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VOLUME 7 O Signo dos Quatro Edição e notas: Leslie S. Klinger com pesquisa adicional de Janet Byrne e Patricia J. Chui Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges

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VOLUME 7

O Signo dos Quatro

Edição e notas:Leslie S. Klinger

com pesquisa adicional de Janet Byrne e Patricia J. Chui

Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges

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Título original: The New Annotated Sherlock Holmes

(Vol.3: The Novels – A Study in Scarlet, The Sign of Four, The Hound of the Baskervilles, The Valley of Fear)

Tradução autorizada da primeira edição norte-americana, publicada em 2006 por W.W. Norton,

de Nova York, Estados Unidos, em acordo com Wassex Press, L.L.C.

Copyright © 2006, Leslie S. Klinger

Copyright da edição brasileira © 2010: Jorge Zahar Editor Ltda.

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Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo

ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Preparação: André TellesRevisão: Claudia Ajuz, Mariana Ferreira

Projeto gráfico e composição: Mari TaboadaCapa: Miriam Lerner

CIP-Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Doyle, Arthur Conan, Sir, 1859-1930Sherlock Holmes, v.7: o signo dos quatro / Arthur Conan

Doyle; edição e notas Leslie S. Klinger; com pesquisa adicional de Patricia J. Chui; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. – Ed. definitiva, comentada e il. – Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

il.Tradução de: Sherlock Holmes: the sign of fourApêndiceInclui bibliografiaisbn 978-85-378-0259-5

1. Holmes, Sherlock (Personagem fictício) – Ficção. 2. Wat-son, John H. (Personagem fictício) – Ficção. 3. Ficção policial inglesa. I. Klinger, Leslie. II. Borges, Maria Luiza X. de A. (Maria Luiza Xavier de Almeida), 1950-. III. Título. IV. Título: O signo dos quatro. cdd: 823

cdu: 821.111-310-1589

D784s v.7

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Sherlock Holmes pegou o frasco no canto do aparador da lareira e tirou a seringa hipodérmica3 de seu elegante estojo de marroquim. Com seus

dedos longos, brancos e nervosos, ajustou a delicada agulha e arregaçou o punho esquerdo da camisa. Durante um curto tempo seus olhos repousa-ram pensativamente no antebraço e no punho, musculosos, pontilhados por um sem-número de picadas. Por fi m, introduziu a ponta aguda, aper-tou o minúsculo êmbolo e recostou-se na poltrona forrada de veludo com um longo suspiro de satisfação.4

Três vezes por dia, durante muitos meses, eu havia testemunhado essa cena, mas o costume não me levara a aceitá-la. Ao contrário, a cada dia eu fi cava mais irritado àquela visão, e à noite minha consciência pe-sava diante da ideia de que me faltara coragem para protestar. Muitas e muitas vezes eu prometera que daria vazão aos meus sentimentos sobre o assunto; mas havia um não sei quê no ar sereno, indiferente de meu companheiro que fazia dele o último homem com quem uma pessoa gos-taria de tomar algo parecido com liberdade. Seus grandes talentos, suas maneiras primorosas e minha experiência com suas muitas qualidades extraordinárias, tudo isso me deixava acanhado e hesitante em interferir em sua vida.

I. A ciência da dedução2

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12 O SIGNO DOS QUATRO

Naquela tarde, no entanto, fosse por causa do Beaune5 que eu tomara no almoço ou da exasperação adicional produzida pela extrema deliberação de suas maneiras, senti de repente que não podia mais me conter.

“O que é hoje”, perguntei, “morfi na6 ou cocaína?”7

Ele levantou os olhos languidamente do velho volume em caracteres góticos8 que abrira.

“É cocaína”, disse, “uma solução a sete por cento.9 Gostaria de expe-rimentar?”10

“Em absoluto”, respondi bruscamente. “Minha constituição ainda não se recuperou da campanha afegã.11 Não posso me permitir impor-lhe ne-nhum esforço extra.”

Ele sorriu da minha veemência. “Talvez você tenha razão, Watson”, disse. “Suponho que a infl uência física dela seja má. Considero-a, contu-do, tão transcendentalmente estimulante e aclaradora para a mente que não dou muita importância a seus efeitos secundários.”

“Mas pense!” disse eu, seriamente. “Avalie o custo! Seu cérebro pode, como você diz, ser estimulado e acelerado, mas trata-se de um processo patológico e mórbido, que envolve maior alteração dos tecidos e pode levar

“Seus olhos repousaram pensativamente no antebraço e no punho, musculosos.” [Richard Gutschmidt,

Das Zeichen der Vier, Stuttgart, Robert Lutz Verlag, 1902]

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13 A CIÊNCIA DA DEDUÇÃO

no mínimo a uma debilidade permanente. Você conhece, também, a rea-ção de melancolia que lhe sobrevém.12 Certamente não vale a pena. Por que deveria você, por um mero prazer efêmero, se arriscar a perder aqueles imensos talentos de que foi dotado? Lembre-se de que falo não apenas como um companheiro para outro, mas como um médico para alguém por cuja constituição é em certa medida responsável.”13

Ele não pareceu ofendido. Ao contrário, uniu as pontas dos dedos e apoiou os cotovelos nos braços de sua cadeira, como alguém desejoso de conversar.

“Minha mente”, disse, “rebela-se contra a estagnação. Dê-me proble-mas, dê-me trabalho, dê-me o mais abstruso criptograma ou a mais in-tricada análise, e estou em casa. Posso prescindir então de estimulantes artifi ciais. Mas abomino a rotina enfadonha da existência. Anseio por exal-tação mental. Foi por isso que escolhi minha própria profi ssão, ou melhor, inventei-a, porque sou o único no mundo a exercê-la.”

“O único detetive não ofi -cial?” perguntei, alçando as so-brancelhas.

“O único detetive consul-tor não ofi cial”, respondeu ele. “Sou o último e o mais eleva-do tribunal de apelação na de-tecção. Quando Gregson, Les-trade ou Athelney Jones estão desnorteados – o que, diga-se de passagem, é seu estado normal –, o assunto é trazi-do à minha consideração. Eu examino os dados, como um especialista, e pronuncio uma opinião abalizada. Não rei-vindico nenhum mérito nes-ses casos. Meu nome não apa-rece em nenhum jornal. O próprio trabalho, o prazer de

“Abomino a rotina enfadonha da existência.”[Frederic Dorr Steele, Adventures of Sherlock Holmes, vol.I,

1950. A ilustração indica que ela foi “redesenhada por Mr. Steele para essa edição”. James Montgomery, em A Study in Pictures, identifica o trabalho original como uma ilustração para “O rosto lívido”, publicada no Louisville Courier-Journal em 30 de janeiro de 1927 (note o “26” próximo à assinatura do artista), em que a figura sentada

representava indubitavelmente Mr. James M. Dodd!]

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encontrar um campo para minhas capacidades peculiares, é minha mais elevada recompensa. Mas você mesmo teve alguma experiência de meus métodos de trabalho no caso de Jefferson Hope.”

“Sim, de fato”, respondi cordialmente. “Nada me impressionou tanto em minha vida. Cheguei mesmo a corporifi cá-la numa pequena brochura, com o título um tanto extravagante de ‘Um estudo em vermelho’.”14

Ele sacudiu a cabeça tristemente.“Passei os olhos nela”, disse. “Honestamente, não posso parabenizá-

lo. A detecção é, ou deveria ser, uma ciência exata e deveria ser tratada da mesma maneira fria e desapaixonada. Você tentou dar-lhe um toque de romantismo,15 o que produz mais ou menos o mesmo efeito que se intro-duzisse uma história de amor ou a fuga de um casal de amantes na quinta proposição de Euclides.”16

“Mas o romance estava lá”, protestei. “Eu não podia falsear os fatos.”“Alguns fatos deveriam ser suprimidos, ou, pelo menos, um justo sen-

so de proporção deveria ser observado em seu tratamento. O único ponto digno de menção no caso foi o curioso raciocínio analítico dos efeitos para as causas, mediante o qual consegui deslindá-lo.”

Fiquei aborrecido com essas críticas a uma obra que se destinara es-pecialmente a agradá-lo. Confesso, também, que me senti irritado pela egolatria que parecia exigir que cada linha de meu texto fosse dedicada a seus próprios feitos especiais. Mais de uma vez durante os anos em que havia morado com ele em Baker Street, eu observara que havia uma ponta de vaidade sob as maneiras serenas e didáticas de meu amigo. Não fi z nenhum comentário, contudo, e fi quei afagando minha perna ferida.17 Ela fora atravessada por uma bala de jezail18 algum tempo antes, e, embora isso não me impedisse de caminhar, doía de maneira extenuante a cada mudança de tempo.

“Minha clientela estendeu-se recentemente ao Continente”, disse Hol-mes depois de algum tempo, enchendo seu velho cachimbo de raiz de urze-branca. “Fui consultado semana passada por François le Villard,19 que, como você provavelmente sabe, assumiu nos últimos tempos uma posição bas-tante elevada no serviço de detecção francês. Ele tem todo o talento celta da intuição rápida, mas é defi ciente no amplo espectro de conhecimentos exatos essencial para maior desenvolvimento de sua arte. O caso dizia res-

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peito a um testamento e possuía algumas características de interesse. Fui capaz de referi-lo a dois casos paralelos, um ocorrido em Riga em 1857, o outro em St. Louis em 1871, que lhe sugeriram a verdadeira solução. Aqui está a carta que recebi esta manhã agradecendo meu auxílio.”

Enquanto falava, jogou-me uma folha amassada de papel de carta es-trangeiro. Corri os olhos por ela, percebendo uma profusão de elogios, com magnifi ques, coup de maîtres20 e tours de force espalhados, tudo atestando a ardente admiração do francês.

“Ele fala como um aluno a seu mestre”, disse eu.“Oh, ele valoriza excessivamente a minha ajuda”, disse Sherlock Hol-

mes com indiferença. “Ele próprio tem consideráveis aptidões. Possui duas das três qualidades necessárias ao detetive ideal: tem capacidade de ob-servação e de dedução. Só é defi ciente em conhecimento, e isso pode vir com o tempo. Agora está traduzindo todos os meus trabalhinhos para o francês.”

“Seus trabalhos?”“Ah, não sabia?” exclamou, rindo. “Sim, perpetrei várias monografi as.

Todas tratam de assuntos técnicos. Aqui está uma, por exemplo, “Sobre a distinção entre as cinzas dos vários tabacos”.21 Nela enumero cento e quarenta formas de tabaco de charuto, cigarro e cachimbo, com pranchas coloridas22 ilustrando a diferença nas cinzas. Esse é um ponto que está sempre vindo à tona em julgamentos criminais, e que é por vezes de su-prema importância como uma pista. Se você pode dizer com certeza, por exemplo, que um assassinato foi cometido por um homem que fumava um lunkah indiano,23 isso obviamente estreita seu campo de busca. Para o olho treinado há tanta diferença entre as cinzas pretas de um Trichinopoli24 e a lanugem branca de bird’s-eye25 quanto entre um repolho e uma batata.”

“Você tem um pendor extraordinário para as minúcias”, observei.“Aprecio a importância delas. Aqui está minha monografi a sobre o ras-

treamento de pegadas, com algumas observações sobre o uso de gesso para preservar impressões.26 Eis aqui também um trabalhinho curioso sobre a infl uência do ofício sobre a forma da mão,27 com linotipias das mãos de telhadores, marinheiros, cortadores de cortiça, tipógrafos, tecelões e po-lidores de diamantes.28 É uma matéria de grande interesse prático para o detetive científi co – especialmente em casos de corpos não reclamados, ou

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na descoberta de antecedentes de criminosos. Mas eu o estou cansando com o meu hobby.”29

“De maneira alguma”, respondi com sinceridade. “Isso é do maior in-teresse para mim, especialmente desde que tive a oportunidade de obser-var a aplicação prática que lhe dá. Mas falou há pouco de observação e dedução. Por certo uma implica a outra em certa medida.”

“Ora, só ocasionalmente”, respondeu ele, recostando-se voluptuosa-mente na poltrona e tirando grossos anéis azuis de seu cachimbo. “Por exemplo, a observação me mostra que você esteve na agência dos Correios de Wigmore Street esta manhã, mas a dedução me permite saber que ali passou um telegrama.”

“Certo!” disse eu. “Certo nos dois pontos! Mas confesso que não vejo como chegou a isso. Foi um impulso repentino de minha parte e não o mencionei a ninguém.”

“É a própria simplicidade”, observou ele, rindo de minha surpresa – “tão absurdamente simples que uma explicação é supérfl ua; mas ela pode servir para defi nir os limites entre a observação e a dedução. A observação me diz que você tem um pouco de barro avermelhado preso no peito do pé. Bem na frente dos Correios de Wigmore Street eles removeram o cal-çamento e escavaram alguma terra, que se espalhou de tal maneira que é difícil não pisar nela ao entrar. A terra é desse matiz avermelhado peculiar que, pelo que sei, não é encontrado em nenhum outro lugar nas redonde-zas. Tudo isso é observação. O resto é dedução.”

“Como, então, você deduziu o telegrama?”“Ora, claro que eu sabia que você não tinha escrito uma carta, pois

passei a manhã toda sentado na sua frente. Vejo também em sua escriva-ninha aberta, ali, que você tem uma folha de selos e um grosso maço de cartões-postais. Nesse caso, para que haveria de ir ao correio, senão para enviar um telegrama?30 Elimine todos os outros fatores, e aquele que resta deve ser a verdade.”31

“Neste caso, certamente é”, retruquei após pensar um pouco. “A coisa, no entanto, é, como diz, das mais simples. Você me julgaria impertinente se submetesse suas teorias a um teste mais severo?”

“Ao contrário”, respondeu ele, “isso me impediria de tomar uma se-gunda dose de cocaína. Ficaria encantado em examinar qualquer proble-ma que possa me apresentar.”

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“Eu o ouvi dizer que é difícil para um homem ter qualquer objeto de uso diá-rio sem nele deixar a marca de sua individualidade, de tal modo que um observador treinado poderia lê-la. Ora, tenho aqui um relógio que veio parar em minhas mãos recentemente. Faria a genti-leza de me dar uma opinião sobre o caráter ou os hábitos de seu ex-proprietário?”

Entreguei-lhe o relógio, divertindo-me um pouco em meu íntimo, pois aquele era, a meu ver, um teste impossível, e eu preten-dia que servisse de lição contra o tom um tanto dogmático que ele assumia ocasionalmente. Holmes sopesou o relógio, olhou atentamente o mostra-dor, abriu a tampa traseira e examinou o mecanismo, primeiro a olho nu e depois com uma poderosa lente convexa. Mal consegui me impedir de sorrir diante de sua fi sionomia desanimada quando ele fi nalmente fechou a tampa com um estalo e me devolveu o relógio.

“Não há quase nenhum dado”, observou. “O relógio foi limpo recente-mente, o que me rouba os fatos mais sugestivos.”

“Você está certo”, respondi. “Foi limpo antes de ser enviado para mim.”Em meu coração, acusei meu companheiro de alegar a desculpa mais

esfarrapada e impotente para encobrir seu fracasso. Que dados poderia ele esperar de um relógio que não tivesse sido limpo?

“Embora insatisfatória, minha investigação não foi de todo estéril”, observou ele, fi tando o teto com olhos sonhadores, embaçados. “Corrija-me se eu estiver errado, mas eu diria que o relógio pertenceu ao seu irmão mais velho, que o herdou de seu pai.”

“Isso você deduziu, sem dúvida, das iniciais H.W. nas costas?”“Exatamente. O W. sugere seu próprio nome. O relógio data de quase

cinquenta anos atrás, e as iniciais são tão antigas quanto ele: portanto foi

“Holmes sopesou o relógio.” [Richard Gutschmidt, Das Zeichen der Vier, Stuttgart,

Robert Lutz Verlag, 1902]

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fabricado para a geração passada. Joias geralmente são legadas para o fi lho mais velho, e era muito provável que ele tivesse o mesmo nome que o pai.32 Seu pai, se bem me recordo, faleceu há muitos anos. Ele estava, portanto, nas mãos de seu irmão mais velho.”

“Até agora, certo”, disse eu. “Mais alguma coisa?”“Ele era um homem de hábitos desmazelados… muito desmazelado e

descuidado. Foi deixado com boas perspectivas, mas jogou fora suas opor-tunidades, viveu algum tempo na pobreza com breves e ocasionais inter-valos de prosperidade, e fi nalmente, entregando-se à bebida, morreu. Não consigo deduzir mais nada.”

Saltei da cadeira e coxeei impacientemente pela sala, com considerá-vel amargura no coração.

“Isso é indigno de você, Holmes”, disse. “Eu não teria acreditado que desceria a isso. Fez indagações sobre a história de meu pobre irmão e agora fi nge deduzir esse conhecimento de uma maneira fantasiosa. Não pode esperar que eu acredite que decifrou tudo isso nesse relógio velho! Isso é cruel e, para falar francamente, beira o charlatanismo.”

“Meu caro doutor”, disse ele afavelmente, “peço que aceite minhas desculpas. Vendo o assunto como um problema abstrato, esqueci-me do quanto poderia ser pessoal e penoso para você. Eu lhe asseguro, no en-tanto, que nunca soube sequer que teve um irmão até que me entregou o relógio.”

“Então por força de que prodígios se inteirou desses fatos? Eles são absolutamente corretos em todos os detalhes.”

“Ah, foi sorte. Eu poderia apenas dizer que foi o saldo das probabilida-des. Não esperava de maneira alguma ser tão preciso.”

“Mas não foi pura adivinhação?”“Não, não; eu nunca adivinho. É um hábito indecoroso – destrutivo

das faculdades lógicas. O que lhe parece estranho só o é porque você não acompanha meu encadeamento de ideias ou observa os pequenos fatos de que grandes inferências podem depender. Por exemplo, comecei dizendo que seu irmão era descuidado. Observando a parte de baixo da caixa do relógio, note que está não só amassada em dois lugares, como toda ar-ranhada e marcada em decorrência do hábito de guardar outros objetos duros, como moedas ou chaves, no mesmo bolso. Certamente não é uma

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grande façanha supor que um homem que trata um relógio de cinquenta guinéus33 com tanto desdém deve ser descuidado. Não é tampouco uma inferência muito ousada supor que um homem que herda um artigo de tal valor está muito bem-aquinhoado em todos os demais aspectos.”

Assenti com a cabeça, para mostrar que acompanhava seu raciocínio.“Os penhoristas na Inglaterra têm o costume, quando se apoderam de

um relógio, de riscar os números da cautela com um alfi nete no interior da caixa. É mais conveniente que uma etiqueta, pois não há perigo de o nú-mero se perder ou ser trocado. Há nada menos que quatro desses números visíveis à minha lente dentro da caixa. Inferência: seu irmão estava com frequência na penúria. Inferência secundária: tinha fases ocasionais de prosperidade, ou não teria podido resgatar o penhor. Por fi m, peço-lhe que olhe a placa interna, que contém o orifício para a chave.34 Veja os milhares de arranhões espalhados em torno dele, marcas deixadas pela chave ao resvalar. Como a chave de um homem sóbrio teria podido produzir esses sulcos? Mas você nunca verá o relógio de um bêbado sem eles. Ele lhe dá corda à noite, e deixa esses sinais de sua mão vacilante.35 Onde está o mistério em tudo isto?”

“É claro como o dia”, respondi. “Lamento a injustiça que lhe fi z. De-veria ter tido mais fé em suas maravilhosas faculdades. Posso perguntar se tem alguma investigação profi ssional em curso no momento?”

“Nenhuma. Por isso a cocaína. Não posso viver sem trabalho inte-lectual. Que outra razão há para se viver? Chegue aqui à janela. Houve alguma vez um mundo tão monótono, melancólico, inútil? Veja como o nevoeiro amarelo rodopia sobre a rua e deriva sobre as casas pardacentas. O que poderia ser mais irremediavelmente prosaico e grosseiro? De que adianta ter capacidades, doutor, quando não temos nenhum campo em que exercê-las? O crime é lugar-comum, a existência é lugar-comum, e nenhuma qualidade exceto as que são lugar-comum tem qualquer função sobre a terra.”

Eu havia aberto a boca para replicar a essa invectiva quando, com uma batida fi rme, nossa senhoria entrou, trazendo um cartão sobre a salva de bronze.

“Uma jovem senhora quer vê-lo, senhor”, disse, dirigindo-se ao meu com-panheiro.36

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20 O SIGNO DOS QUATRO

“Miss Mary Morstan”, leu ele. “Hum! Não tenho nenhuma lembrança do nome. Peça à jovem senhora para subir, Mrs. Hudson. Não vá, doutor. Preferiria que fi casse.”

Notas

2. Note-se que o capítulo tem o mesmo título que o Capítulo II de Um estudo em ver-melho. Ao que parece, Watson sentiu-se compelido a reapresentar Holmes, visto que esta era apenas a segunda história publicada sobre ele (a publicação da série de contos conhecidos como as Aventuras só foi iniciada em 1891).

3. O dr. Kohki Naganuma, doutor em economia, não em medicina, observa, em “Sher-lock Holmes and Cocaine”, que Charles Gabriel Pravaz (1791-1853), um cirurgião de Lyon, inventou a seringa hipodérmica em 1853, mas que Carl Ludwig Schleich (1859-1922), de Berlim, foi o primeiro cirurgião a usar solução de cocaína em injeção hipodérmica, e numa diluição sufi ciente; esse uso ocorreu em 1891. Independente-mente de Pravaz, o médico escocês Alexander Wood (1817-84) também desenvol-veu uma seringa hipodérmica, que usou em 1855 para injetar morfi na num paciente. Naganuma considera inconclusivos os indícios de que Holmes realmente se injetava cocaína. O dr. Julian Wolff (Ph. D. em medicina), porém, responde, em “A Narcotic Monograph”, que de fato o primeiro uso de cocaína por injeção foi em 1884, pelo americano dr. William S. Halsted (1852-1922). Isso foi “sufi cientemente cedo, de modo que não houve nenhum anacronismo em Holmes estar se aplicando injeções de cocaína quando Watson diz que estava”.

Jack Tracey e Jim Berkey, em Subcutaneously, My Dear Watson, escrevem que na época de O signo dos quatro, “a injeção hipodérmica de morfi na havia sido comum, tanto entre médicos quanto entre dependentes, por no mínimo trinta anos”. Holmes, porém, não estava se injetando cocaína por via intravenosa, mas sim por via subcutâ-nea (como os médicos geralmente preferiam) ou intramuscular (como fazia a maioria dos usuários de morfi na). “Havia uma crença universal de que a injeção intravenosa impunha uma tensão indevida ao sistema e devia ser evitada…” No entanto, em “De-vilish Drugs, Part One”, F.A. Allen considera a menção a marcas de picadas no pulso de Holmes “sinistra” e sugestiva de injeção intravenosa.

4. O dr. Charles Goodman, em “The Dental Holmes”, sustenta que a dependência de Holmes tivera origem no uso de cocaína para problemas dentários. Nos anos 1880, a cocaína era comumente usada como anestésico local. Em 1897, o Warner’s Pocket Medical Dictionary ainda arrolava a cocaína como um “estimulante dos nervos e anes-tésico local”.

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21 A CIÊNCIA DA DEDUÇÃO

5. Beaune é uma cidade francesa, na região da Borgonha, mais ou menos a meio ca-minho entre Dijon e Chalon-sur-Saône, que deu seu nome à variedade local de vinho. Admirável exemplo de antiguidade, Beaune é circular e tem muralhas que datam do século XV. Foi outrora um próspero centro têxtil, até que, após a revogação do edito de Nantes em 1685, os artesãos protestantes da cidade foram expulsos. Hoje há uma escola de vinicultura e instalações de pesquisa, e entre as fábricas e empresas da cidade estão as que produzem equipamentos para a fabricação de vinho. “Beaune, como Pommard, costumava ser uma impostura conveniente”, escreve Matt Kramer, em Making Sense of Borgundy. “Durante séculos, ela foi o centro a partir do qual expedidores de vinho governavam a Borgonha viticultora tão peremptoriamente como os duques borgonheses haviam antes governado a Borgonha política… . Assim, como no caso de Pommard, Nuits-Saint-Georges e Chambertin, vinhos de certo estilo eram batizados de ‘Beaune’, qualquer que fosse sua origem e mesmo que fossem compostos exclusivamente de Pinot Noir.”

Christopher Morley opina que Beaune é “uma bebida forte demais para o almoço, propensa a causar sono ou irritabilidade”. De fato, não é mais “potente” que nenhum outro vinho não fortifi cado, e este editor deseja que se saiba que ele está disponível para experimentação sobre a harmonização do vinho para o almoço. Em “Dr. Watson’s Secret”, Morley expressa a ideia adicional de que Watson estava se fortifi cando por-que, sem que Holmes soubesse, havia se casado com Mary Morstan alguns meses antes e sabia que ela procuraria Holmes como cliente naquela mesma tarde. Alguns editores americanos, aparentemente temendo a ausência de enófi los entre seus leito-res, substituem a palavra “Beaune” por “clarete”.

6. William S. Baring-Gould, em The Annotated Sherlock Holmes, mostra que esta é a única ocasião no Cânone em que se chega a sugerir que Holmes consumia morfi na.

7. Bernard Davies, em “Doctor Watson’s Deuteronomy: A Centenary Companion-piece”, escreve que Watson, que devia ter notado Holmes oscilando entre estados de hiperatividade e torpor induzidos pela morfi na, parece confuso pela dicotomia morfi -na-cocaína. Ele assinala que, em “Escândalo na Boêmia”, Watson descreve Holmes “alternando, semana a semana, a cocaína com a ambição, o torpor da droga com a energia impetuosa de sua personalidade intensa”. “Conhecimento médico à parte”, observa Davies, “‘sua própria experiência deveria tê-lo informado de que a sonolência era o exato oposto do efeito da cocaína.’”

8. Vemos Holmes entregando-se à mesma bibliofi lia em “A Liga dos Cabeças Ver-melhas”, em que suas “edições em gótico” são também mencionadas. O hábito de colecionar livros de Holmes é discutido em maior detalhe em Um estudo em vermelho, nota 139.

9. Segundo F.A. Allen, “a força da injectio cocainae hypodermica tornou-se ofi cial na [British Pharmacopoeia] em 1898 a 10%. Não poderíamos presumir que, ao menos, Holmes estava tentando ‘reduzir’ a dose?” Allen sugere que, quando começou a se desabituar à droga, Holmes talvez tenha começado a usar heroína, que havia sido introduzida a partir da Alemanha, mais ou menos nessa época, como uma cura para

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o hábito da morfi na, e só foi condenada num editorial do British Medical Journal em 1906. Tracy e Berkey destacam que “a cocaína de ‘rua’ vendida hoje no mercado negro contém geralmente 5% a 30% da droga, embora se deva ter em mente que a admi-nistração intravenosa comum atualmente é muitas vezes mais efi caz que o método subcutâneo de Holmes”. Com base na dosagem e no método de consumir a droga, eles avaliam que o uso da cocaína por Holmes era “moderado e até terapêutico”.

O romance de Nicholas Meyer The Seven-Per-Cent Solution (1974), depois trans-formado num fi lme de muito sucesso (Visões de Sherlock Holmes) estrelado por Nicol Williamson como Holmes, Robert Duvall como dr. Watson e Alan Arkin como Sigmund Freud, registra a cura da dependência de Holmes com a ajuda de Freud. Este leva Hol-mes a compreender que o vil Moriarty não passava de uma projeção de sua própria men-te, baseada em sua descoberta, na infância, de que sua mãe cometera adultério com seu preceptor, o professor Moriarty (interpretado por Laurence Olivier no fi lme).

10. Michael Harrison salienta, em In the Footsteps of Sherlock Holmes, que as compras de cocaína por Holmes eram estritamente legais na época, e que a droga provavelmen-te estava disponível na farmácia de seu bairro.

11. Ver Um estudo em vermelho, Capítulo I, especialmente as notas 9 a 16 e o texto que as acompanha. Compare-se este comentário, contudo, com o esforço de Watson na caçada de 10km a Tonga, no Capítulo VI, adiante.

12. A cocaína, um alcaloide que ocorre na quantidade de cerca de 1% nas folhas de Erythro-xylon coca, cultivada nos Andes e conhecida como coca, era pouco compreendida na era vi-toriana. A Encyclopaedia Britannica (9a ed.), um indicador do conhecimento comum, nada tem a dizer sobre a injeção de folhas de coca, mas afi rma que mascar essas folhas, “quando são frescas e boas, e usadas em quantidade moderada, aumenta a energia nervosa, remove a sonolência, anima o espírito e permite ao [usuário] suportar o frio, a chuva, o intenso esforço físico e até a falta de alimento, num grau surpreendente, com aparente facilidade e inocuidade”. Em 1910, a Encyclopaedia Britannica (11a ed.) relatava:

A injeção de folhas de coca tem um efeito extraordinário sobre os tratos superiores do sistema nervoso – um efeito curiosamente contrário àquele produzido por seu principal in-grediente sobre as partes periféricas do aparato nervoso. A capacidade mental é, pelo menos subjetivamente, aumentada em graus acentuados. Na ausência de experimentos extensivos em laboratório, como os conduzidos com o álcool, não é possível dizer se a aparente intensi-fi cação do intelecto é um fato objetivamente demonstrável. A força física é inquestionavel-mente aumentada: exercícios físicos como os envolvidos na escalada de montanhas tornam-se muito mais fáceis depois que cerca de uma onça dessas folhas é mascada. Mascar coca em excesso, porém, leva em muitos casos a grande desgaste físico, declínio mental, insônia, fraqueza da circulação e dispepsia extrema.

Estudos modernos mostram que os efeitos da cocaína têm curta duração, e que a abs-tenção dela produz uma severa reação depressiva que o usuário muitas vezes acredita só poder ser aliviada com o uso de mais cocaína.

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23 A CIÊNCIA DA DEDUÇÃO

13. W.H. Miller, em “The Habit of Sherlock Holmes”, questiona se Holmes era um viciado em cocaína. Miller cita a falta de descrições de comportamento compatível com o uso da droga e de qualquer indício de sintomas de abstinência. Subestima a observação de Holmes como uma recusa brincalhona à pergunta escandalosamente “insolente” de Watson e conclui que Holmes devia ter estado tomando injeções de atropina – um alcaloide que afeta o sistema nervoso e é usado hoje como pré-anes-tésico (ver Um estudo em vermelho, nota 32). Entretanto, D.M. Grilly em “A Reply to Miller’s ‘The Habit of Sherlock Holmes’”, sustenta que as conclusões de Miller são baseadas em pesquisas superadas e que o relato que Watson faz dos sintomas de Holmes “é preciso e compatível com o que se sabe atualmente sobre a cocaína”. Em particular, afi rma que evidências recentes sugerem que a cocaína não gera necessa-riamente dependência – que muitos podem experimentar a elevação do humor que Holmes evidentemente buscava sem se tornar usuários compulsivos.

14. Primeiro exemplo da autopromoção watsoniana, prática em que ele persistiu ver-gonhosamente ao longo de toda a sua carreira de escritor.

John Hall, em Sidelights on Holmes, defende 1887 como a data dos acontecimentos registrados em O signo dos quatro. Segundo ele, “por nenhum esforço da imaginação Holmes poderia ter passado os olhos em outra coisa senão num rascunho da primeira história de Watson – e, de fato, Watson não poderia ter afi rmado que a publicara, a menos que fosse uma edição sobre a qual nada sabemos, e da qual jamais um exemplar veio à luz”. Se Hall está certo, ou Holmes não fez essa afi rmação (pelo menos não nes-sa ocasião), ou Watson está relatando a observação de Holmes corretamente – caso em que seria necessário transferir as peripécias de O signo dos quatro para 1888, com os problemas que acompanham essa data, registrados por Hall. H.B. Williams, em “The Unknown Watson”, é igualmente a favor de 1887, sugerindo que é à publicação origi-nal de suas reminiscências (ver Um estudo em vermelho, nota 4) que Watson se refere aqui como “uma pequena brochura” e “meu panfl eto”, e não à segunda publicação de Um estudo em vermelho, no Beeton’s Christmas Annual no fi nal de 1887.

A maioria dos cronologistas, no entanto, toma esta menção a uma “pequena bro-chura” como uma referência não a um rascunho ou versão preliminar do Estudo, mas à publicação de Um estudo em vermelho no Beeton’s, e por conseguinte datam os eventos de O signo dos quatro de após 1887 – ver Anexo. Esse ponto de vista é reforçado pela observação posterior de Holmes de que as classes criminosas começavam a conhecê-lo bem, especialmente desde que Watson começara a publicar “alguns” de seus casos. Note-se, contudo (como Roger Johnson assinala em correspondência privada com este editor), que Watson não afi rma ter publicado a história, apenas tê-la corporifi cado “numa pequena brochura”.

Em qualquer dos casos, a abordagem metódica de Watson a seu ofício de escritor é evidenciada aqui pela primeira vez. Embora em 1887 tenha concordado, em desespero (aparentemente por injunção de Arthur Conan Doyle), com uma venda completa do copyright britânico sobre A Study in Scarlet, ele presumivelmente esperava auferir lu-cros adicionais no mercado americano, e a primeira publicação americana de O signo dos quatro (na Lippincott’s Magazine, em fevereiro de 1890) foi quase imediatamente seguida pela publicação de uma edição de Um estudo em vermelho (J.B. Lippincott, março de 1890). Ver Sherlock Holmes Among the Pirates, de Donald A. Redmond, para

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24 O SIGNO DOS QUATRO

uma discussão das numerosas edições “piratas” que se seguiram em decorrência das leis americanas então vigentes (que não asseguravam nenhuma proteção de copyright à publicação de um autor britânico nos Estados Unidos).

15. William S. Baring-Gould brinca: “Provavelmente foi o interlúdio com os mórmons que Holmes achou maçante.”

16. A “quinta proposição” de Euclides é: “Se uma linha reta que incide sobre duas li-nhas retas torna os ângulos interiores no mesmo lado menores que dois ângulos retos, as duas linhas retas, se prolongadas indefi nidamente, encontram-se naquele lado em que estão os ângulos menores que os dois ângulos retos”. “Provavelmente o Mestre referiu-se aqui à quinta proposição apenas para ilustrar sua ideia”, escreve Ernest Bloomfi eld Zeisler em “A Chronological Study in Scarlet”, “pois uma cuidadosa investigação não conseguiu revelar por que qualquer outra proposição de Euclides não teria servido igualmente bem.” Mas, Raymond Holly, em “Dubious and Questionable”, mostra que a quinta proposição é “a primeira que se refere a um par que ocorre naturalmente – os ângulos da base de um triângulo isósceles” e sugere que a observação de Holmes aqui foi uma referência à sua atitude em relação ao amor, expressa no texto a que se refere a nota 258.

17. O assunto dos ferimentos de Watson é complexo e intricado. Uma breve discussão pode ser encontrada em Um estudo em vermelho, nota 14. Ver também nota 140.

18. Ver Um estudo em vermelho, nota 15.

19. Madeline B. Stern, em Sherlock Holmes: Rare Book Collector, o identifi ca como o fi lho de Francisque le Villard, que fl oresceu por volta de 1847 e escreveu sobre o teatro de Paris.

20. Francês: golpes de mestre.

21. Holmes menciona sua monografi a sobre cinzas de charuto em Um estudo em ver-melho, mas sem revelar seu título. Ver Um estudo em vermelho, nota 120.

22. Poul Anderson (em “Art in the Blood”) afi rma que o meticuloso Holmes deve ter sido um excelente desenhista e pintor: “Certamente ele não teria confi ado a prepara-ção dessas pranchas a mais ninguém.”

23. Charuto indiano forte semelhante a um cheroot, que é um charuto com as pontas cortadas.

24. Ver Um estudo em vermelho, nota 113.

25. Corte especial de tabaco, semelhante na aparência a um olho de ave.

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25 A CIÊNCIA DA DEDUÇÃO

26. “Nenhum ramo da ciência da detecção é tão importante e tão negligenciado quan-to a arte de rastrear pegadas”, observa Holmes em Um estudo em vermelho, e numero-sos exemplos em todo o Cânone demonstram sua perícia.

27. Em “The Effects of Trades Upon Hands”, Archibald Hart acusa Gilbert Forbes (“um óbvio pseudônimo”) de reproduzir o trabalho de Holmes sob o título “Some Ob-servations on Occupational Markings”, pretensamente escrito por Forbes, no Police Journal (Londres, outubro de 1946; reproduzido nos Estados Unidos no Journal of Criminal Law and Criminology [novembro-dezembro de 1947]). Remsen Ten Eyck Schenck registra um trabalho semelhante, Occupational Maks, da autoria do médico Francisco Ronchese (Nova York: Grune & Stratton, 1948).

Em “Um caso de identidade”, “A Liga dos Cabeças Vermelhas”, “As Faias Acobrea-das” e “O ciclista solitário”, Holmes demonstra sua habilidade para observar os efeitos dos vários ofícios sobre as mãos. O dr. Joseph Bell (ver “O mundo de Sherlock Hol-mes”, no volume 1 desta série, para uma discussão de sua relação com Arthur Conan Doyle) pregou o uso prático desse conhecimento numa introdução a uma reimpressão de Um estudo em vermelho em 1892 (reproduzida como anexo a Um estudo em verme-lho). Ali, Bell expressa “como é fácil, contanto que você seja capaz de observar, desco-brir muita coisa sobre as ações de seus amigos inocentes e inconscientes, e, por uma extensão do mesmo método, frustrar o criminoso e desnudar seus procedimentos.” Em “As Faias Acobreadas”, Holmes observa, “Ora, meu caro amigo, que importância dá o público, que mal sabe identifi car um tecelão pelo dente ou um tipógrafo pelo polegar, às nuances mais fi nas da análise e da dedução!”

28. Schenck observa, “As marcas [de um telhador] provavelmente incluíam o alisa-mento das pontas dos dedos da mão esquerda pelo manuseio da pedra, como se vê também em pedreiros …, e calos feitos na palma direita pelo manuseio do martelo. É razoável supor também que calosidades nos joelho seriam proeminentes …, já que o telhamento é feito principalmente numa posição ajoelhada.”

Nada de específi co distinguiria as mãos de um marinheiro daquelas de outra pes-soa que trabalhasse arduamente ao ar livre. Assim raciocina Schenck, que observa também que as tarefas num navio são mais variadas que repetitivas, e ademais que as mãos direita e esquerda são igualmente usadas.

Cortadores de cortiça, que em grande parte desapareceram com o advento das má-quinas modernas, deviam, especula Schenck, ter “calos produzidos no polegar e nos dois primeiros dedos da mão esquerda pela ação de segurar a cortiça, e similarmente no polegar e através da parte interna de todos os quatro dedos da direita graças ao manuseio da faca”. Quanto ao tipógrafo, o “polegar esquerdo é muitas vezes caracte-rizado pela formação de um calo na ponta, frequentemente com abrasão da pele mais abaixo, através da ‘bola’ do dígito”, escreve Schenck. “Na composição, o ‘componedor’ é segurado na mão esquerda e o tipo posto nele com a direita. À medida que cada tipo é inserido no componedor, o polegar esquerdo o desliza para sua posição contra a última adição, e depois segura a massa acumulada bem apertada num canto.”

Schenck escreve que não é possível “estabelecer exatamente o que constituía para Holmes o estigma manual inconfundível do tecelão. Uma ampla variedade de calos peculiares aos ofícios têxteis é descrita por [Francesco Ronchese], mas eles diferem

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26 O SIGNO DOS QUATRO

segundo a tarefa particular do trabalhador junto à máquina, e nenhum deles poderia ser criado pelo uso de um tear manual”. Ele considera “extremamente provável” que “as marcas a que Holmes se referiu fossem calos na mão direita em decorrência do manuseio da laçadeira, e talvez na esquerda pela ação dos liços”.

Pistas da mão do polidor de diamantes, segundo Schenck, incluem o fato de que “polidores de pedras têm as unhas alisadas e manchadas de vermelho pelo sesquióxido de ferro …, polidores de lentes mostram certas unhas gastas por tirar o vidro de seu leito de resina…, e os que pulem joias de metal exibem calos por segurar as partes de metal contra a roda”. Os diamantes, ele salienta, “são polidos num leito de resina na ponta de uma haste …, qualquer uma dessas marcas, ou todas elas, poderia aparecer num lapidário que fi zesse muito trabalho manual”.

29. Bernard Davies duvida que uma conversa tão abrangente pudesse ter sido compri-mida no número de minutos a que parece ter sido reduzida aqui; questiona também a conveniência do aparecimento de Mary Morstan ao fi nal dela. De fato, num capítulo que exibe deliberadamente o mesmo título de um de Um estudo em vermelho, parece provável que Watson tenha se permitido uma licença literária aqui para gabar as habi-lidades de Holmes aos olhos do leitor.

30. Watson poderia perfeitamente ter ido ao Correio por outras razões. Segundo Ver-non Rendall (“The Limitations of Sherlock Holmes”), talvez estivesse comprando uma ordem de pagamento ou postal, verifi cando preços especiais ou comprando selos.

Mas há um problema muito mais sério aqui. Na versão original de O signo dos quatro, tal como publicada na Lippincott’s Magazine, a referência é ao Correio de Sey-mour Street. Pondo de lado as questões de outras razões para a excursão de Watson, Bernard Davies observa que os nos 9-61 de Saymour Street “não eram uma agência dos Correios ou telegráfi ca. Era possível comprar qualquer coisa ali, mas, mesmo que você pedisse de joelhos, não conseguiria enviar um telegrama”. Por que, admira-se Davies, Watson não corrigiu seu erro inserindo o nome de uma agência telegráfi ca próxima, como o Correio de Baker Street ou uma que fi cava no caminho para o West End, no no 43 de Duke Street, a uma quadra de Portman Square? Em vez disso Watson inventou o Correio de Wigmore Street, que não existia em 1890. “Para começar, é um mistério como esta charada veio a ser inserida no manuscrito … . A explicação mais caridosa é que [Watson] tentou ser esperto demais, combinando dois incidentes inteiramente separados.”

31. T.S. Blakeney identifi ca estas palavras como a “mais famosa máxima” de Holmes (Sherlock Holmes: Fact or Fiction?). Elas aparecem duas vezes em O signo dos quatro e são repetidas de forma quase idêntica em “O Diadema de Berilos”, “Os planos do Bruce-Partington” e “O rosto lívido”.

32. Esta observação sugere que Holmes sabia o prenome de pai de Watson, que nós ignoramos.

33. O leitor se lembrará que a aposentadoria diária de Watson era de 11 xelins e 6 pence O relógio representa quase dois anos inteiros da aposentadoria.

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34. Relógios a que se podia dar corda sem uma chave eram uma invenção relativa-mente recente (as patentes para relógios em que a corda era dada pelo acionamento da coroa foram registradas entre 1845 e 1860), e o pai de Watson podia de fato ter vivido antes da introdução dos práticos relógios sem chave. Uma invenção anterior foi a chamada chave Breguet, que só podia ser girada numa direção.

35. Holmes talvez tenha razão ao dizer que essa característica está sempre presente no relógio de um bêbado, mas é um raciocínio falho dizer que os arranhões provam que o dono é um bêbado. Por exemplo, o dono poderia sofrer de paralisia, ou simplesmente ser descuidado, com pouca estima por seus bens.

36. Daniel L. Moriarty (nenhum parentesco aparente) faz uma convincente defesa, em “The Woman Who Beat Sherlock Holmes”, da ideia de que Mary Morstan foi a Baker Street expressamente para se casar com Holmes. Logo fi cou claro para a jovem que o detetive percebera seu jogo, e, embora não esperasse encontrar um segundo solteirão na residência, ela rapidamente mudou seu alvo para Watson. Moriarty afi rma que ela não tinha nenhuma má intenção, estava apenas procurando melhorar de vida.