um dado
importante, quando procuramos identificar em nmeros quantos analfabetos
poderiam vir a beneficiar-se no mesmo perodo dos programas da prefeitura de Natal
e do Secern. Ao compararmos, ficou evidenciada a desproporo. Agigantou-se nossa
preocupao inicial de garantir ao maior nmero de norte-rio-grandenses o acesso
educao, como um valor intrnseco ao nosso trabalho. Divergamos na anlise
quanto a um comprometimento possvel e a possibilidade de manter a desejada
autonomia pedaggica e poltica. Paulo Freire chegou a uma deciso clara e afirmou
com convico: No tenho medo da Aliana para o Progresso. Ela que tenha medo
de mim!. Deciso que depois identificou como proftica, em obra conjunta com
Srgio Guimares:
Eu tinha uma relao muito estreita com o Djalma Maranho, e quando conversei com o governador fiz questo de dizer que continuaria mantendo as minhas relaes pedaggicas e polticas com a Prefeitura de Natal. Evidentemente, havia um antagonismo de posies polticas entre Djalma Maranho, um homem de esquerda, e Alusio Alves, um conservador.
Depois conversei seriamente com a equipe do Djalma Maranho e manifestei a minha convico e fui quase proftico , de que a Aliana para o Progresso que iria financiar, como financiou, a campanha de Angicos, certamente iria estudar o que se desenvolvesse em Angicos, e colocaria um ponto final em tudo. Caso acontecesse isso, se a Aliana recuasse, eu disse que deveramos ir praa pblica para mostrar concretamente as intenes colonialistas e imperialistas da Aliana para o Progresso. (Freire, Guimares, 2010, p. 36)
Em parte, estas questes so suscitadas no artigo de Geniberto Campos nesta
revista, sob o titulo Paulo Freire: o homem e o mtodo. Vale ressaltar que, entre
todos os participantes das decises, um auxiliar direto do governador Miguel Arraes
manifestou-se a favor de nossa posio: o economista Marcos Correia Lins.
No caso concreto, Paulo Freire exigiu que os recursos financeiros doados pela
Aliana para o Progresso ao governo do Rio Grande do Norte fossem repassados
Sudene. Era a Sudene ento que nos transferia os recursos e a quem prestvamos
contas, segundo regras brasileiras. Ainda, o convnio assinado entre o reitor da
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Universidade do Recife e o governador do Estado no previa remunerao da equipe
do Servio de Extenso Cultural (SEC), j remunerada pela Universidade. O Estado
assumia os custos de deslocamento e hospedagem, e uma gratificao aos professores
que acompanhavam o convnio, com exceo do diretor do SEC, o prprio Paulo
Freire. Isso porque ele era professor da Universidade e recebia uma gratificao pelo
cargo de diretor do Servio.
Quanto s 40 horas de Angicos e s demais atividades que se seguiriam, Paulo
Freire exigiu que o trabalho fosse entregue liderana universitria e indicou meu
nome. Desejava garantir inteira autonomia poltica e pedaggica.
Como vimos no incio, tratava-se de elaborar um rigoroso planejamento para
atingir os resultados esperados. E, ao mesmo tempo, comear a operacionalizar, tirar
do papel as aes consistentes para obter resultados na ponta, junto a cada analfabeto.
Planejar, executar e avaliar simultaneamente. Exigncia inevitvel pela curta durao
das 40 horas. Mobilizar, selecionar e preparar os coordenadores dos crculos de
cultura. Viabilizar sua formao inicial e continuada. Mobilizar analfabetos, convenc-
los a participar da atividade, ouvi-los. Estimular a pesquisa preliminar sobre universo
vocabular e situaes de aprendizagem, selecionar palavras geradoras, organizar a
preparao e difuso do material educativo e tudo o mais correspondendo natureza
especfica do mtodo que utilizamos. Discutimos detalhes com Paulo Freire e sua
equipe. Sem esquecer a preparao da segunda fase, na poca percebida como ps-
alfabetizao, como atividade de reforo e, logo em seguida, como formao
complementar. Essa a tarefa dos que integramos o setor de alfabetizao do Secern,
do qual assumi a direo no dia seguinte sua criao.
Em muitos casos, pela novidade e pelas dificuldades prprias de uma secretaria
de Educao num Estado pobre, algumas dessas aes se tornavam mais difceis de
executar. Em Angicos, necessitaramos de projetores de slides. No encontramos
sequer 20 projetores venda em Natal e So Paulo. Para os bairros sem eletricidade,
necessitvamos de projetores que operassem com bateria de automvel ou com
querosene, como as antigas lmpadas Coleman. Para produzir os slides, o prazo do
laboratrio do Rio de Janeiro era maior que o previsto. As carteiras escolares para
300 alfabetizandos tiveram que ser compradas e transportadas de Natal. Dialogamos
com a comunidade para identificar onde seriam instalados os crculos de cultura.
Seria muito longo listar tudo o que devamos prever e preparar, inerente a esse tipo
de atividade. O que conta que no tnhamos tempo para improvisaes e, uma vez
comeada a atividade em Angicos, longe de Natal, no podamos recuar.
A mobilizao da UNE e da UEE facilitou o recrutamento de cerca de 20
candidatos voluntrios, dispostos a consagrar suas frias para atuar nas 40 horas
de Angicos. Paulo Freire veio a Natal com a equipe do SEC para um seminrio de
formao inicial realizado na Faculdade de Direito, na Ribeira. Ambas as atividades
so relatadas por Valquria Felix, em seu artigo.
Na falta de um mapa de Angicos, subimos na torre da igreja e esboamos um
desenho que permitia atribuir aos coordenadores uma visita domiciliar. Em todas
as casas, procuramos saber se existiam analfabetos e quantos, convidando-os ao
mesmo tempo a participar de nossas atividades.
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Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013
As principais questes logsticas foram equacionadas, com total apoio do
gabinete do diretor executivo e da equipe administrativa do Secern indicada pela
Sudene, no mbito de seu acompanhamento e controle preconizados pelo convnio
assinado.
As 40 horas
Existem publicados mltiplos relatos detalhando o que se fez em cada uma
das 40 horas, especialmente o livro de Carlos Lyra, j citado. Alguns at mesmo
acessveis pela internet.2 Vale salientar o que chamaria de grandes blocos.
Nas duas primeiras noites, um momento inicial, importantssimo. Toda a
discusso sobre o que ficou chamado de aula da cultura, ou dilogos sobre o
conceito antropolgico da cultura, a partir de uma srie de slides, fundamental para
abrir concretamente o dilogo respeitoso, nos termos do que Paulo Freire anunciava
no trecho que abriu o presente artigo. Aquilo que mais adiante o professor Osmar
Fvero (2012) chamaria ovo de Colombo, e que Paulo Freire descreveu inicialmente
em seu primeiro livro, j citado, com uma concluso que se realiza efetivamente,
anunciada na pgina 110 da mesma obra:
E pareceu-nos que a primeira dimenso deste novo contedo com que ajudaramos o analfabeto, antes mesmo de iniciar sua alfabetizao, na superao de sua compreenso mgica como ingnua e no desenvolvimento de crescentemente crtica, seria o conceito antropolgico de cultura. A distino entre dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua realidade. O sentido de mediao que tem a natureza para as relaes e comunicao dos homens. A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que no fez. A cultura como resultado de seu trabalho. Do seu esforo criador e recriador. O sentido transcendental de suas relaes. A dimenso humanista da cultura. A cultura como aquisio sistemtica da experincia humana. Como uma incorporao, por isto crtica e criadora, e no como uma justaposio de informes ou prescries doadas. A democratizao da cultura dimenso da democratizao fundamental. O aprendizado da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introduo no mundo da comunicao escrita. O homem, afinal, no e com o mudo. O seu papel de sujeito e no de mero e permanente objeto.
..................................................................................................................................
Todo este debate altamente criticizador e motivador. O analfabeto apreende criticamente a necessidade de aprender a ler e a escrever. Prepara-se para ser o agente deste aprendizado.
E consegue faz-lo, na medida mesma em que a alfabetizao mais do que o simples domnio psicolgico e mecnico de tcnicas de escrever e de ler. o domnio dessas tcnicas, em termos conscientes. entender o que se l e escrever o que se entende. comunicar-se graficamente. uma incorporao. (Freire, 1967, p. 108, 110).
A partir da 3 noite, progressivamente, os dilogos provocados pelos slides
representando cada uma das situaes selecionadas, com suas palavras geradoras,
o estudo das slabas, das famlias de slabas. Ler e escrever, individualmente, em
seu caderno. Ler e escrever, individual e coletivamente, no quadro negro.
2 Ver a Seo Bibliografia Comentada.
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Progressivamente, criar palavras e os novos patamares, como escrever frases,
escrever bilhetes e cartas.
A partir da 38 noite, todos, ansiosos pelo encerramento, aguardando a
confirmao da data da vinda do presidente da Repblica. Conforme relata Valquria
Felix, identificamos de forma apenas perceptvel que alguns alunos aparentavam
encontrar dificuldades inesperadas. Num movimento explicvel, no queriam chegar
ao fim das 40 horas. O assunto foi discutido em nossos seminrios, objeto de dilogo
com os alunos, e foi superado.
Para no cometer omisso histrica, cabe salientar que na primeirssima noite
fizemos algo que no mais repetimos. Aplicamos um teste psicolgico de inteligncia
no verbal,3 conforme a programao da equipe do SEC. Poucos alunos o entenderam,
muito poucos o terminaram e a maioria se desencorajou, pensando que seria muito
difcil a aprendizagem. Foi trabalhoso resgatar a mobilizao. Sobre o assunto,
conversamos francamente com Paulo Freire e sua equipe e tivemos a primeira certeza
em relao a abertura, humildade e esprito cientifico que encontraramos da parte
deles, em nosso dilogo. Acertamos que poderamos aplicar num outro momento,
mas nem isso foi mais solicitado. Para facilitar, no computamos essa noite, quando
nos referimos a cada uma das 40 horas.
Aula final, pelo presidente Joo Goulart
Na 40 hora, a esperada fala do presidente Joo Goulart, dirigindo-se aos
alunos e a alguns de seus familiares, perante ministros, todos os governadores do
Nordeste, dirigentes da Sudene e o comandante da 7 Regio Militar. Aps o
governador do Estado, Paulo Freire resumiu o que acabara de ocorrer em Angicos
e o presidente Jango se dirigiu aos alunos, no encerramento. Sem respeitar o
protocolo, um concluinte, o sr. Antnio Ferreira, fez um discurso direto e objetivo.
No espervamos tal atitude, e nos surpreendeu quando pediu a palavra. Lembro-
me de que ouvimos algum dizer-lhe: Quebrou o protocolo! Surpreso, o orador
perguntou-se: Quebrei o qu?, mas no atribuiu maior importncia ao que teria
quebrado. O texto de seu discurso faz parte desta publicao, por sua mensagem
direta e pelo valor histrico. Ele agradece ao presidente a iniciativa das 40 horas,
que veio matar a fome da cabea, e pede que seja levada a todos os brasileiros.
Ao trmino da solenidade, um inesperado dilogo relatado por Calazans
Fernandes. Juntamente com o chefe da Casa Militar da Presidncia da Repblica,
esteve presente o general cearense Castelo Branco, que ento comandava a 7 Regio
Militar, que tem sede em Recife. Segundo Calazans Fernandes (1994, p. 18), sada,
quando o grupo j se dispersava procura dos carros para o regresso a Natal, o
general nos chamou e disse: Meu jovem, voc est engordando cascavis nesses
sertes. Ao que respondemos: Depende do calcanhar onde elas mordam, general.
Sobre o mesmo assunto, a historiadora Ana Maria Arajo Freire (2006) relata
que, no jantar realizado na mesma noite no Palcio das Princesas, no Recife, o general
3 Teste de inteligncia no verbal (INV), de Pierre Weil.
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quis sentar-se ao lado de Paulo Freire. Novo dilogo, no mesmo sentido, o que
explicaria seu interesse pessoal em participar da solenidade de Angicos. Em sntese,
o general declarou a Paulo Freire que soubera que ele era tido como subversivo, mas
que quela hora havia adquirido a convico de que realmente se tratava de um
subversivo. Dilogo confirmado ainda em entrevista de Paulo Freire ao Museu da
Pessoa, em agosto de 2003, quando lembrou outra afirmao do general ao comprovar
a subverso, porque defende uma pedagogia sem hierarquia. Paulo Freire
respondeu que, efetivamente, lutava para subverter a ordem injusta na qual vivia,
afirmando ainda: defendo valores, e estes estabelecem as hierarquias.
Isso pode explicar em parte a agilidade da imediata represso, mas no explica
nem justifica a violncia desproporcional que vitimou alguns dos dirigentes e
coordenadores das atividades de alfabetizao e educao de jovens e adultos,
conforme relatado em sntese mais adiante. Represso que teve como objetivo
declarado eliminar um foco de subverso comunista que pretenderia fazer do
Nordeste uma nova Cuba. Como anunciado desde antes do golpe, por no aceitar
o que afirmavam ser uma subverso de valores, subverso que punha em risco seus
privilgios.
Resultados crescentes
Era ntido o crescimento da aprendizagem. Efetivamente, liberado o dilogo
e estimulada a capacidade de observao com a aula da cultura, a conversa flua,
salvo exceo de algum mais tmido, que no ficava esquecido e logo era convidado
a participar, com questes diretas que o estimulavam.
Para escrever, algumas dificuldades iniciais, naturais em adultos. A mo
pesada quebrava a ponta do lpis, que furava as folhas do caderno, e tinha dificuldades
de escrever mesmo uma s palavra numa folha inteira. Mas exatamente por serem
adultos, pouco a pouco prevalece o domnio e escrevem frases na mesma folha antes
percebida como insuficiente. Utilizvamos slides 24 x 36 mm. Alguns adquiriram
uma preciso to grande que chegaram a escrever palavras ou uma frase curta em
um slide em papel vegetal, projetado no quadro, para que todos pudessem ler.
A curiosidade dos vizinhos ou familiares manteve-se quase sempre inalterada.
No havia cinema nem televiso na cidade. Assim, muitos vinham assistir atravs
das janelas ou portas.
Um clima permanente de motivao foi mantido na cidade de Angicos. Carlos
Lyra manipulava com maestria um projetor de 16 mm, e tnhamos disposio uma
unidade mvel cedida pelo United State Information Service (Usis Servio de
Informao dos Estados Unidos). Um pequeno reboque cinza, com gerador potente,
projetor e grande tela, caixas de som e toda a complexa fiao. Projetvamos
documentrios e filmes educativos cedidos pelo Usis, mas confesso que, algumas
vezes, preferimos substituir a fala do som original por nossos prprios comentrios.
Havia tambm a curiosidade de visitantes, que no foram poucos. Inclusive
jornalistas mobilizados por Calazans Fernandes e Luiz Lobo, observadores da Aliana
para o Progresso e da Sudene, polticos locais e da regio. Todos respeitaram a
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exigncia inicial, no interrompiam as atividades em sala, ficando a observar do lado
de fora, conversando antes ou depois das aulas com alunos e coordenadores.
Vale ainda ressaltar que, para a futura motivao dos analfabetos em outros
municpios, encomendamos ao jornalista Luiz Lobo um filme em 16 mm, As 40 horas
de Angicos, hoje disponvel na internet sob o titulo Alfabetizao de adultos
Angicos.4
A importncia dos seminrios
As 40 horas de Angicos foram um laboratrio vivo, em tamanho real. Mas
estvamos conscientes de que algumas caractersticas diferiam do que poderia vir
a ser a forma de trabalho futuro, ao universalizar a proposta dos crculos de cultura
para todos os brasileiros analfabetos.
Uma diferena fundamental era a dedicao exclusiva e integral dos
coordenadores, todos voluntrios, cuja origem social e diversidade de cursos
universitrios traziam para os debates uma abordagem diversificada e multidisciplinar.
A rotina se estabeleceu conforme o planejado. Aps a formao inicial j mencionada,
contvamos com a assessoria de Paulo Freire e sua equipe, que vieram a Angicos
em mdia a cada 15 dias, por uma durao mdia de trs dias, e incentivaram que
nos reunssemos todas as manhs num seminrio interno, no qual confrontvamos
teoria e prtica.
noite, os debates nos crculos de cultura, dispersos pela cidade, inclusive
em bairros de difcil acesso, alguns sem iluminao nas ruas ou energia eltrica.
Pela manh, um seminrio que durava mais de trs horas. Preparvamos as tarefas
para a noite, aprofundando itens referenciados no roteiro, disponibilizado
anteriormente pela equipe do SEC durante a formao inicial. Cada um relatava os
progressos, acertos e dificuldades enfrentados na noite anterior, gerando debates
muitas vezes acalorados. Confrontvamos o que ocorrera na noite anterior com a
teoria disponvel. Desse confronto poderia nascer um questionamento a discutir com
Paulo Freire e sua equipe ou entre ns, quando ali no estavam. E tentava-se
reelaborar a teoria, renov-la, luz do que havamos verificado na prtica.
Aqui, testemunhamos a humildade e o esprito cientfico do professor Paulo
Freire. Sempre curioso e disponvel para ouvir sugestes e crticas, refletirmos juntos
e reelaborar a teoria no ato. Confrontado pela prtica, incorporava o que ouvira,
identificando novos caminhos ou lembrando ensinamentos esquecidos, que no
teramos aplicado. Estas qualidades foram reveladas mais tarde, at mesmo quando
foi dirigir o Programa Nacional de Alfabetizao do MEC. Veja-se a velocidade com
que foram modificados, quase sempre para melhor, os slides contendo as palavras
e situaes de aprendizagem e mesmo os da aula de cultura enriquecidos mais
tarde com a linda arte de seu amigo Francisco Brennand.
Durante mais da metade das 40 horas, insensivelmente, nossa equipe tentava
um ritmo similar para o conjunto dos crculos, o que foi sendo abandonado
4 Disponvel em: 1 parte 530; 2 parte 603.
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Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013
naturalmente. Descobrimos que nem numa mesma classe havia aprendizagem no
mesmo ritmo, sobretudo em relao leitura e escritura. Devia prevalecer,
entretanto, um apelo solidariedade, o que nos permitiu descobrir que um colega
alfabetizando, muitas vezes, ajudava com mais prioridade a superar aquela
dificuldade do que um dos coordenadores, em virtude da linguagem, das imagens
que trazia, da motivao personalizada.
Identificada uma dificuldade de aprendizagem com tal ou tal tema ou palavra,
tentvamos trazer ensinamentos tericos que permitissem ultrapass-la. Na ausncia,
deduzamos ou crivamos alguma ideia e proposta, a confirmar mais adiante.
Identificada uma dica, uma facilidade maior encontrada em um momento
dado, muitas vezes sugerida por um aluno, vamos a possibilidade de propor ou
aplicar algo similar em outros crculos de cultura. Assim nasceram algumas
sugestes, como o nome de ficha da descoberta para a ficha que apresentava o
conjunto das famlias silbicas de uma palavra, cuja combinao estimulava a
criatividade em sala. Na mesma ocasio, diante de palavras criadas ao juntar algumas
slabas, tecnicamente corretas, mas que no eram do conhecimento de ningum da
sala, alguns alunos passaram a identific-las como palavra morta ou, ainda,
inexistente, embora os autores geralmente dissessem que a palavra existia, que era
o nome de um animal de estimao ou o apelido de um familiar. Outra sugesto
importante nos facilitou a aprendizagem no momento de criar palavras e frases com
base na mesma ficha da descoberta. Uma coordenadora explicou em seu crculo
de cultura que seria algo como construir uma parede de tijolos e algum na sala
lembrou que, s vezes, se corta o tijolo pela metade, o que fez na hora ao construir
sua frase.
No seminrio quotidiano, passvamos e repassvamos os dilogos com os
alunos. Aprofundvamos as questes que eram discutidas, o que havamos aprendido,
o que exigia melhor esclarecimento e preparvamo-nos para os dilogos e debates
da noite, alimentando-nos do material estudado e de nossas diferenas e
convergncias.
Finalmente, diante de algum aluno que faltou, resolvamos visit-lo tarde.
Dois coordenadores iriam saber o porqu da falta e, se fosse o caso, incentiv-lo
para que voltasse a participar das atividades. Com sucesso, quase sempre.
Num dos seminrios decidimos quanto a um pedido especial e aqui
acrescento um testemunho pessoal quanto ao sr. Antnio, o orador da 40 hora.
No incio das 40 horas meu pai solicitou que lhe apresentasse um aluno que fosse
efetivamente analfabeto. Indicou que gostaria de v-lo novamente na metade do
curso e mais para o final. Conversei com os coordenadores, que falaram com seus
alunos. O sr. Antnio se prontificou, o que me pareceu interessante por serem quase
da mesma idade, ele e meu pai, advogado, jornalista e professor universitrio, ambos
com pouco mais de 50 anos.
Na primeira conversa entre eles, ouvi que conhecia uma letra, o O igual
boca de uma panela. Demonstrou claramente desconhecer outras letras, no
sabendo decifrar um livro ou a mais simples anotao. Curioso notar que o sr. Antnio
era um comerciante conceituado, rpido em clculos mentais, fruto de sua prtica
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Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013
profissional. Com cerca de 20 horas, nova visita. Animaram-se os dois, leu e escreveu
frases, assim como um bilhete. Leu e resumiu algo simples. Com quase 40 horas,
houve mais um encontro, na biblioteca de meu pai, que tinha na poca mais de 10
mil livros, imediatamente apelidada pelo visitante de armazm de livros. Leu e
escreveu no seu ritmo e sem problemas. Leu inclusive verbetes de uma enciclopdia,
demonstrando pleno entendimento. Recebeu um livro em ingls, que folheou.
Perguntado, respondeu que Ler, eu leio, porque sei ler. Mas no entendo. Se me
escuto, parece o que falam os homens da fazenda da Sanbra. Efetivamente, no
longe de Angicos havia uma grande plantao de agave e uma usina de uma firma
inglesa, a Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro (Sanbra). Finalmente, ficou
surpreso quando folheou um livro em alemo. Perguntou se no era uma armadilha.
Afirmou que um livro assim no podia existir, sem vogais, com palavras ilegveis.
Verifiquei que meu pai, Otto de Brito Guerra, um dos lderes da Igreja Catlica e
estudioso de sua Doutrina Social, simptico ao mtodo e s ideias de Paulo Freire,
nada mais queria para fazer sua prpria avaliao.
A profecia e a represso
No ltimo trimestre de 1963, diminui o ritmo do Secern. Tnhamos dificuldades
para concretizar a abertura de trabalho em novas frentes previstas e programadas.
Ao mesmo tempo, Paulo Freire aceitou o convite do ministro da Educao para montar
o Programa Nacional de Alfabetizao, que deveria comear por dois projetos piloto,
um no antigo Estado do Rio de Janeiro, cuja capital era Niteri, e outro no Estado
de Sergipe.
Realizava-se a profecia de Paulo Freire. A propsito disso, dois jornalistas
norte-americanos publicaram em seu livro: Em janeiro de 1964, a insatisfao com
a tcnica pedaggica de Freire e o desconforto em torno do contedo poltico do
programa levaram a Aliana para o Progresso a retirar seu suporte financeiro
(exatamente trs meses antes do golpe de Estado contra Goulart) (Levinson, Onis,
1970 apud Freire, Guimares, 2010, p. 39).
No fim de 1963, alguns de ns fomos convidados para levar a Sergipe nossa
experincia adquirida no Rio Grande do Norte, sem abandonar o Secern. No cabe
detalhar aqui o que foi Sergipe, por fugir ao tema de Angicos. Resta um tema que
merece estudos, inclusive porque havia uma ideia inicial de somar foras com as
atividades do MEB, em relao ao qual o Estado de Sergipe tambm esteve entre os
pioneiros.
No podemos ignorar que foi a partir de Angicos que se levantaram as
oposies para o que chamavam de atividade subversiva. Fomos surpreendidos
pelo golpe: no dia 2 de abril, nosso escritrio em Aracaju foi invadido pelo Exrcito,
procurando literatura subversiva, dinheiro e provas de desvio dos recursos do MEC.
Paulo Freire tinha tido a precauo de convidar para integrar nossa equipe um
experiente gestor financeiro que antes de sair, deixava as contas em dia,
rigorosamente. Decidimos voltar por terra para Natal, ficando em Sergipe o colega
Paulo Pacheco, da equipe do SEC, diretor do projeto piloto. No meio do caminho, em
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Caruaru, fui preso por tropas do Exrcito, com mais dois colegas, Pedro Neves e Jos
Ribamar. Em um jeep, fomos levados algemados para a 2 Companhia de Guardas
em Recife, disposio do coronel Ibiapina. Mais tarde, esse coronel prendeu, na
mesma Companhia de Guardas, o prprio Paulo Freire, para igualmente responder
a seu Inqurito Policial Militar (IPM). Seguiu-se, para Paulo e para mim, um longo
perodo de privaes, entre priso e exlio, cada um por seu lado. Trata-se de outra
histria, embora no desvinculada do que se passou em Angicos. As acusaes
foram finalmente rejeitadas pelo Superior Tribunal Militar (STM), e recentemente
ambos fomos anistiados pela Comisso Especial do Ministrio da Justia. Ficou o
sofrimento pessoal, familiar, as marcas da dureza da priso e das dificuldades do
exlio.
Coordenadores e alfabetizandos sofreram com a represso, sem reaes mais
significativas de solidariedade, diante da represso dominante. Alunos e seus
familiares atemorizados diretamente por militares uniformizados chegaram a queimar
seus cadernos, exemplares nicos e testemunha indelvel de um grande passo. Ao
celebrarmos os 50 anos das 40 horas de Angicos, ouvimos muito sobre as dificuldades
de uns e outros. Histria que ainda no foi contada. Houve manifestaes de
solidariedade de familiares e amigos, em maior grau aquela dirigida diretamente
aos que sofremos a arbitrariedade e brutalidade da priso poltica.
Algumas lacunas
Nas 40 horas, no reservamos nenhum momento para uma iniciao
matemtica. Os nmeros eram manipulados ao se escrever cada dia a data, incluindo
tambm o dia da semana. Esse assunto nunca foi discutido a fundo entre ns, mas
constvamos que os adultos no tinham problemas para os clculos de seu dia a dia.
Na profisso, na feira, no mercado, onde fosse. Mais adiante soube que Paulo Freire
reuniu-se com o professor Ubiratan DAmbrosio. Um dilogo entre os dois para um
congresso de matemticos em Sevilha permitiu levantar algumas hipteses. Ainda,
em dilogo na Unesco com especialistas da etnomatemtica, pude descobrir mais
tarde como existem convergncias que nos permitem respeitar na aprendizagem da
matemtica os mesmos princpios que defendemos para a aprendizagem do ler e
escrever.
Na corrida contra o tempo, no soubemos dar tempo ao dilogo e interao
com as atividades do ensino regular no municpio ou na prpria Secretaria da
Educao do Estado. De um lado, as 40 horas aconteceram durante as frias escolares.
De outro, apesar de o vasto programa do Secern incluir atividades inovadoras em
matria de formao de professores e de renovao de currculo, elas apenas se
iniciavam. Finalmente, descobrimos depois porque o secretrio da Educao
contribuiu para nos isolar. Calazans guardava na manga uma carta, temendo que
no dssemos conta do trabalho, como revelou em seu livro j citado. Se soubssemos,
na poca, teramos includo essa alternativa dentro do que chamamos de ambiente
hostil.
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Prevenido quanto a eventual determinao do governador Aluzio Alves no sentido de impedir a conexo de Angicos com Miguel Arraes, o secretrio havia evoludo com antecedncia suficiente para a alternativa de colocar em cena uma equipe de professores escolhidos do Centro de Estudos de Pesquisa (CEP) da Secretaria de Educao, e entre os profissionais colocados disposio do Estado por outros governos.
Somente sabiam destas providncias o Secretrio e a gacha Lia Campos, diretora do CEP. Como no ritmo do Brasil da poca, trabalhava-se com o impondervel. A armao pernambucana dentro do Rio Grande do Norte poderia explodir. Ela envolvia justamente o municpio de nascimento de Alusio. Se fosse o caso de substituir a equipe, isso s deveria ocorrer a partir de trs de dezembro, aps a assinatura do convenio MEC-Sudene-Usaid. (Fernandes, Terra, 1994, p. 95).
Tambm tivemos dificuldades de conviver com a rigorosa e prudente
burocracia do Secern, com seus instrumentos de controle e avaliao aplicados pelos
tcnicos da Sudene, conforme acertado no convnio com a Usaid. Entre tantos, um
pequeno exemplo: o transporte das carteiras escolares para Angicos. Havamos
anunciado a data de incio do curso, mas as carteiras foram recebidas com algum
atraso pelo almoxarifado do Secern e este exigia alguns dias para identificar cada
uma com seu selo, incorporando-as ao patrimnio da entidade. Impossvel esperar.
Contamos com alguma conivncia e, numa operao noturna, de surpresa,
embarcamos todas as carteiras em caminhes surgidos do nada. No atrasamos a
abertura. Lembro-me de que o secretrio se divertiu com a situao e mandou que
o funcionrio se deslocasse at Angicos para colar as fichas em cada um dos mveis
e equipamentos.
Repercusso internacional e hostilidade da ditadura na Unesco
Alm da repercusso nacional, que levou a convidar Paulo Freire para criar e
dirigir, no MEC, o Programa Nacional de Alfabetizao (PNA), suscitando a
multiplicao de experincias em 1963 e 1964 em outros municpios brasileiros,
verifica-se rapidamente uma repercusso internacional, fruto das visitas de
especialistas e de jornalistas que viram os resultados alcanados em Angicos e Natal
e, progressivamente, em outros lugares. Graas ao que escreveram, nosso trabalho
se tornou conhecido. A repercusso ampliou-se a partir do exlio de Paulo Freire, de
seus livros e de sua participao em palestras, conferncias e cursos em universidades
ou a convite de movimentos sociais.
Ele respondia claramente a uma dupla demanda. A primeira, da academia e
de entidades interessadas na estreita relao entre Educao, Direitos Humanos e
Desenvolvimento, visvel nos convites que recebeu de inmeras universidades e do
Conselho Mundial das Igrejas (CMI) assim como de organizaes no governamentais
inseridas em lutas locais ou regionais. A segunda demanda, de pases interessados
em adotar novas polticas de alfabetizao e educao de jovens e adultos. O trabalho
interessou outros pases em desenvolvimento, que levaram Unesco a proposta de
integrar essa nova viso e torn-la conhecida.
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Sobre a repercusso na Unesco, um fato pouco conhecido, mais uma prova
da incansvel atuao de nosso Itamaraty a servio do regime de exceo implantado
no Brasil durante o perodo, atuao que precedeu a tristemente clebre Operao
Condor e que se prolongou at a retomada da democracia em nosso Pas.
O senegals Amadou Mahtar MBow era o diretor geral da Unesco, em um
raro perodo no qual a entidade foi dirigida por algum do Terceiro Mundo (1974-
1987). No ltimo trimestre de 1983 fui sondado para integrar a Diviso de
Alfabetizao de Adultos e Desenvolvimento Rural (ED/LAR), que renovaria sua
direo em 1984. Lembro-me que atuava na poca como consultor para a prpria
Unesco e outras agncias da ONU e j havia conhecid
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