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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES LICENCIATURA EM DANÇA ALEXANDRE ARAÚJO DE OLIVEIRA AS EXPRESSÕES FÁCIO-CORPORAIS DAS EMOÇÕES: OS CASOS DE THE HOT ONE HUNDRED CHOREOGRAPHERS E VESTÍGIOS NATAL/RN 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

LICENCIATURA EM DANÇA

ALEXANDRE ARAÚJO DE OLIVEIRA

AS EXPRESSÕES FÁCIO-CORPORAIS DAS EMOÇÕES:

OS CASOS DE THE HOT ONE HUNDRED CHOREOGRAPHERS E VESTÍGIOS

NATAL/RN

2013

ALEXANDRE ARAÚJO DE OLIVEIRA

AS EXPRESSÕES FÁCIO-CORPORAIS DAS EMOÇÕES:

OS CASOS DE THE HOT ONE HUNDRED CHOREOGRAPHERS E VESTÍGIOS

Trabalho de Conclusão de Curso

(TCC) apresentado à Licenciatura em Dança

da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como requisito parcial à obtenção do

grau de Licenciado em Dança.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Marcos Bragato.

NATAL/RN

2013

ALEXANDRE ARAÚJO DE OLIVEIRA

AS EXPRESSÕES FÁCIO-CORPORAIS DAS EMOÇÕES:

OS CASOS DE THE HOT ONE HUNDRED CHOREOGRAPHERS E VESTÍGIOS

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)

apresentado à Licenciatura em Dança da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito parcial à obtenção do grau de

Licenciado em Dança.

Aprovado em: ___/___/_____

___________________________________________________

Prof. Dr. MARCOS BRAGATO

LICENCIATURA EM DANÇA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Orientador

_________________________________________________

Profa. Dra. LARISSA KELLY DE OLIVEIRA MARQUES TIBURCIO

LICENCIATURA EM DANÇA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Examinadora

_________________________________________

Profa. Dra. MARIA DE LURDES BARROS DA PAIXÃO

LICENCIATURA EM DANÇA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Examinadora

A minha família, que é, sobretudo, a base de minhas motivações maiores.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que me atravessaram durante esse ciclo, aos que me

possibilitaram, antes de tudo, tornar-me o homem, o artista, o bailarino-criador que

sou.

A minha família pelo cego, mas nunca receoso apoio: Dona Livra, seu Mossa

e Alexsandro.

Obrigado àquele com quem divido os meus sonhos, Rafael Barros.

Aos meu amigos e parceiros de conversas e goles de arte Josie Pessoa,

Vanessa Oliveira, Izac Bruno, Daniele Dantas, Linaldo da Silva, Acácia Oliveira,

Raquel Guerra, Angélica Oliveira, Djalma Júnior, Theo Macedo, Brunno Martins,

Álvaro Dantas, Diana Filgueira, Silvia Rodrigues, Victor Varcelly, Suzanna Kiberlly,

Lúcio Luiz, Cecília Oliveira, Fábio Vale, Bibiana Estevez, Manoel Afonso Júnior,

Maria Fidélis, Jô Bonfim, Kel Xavier, Pica-Pau, Melina Varela, Priscila Miranda, entre

tantos outros não mencionados que compartilharam algo de si comigo.

O ser humano que dividiu um pedaço de sua vida com minha pessoa, que me

fez olhar o mundo como o vejo hoje: Obrigado Augusto Neto.

Aos meus queridos que trabalham no DEART: Severino, Walber, Aninha, Hilka

e Adriano.

Aos meus amigos do Parafolclórico, meu berço. A Cia. Gira Dança e cada

integrante que vive aqui, em mim. A todo o apoio dos professores do Sesc RN

Adriana Alves, Micheline Pereira e Anderson Farias.

A Banca deste TCC composta pelos Professores Drs. Marcos Bragato, Maria

de Lurdes e Larissa Kelly por suas contribuições.

Agradeço também, a todo o corpo docente do Curso de Dança da UFRN, mas

sobretudo aquele que me acompanha de perto, o homem que sempre me provoca

reflexões e que tem o cuidado de extrair o melhor de mim. Meus sinceros

agradecimentos ao meu orientador Prof. Dr. Marcos Bragato.

Debemos asumir la responsabilidad de lo que decimos y

reconocer que nuestras palabras, en caso de que alguien las

crea, pueden tener profundos efectos, para bien o para malo.

Daniel C. Dennett.

RESUMO Sob a perspectiva evolucionista, o corpo possui mecanismos cognitivos moldados no

vasto tempo evolutivo denominados emoções e sentimentos. Segundo a

classificação sugerida por Damásio (2004: 51), existem três categorias emocionais:

emoções primárias, emoções de fundo e as chamadas emoções sociais. Por

permearem os corpos dançantes a todo tempo, faz-se necessário um olhar que

possa aqui dissipar o entendimento senso comum de que as obras possuem um

caráter eminentemente frio ou quente. Ressalta-se que o presente estudo considera

metodologicamente o reconhecimento das expressões fácio-corporais das emoções

nas produções The Hot Hundred Choreographers (2011) e Vestígios (2010), por

meio da observação de gravações em vídeo, como um mapeamento daquilo que o

corpo realiza no ato de performar como dança. Assim, por serem de caráter

performativo e terem o foco primeiro o corpo, a contribuição das ciências cognitivas

é de suma importância e valia nas discussões a cerca da dança. O entendimento

proposto, neste estudo, carrega traços que podem desencadear diferentes modos

de gerenciamento no sistema dança. O como acontece o diálogo entre corpo e luz;

corpo e sonoridade; corpo e veste; corpo e espaço; corpo e corpo(s), em suma

corpo e/na obra com sua dramaturgia e lógica/poética.

PALAVRAS-CHAVE: Emoções básicas; Expressões fácio-corporais; The Hot One

Hundred Choreographers; Vestígios.

ABSTRACT Under the evolutionary perspective, the body has molded cognitive mechanisms in

the vast evolutionary time called emotions and feelings. According to the

classification suggested by Damasio (2004: 51), there are three emotional

categories: primary emotions, background emotions and so-called social emotions.

By permeating the dancing bodies all the time it is necessary a look here you can

dispel the common sense understanding that the works have an eminently cool or

warm character. It is noteworthy that this study methodologically considers the

recognition of facio-corporal expressions of emotions in “The Hot Hundred

Choreographers” (2011) productions and “Vestígios” (2010), through observation of

video recordings, as a mapping of what the body performs in the act of perform like

dancing. So be performative character and as they focus first body, the contribution

of the cognitive sciences is paramount and valid in discussions about dance. The

view proposed in this study bears traces that can trigger different modes in the

management of dance system. The really true to how does the dialogue between

body and light; body and sound; body and clothes; body and space; body and body

(ies), ork with his drama and logic / poetic.

KEYWORDS: Basic emotions; facio-corporal expressions; The Hot One Hundred Choreographers; Vestígios.

Sumário

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9

2 EMOÇÕES COMO PROGRAMAS: AS EXPRESSÕES FÁCIO-CORPORAIS ..... 11

2.1 EMOÇÕES DE FUNDO ................................................................................... 15

3 O ENTENDIMENTO EMOÇÃO/DANÇA: UMA SUGESTÃO ................................. 18

4 METODOLOGIA .................................................................................................... 20

5 THE HOT ONE HUNDRED CHOREOGRAPHERS (2011) .................................... 21

6 VESTÍGIOS (2010) ................................................................................................. 24

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 27

8 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 28

9 ANEXOS ................................................................................................................ 29

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1 INTRODUÇÃO

No longo período de 2.500 anos do conhecimento argumentativo da chamada

filosofia natural, que se inicia com Platão, às diferentes áreas nascentes até às

últimas décadas do século 20, as emoções e suas expressões são entendidas como

problemas aos processos de raciocínio. Assim entendido, as artes são o lugar por

excelência passível por sua expressão, e, desse modo, conferem exclusividade às

expressões das emoções.

Nesse sentido, as emoções e suas expressões entendidas como entraves às

tomadas de decisão, por exemplo, fomentam o nascimento e desenvolvimento

histórico da dicotomia frioVersusquente, em que nas artes da cena e do corpo

ganham máxima publicidade; ou seja, argui-se pela presença ou ausência das

emoções em determinado contexto cênico.

Pode-se observar essa publicização especialmente no domínio da Estética

filosófica, e que na dança está explícita inicialmente com Jean-Georges Noverre

(1727–1810) em suas Cartas Sobre o Balé e as Artes de Imitação (1760),

complementadas em três edições, quando, em linhas gerais, reclama que a) o balé

deve narrar uma ação dramática (o ballet d’ action), b) deve ser “natural e

expressivo”, como uma ação pantomímica.

Em suas quinze cartas escritas, Noverre manifesta suas ideias a respeito do

que ele entende pelo balé ideal, realiza a crítica da produção cênica afeta a Ópera

de Paris e analisa os diversos aspectos que devem compor uma ação dramática em

dança, tais como: cenografia, iluminação, dramaturgia, técnica, figurino e,

principalmente, as expressões das emoções.

No balé de ação proposto pelo Noverre, as expressões emocionais são a

chave para o desencadeamento de toda estrutura coreográfica. É a partir delas que

o fruidor pode aderir à ação dramática. Ele também confere um papel central às

expressões emocionais faciais ao condenar o uso das máscaras, expediente comum

no período nas Óperas- Balés de Jean-Baptiste Luly (1632-1687). Noverre aponta

que na face se expressam os relâmpagos da alma, as emoções mais vivazes,

semelhantes, as micro-expressões observadas por Paul Ekman. No entanto, ao

conferir o papel central às expressões faciais

10

não significa dizer que ele não atenta para a ação do corpo; pelo contrário, os gestos

são de grande importância em seus balés e de certo modo inaugura na dança teatral

a discussão da técnicaVersusemoção.

Na dança, o embate frioVersusquente é nomeado como

técnicaVersusemoção, sucessivamente ao longo da produção cênica ocidental, mas

com um novo interregno: as propostas dos chamados pós-modernistas

estadunidenses, a partir dos anos 1960, pleiteiam um novo entendimento sobre o

material a se erguer e o como ele se expressa artisticamente.

Com o esforço de neurocientistas como o português António Damásio (1996)

e de psicólogos como os estadunidenses Robert Frank (1988) e Paul Ekman (1977),

o cenário do Versus parece se dissipar e ganhar contornos diferenciados, desde

então. Damásio apresenta uma convincente alternativa ao entendimento tradicional

das emoções como algo diferenciado dos processos de raciocínio. No que cunha

como o Erro de Descartes, o autor demonstra que tal entendimento é errôneo

porque quando o sistema que desenha as emoções não opera devidamente falha o

processo de tomada de decisão racional.

Durante a história das chamadas ciências naturais as emoções são

apresentadas como antagonistas aos processos de raciocínio, tomadas de decisão e

de importância secundária no que diz respeito aos mecanismos cognitivos

desenvolvidos no vasto tempo evolutivo. É a Psicologia Evolucionista quem concebe

às emoções, o papel central de seus estudos. A partir dela, as emoções se tornam

objetos importantes nos estudos científicos.

O debate das expressões fácio-corporais das emoções tem no naturalista

britânico Charles Darwin (1809 - 1882) o seu fundamental iniciador com A Expressão

no Homem e nos Animais (1872) e, depois de quase 100 anos, Paul Ekman (1977) o

recupera e insere em novas tratativas e na descrição neurocultural da emoção.

Ekman, em mais de 40 anos de pesquisa, concentra-se nas expressões faciais das

emoções e nos modos do reconhecimento de suas regularidades, apresenta como

essas expressões são construídas, quais variam de cultura para cultura, quais são

universais e o modo como elas se expressam e são lidas. O neurocientista

11

português Antonio Damásio é outro expoente das pesquisas voltadas ao estudo das

emoções e como elas nos constituem.

O artigo está dividido em três seções nas quais arguimos por outro modo de

observar as emoções nos corpos que dançam, a partir do entendimento proposto

nos estudos sobre as expressões fácio-corporais das emoções do psicólogo Paul

Ekman e dos estudos sobre o funcionamento da mente e do corpo desenvolvido

pelo neurocientista António Damásio. Na segunda seção, propõe-se uma alternativa

analítica ao mero entendimento senso comum de obras totalmente frias ou quentes.

Na terceira, analisa-se qualitativamente duas obras de dança de caráter pós-

moderno; a primeira intitulada The Hot One Hundred Choreographers (2011), criação

e interpretação do artista paulista Cristian Duarte e a segunda, a obra Vestígios

(2010) da também paulista Marta Soares.

Ressalta-se que o presente estudo considera metodologicamente o

reconhecimento das expressões fácio-corporais das emoções dessas produções,

por meio da observação de gravações em vídeo, como um mapeamento daquilo que

o corpo realiza no ato de performar dança. A atenção se volta, fundamentalmente, à

observação e detecção das prováveis expressões das emoções básicas,

comumente nomeadas como estereotipias das expressões fácio-corporais das

emoções, com o intuito de tentar entender o gerenciamento dessas emoções nos

corpos e na cena dessas danças. É, também, um esforço na identificação e

caracterização das expressões chamadas emoções básicas – alegria, tristeza,

surpresa, medo, raiva e nojo – como uma alternativa à análise de produções cênicas

em dança.

2 EMOÇÕES COMO PROGRAMAS: AS EXPRESSÕES FÁCIO-CORPORAIS

Sob a perspectiva evolucionista, o corpo possui mecanismos cognitivos

moldados no vasto tempo evolutivo denominados emoções e sentimentos. Segundo

Damásio (2000), esses dispositivos possuem um papel fundamental na vida dos

indivíduos, e atuam, inclusive, nos processos de raciocínio que levam às tomadas de

decisões. Em organismos saudáveis, as emoções estão presentes a todo o tempo

de modo consciente e, por muitas vezes, inconsciente. Para o neurocientista, as

emoções ocorrem no teatro do corpo. Elas são ações ou movimentos. Manifestam-

se no rosto, na voz ou em outras partes do corpo. Visíveis ou não, promovem

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comportamentos específicos, enquanto os sentimentos constituem o pano de fundo

da mente (DAMÁSIO, 2004: 35).

Segundo a classificação sugerida por Damásio (2004: 51), existem três

categorias emocionais: emoções primárias, emoções de fundo e as chamadas

emoções sociais.

As emoções primárias podem ser classificadas como básicas ou universais,

de acordo com a classificação proposta por Paul Ekman (1977, 1999). O adjetivo

básico contempla dois significados: o primeiro, refere-se aos universais como um

ensino constante da aprendizagem social o qual ocorre comumente para todos os

membros de uma espécie; o segundo, “ao entendimento de que as emoções

evoluíram por seu valor adaptativo para lidar com as tarefas fundamentais da vida.

Fatores inatos desempenham um papel na contabilidade para as características que

eles compartilham” (EKMAN, 1999: 46). Essas características dizem respeito à

situações adaptativas que co-variaram no passado evolutivo, em como escapar de

predadores, lutar, apaixonar-se, confrontar-se com a infidelidade sexual, eventos

repetidos diversas vezes na história evolutiva. Isso quer dizer que “nossa avaliação

de um evento atual é influenciada por nosso passado ancestral” (Ibid.). Em síntese:

um inato programa facial das emoções e suas regras de exibição culturais que o

regula.

É consensual, como lembra Ekman, o entendimento que as emoções são

projetadas para lidar com os encontros inter-organísticos, entre pessoas ou entre

pessoas e outros animais. É crucial lembrar que elas ocorrem mesmo sem a

presença e a imaginação sobre o outro. Podemos desenvolver reações emocionais

a partir de diversos motivadores como a assistência de um espetáculo de dança, a

uma atividade de auto-manipulação e auto-erótica, a eventos naturais e assim por

diante. No entanto, Ekman reforça o entendimento que a principal função da

emoção:

[...] é mobilizar o organismo para lidar rapidamente com encontros interpessoais importantes, preparados para fazê-lo, quais os tipos de atividades têm sido adaptáveis no passado. O passado refere-se, em parte, o que tem sido adaptativo na história de nossa espécie, e o passado refere-se também ao que tem sido adaptativo na nossa própria história de vida individual (1999: 46).

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As características que distinguem as emoções básicas são distintivos sinais

universais, estados fisiológicos emoção-específico, mecanismo automático de

avaliação, e, fundamentalmente, por serem de curta duração.

Tais emoções básicas ou universais, como aponta Paul Ekman (2011),

possuem padrões de expressão identificáveis em qualquer cultura e, apesar dos

gatilhos que disparam essas emoções são da natureza da aprendizagem, eles se

enquadram no que ele denomina temas universais, os quais são circunstâncias mais

amplas que os motivos causadores das emoções, como os eventos de quaisquer

natureza. A perda pode ser exemplo de um bom tema universal. De qualquer modo,

as características que distinguem as emoções básicas são distintivos sinais

universais, estados fisiológicos emoção-específico e mecanismo automático de

avaliação (EKMAN, 1999).

Na tentativa de situarmos as expressões emocionais universais,

apresentamos a estereotipia e os padrões expressivos das emoções manifestos em

fotografias de faces de pessoas disponíveis na internet, como ponto de partida para

as seções analíticas das criações em dança de Cristian Duarte e Marta Soares.

Figura 01: Alegria. Figura 02: Raiva.

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Figura 03: Medo. Figura 04: Surpresa.

Figura 05: Tristeza. Figura 06: Nojo.

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2.1 EMOÇÕES DE FUNDO

As emoções de fundo manifestam-se de modo sutil, assim como qualquer tipo

de emoção elas são flagradas na voz, no corpo e também na face. Apontam o

estado de ânimo no qual o indivíduo se encontra, bem-estar ou mal-estar,

influenciando as outras emoções, pensamentos e o comportamento dos indivíduos.

De acordo com Damásio (2004), a emoção de fundo é o resultado provisório e

sempre mutável das diversas reações metabólicas e emocionais que se realizam no

corpo. É importante frisar que essas emoções diferem dos estados de humor; estes,

normalmente, possuem um período relativamente mais longo do que as emoções de

fundo. Estas são mais difíceis de identificação por causarem pequenas nuances no

modo como são realizados os movimentos, seja na voz, na face ou no corpo como

um todo.

As emoções sociais ou secundárias, por sua vez, são combinações das

emoções básicas desenvolvidas durante a vida dos indivíduos. Elas incluem a

simpatia, a compaixão, o embaraço, a vergonha, a culpa, o orgulho, o ciúme, a

inveja, a gratidão, a admiração e o espanto, a indignação e o desprezo (DAMÁSIO,

2004: 54). De acordo com Damásio (2011), apesar de carregarem as mesmas

características das emoções básicas como o estímulo emocionalmente competente,

dependerem de sítios desencadeadores específicos, serem constituídas por

complexos programas de ações que permeiam o corpo e serem percebidas em

forma de sentimentos, essas emoções possuem um papel altamente social e são

evolutivamente mais recentes entre os humanos. Um outro fator interessante é

perceber que algumas dessas emoções só existem na espécie humana.

Em síntese: “o mundo das emoções é sobretudo feito de ações executadas

no nosso corpo, desde expressões faciais e posturas até mudanças nas vísceras e

meio interno”, enquanto os “sentimentos emocionais [...] são as percepções

compostas daquilo que ocorre em nosso corpo e na nossa mente quando uma

emoção está em curso.” (DAMÁSIO, 2011: p.142).

A partir desse entendimento, faz-se necessário outro modo de se observar os

corpos que dançam obras cunhadas como pós-modernas, que por elas mesmas

pensam a dança sob parâmetros alternativos, até então desconhecidos na paisagem

da dança. Por permearem os corpos dançantes a todo tempo, faz-se necessário um

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olhar que possa aqui dissipar o entendimento senso comum de que as obras

possuem um caráter eminentemente frio ou quente.

Segundo a perspectiva evolucionista, a arte é uma expressão da natureza

humana, um aspecto desenvolvido durante nossa trajetória evolutiva. É produto

evolutivo do corpo e o corpo que faz arte funciona como uma vitrine, ao expô-lo de

modo acentuado.

Ao se debruçar sobre obras artísticas, especificamente em obras de dança

contemporânea, podemos analisá-las sobre diferentes perspectivas, na dependência

do material teórico/prático que o espectador é munido. A todo o momento surgem

pesquisas acerca do corpo, que é a matéria prima da dança e, consequentemente,

da arte.

A pesquisa sobre a expressão das emoções de Paul Ekman traz incontáveis

contribuições ao entendimento dos mecanismos que desencadeiam as expressões

fácio-corporais das emoções. No livro A Linguagem das Emoções, o autor realiza um

aprofundado panorama de sua pesquisa, e se concentra na descrição e

conceituação de nosso equipamento natural que se pavimenta com as emoções.

Por serem mecanismos básicos da regulação da vida (DAMÁSIO, 2004: 37),

as emoções estão presentes a todo o momento a atuar em seus níveis mais

básicos. É importante apontar aqui que o entendimento das emoções proposto é

congruente ao pensamento de Ekman, quando Damásio afirma que as emoções e

suas expressões possuem diversas camadas. Desta forma, ao utilizarmos o termo

emoção, assumimos todos os processos que envolvem as emoções propriamente

ditas como a regulação metabólica, os reflexos básicos, as respostas imunitárias, os

comportamentos de dor e prazer, as pulsações e motivações e, finalmente, as

emoções que resultam, provavelmente, nos sentimentos emocionais.

Ekman nos aponta os caminhos que se percorre à ativação das emoções que

desencadeiam os estados corporais característicos como os de determinadas

expressões faciais, por exemplo.

As emoções produzem mudanças nas partes do cérebro que nos

mobilizam para lidar com o que deflagrou a emoção, assim como

mudanças em nosso sistema nervoso autônomo, que regula o

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batimento cardíaco, a respiração, a transpiração e muitas outras

alterações corporais, preparando-nos para diversas ações. As

emoções também enviam sinais, mudança nas expressões, na face,

na voz e na postura corporal (EKMAN, 2011: 37).

Acreditamos que tal entendimento dos mecanismos das emoções é de

fundamental importância no exercício da dança. Enquanto intérprete é preciso uma

atenção exaustiva durante a construção dos estados emocionais os quais permeiam

o corpo na obra, para que ele consiga encontrar as chaves ou gatilhos, como afirma

o Ekman, que possibilitem os reencontros com os estados corporais construídos.

Vale considerar que não é todo evento que ativa a mesma emoção em todas

as situações. No entanto, alguns gatilhos geram a mesma emoção (EKMAN,

2011:35), no caso dos temas universais. Os autores apontam que os gatilhos

emocionais são em grande parte construídos durante a experiência individual,

dependem diretamente da cultura e do lócus no qual o indivíduo se encontra.

No entanto, a operação da mesma emoção em um determinado grupo de

indivíduos não ocorre do mesmo modo na maior parte dos que o constituem.

Mudanças sutis das expressões emocionais estereotípicas existem, mas não ao

ponto de perderem suas características mais básicas, suas linhas gerais. Para o

olhar atento do espectador, o entendimento do funcionamento das emoções poderá

ajudá-lo a observar os estados corporais dos intérpretes, e assim contribuir,

provavelmente, à compreensão do sentido semântico da obra.

Uma observação importante é perceber que, por estarem funcionando a todo

o momento no corpo, as emoções também se encontram em obras de dança que o

senso comum aponta como frias e isso é muito frequente em obras de dança

contemporânea, onde os parâmetros de composição são largos e os artistas estão

preocupados em outros fatores e conceitos que não os da expressão das emoções

básicas. Assim, não é preciso que haja uma dança pautada nas emoções básicas

como a raiva, a alegria ou a tristeza (DAMÁSIO, 2004: 53) para que haja emoção

atuando no corpo, pois como afirma Damásio (2000) emoções também fazem parte

das tomadas de decisões e o corpo em cena está, muitas vezes, em uma situação

onde decisões são essenciais.

Paul Ekman aborda o tema das emoções e expressões faciais de modo a

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atentar à consciência dessas emoções para, em seguida, melhorarmos nosso

convívio social. Contudo, sua obra contribui para outros segmentos do

conhecimento. Nas artes performáticas, mais especificamente na dança, a ótica

proposta pode servir como instrumento para compreensão de sua matéria prima,

que é o corpo, seja no entendimento dos mecanismos das expressões faciais para o

auxílio da composição ou como mais um instrumento para a compreensão da

construção semântica. Isso nos possibilita um viés crítico mais aprofundado e novas

formas de se pensar essa dança e seus processos criativos. Em cena, o corpo

torna-se palco expandido das emoções.

3 O ENTENDIMENTO EMOÇÃO/DANÇA: UMA SUGESTÃO

As ciências cognitivas conferem um papel central às emoções na vida dos

indivíduos e o corpo que dança torna-se, de fato, uma vitrine, pois o ambiente

artístico é um ambiente privilegiado quando se refere à atenção dessas emoções.

Contudo, existem poucas pesquisas sob essa ótica voltadas às análises das

emoções em dança. Desse modo, percebe-se a necessidade de sugestão de uma

ótica que contemple os mecanismos das emoções para dissipar o entendimento do

senso comum sobre o modo como operam as emoções, sentimentos e suas

consequentes expressões. Parece-nos impróprio crer que as obras de dança

contemporânea, que trabalhem com parâmetros de entendimento diferenciados,

como a “dança tarefa” ou a própria “dança conceitual”, não possuam emoções

atuantes.

A função atribuída à expressão das emoções no corpo que dança conferida

pela história altera-se e segue alterando-se com o tempo e os fatores inerentes aos

ambientes nos quais a dança se encontra. No entanto, ressalta-se que a partir da

dança moderna se instaura o expediente recorrente de se voltar à expressão da

estereotipia das emoções por meio da deliberada iniciativa de se enfatizar a

“verdade interior do ser humano” (GRAHAM, 1993), e distanciar-se da fantasia

disposta nos balés do repertório romântico e clássico.

Nessa trajetória histórica, há um entre-lugar quando Merce Cunningham se

distancia da via da modern dance ao propor um novo corpo dançante cujos

mecanismos estão voltados ao funcionamento de uma estrutura coreográfica

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aparentemente livre da necessidade dessa verdade interior. E potencializar o

conceito de presentificação do performer e antecipar as profundas alterações que se

desenvolvem entre os pós-modernistas nos anos 1960 e 1970 (BANNES, 1986). A

atenção cênica se dilata para além das paisagens corporais; a presença cênica se

dá como um estado de alerta constante à concretude da performance.

A tríade tempo-espaço-corpo passa a ser o problema fundamental e o corpo

passa a ser observado como entidade viva em tempo real. Para isso, são

desenvolvidas novas estratégias porque para tal há exigência igualmente de novos

mecanismos: a suspensão temporal, a desteatralização da dança, a inexistência do

clímax, a rejeição à correspondência literal entre movimento e música, à atmosfera

cênica e à obrigatoriedade disposta pela modern dance de um ambiente expressivo-

emocional.

Esse cenário afasta a conexão linear obrigatória entre a estereotipia das

emoções básicas e movimento. Nele, há, também, uma decisão fundamental que o

sedimenta: o conceito de aproximação da arte à vida que tem como uma das

consequências a eliminação da relação direta entre passo e música, entre partitura

dançante e partitura musical. Afinal, dança não é apenas o passo; caminhar, correr,

andar, tocar são apropriados como elementos da composição de uma ação em

dança.

Os pioneiros artistas da dança pós-modernista como Yvonne Rainer (1934), a

Lucinda Childs (1940), Steve Paxton (1939), David Gordon (1936), Deborah Hay

(1941) e Trisha Brown (1936), entre os mais ativos, deixam clara a utilização de

novas estratégias para a criação e modo de realizar dança. Há uma mudança radical

do eixo do entendimento emoção/dança. Não mais se propõe a expressão das

emoções básicas como o principal elemento na construção dramatúrgica corpórea.

Há uma busca por outros entendimentos do que pode ser dança e os modos de

operação da expressão dessas emoções em dança.

Por meio dessa perspectiva, realizamos duas análises de obras brasileiras de

dança contemporânea, que muitas vezes deslocam o eixo das emoções básicas

habitualmente esperadas para tratar e manipular as emoções de fundo e social sob

uma verve irônica.

20

A primeira obra tem o título de The Hot One Hundred Choreographers de

Cristian Duarte, e a segunda se chama Vestígios da coreógrafa Marta Soares.

4 METODOLOGIA

Primeiramente, realiza-se uma revisão bibliográfica acerca dos conceitos das

emoções e sentimentos propostos pelo neurocientista português António Damásio e

das expressões faciais das emoções sugeridas por Paul Ekman.

Após a primeira etapa, há o levantamento de materiais bibliográficos

especializados no estado da arte com enfoque na dança para a compreensão dos

conceitos norteadores das várias vertentes da dança pós-moderna.

A partir dos conceitos pesquisados, tanto das emoções e sentimentos quanto

os que envolvem a dança pós-moderna, foram efetuadas análises qualitativas em

duas obras de dança contemporânea.

Como primeira, analisa-se The Hot One Hundred Choreographers, de Cristian

Duarte. Para tanto, visualiza-se a obra completa em DVD utilizando os recursos de

pausa/congelamento de imagem e zoom/aproximação para melhor percepção dos

indicadores fácio-corporais das emoções. Além da análise da performance detalhada

em vídeo, são assistidas entrevistas do artista publicadas na internet, bem como

conversas pessoais para o melhor entendimento da proposta coreográfica e seu

modo de operar em cena, seus materiais.

A análise da segunda obra se dá diferentemente da primeira. Impossibilitados

ao acesso da performance completa de Marta Soares em Vestígios, opta-se em

analisar a apresentação processual, em vídeo, pela própria performer no Rumos Itaú

Cultural Dança 2009-2010, na qual explana os aspectos principais da construção da

obra e seus conceitos norteadores. Em seguida, recorre-se ao recurso da

apreciação de um fragmento da obra em vídeo disponível na internet.

Durante a análise dos trabalhos em dança procura-se à aplicação dos

conceitos das emoções e suas expressões e sentimentos sob as perspectivas dos

estudos de António Damásio e Paul Ekman, na sugestão de um entendimento que

contemple esses mecanismos inerentes ao corpo, produtos da evolução.

21

5 THE HOT ONE HUNDRED CHOREOGRAPHERS (2011)

Sobre a obra:

Criado em colaboração com o Rodrigo Andreolli, o ponto de partida para a criação de HOT 100 – THE HOT ONE HUNDRED CHOREOGRAPHERS que foi o trabalho do artista escocês Peter Davies, que listou em uma tela multicolorida sua coleção de cem artistas/obras intitulada de “The hot one hundred”.

Cristian Duarte transportou este procedimento de Devies para o seu ambiente coreográfico e “devorou” vários ícones da dança, coreógrafos e peças que o instigam, articulando cenicamente uma troca entre lista e forma orientada pelos estudos de Umberto Eco em seu livro ‘A vertigem das listas’, que confere outros entendimentos organizacionais e perceptivos às listas. (Programa de circulação HOT 2012)

Cena vazia, piso branco, luz aberta também branca. Uma trilha sonora, uma

música clássica, o performer adentra a cena em suaves movimentos entre demi-

points, profusão de por-de-bras e saltitos, e uma primeira hot-referência: uma dança

da Isodora Duncan (1877-1927). Vale salientar que ele utiliza como vestes, roupas

comumente encontradas no cotidiano urbano: camiseta, tênis e jeans.

Logo, o performer altera a dinâmica de sua dança se distanciando dos leves

saltitos do que parece ser a primeira hot-referência. Outra sonoridade perpassa o

espaço sobreposta à primeira sonoridade musical. Neste primeiro momento, não há

expressões emocionais fácio-corporais explícitas no ambiente corpóreo do

performer.

Surge uma terceira hot-referência, mais virtuosa enquanto parâmetros

encontrados comumente na dança. Ele parece ir e retornar as referências, criando

danças de ligação, como disse o próprio intérprete em entrevista concebida ao

Festival Panorama 2011. A trilha encontra-se totalmente sobreposta a ponto de não

reconhecerem-se as canções originais. Na sua face, persiste a provável

neutralidade.

Somente, por volta dos oito minutos da performance, nota-se um estado de

contemplação em sua face e corpo de modo sutil. Observa-se a tentativa de

neutralizar a expressão da face. A atenção do intérprete parece estar voltada para

“outro lugar”, talvez para o percurso do movimento em si e não nos subtextos das

hot-referências. Em entrevista dada a Conectedance, o artista afirma que sua

atenção está voltada para o “gerenciamento em tempo real das hot-refências”. Essa

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fala nos dá uma possível pista: as emoções estão atuando fortemente com os

processos decisórios que se configurarão nas escolhas das células coreográficas

que ele possui arquivadas em seu corpo/memória durante o percurso da

apresentação.

Figura 7: Cristian Duarte por Rosa Mendonça (2011).

Durante o espetáculo observa-se que o corpo assume posturas que apontam

algumas das emoções básicas como a alegria, ao realizar movimentos corporais

mais expansivos, ou tristeza, ao alargar o espaço entre as escápulas e diminuir o

espaço entre as articulações do externo e clavícula e inclinar o tronco levemente

para baixo, e de fundo ao alterar as dinâmicas de movimento do frenético/rápido

para o calmo/lento. No entanto, sua face permanece em oposição ao corpo, pois no

momento em que se configuram essas possíveis expressões emocionais a face do

performer é impelida à neutralidade.

Ao longo do trabalho, torna-se patente a apropriação das referências; não

como cópias das obras que ele cita, mas antes, uma apropriação, nas palavras do

próprio intérprete é "a minha Isadora Duncan" quando dança. Seu modo de

fazer/mover torna-se foco do espectador/fruidor, a singularidade de sua

movimentação ganha lugar em primeiro plano.

Em certo momento, a hot-referência aponta diretamente mudanças em sua

face, um diálogo não-verbal entre duas personas é assumido pelo intérprete; um

diálogo breve, porém rico em variações de expressões emocionais não somente na

face, mas em seu corpo, fazendo-o adotar posturas e realizar gestos peculiares das

emoções incitadas. Aqui expressam-se rapidamente as emoções de surpresa,

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indignação e raiva; as expressões chegam como controlados e rápidos lampejos

porque é próprio das emoções básicas a duração em segundos.

A trilha raramente surge com clareza, um trabalho excepcional criado pelo

Tom Monteiro. A trilha é fixa, porém Cristian Duarte trabalha de modo diferente: Ele

possui o ponto de partida, a hot-referência à Isadora Duncan e o ponto final, a hot-

referência Vestígios da Marta Soares. Assim, ele opera as hot-referências em tempo

real durante toda a performance, com exceção do início e final da obra.

Em alguns momentos, há a alteração da expressão facial de modo bastante

acentuado. A expressão de regozijo aparece em sua face para logo transformar-se

na expressão da emoção básica de nojo. Nesse ponto, a coreografia toma

proporções aceleradas, com uma frenética movimentação, e deixa-se escapar a

alegria em um sorriso curto e quase imperceptível, tamanha sua velocidade.

Agora surge uma pergunta: Como enfrentar o dilema das emoções que

operam de modo inconsciente, que estão fora do âmbito de nosso controle?

Novamente, em uma passagem, Cristian Duarte deixa escapar mais um

sorriso, desta vez abertamente. Em seguida, retira-se da cena e retorna com um

microfone e um aparelho gravador. Ainda ofegante pronuncia: “I’ve had the time of

my life”, trecho da canção e trilha sonora da coreografia do filme Dirty Dancing, mais

uma hot-referência. A sua voz é reproduzida logo em seguida, ela não emite traços

emotivos, parece neutra. Inicia-se um jogo de sobreposições de sua própria voz,

gravada e repetida, sucessivamente, com poucas alterações em sua fala/canção,

modificando tons, mas ainda sem expressar claramente alguma emoção.

Enquanto as vozes ocupam o espaço de forma surpreendente, ele se

apropria, mais uma vez, de algo que parece ser recorrente em suas obras: glitter.

Caminha para o centro do palco e derrama glitter no piso, criando um pequeno

monte. Depois traz um pequeno ventilador e o liga; desse modo, o vento espalha

paulatinamente os pequenos grãos, chegando a hot-referência final: Vestígios.

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6 VESTÍGIOS (2010)

A dançarina e coreógrafa paulista Marta Soares utiliza “os aspectos

monumental e sagrado de um sambaqui” para compor a dança-instalação Vestígios.

O sambaqui é um cemitério a beira mar, sítio arqueológico pré-

histórico localizado na região de Laguna, Santa Catarina, o qual é

sobretudo um cemitério e portanto resultado da repetição de

cerimônias fúnebres durante mais de mil anos [...]

O projeto explorará em todos os seus aspectos o conceito de rastro a

partir das imersões físicas do corpo com o ambiente, a captação de

imagens em vídeo, a coleta de sons e de vestígios materiais que

comporão o espetáculo que terá como característica a intersecção da

dança com as artes visuais (vídeo, instalação e performance). Para

isso venho pesquisando obras de artistas de “land art” como Ana

Mendieta e Robert Smithson e sua teoria de “non site”. (Conexões e

Criações- Rumos Itaú Cultural Dança, 2010).

A análise de Vestígios se realiza de modo diferenciado da análise anterior,

pois o vídeo escolhido não compreende a performance completa, mas antes um

trecho. Contudo, incluímos na análise o material de vídeo disponibilizado pelo Itaú

Rumos na mostra processual exposta em 2010, em São Paulo. A mostra possui o

nome de Coleta de Vestígios e faz parte do livro Criações e Conexões, também do

Itaú Rumos Dança 2010.

Uma plataforma arredondada, sob ela um corpo de areia montanhoso, um

grande ventilador, uma luz rarefeita e de pouca intensidade, dois telões e uma

sonoridade que remete a um ambiente silvestre, distante daquele no qual a

instalação se encontra.

O ventilador funciona movendo lentamente a montanha arenosa. A trilha

sonora desenha um outro lugar. Sons de aves, animais e insetos, assim como o som

do próprio vento colhidos diretamente do lócus da pesquisa, os sambaquis em um

sítio arqueológico em Santa Catarina, são mixados pela criação do músico paulista

Lívio Tragtenberg, potencializadora da atmosfera da cena.

As imagens projetadas nos dois telões e captadas pelo videomaker Ding

Musa se caracterizam pela coleta sonora in loco nos sítios arqueológicos nos quais

Marta Soares e sua equipe estadiam durante 20 dias. Os telões, a duna, o vento, o

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som, a luz e, por fim, o corpo, geram uma atmosfera densa, uma estética de

densidade emotiva. Desse modo, esta obra se distancia do The Hot One Hundred

Choreographers, que se caracteriza por uma cena aparentemente sem conotação

emocional, independentemente dos traços relativos a muita ou pouca mobilidade.

O vento gerado pelo ventilador remove lentamente a areia da duna inicial. O

corpo da performer, aos poucos, imóvel, torna-se visível, mas se descobre pelas

partes, fragmentado: pés, quadril, costas, trajes que carregam os traços como

textura e coloração do material que a cobre. A areia continua a mover-se e a

descobrir lentamente Marta Soares. Quando ainda está encoberto pela areia, o

único movimento é o de sua respiração, que é lenta e profunda a ponto de fazer

mover a areia que a cobre. Essa respiração, característica dos estados de economia

de energia, nos faz crer na possível emoção da tristeza ou na emoção de fundo de

mal-estar. A tarefa de identificar a emoção exata que perpassa a Marta é de difícil

acesso, pois sua face, a qual é um dos indicadores expressivo-emocionais que

poderia nos auxiliar, está totalmente coberta pela areia e seu corpo encontra-se

prostrado.

Ao retardar a cena, ou melhor, dilatá-la, amplia a discussão da passagem do

tempo por meio de aspectos presentes nos rituais de sepultamento dos

sambaquis. Quando se refere a um dos aspectos dos sambaquis evocados no

trabalho, Helena Katz sintetiza o modo operante da estética proposta pela obra e

como ela nos leva para o campo dos conceitos/ideias/pensamentos, de modo

surpreendentemente sensível:

A monumentalidade não diz respeito somente aos espaços agigantados das distâncias áridas e longas que ligam um sambaqui a outro. Vestígios é, ele próprio, de uma monumentalidade

emocionante, com a discussão, sintética, aguda e contundente que distingue os discursos capazes de nos sacudir da dormência que embrutece nossa percepção [...]. (KATZ, 2010).

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Figura 8: Marta Soares por João Caldas (2010).

A partir das imagens criadas durante a interseção entre os elementos da obra,

sonoridade, iluminação, cenografia, projeções e performer, ascende-se o aspecto

monumental dos sambaquis.

Durante a instalação, observam-se marcadores corporais que apontam para a

emoção da tristeza, que é associada ao tema perda, embora a performer não exiba

seu rosto. Há apenas seu corpo que tende à imobilidade e a uma tonicidade baixa

da musculatura e pele, com respiração lenta e profunda.

Devido a imersão na atmosfera construída a partir dos sambaquis, os

cemitérios arqueológicos que por eles mesmos são emissores de signos, é fácil

tendermos aqui para o senso comum e acreditar que a angustia seja a emoção que

governa esta obra por ser a emoção muito provavelmente mais incitada ou gerada

no fruidor. No entanto, é preciso salientar que esta análise considera a observação

não sistemática do corpo em cena, dos estados emocionais que os anima. Desse

modo, ao falar sobre as emoções de angústia e tristeza, Paul Ekman (2011) clarifica

essa falsa ideia.

Para o psicólogo, a angústia incita comportamentos mais ativos, enquanto a

tristeza caminha para o lado oposto. A tristeza nos leva à economia de energia, à

passividade. Portanto, parece-nos ser essa uma descrição aceitável do estado de

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ânimo da Marta Soares em Vestígios, obra que parece estar sintonizada com a

vertente minimal da dança contemporânea e que carrega a característica de

possuir atmosfera emocional, diferenciando-se da obra The Hot One Hundred

Choreographers de Cristian Duarte.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dança contemporânea possui parâmetros de criação muito amplos. Entre

tantas características, ela tem, cada vez mais forte, a ênfase no experimental, a

busca dos modos singulares de estar no mundo; problematiza, nega, questiona,

ironiza, causa sensações e traz a ambiguidade como ferramenta potencializadora de

seu discurso não linear, e se concentra no corpo ele mesmo como principal

articulador da obra.

Desse modo, torna-se evidente a necessidade de lançar novos olhares que

contemplem esses parâmetros os quais surgem constantemente na dança

contemporânea. Assim sendo, as ciências cognitivas e os estudos voltados às

questões sobre as emoções e como elas se expressam na face e no corpo têm

muito a contribuir para a compreensão das artes do corpo e o entendimento das

emoções nos estudos em dança.

O entendimento não tradicional da dança aponta a necessidade de

ampliarmos nosso olhar referente à expressão dessas emoções, pois muitas vezes,

essas obras não trabalham com as emoções estereotipadas comumente acordadas

entre os pesquisadores da área das ciências cognitivas como a alegria, raiva,

tristeza, nojo, entre outras, mas se voltam à utilização fortemente presente da ironia,

orgulho ou angustia que não são emoções universais, de acordo com autores como

Paul Ekman e António Damásio.

Ao realizar as análises das obras The Hot One Hundred Choreographers e

Vestígios torna-se claro que as obras de dança com características avant-

garden possuem singularidades.

Assim, por serem de caráter performativo e terem o foco primeiro o corpo, a

contribuição das ciências cognitivas é de suma importância e valia nas discussões a

cerca da dança. O entendimento proposto, neste estudo, carrega traços que podem

desencadear diferentes modos de gerenciamento no sistema dança.

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O como acontece o diálogo entre corpo e luz; corpo e sonoridade; corpo e veste;

corpo e espaço; corpo e corpo(s), em suma corpo e/na obra com sua dramaturgia e

lógica/poética.

8 REFERÊNCIAS

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ANEXOS

Biografia - Cristian Duarte:

Graduado pela P.A.R.T.S. Performing Arts, Research and Training Studios/Bruxelas

(2002). Foi colaborador do Estúdio e Cia. Nova Dança entre (1994-2000). Graduou-

se em Publicidade, Propaganda e Criação, pela Universidade Mackenzie (1997).

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Sua atuação tem como característica principal a criação e produção em dança

contemporânea, apoiando e promovendo o trânsito entre as diversas áreas do

conhecimento. Seu modo de pesquisa tem sido pautado por parcerias e

colaborações em formatos mutantes, que buscam promover um ambiente

profissional, experimental e dinâmico. Entre seus trabalhos, destacam-se: Hot 100 –

The Hot One Hundred Choreographers (2011), We think, We like that (2010), O

Revisor em série # (2009-2010), Eletroquímicos, baby (2009), MÉDELEI – (eu sou

brasileiro (etc) e não existo nunca) (2006), Embodied (2003), Pressa (1998), entre

outros.

Já foi reconhecido pelos principais prêmios de pesquisa em dança do país: APCA

1998/2003/2008/2011. Programa de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo

2008/2010/2011/2012, Prêmio Funarte Klauss Vianna 2007/2011, Festival Cultura

Inglesa 2011, Rumos Itaú Cultural 2012, entre outros.

Coordena o projeto de residência artística LOTE#, subsidiado pelo “Programa de

Fomento à Dança para a cidade de São Paulo”. (Site do Cristian Duarte).

Biografia – Marta Soares:

Marta Soares (SP) é dançarina e coreógrafa. Realizou o One Year Course, no Laban

Centre, Londres. É bacharel em artes pela State University of New York e possui

Certificado em Análise de Movimento pelo Laban/Bartenieff Institute of Movement

Studies. Estudou no Movement Research e no Estúdio Susan Klein, entre outros.

Mestre em comunicação e semiótica e doutoranda pelo Programa de Psicologia

Clínica da PUC-SP. Entre bolsas e prêmios recebidos, estão APCA, 1997, 2000 e

2004; Bolsa para Pesquisa e Criação Artística da John Simon Guggenheim

Foundation; e Bolsa para Artistas da Fundação Japão. (Conexões e Criações-

Rumos Itaú Cultural Dança, 2010).