UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE · 2020. 5. 24. · Do mundo da literatura à...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DO MUNDO DA LITERATURA À FORMAÇÃO DO LEITOR: a contribuição da leitura de contos para se discutir o bullying na sala de aula LÍVIA CRISTINA CORTEZ LULA DE MEDEIROS NatalRN 2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

DO MUNDO DA LITERATURA À FORMAÇÃO DO LEITOR: a contribuição da

leitura de contos para se discutir o bullying na sala de aula

LÍVIA CRISTINA CORTEZ LULA DE MEDEIROS

Natal–RN

2020

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LÍVIA CRISTINA CORTEZ LULA DE MEDEIROS

DO MUNDO DA LITERATURA À FORMAÇÃO DO LEITOR: a contribuição da

leitura de contos para se discutir o bullying na sala de aula

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Educação do Centro de Educação da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN) como requisito para a obtenção do título

de Doutora em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marly Amarilha

Natal–RN

2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Moacyr de Góes - CE

Medeiros, Livia Cristina Cortez Lula de.

Do mundo da literatura à formação do leitor: a contribuição da

leitura de contos para se discutir o bullying na sala de aula /

Livia Cristina Cortez Lula de Medeiros. - Natal, 2020.

335 f.: il.

Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação.

Orientadora: Profª. Drª. Marly Amarilha.

1. Literatura - Tese. 2. Mediação Pedagógica - Tese. 3.

Bullying - Tese. I. Amarilha, Marly. II. Título.

RN/UF/BS - Centro de Educação CDU 37.064

Elaborado por Rita de Cássia Pereira de Araújo - CRB-15/804

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LÍVIA CRISTINA CORTEZ LULA DE MEDEIROS

DO MUNDO DA LITERATURA À FORMAÇÃO DO LEITOR: a contribuição da

leitura de contos para se discutir o bullying na sala de aula

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Educação do Centro de Educação da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN) como requisito para a obtenção do título

de Doutora em Educação.

Aprovada em: ____/____/____

__________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Marly Amarilha (UFRN)

Orientadora

___________________________________________________________

Prof. Dr. Fernando Cézar Bezerra de Andrade (UFPB)

Examinador externo

___________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Cássia de Fátima Matos dos Santos (IFRN)

Examinadora externa

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Herculano Ricardo Campos (UFRN)

Examinador interno

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____________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Angela Maria Chuvas Naschold (UFRN)

Examinador interno

_____________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Daniela Maria Segabinazi (UFPB)

Suplente externo

_____________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Alessandra Cardozo de Freitas (UFRN)

Suplente interno

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Às mulheres da minha vida:

Vovó Lula, que, com o exemplo constante, me ensinou que a coisa mais

importante que possuímos é a nossa família.

Vovó Rosalba, que, frente às inúmeras adversidades da vida, me

mostrou que tudo pode ser superado e que o lema “levanta, sacode a

poeira e dá a volta por cima” deve fazer parte de nós.

Elizabeth, mãe amada, poço de carinho e companheirismo, que me

revelou, em cada gesto, que o amor de uma mãe por seus filhos é

incondicional e infindável. Devo-lhe tudo o que sou!

A elas, a minha eterna gratidão por todos os momentos partilhados nesta

vida. Um dia, com a graça de Deus, voltaremos a nos encontrar.

A Dante, razão do meu viver, que, mesmo tão pequeno, transforma, dia

após dia, a minha vida e renova as minhas esperanças em um mundo

melhor!

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AGRADECIMENTOS

Construir este trabalho foi, sem dúvida, um grande desafio. As idas e vindas e os

longos períodos na estrada, entre cidades, apenas corroboraram o meu desejo de estudar, de

pesquisar e de aprender a fim de me sentir melhor preparada para o exercício da profissão

que escolhi nesta vida. Algumas mudanças de rota precisaram ser feitas no percurso: a maior

e a mais importante ocorreu em razão da realização de um outro desejo, o de tornar-me mãe,

o que exigiu o desenvolvimento de habilidades que antes eu nem sabia que existiam (talvez

porque somente às mães seja permitido tal conhecimento), mas que foram essenciais para

que eu permanecesse firme e forte rumo à concretização deste estudo.

A muitos tenho de agradecer. De antemão, agradeço a Deus, que está sempre ao

meu lado, abençoando as minhas escolhas e me amparando quando os rumos divergem do

esperado e exigem adaptação e coragem. Sem Ele, literalmente, eu nada seria!

Todos que aqui cito contribuíram, direta ou indiretamente, para a conclusão desta

etapa da minha vida acadêmica. Por isso a minha sincera gratidão.

A Adolfo, companheiro incomensurável e amoroso, por abraçar comigo os meus sonhos,

sendo o meu maior incentivador. Com o seu apoio, os caminhos trilhados neste estudo foram

infinitamente mais brandos. Obrigada por ser o meu porto seguro e compartilhar comigo

os percalços e as alegrias da vida!

À minha família, pai Jefferson; irmãos Leonardo e Lara; sobrinha Lavínia e demais

familiares, que tanto torcem pelas minhas realizações.

À família que o destino me presenteou: meus sogros Chaguinha e Félix; minhas cunhadas

Sarah e Lílian; e meu concunhado Rafael, que tanto me incentivam e se alegram com as

minhas conquistas.

À inestimável orientadora, Marly Amarilha, que esteve ao meu lado em toda a minha

trajetória acadêmica, partilhando conhecimentos e experiências tão valiosas. Obrigada por,

ao longo desses anos, ter-me conduzido com maestria pelo mundo da pesquisa e por alegrar-

-se com as minhas conquistas.

Às irmãs de coração: Juciana e Patrícia, pelas mais de duas décadas de amizade e

cumplicidade. Os laços que nos unem, certamente, são para além desta vida.

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Aos amigos de hoje e de sempre: Mariliane, Susana, João Carlos, Klenya, Júnior, Leonya,

Alexandre, Ana Karla, Nádia e Lely, pela amizade em todos os momentos e pela

participação ativa em minha vida.

Aos Companheiros do Grupo de Pesquisa “Linguagem e Educação”, que, por meio das

discussões, ajudaram-me a lapidar, a cada dia, meu olhar como pesquisadora.

Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB), de modo geral,

pelo incentivo à capacitação dos seus servidores e, em particular, à gestão do Campus

Cabedelo, pelas concessões tão necessárias para a construção deste trabalho.

Às inestimáveis colegas da Coordenação Pedagógica e de Apoio ao Estudante (COPAE) –

Campus Cabedelo: Kelly, Evelyn, Magda e Claudiene, pelo incentivo constante e por

acreditarem no meu trabalho.

Aos companheiros do IFPB, com os quais abracei essa jornada: Lucyana, Vagner,

Francineide (in memoriam), Clara, Luzia, Maize, Bruna, Rômulo e Vera, por, juntos, termos

conseguido superar o cansaço das inúmeras viagens e a “maratona” de disciplinas com

muito bom humor e perseverança.

À Sayonara, amiga que o doutorado me presenteou, obrigada pelas trocas constantes. Sua

parceria, em todo esse processo, foi muito importante para mim!

À gestão da escola locus deste estudo, e à professora titular da turma escolhida, pela

receptividade à nossa pesquisa.

Aos sujeitos participantes da pesquisa, que partilharam comigo o gosto pela literatura e

enriqueceram os momentos de discussão ao exporem os seus pontos de vista.

Aos demais Professores e Funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação

(UFRN), o meu muito obrigada!

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[...] “Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas”. Escolas

que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do

vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu

dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm

um dono. Deixaram de ser pássaros. [...]. Esse simples aforismo nasceu

de um sofrimento: sofri conversando com professoras [...], em escolas

de periferia. O que elas contam são relatos de horror e medo. Balbúrdia,

gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças… E elas, timidamente, pedindo

silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia determina que sejam

feitas, como dar o programa, fazer avaliações… [...]. Violento, o

pássaro que luta contra os arames da gaiola? Ou violenta será a imóvel

gaiola que o prende? Violentos, os adolescentes de periferia? Ou serão

as escolas que são violentas? As escolas serão gaiolas? Vão me falar

sobre a necessidade das escolas dizendo que os adolescentes de

periferia precisam ser educados para melhorarem de vida. De acordo. É

preciso que os adolescentes, que todos, tenham uma boa educação. Uma

boa educação abre os caminhos de uma vida melhor. Mas eu pergunto:

nossas escolas estão dando uma boa educação? O que é uma boa

educação? [...] O sujeito da educação é o corpo, [...]. A inteligência é

um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver. [Ela é]

“ferramenta” e “brinquedo” do corpo. Nisso se resume o programa

educacional do corpo: aprender “ferramentas”, aprender “brinquedos”.

[...]. Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. [...]. Quem

está aprendendo ferramentas e brinquedos está aprendendo liberdade,

não fica violento. Fica alegre, vendo as asas crescer… [...]. (ALVES,

2001).

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RESUMO

Este estudo investiga o modo como a prática sistematizada da leitura de textos literários pode

propiciar uma reflexão sobre o bullying entre escolares. Defende-se a tese de que a leitura de

textos literários, mediada pelo processo de discussão, contribui para suscitar a reflexão de

sujeitos aprendizes sobre esse tipo de violência. Ressalta-se, entretanto, que o trabalho com os

textos literários para alcançar tal objetivo, não significa, de modo algum, uma abordagem

pragmática ou meramente utilitária da literatura, uma vez que a polissemia intrínseca a essa arte

possibilita ao leitor diversas interpretações. A pesquisa respalda-se, metodologicamente, na

vertente qualitativa, caracterizando-se segundo o paradigma de uma pesquisa com intervenção.

Como instrumentos metodológicos, adotou-se a observação participante, o diário de campo, a

análise de documentos institucionais, a entrevista e a gravação (em áudio e em vídeo) das

sessões de leitura. O locus de sua realização foi uma escola pública do Município de Natal –

RN (BRASIL), em uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental, com 24 alunos de faixa etária

entre 10 e 12 anos, dentre os quais 20 foram os sujeitos efetivamente participantes. Na

intervenção pedagógica, realizaram-se 10 encontros, sendo 9 sessões de leitura de contos

literários clássicos e contemporâneos e 1 aula de pré-ensino de vocabulário. As sessões foram

estruturadas a partir da andaimagem (GRAVES; GRAVES, 1995). O corpus foi composto pelas

sessões de leitura de literatura – em que se focalizaram, principalmente, os momentos de pré-

leitura e as discussões de pós-leitura – e pelas entrevistas finais com os sujeitos participantes.

Sua análise ancorou-se em princípios da Análise de Conteúdos (BARDIN, 2010). Em termos

do referencial teórico, contou com os saberes derivados dos estudos de Amarilha (2004; 2006;

2010); Bettelheim (2007); Compagnon (2009); Iser (1996); Yunes (1995, 2003; 2010);

Zilberman (1989; 2003; 2015); Olweus (2006); Avilés (2002, 2005, 2006; 2011); Salmivalli

(1999); Jares (2002, 2004, 2007, 2008); Debarbieux (2002), dentre outros. Os resultados da

análise revelam que a mediação pedagógica, construída com base em questionamentos, foi de

suma importância para que os sujeitos passassem a agir ativamente nas sessões de leitura e

construíssem relações entre a violência na ficção e os casos de bullying vivenciados no

ambiente escolar. Igualmente, ficou evidente a identificação dos sujeitos com as personagens e

com as situações ficcionais narradas, o que propiciou o desabrochar de sentimentos, como a

empatia, ao encararem a violência sofrida pelas personagens. E foi justamente essa empatia que

os conduziu, por vezes, a um julgamento para além da ficção, fazendo-os examinar os

posicionamentos dos próprios colegas, o que revela a potencialidade do texto literário em

suscitar a reflexão fora de suas páginas. Esse encontro, mediado, do leitor com o texto

promoveu, assim, uma reflexão sobre o mundo circundante, levando os sujeitos a construírem

relações com a realidade. Também se constatou que conhecimentos sobre o bullying foram

construídos e evidenciados, desde as características que lhe são inerentes até as formas de

combatê-lo na vida real. A interface literatura-bullying mostrou-se nas respostas dos sujeitos,

que expuseram as relações construídas entre a violência narrada nas histórias e o bullying.

Constatou-se, por fim, que a literatura – por sua natureza humanizadora, formadora e

emancipadora – contribui para que, por meio da discussão, se possa refletir e desenvolver novos

olhares sobre a violência entre pares.

Palavras-chave: Literatura. Mediação pedagógica. Bullying.

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ABSTRACT

This study investigates how the systematic practice of reading literary texts can provide a

reflection on bullying among schoolchildren. We defend that the reading of literary texts,

mediated by the process of discussion, contributes to raise the reflection of students about this

type of violence. The working with literary texts to achieve this goal does not mean, in any way,

a pragmatic or merely utilitarian approach to literature, since the intrinsic polysemy of this art

allows the reader several interpretations. The research is supported, methodologically, in the

qualitative aspect, characterized according to the paradigm of research with intervention. As

methodological instruments, were used participant observation, the field diary, the analysis of

institutional documents, the interview and the recording (audio and video) of the reading

sessions. The locus was a public school in Natal - RN (BRAZIL), in a class of 5th year of

elementary school, with 24 students aged between 10 and 12 years old, which 20 were the

participants . In the pedagogical intervention, 10 meetings were realized, including 9 reading

sessions of classic and contemporary literary tales and 1 pre-teaching vocabulary class. The

sessions were structured from the scaffolding (GRAVES; GRAVES, 1995). The corpus was

composed of literature reading sessions - in which the pre-reading moments and post-reading

discussions were mainly focused - and the final interviews with the participants subjects. The

analysis was based on the principles of Content Analysis (BARDIN, 2010). In terms of the

theoretical framework, it relied on the knowledge derived from Amarilha's studies (2004; 2006;

2010); Bettelheim (2007); Compagnon (2009); Iser (1996); Yunes (1995, 2003; 2010);

Zilberman (1989; 2003; 2015); Olweus (2006); Avilés (2002, 2005, 2006; 2011); Salmivalli

(1999); Jares (2002, 2004, 2007, 2008); Debarbieux (2002), and others. The results of the

analysis reveal that the pedagogical mediation, built on the basis of questions, was extremely

important for the subjects start to actively act in the reading sessions and to build relationships

between the violence in fiction and the cases of bullying experienced in the school environment.

The identification of the subjects with the characters and the fictional situations narrated was

evident, which led to the unfolding of feelings, such as empathy, when facing the violence

suffered by the characters. And it was precisely this empathy that led them to a judgment that

went beyond fiction, making them examine the positions of their own colleagues, which reveals

the potential of the literary text to provoke reflection outside its pages. This mediated encounter

between the reader and the text promoted a reflection on the surrounding world, leading the

subjects to build relationships with reality. It was also found that knowledge about bullying was

built and evidenced, from the characteristics that are inherent to the ways to fight it in real life.

The literature-bullying interface was shown in the responses of the subjects, who exposed the

relationships built between the violence narrated in the stories and bullying. Finally, it was

found that literature - because its humanizing, training and emancipatory nature - contributes,

through discussion, to reflect and develop new perspectives on violence between peers.

Keywords: Literature. Pedagogical mediation. Bullying.

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RESUMEN

Este estudio investiga cómo la práctica sistemática de leer textos literarios puede proporcionar

una reflexión sobre el bullying entre los escolares. Sustento que la lectura de textos literarios,

mediada por el proceso de discusión, contribuye a elevar la reflexión de los sujetos sobre este

tipo de violencia. Sin embargo,trabajar con textos literarios para lograr este objetivo no

significa, de ninguna manera, un enfoque pragmático o meramente utilitario de la literatura, ya

que la polisemia intrínseca de este arte permite al lector varias interpretaciones. La

investigación se apoya, metodológicamente, en el aspecto cualitativo, caracterizado según el

paradigma de investigación con intervención. Como instrumentos metodológicos, se adoptó la

observación participante, el diario de campo, el análisis de documentos institucionales, la

entrevista y la grabación (audio y video) de las sesiones de lectura. El lugar de su realización

fue una escuela pública en el Municipio de Natal - RN (BRASIL), en una clase de 5to año de

primaria, con 24 estudiantes de entre 10 y 12 años, de los cuales 20 eran los participantes reales.

En la intervención pedagógica, se llevaron a cabo 10 reuniones, incluidas 9 sesiones de lectura

de cuentos literarios clásicos y contemporáneos y 1 clase de vocabulario previo a la enseñanza.

Las sesiones se estructuraron a partir del andamiaje (GRAVES; GRAVES, 1995). El corpus

fue compuesto por sesiones de lectura de literatura, enfocadas principalmente en los momentos

previos a la lectura y las discusiones posteriores a ella, y las entrevistas finales con los sujetos

participantes. Su análisis se basó en los principios del Análisis de Contenido (BARDIN, 2010).

El marco teórico se basó en el conocimiento derivado de los estudios de Amarilha (2004; 2006;

2010); Bettelheim (2007); Compagnon (2009); Iser (1996); Yunes (1995, 2003; 2010);

Zilberman (1989; 2003; 2015); Olweus (2006); Avilés (2002, 2005, 2006; 2011); Salmivalli

(1999); Jares (2002, 2004, 2007, 2008); Debarbieux (2002), entre otros. Los resultados del

análisis revelan que la mediación pedagógica, construida sobre la base de preguntas, fueron de

suma importancia para que los sujetos empezasen a actuar activamente en las sesiones de lectura

y para construir relaciones entre la violencia en la ficción y los casos de bullying

experimentados en el entorno escolar. Del mismo modo, la identificación de los sujetos con los

personajes y las situaciones ficticias fue evidente, lo que condujo al desarrollo de sentimientos,

como la empatía, al percibir la violencia sufrida por los personajes. Y fue precisamente esta

empatía lo que los llevó, a veces, a un juicio que iba más allá de la ficción, haciéndolos examinar

las posiciones de sus propios colegas, lo que revela el potencial del texto literario para provocar

la reflexión fuera de sus páginas. Este encuentro mediado entre el lector y el texto promovió

una reflexión sobre el mundo circundante, llevando a los sujetos a construir relaciones con la

realidad. También se descubrió que el conocimiento sobre el acoso se construyó y se evidenció,

desde las características inherentes a las formas de combatirlo en la vida real. La interfaz

literatura-bullying se mostró en las respuestas de los sujetos, quienes expusieron las relaciones

construidas entre la violencia narrada en las historias y el bullying. Finalmente, se descubrió

que la literatura, debido a su naturaleza humanizadora, formativa y emancipadora, contribuye

para que, por intermedio de la discusión, sea posible reflejar y desarrollar nuevas perspectivas

sobre la violencia entre pares.

Palabras clave: Literatura. Mediación pedagógica. Bullying.

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LISTA DE SIGLAS UTILIZADAS NO TEXTO

AEE – Atendimento Educacional Especializado

ASG – Auxiliar de Serviços Gerais

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior

CES – Centro de Ensino Superior

EJA – Educação de Jovens e Adultos

FURG – Universidade Federal do Rio Grande

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

PeNSE – Pesquisa Nacional de Saúde Escolar

PME – Programa Mais Educação

PNBE – Programa Nacional Biblioteca da Escola

PNEDH – Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos

PUC–Rio – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

PUC–SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

UFBA – Universidade Federal da Bahia

UFCE – Universidade Federal do Ceará

UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

UFPR – Universidade Federal do Paraná

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UNESP – Universidade Estadual Paulista

UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1 – Capa do livro Bullying na escola: quando a covardia pesa muito mais ................. 80

Figura 2 – Capa do livro A Gata Borralheira (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a) ....... 125

Figura 3 – Capa do livro que contém os contos As Cegonhas e O Patinho Feio (ANDERSEN;

PEDERSEN; FROLICH, 2002) ............................................................................................. 126

Figura 4 – Capa do livro que contém o conto Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos

(GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b) ....................................................................... 126

Figura 5 – Capa do livro que contém o conto João-trapalhão (ANDERSEN; FRANÇA;

FRANÇA, 2004) .................................................................................................................... 127

Figura 6 – Capa do livro Um garoto chamado Rorbeto (PENSADOR; BUENO, 2005) ....... 127

Figura 7 – Capa do livro Raul da ferrugem azul (MACHADO; FARIA, 2012) .................... 128

Figura 8 – Capa do livro Obax (NEVES, 2010) .................................................................... 128

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Livros da Coletânea “Bullying na escola” ........................................................... 77

Quadro 2 – Livros infantis com a temática bullying ............................................................... 78

Quadro 3 – Perfil social dos sujeitos participantes: família, leitura, bullying .......................... 84

Quadro 4 – Sistemática das sessões de leitura ........................................................................ 129

Quadro 5 – Objetivos gerais das sessões de leitura ................................................................. 132

Quadro 6 – Objetivos específicos das sessões de leitura ......................................................... 133

Quadro 7 – Estrutura de análise das aulas de literatura ......................................................... 169

Quadro 8 – Estrutura de análise das entrevistas finais ............................................................ 170

Quadro 9 – Panorama das entrevistas finais com os sujeitos .................................................. 256

Quadro 10 – Respostas à entrevista final: desejo pela realização de outras sessões de literatura

................................................................................................................................................ 262

Quadro 11 – Respostas à entrevista final: emitindo opiniões sobre as histórias ..................... 263

Quadro 12 – Respostas à entrevista final: ouvindo as opiniões dos colegas sobre as histórias

................................................................................................................................................ 264

Quadro 13 – Respostas à entrevista final: aprendizado sobre o bullying ................................ 268

Quadro 14 – Respostas à entrevista final: benefício de se aprender sobre o bullying...............269

Quadro 15 – Respostas à entrevista final: relação contos literários lidos x bullying .............. 271

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LISTA DE ABREVIATURAS E SINAIS UTILIZADOS NAS TRANSCRIÇÕES

Professora-pesquisadora …………………………………………………………………..... PP

Professora titular ………………………………………………………………………….... PT

Sujeito não identificado ………………………………………………………………….... SNI

Comentários da professora ……………………………………………………………....... (( ))

Alunos conversando ……………………………………………………………………….. < >

Alguns sujeitos respondem juntos ………………………………………………………. ASRJ

Sobreposição de vozes ……………………………………………………………………... [

Indicação de turno ou segmento de fala interrompido …………………………………...... (...)

Pausa longa ……………………………………………………………………………….... ...

Pausa breve …………………………………………………………………………......... ((+))

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SUMÁRIO

1 POR UMA ESCOLA QUE TENHA ASAS: INTRODUÇÃO......................................... 19

1.1 JUSTIFICATIVA ............................................................................................................... 22

2 O ROTEIRO DO VOO: CAMINHOS TRAÇADOS E TRILHADOS .......................... 46

2.1 OBJETO DE ESTUDO, TESE E OBJETIVOS ................................................................. 46

2.2 A ESCOLHA METODOLÓGICA: PESQUISA QUALITATIVA COM

INTERVENÇÃO ...................................................................................................................... 46

2.3 DESENHO DA PESQUISA ............................................................................................... 50

2.3.1 Ecologia da escola ........................................................................................................... 50

2.3.1.1 A escola ........................................................................................................................ 51

2.3.1.2 Os sujeitos..................................................................................................................... 55

2.3.1.2.1 Observação in loco .................................................................................................... 55

2.3.1.2.2 Entrevistas iniciais ..................................................................................................... 83

2.3.1.3 Integrantes da equipe escolar: entrevistas .................................................................... 99

2.3.1.3.1 Diretora ...................................................................................................................... 99

2.3.1.3.2 Coordenadora pedagógica ....................................................................................... 106

2.3.1.3.3 Professora titular da turma ....................................................................................... 113

2.3.2 Planejamento da intervenção ......................................................................................... 123

2.3.2.1 Seleção dos contos ...................................................................................................... 123

2.3.2.2 Organização das sessões de leitura ............................................................................. 129

2.3.3 A intervenção ................................................................................................................. 137

2.3.4 Análise dos dados: estruturação .................................................................................... 140

3 ENCRESPANDO AS ASAS: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .................................. 144

3.1 BULLYING: CONHECÊ-LO PARA DISCUTI-LO ....................................................... 144

3.2 A LITERATURA E SUA FUNÇÃO FORMADORA NA ESCOLA ............................. 158

4 O DESTINO DO VOO: RESULTADOS ALCANÇADOS .......................................... 168

4.1 ANÁLISE DOS DADOS CONSTRUÍDOS: UNIDADES DE REGISTRO E

CATEGORIAS ....................................................................................................................... 168

4.1.1 Sessões de leitura de literatura....................................................................................... 171

4.1.1.1 A Gata Borralheira...................................................................................................... 171

4.1.1.2 João-trapalhão ............................................................................................................. 187

4.1.1.3 Um garoto chamado Rorbeto ...................................................................................... 196

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4.1.1.4 Raul da ferrugem azul................................................................................................. 206

4.1.1.5 As Cegonhas ............................................................................................................... 218

4.1.1.6 Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos ................................................................ 228

4.1.1.7 O Patinho Feio ............................................................................................................ 239

4.1.1.8 Obax............................................................................................................................ 246

4.1.2 Entrevistas finais ............................................................................................................ 256

5 POR UMA POSSIBILIDADE DE ABRIR ASAS: CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 277

REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 283

ANEXOS – CONTOS ........................................................................................................... 296

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1 POR UMA ESCOLA QUE TENHA ASAS: INTRODUÇÃO

[...] Escolas que são asas [...] amam [...] os pássaros em vôo. Existem

para dar aos pássaros coragem para voar [...] (ALVES, 2001).

A ideia de escola como espaço de liberdade e de ensino para alcançar essa liberdade, tal

como concebida por Alves (2001), vai de encontro à violência constantemente presenciada no

contexto escolar, como é o caso do bullying1 (OLWEUS, 2006). E, lamentavelmente, em se

concretizando a perspectiva de ocorrência dessa prática, suprimem-se liberdades individuais.

Afinal, não se pode negar o fato de que onde há violência se poda a liberdade, especialmente a

daqueles que são vitimizados e se sentem intimidados de forma recorrente.

Assimilando essa ideia e acreditando no quanto a escola pode ser um espaço acolhedor

para que os estudantes tenham a possibilidade de alçar voo, vislumbramos a literatura como um

caminho possível para esse alcance, uma vez que esta proporciona a cada leitor (em cada leitura)

uma experiência particular, capaz de levá-lo a outros tempos e mundos inimagináveis fora do

texto literário. Essa possibilidade é mágica e libertadora; bem à semelhança daquela sensação

que experimentam os pássaros quando impulsionados por suas asas, que, na visão simbólica de

Alves (2001), deveriam servir aos seres humanos cumprindo essa mesma finalidade.

Se olharmos com mais acuidade para os textos literários, constataremos que, para além

do prazer que despertam no leitor, eles são capazes de ensinar sobre a vida e sobre as relações

humanas comuns e corriqueiras, permitindo a reflexão sobre inúmeras questões que afligem o

nosso dia a dia. Tendo em mira essa dupla face da literatura – prazer e ensinamento –

propusemo-nos este estudo, pensando na essencialidade de sua presença na sala de aula.

Definido o propósito, inscrevemos a pesquisa Do mundo da literatura à formação do

leitor: a contribuição da leitura de contos para se discutir o bullying na sala de aula, que visa

desvelar a interface literatura e bullying, tendo como objeto de estudo a prática de leitura de

textos literários que possam induzir o leitor a refletir sobre o bullying. Mais verticalizadamente,

1 Considerando que o termo bullying faz parte de uma literatura específica e já foi incorporado ao vocabulário da

língua portuguesa, adotaremos a sua grafia sem a utilização do itálico, apesar da sua origem estrangeira.

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pretendemos investigar o modo como a prática sistematizada da leitura de textos literários pode

propiciar uma reflexão2 sobre essa forma de violência praticada entre escolares.

Parece-nos relevante, neste ponto, ressaltar o fato de que esta proposta investigativa não

se fez emergente de pronto, por agora. Assinala seu nascedouro ainda na construção da pesquisa

de mestrado, a partir do momento em que compreendemos que a literatura

[...] oferece um meio – alguns dirão até mesmo o único – de preservar e

transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no

espaço e no tempo ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos

torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores

se distanciam dos nossos. [...]. O texto literário fala de mim e dos outros;

provoca a minha compaixão; quando leio me identifico com os outros e sou

afetado por seu destino; suas felicidades e seus sofrimentos [...]

(COMPAGNON, 2009, p. 47-49).

Essa percepção fortaleceu nossa crença de que o conhecimento presente na literatura

permite ao leitor aprimorar suas capacidades intelectuais, linguísticas, afetivas, sociais e

comportamentais, a partir da interação com o texto literário. Isso se dá em razão de seu poder

de despertar o leitor para uma reflexão sobre sua vida e sobre seu modo de atuação no mundo

real ao apelar às suas emoções e à sua empatia (COMPAGNON, 2009).

Também as análises desenvolvidas no trabalho de dissertação foram fundamentais para

que pudéssemos, com base nas evidências daí emergentes, vislumbrar a possibilidade de a

literatura ser validada como estratégia para se discutir o bullying. Essa perspectiva tornou-se

viável ao se estabelecer conexões entre os textos analisados − tomando exemplos de conflitos

vivenciados por suas personagens − e as situações vivenciadas pelos atores que sofrem bullying

na vida real.

Nesse trabalho dissertativo, a fim de evidenciar tais conexões, foram elaboradas três

unidades de contexto: agressores, vítimas e espectadores. Para cada uma das referidas unidades,

definiram-se categorias “que elucidassem as práticas comuns observadas em cada grupo

específico” (MEDEIROS, 2012, p. 30).

2 Entendemos o termo “reflexão” a partir do próprio conceito dicionarizado: “¹ ato ou efeito de refletir-se ²

concentração do espírito sobre si mesmo, suas representações, ideias, sentimentos ³ virtude que consiste em

evitar a precipitação nos juízos, [...], a impulsividade na conduta” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1631).

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Para a primeira unidade – Agressores –, foram definidas as seguintes

categorias: Intimidação, Demonstração de Poder e Controle sobre a Vítima,

tendo sido destacadas ações marcantes que caracterizassem o comportamento

apresentado pelos bullies no trato com suas vítimas. Para a segunda unidade –

Vítimas –, as categorias determinadas foram: Submissão/Passividade/Medo,

Atitudes de Mudança e Desejo de Vingança, sentimentos estes resultantes da

relação construída entre a vítima e seu agressor ou a partir de uma intervenção

positiva praticada em favor da vítima. Para a última unidade – Espectadores

–, foram apontadas as categorias: Reforço da Agressão,

Omissão/Neutralidade e Atitudes Positivas, considerando os possíveis

posicionamentos assumidos por aqueles que, apesar de estarem “de fora”,

muito contribuem como apoio para o fenômeno bullying, seja a favor de sua

continuidade ou do seu término (MEDEIROS, 2012, p. 30, grifos da autora).

Definidas as categorias, “foram destacadas de cada conto as ações e atitudes das

personagens que pudessem enfatizar situações de bullying, favorecendo as etapas de Inferência

e Interpretação” (MEDEIROS, 2012, p. 32) embasadas na análise do conteúdo proposta por

Bardin (2010), a partir da qual se buscou discutir o bullying, apresentando ao leitor as principais

características, as causas e os efeitos.

Em cada conto, ressaltamos aspectos específicos de análise que serviram de subsídio

para a realização deste trabalho. No primeiro conto, A Gata Borralheira (GRIMM; GRIMM;

TEIXEIRA, 2003a), destacamos a submissão da vítima às situações claras de violência,

trazendo à discussão o bullying entre meninas, sublinhando o modo como o conflito é

apresentado nesse conto e a maneira como se configura esse tipo de relação entre meninas na

vida real (SIMMONS, 2004). No segundo conto, As Cegonhas (ANDERSEN; PEDERSEN;

FROLICH, 2002), buscamos construir uma reflexão sobre o comportamento de vítimas que,

apesar de sentirem medo de seus agressores, desenvolvem o desejo de vingança. Além disso,

discutimos a posição omissa que muitos pais assumem mesmo cientes da violência sofrida por

seus filhos (BEANE, 2010). No terceiro conto, O Patinho Feio (ANDERSEN; PEDERSEN;

FROLICH, 2002), salientamos, na discussão, as características comuns, tanto à prática do

bullying quanto à vítima típica (OLWEUS, 2006), e tecemos considerações sobre a maneira

como as agressões podem afetar a autoestima daquele que as sofre. No quarto conto, Um-

olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b), focamos

a análise sobre a aparência comum da personagem vitimizada, dadas as diferenças das

personagens agressoras (SIMMONS, 2004), o que possibilitou uma discussão sobre os “desvios

de aparência” de que fala Olweus (2006). No quinto e último conto, João-trapalhão

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(ANDERSEN; FRANÇA; FRANÇA, 2004), salientamos o modo como a personagem

principal, apesar de agredida, sobrepõe-se aos ataques sofridos, conseguindo superar todos os

obstáculos, em virtude da confiança que deposita em si mesma, demonstrando, assim, a

importância do fortalecimento da autoestima do indivíduo (MIDDELTON-MOZ;

ZAWADSKY, 2007; TOGNETTA, 2003).

Em função das análises desenvolvidas na dissertação, foi possível observar que “extrair

dos contos literários [...] aspectos que permitam discutir [...] [o] bullying, possibilita que se

venha a desenvolver uma nova maneira de olhar para textos que provocam inferências

pertinentes e são capazes de suscitar a reflexão do sujeito por meio da sua leitura” (MEDEIROS,

2012, p. 32). Foi essa constatação que serviu de fio condutor para este estudo, em que buscamos

investigar – dessa vez empiricamente – o modo como a prática de leitura desses contos, e

também de outros que apresentam potencial para fazer emergir a discussão sobre o bullying,

pode propiciar uma reflexão sobre esse tipo de violência. Afinal,

a leitura – especialmente a interativa, desenvolvida sobre expressões artísticas

que convocam o leitor e facilitam o desenvolvimento do pensamento crítico –

encaminha a construção do próprio juízo e da própria opinião, favorece o

aparecimento do desejo mobilizado pela co/moção, pela sensibilidade da

inteligência (YUNES, 2010, p. 55).

A percepção da leitura de literatura como caminho possível para a sensibilização de

crianças escolares orienta-nos à defesa da tese de que a leitura de textos literários, mediada

pelo processo de discussão, contribui para suscitar a reflexão de sujeitos aprendizes sobre o

bullying, uma forma de violência compreendida neste trabalho, à luz do conceito elaborado por

Olweus (2006), como agressão física, verbal ou psicológica intencional, repetitiva e sistemática

entre pares, sem motivação aparente, em que há desequilíbrio de poder entre agressor e vítima.

Para além disso, também pode desencadear problemas psicológicos, físicos e sociais, em

decorrência do sofrimento constante vivenciado pela vítima.

1.1 JUSTIFICATIVA

A dissertação de mestrado, intitulada Literatura e Educação: o bullying nos contos de

fada, uma discussão possível (MEDEIROS, 2012), revelou “a possibilidade do trabalho com

narrativas literárias como forma de se problematizar a prática do bullying” (MEDEIROS, 2012,

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p. 132). Mas é preciso admitir que, apesar dessa descoberta, havia ainda alguns hiatos a serem

preenchidos. Decidimos, então, que se fazia necessário mais um investimento nessa área de

conhecimentos. Certamente, a interface literatura e bullying renderia nova “colheita”;

especialmente em se considerando três razões deveras motivadoras. Em primeiro lugar,

constatamos, a partir de nossa experiência docente e do diálogo estabelecido com colegas

professores, que o bullying, apesar de estar constantemente presente em matérias veiculadas

pela imprensa – como mostraremos a seguir –, ainda suscitava dúvidas sobre como, de fato, se

configurava essa forma de violência e como se poderia abordá-la na escola. Em segundo lugar,

percebemos a importância de, partindo do estudo bibliográfico anterior, vivenciarmos o

cotidiano escolar em toda a sua plenitude para podermos propor um trabalho com a leitura de

literatura com o intuito de mediar a discussão sobre bullying em sala de aula. Em terceiro lugar,

alimentávamos a convicção de que poderíamos plantar uma semente de reflexão entre os

discentes (mesmo que esta não viesse a desabrochar em todos eles), levando-os a compreender

que esse ato de violência é por demais prejudicial à vida daqueles que dele se fazem alvo.

Sobre essa derradeira menção, gostaria de tecer algumas considerações de cunho mais

pessoal. Quando me encontrava ainda nas pesquisas iniciais para a dissertação, principiando

meus estudos sobre o bullying, dei-me conta de que fora uma vítima em potencial dessa prática

nos meus tempos de escola. Sempre que afirmo isso, em conversas com professores e

estudantes, costumo escutar frases do tipo: “Você? loira e dos olhos azuis?” Ou então: “Mas

você é bonita...” A contrapartida está no fato (já confirmado em nossa pesquisa anterior) de que

indivíduos com “boa aparência”, ou ainda considerados benquistos por seus professores ou por

seus pares, também podem ser vítimas de bullying, como evidenciam os resultados das

pesquisas de Olweus (2006) ao tratar dos “desvios de aparência”.

O fato é que, a despeito de ter nascido “loira e de olhos azuis”, enfrentei, no momento

de meu nascimento, uma falta de oxigenação que afetou, em muito, a minha coordenação

motora e o desenvolvimento físico do hemisfério esquerdo do corpo. Apesar de pouco visível

aos olhos (dos outros), é verdade, tal acontecimento sempre foi um fator limitante para mim,

no que tange à realização de algumas atividades e movimentos. Felizmente, as sequelas

puderam ser amenizadas substancialmente em virtude dos 10 anos dedicados à fisioterapia, o

que me ensinou a lidar, de maneira mais tranquila, com o problema. Todavia, quando se é

criança e se convive com outras crianças, as diferenças, ainda que pouco visíveis, podem tornar-

se um obstáculo. E assim foi comigo! Eu, como muitas meninas descritas por Simmons (2004),

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estava no Ensino Fundamental I e queria pertencer ao grupo das “populares”, o que não foi

possível. Afinal, eu tinha limitações: não conseguia pular corda nem elástico (brincadeiras

comuns na minha infância) ou correr com tanta rapidez, nem pular tão bem amarelinha, o que

me tornava sempre a última opção para compor os “times” – isso, é claro, quando eu tinha a

sorte de me deixarem participar das brincadeiras! Pelos comentários e pelos cochichos gerados

sobre a minha habilidade (ou falta dela), eu sentia que nunca pertenceria àquele seleto grupo.

Quando rememoro esses acontecimentos, geralmente me questionam: “Então, você foi

vítima de bullying? Ao que eu respondo prontamente: “Não”. Afinal de contas, a prática de

violência, nos moldes em que se conceitua o bullying, não foi exatamente configurada. Mas eu

poderia ter sido – a depender do desenrolar dessa relação com as “populares”. E se isso tivesse

acontecido, não haveria como prever que tipo de mudança poderia ter ocorrido na minha

constituição como pessoa. De toda forma, não cheguei a ser uma vítima. Sinceramente, não me

recordo do que me fez mudar, afastar-me daquele grupo e procurar novas amizades. Nem

mesmo me lembro de quando exatamente isso aconteceu. O certo é que segui outro rumo. E

ainda que me tenha identificado com alguns colegas (até hoje grandes amigos), nunca pertenci

a um só grupo. Sempre me orgulhei de poder sentar no fundo da sala com os “bagunceiros”; de

ser chamada para fazer trabalho com os mais estudiosos da turma; de conseguir interagir bem

com todos os meus colegas, e, principalmente, de ter sido uma estudante “não popular”, mas

sempre feliz!

Retomando a menção às motivações de partida que impulsionaram a realização desta

pesquisa, consideramos importante recuperar o registro de casos de bullying feitos pela mídia,

pondo em evidência alguns desses acontecimentos, sequenciando-os na ordem cronológica de

suas ocorrências. Em 2012, no Canadá, Amanda, de 15 anos, tirou a própria vida em decorrência

do bullying e cyberbullying sofridos. A adolescente passou a ser vitimizada pelos colegas de

escola, aos 12 anos, após ter fotos íntimas divulgadas na internet (MARQUES, 2012). Em 2013,

também no Canadá, Rehtaeh Parsons, de 17 anos, vítima de estupro, enforcou-se depois de ter

as imagens do ataque divulgadas no ambiente virtual. O estranho nesse caso é o fato de a vítima,

mesmo havendo sofrido o abuso, ser xingada e ameaçada por colegas da escola (NÃO..., 2013).

Também em 2013, na Flórida, Estados Unidos, Rebecca Ann Sedwick, de 12 anos, cometeu

suicídio por se tornar alvo de mensagens agressivas de bullying postadas na internet, tais como:

“Vá se matar” e “Por que você ainda está viva?” (NÃO..., 2013). Em 2014, em South Wales,

Inglaterra, Joshua Davis, de 18 anos, ficou paraplégico após sofrer uma queda de 15 metros

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enquanto tentava escapar de seus agressores. De acordo com a família, o jovem vinha sendo

vítima de bullying há cinco anos, por um grupo de garotos (RELEMBRE..., 2014). Também

em 2014, nos Estados Unidos, Michael Morones, de 11 anos, tentou se matar após sofrer

bullying na escola, em razão de ser fã do desenho My Little Pony: Friendship is Magic. O garoto

vinha-se queixando, há algum tempo, de que estava cansado de ser humilhado todos os dias na

escola (APÓS..., 2014). Em 2018, na Austrália, Ammy Everett, de 14 anos, famosa por ter sido

garota propaganda na infância, cometeu suicídio por sentir-se vítima de bullying, conforme

revelou a família (SUICÍDIO..., 2018).

No âmbito nacional, as situações definidas como ocorrências de bullying apresentam

características bem semelhantes àquelas que configuram os casos ocorridos no exterior, como

é possível constatar pelos registros que seguem. Em 2012, na cidade de Vitória, Espírito Santo,

um menino, de 12 anos, cometeu suicídio após ser vítima de bullying na escola. Segundo

relatos, o garoto era humilhado, empurrado e xingado de "gay", de "bicha" e de "gordinho"

pelos colegas. Ele deixou uma carta pedindo desculpas pelo ato e afirmando não entender o

porquê de ser vítima de tantas humilhações (ESTUDANTE..., 2012). Em 2013, na cidade de

Piracicaba, São Paulo, uma menina, de 12 anos, foi agredida fora da escola por um grupo de 5

colegas. Segundo a vítima, essas colegas chamavam-na de “gorda” há algum tempo e lhe faziam

ameaças. Diante da concretização da violência física, os pais da garota decidiram levá-la para

registrar boletim de ocorrência e fazer exame de corpo de delito. Também reclamaram da falta

de ações mais efetivas da escola com vistas a evitar casos dessa natureza. Em 2014, no Piauí,

um garoto, de 10 anos, foi agredido ao sair da escola. A agressão sofrida foi tamanha que a

criança passou a apresentar desmaios e a sofrer convulsões. Segundo a mãe da vítima, além de

apanhar frequentemente, ele também era submetido a violências verbais e psicológicas, como

apelidos ofensivos e humilhações (CUNHA, 2014). Em 2015, na Ceilândia, Distrito Federal,

um estudante, de 17 anos, foi assassinado nas dependências da escola. O agressor, de 16 anos,

relatou à polícia que era vítima de bullying e ameaçado pelo aluno morto – versão essa

confirmada pelos colegas (AUGUSTO, 2015). Também em 2015, na cidade de Itanhaém, São

Paulo, uma garota, de 15 anos, vivenciou uma situação de cyberbullying por parte dos colegas

de classe, sendo chamada de “demônia”. A escola demorou a acreditar na versão da estudante

e só permitiu a sua mudança de turma quando teve provas da existência dos xingamentos aos

quais ela era submetida (ROSSI, 2015). No ano de 2017, na cidade de Belo Horizonte, Minas

Gerais, uma garota, de 12 anos, negra e adotada, foi vítima de bullying nas três últimas escolas

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onde estudou. Em decorrência disso, necessitou de afastamento das atividades acadêmicas por

determinação médica para tratamento psiquiátrico, tendo em vista seu grave estado depressivo.

De acordo com a reportagem, a direção da última escola em que estudou alegava tratar-se

apenas de brincadeira (NEGRA..., 2017). Em 2018, uma menina, na cidade de Santos, São

Paulo, teve, reconhecido na justiça, o direito de ser indenizada pelo Estado em virtude do

bullying que vinha sofrendo na sala de aula. A garota, que tem deficiência mental leve e

hiperatividade, sofria agressões físicas e psicológicas por parte dos colegas (JUSTIÇA..., 2018).

Ainda em 2018, no agreste pernambucano, um estudante, com deficiência mental, foi

constrangido na escola, fato que o levou, segundo a notícia veiculada, a não mais querer

frequentar a instituição de ensino. A ocorrência foi registrada em vídeo e divulgada na internet,

causando comoção entre outros estudantes, que manifestaram seu apoio à vítima sob forma de

protesto em revide àquele ato desabonador (CASO..., 2018).

É possível observar que a maioria das matérias propagadas pela mídia apresenta

desfechos trágicos como tentativas de suicídio ou sua consumação. Todavia, convém fazer a

ressalva quanto ao fato de que essas mesmas matérias jornalísticas também, em sua maioria,

focalizam apenas uma das perspectivas da história, sem dar voz às partes envolvidas e sem que

haja uma preocupação em investigar se, realmente, esses casos se configuram como bullying.

O que se percebe, na verdade, é que, apesar de existirem matérias que destacam as

principais características do bullying e que trazem vozes de especialistas (AQUINO, 2016;

SALDAÑA; VIEIRA, 2014), pouca (ou nenhuma) atenção procuram dar aos espectadores e,

principalmente, aos agressores ou à inter-relação dos sujeitos envolvidos. A ênfase é

direcionada “apenas ao fato em si, pouco se aprofundando no contexto em que ocorre o

bullying” (MOURA et al., 2011, p. 4). Carvalho, Freire e Vilar (2012) tecem considerações

interessantes a esse respeito:

A cultura da violência é promovida pela mídia como uma resposta ao

cotidiano social que busca combater a rotina, proteger-se e livrar-se do perigo,

em uma negação que equivaleria a uma pessoa dizer “ainda bem que não

aconteceu comigo”. Não importa mais a informação, mas o quanto o elemento

violência é capaz de ser mantido a fim de expiar a angústia dos indivíduos

(CARVALHO; FREIRE; VILAR, 2012, p. 436).

O foco das matérias, portanto, é reportar o ato de violência e causar impacto no

interlocutor, sem, contudo, deixar de formar opinião quando tendencia, quase que

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exclusivamente, para a situação da vítima, reforçando seu discurso a partir dos relatos de

familiares.

Guareschi (2004) faz um alerta sobre esse “poder” da mídia, assim se pronunciando:

Não seria exagero dizer que a comunicação constrói realidade. Num mundo

todo permeado de comunicação – um mundo de sinais – num mundo todo

teleinformatizado, uma única realidade passa a ser a representação da

realidade – um mundo simbólico imaterial. [...] A conclusão a que chegamos

é a de que uma coisa existe, ou deixa de existir, à medida que é comunicada,

veiculada. É por isso, consequentemente, que a comunicação é duplamente

poderosa: tanto porque pode criar realidades, como porque pode deixar que

existam pelo fato de serem silenciosas (GUARESCHI, 2004, p. 14).

Considerando que a realidade pode ser construída pela comunicação e que “a imprensa

não só influencia nos modos de subjetivação, mas também cria ou contribui para a criação de

subjetividades” (MOREIRA, 2010, p. 3), entendemos claramente a importância de ir além da

simples divulgação parcial de fatos. Isso justifica a relevância de se realizar um trabalho que

contribua para uma melhor compreensão do bullying e, principalmente, que apresente uma

estratégia de como discuti-lo na sala de aula.

Por essa razão, além de ampliarmos a compreensão sobre esse fenômeno, iremos ao

encontro das pesquisas realizadas por Olweus (2006), cujos resultados revelam que grande parte

dos professores tem dificuldade de desenvolver um trabalho de prevenção ou de intervenção

sobre práticas de bullying em sala de aula. Em termos mais palpáveis, conforme evidenciaram

esses dados, 65% dos pesquisados sequer tentam intervir em situações de bullying e nem

mesmo buscam dialogar com os alunos das séries iniciais sobre o assunto (OLWEUS, 2006).

Tendo em vista essa realidade e contando, subsidiariamente, com a compreensão,

advinda de nosso trabalho de dissertação (MEDEIROS, 2012), de que o texto literário se

apresenta como um discurso capaz de provocar o pensamento do sujeito, levando-o a

estabelecer conexões entre a ficção e a vida real, a proposta de discussão em torno de temáticas

conflituosas (como é o caso do bullying) torna-se extremamente valorosa para que se reflita

sobre os malefícios dessa prática.

Decerto o texto literário é um recurso viável. Afinal, ele permite ao leitor parar, por um

momento, e se voltar para si mesmo num verdadeiro processo de introspecção, em que ganha

autonomia, inclusive para analisar suas emoções, ultrapassando o próprio momento da leitura.

Esse processo, que não é imediatista, proporciona ao leitor continuada vivência de experiências

e sensações que foram marcantes no seu encontro com o texto (MEDEIROS, 2012). Isso se

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torna possível pelo fato de que uma das experiências propiciadas pelo texto literário é a da

identificação, em que o leitor, ao se identificar com as personagens, é induzido a refletir sobre

a sua condição na vida real, como afirma Bettelheim (2007).

Partindo desse entendimento, acreditamos que o trabalho dialógico com contos pode

tornar-se um importante instrumento pedagógico para despertar a reflexão das crianças a

respeito dos efeitos do bullying – violência que necessita ser encarada, cada vez mais, como

campo de estudo no século XXI.

Essa premência, sem dúvida, reforça a relevância deste trabalho, pois, apesar de já

existirem estudos que discutem o bullying no ambiente escolar e pesquisas que se debruçam

sobre o tema no Brasil, é possível perceber, a partir das obras de autores que abordam essa

temática e dos dados colhidos no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, que grande parte

dos livros e das produções acadêmicas stricto sensu se propõe identificar ou caracterizar essa

forma de violência em determinados grupos e contextos. Com base nessa verificação,

ratificamos a necessidade de que mais trabalhos sejam desenvolvidos com vistas à descoberta

de meios apropriados ao combate do bullying.

O caráter interventivo frente à prática de bullying pôde ser percebido pioneiramente nas

pesquisas de Olweus, realizadas na década de 1970, que servem de referência ainda hoje. Foram

esses estudos que contribuíram para o entendimento sobre o que é o bullying, quais as suas

características e as peculiaridades de seus participantes. É bem verdade que essas pesquisas

restringem-se à Noruega. Não obstante, foi a partir desses estudos que o mundo pôde olhar com

mais atenção para um problema tão sério, buscando formular estratégias que fossem eficazes

para o seu enfrentamento (MEDEIROS, 2012). Olweus, portanto, ajuda-nos a tecer, neste

trabalho, uma conceituação clara do que vem a ser bullying, o que é de vital importância para

que possamos apresentar a literatura como um recurso intermediário deveras apropriado para

despertar a reflexão sobre essa prática de violência.

Partindo das primeiras pesquisas desenvolvidas por Olweus (2006), muitos outros

autores dedicaram-se ao estudo dessa forma de violência, buscando identificar seus modos de

manifestação bem como descobrir estratégias de ação/combate. Fante e Pedra (2008), por

exemplo, realizaram pesquisas no Brasil, possibilitando o mapeamento de tal violência. Eles

forneceram informações preciosas que confirmaram os padrões apresentados por Olweus

(2006), demonstrando que esse tipo de agressão tem características semelhantes,

independentemente do país em que ocorra. Estar ciente dessa similaridade em relação às

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características do bullying foi fundamental para o encaminhamento desta proposta de

intervenção.

Voltando a atenção para o ambiente escolar, Beaudoin e Taylor (2006) ponderam sobre

a postura que o professor deve assumir diante da prática do bullying. Também advertem para a

importância de o docente procurar esclarecer o ato de violência antes de tomar partido numa

situação de intervenção, e ainda argumentam que a punição, por si só, não é solução, seja qual

for o caso. Essas considerações são extremamente pertinentes na medida em que revelam aos

professores o quanto a sua forma de agir diante da violência pode influenciar, positiva ou

negativamente, o modo como agem seus alunos em suas relações com os colegas.

Como sublinha Jares (2002), é crucial que seja despertado no sujeito o respeito por si e

pelo outro. Caso contrário, nenhuma mudança será realmente efetiva. Para esse mesmo autor

(JARES, 2008), quando se trata da educação das crianças, os valores derivados da família e da

própria escola são imprescindíveis para uma convivência pacífica, permeada pelo diálogo e pela

solidariedade, a seu ver, pontos-chave para essa construção. Esses esclarecimentos foram

essenciais para que percebêssemos a necessidade de desvelar – por meio do instrumento da

entrevista – como se estabeleciam as relações interpessoais dos sujeitos participantes desta

pesquisa (na família e também na escola) a fim de podermos, durante as intervenções, discutir

sobre o valor do respeito.

Raciocinando nessa direção, Tognetta (2003) aborda a importância da construção da

solidariedade na escola, focalizando a necessidade de se trabalhar a afetividade e o olhar sobre

o outro, ao propor mecanismos que possibilitem maior interação entre os alunos. É justamente

esse modo de interação que buscamos construir com as crianças a partir das discussões

realizadas nos momentos de pós-leitura.

Middelton-Moz e Zawadski (2007) enfatizam a necessidade de a vítima deixar de negar,

para si mesma, as agressões sofridas e ter coragem de denunciar seu (s) agressor (es). Alertam,

igualmente, para o fato de que, caso a vítima não procure ajuda, a situação de agressão tenderá

a se agravar, podendo refletir-se em toda a sua vida, considerando que as marcas deixadas pelos

agressores não desaparecem facilmente. Além disso, revelam o “outro lado da moeda”,

evidenciando as crenças, os valores e os ambientes que sustentam o desenvolvimento dos

bullies. Essa visão dos autores ajuda-nos a definir os pontos norteadores das discussões

(intervenções) com relação aos papéis assumidos pelas vítimas e pelos agressores nas situações

em que ocorre o bullying.

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Estreitando o ângulo da abordagem, Simmons (2004) trata sobre as peculiaridades do

bullying praticado entre as meninas. A autora revela que sua identificação é difícil, uma vez

que as garotas podem usar de sutileza em tal prática, o que vai diferenciá-lo do “bullying

masculino”. As peculiaridades do bullying entre meninas, abordadas por Simmons (2004),

permitem-nos ter uma visão mais acurada sobre algumas personagens femininas que estão

presentes nos contos trabalhados com os sujeitos participantes da pesquisa, na sala de aula.

É perceptível, tomando como base o percurso trilhado neste estudo, que todos os autores

supracitados contribuíram, sobremaneira, para que pudéssemos apresentar um panorama do

bullying, em suas diversas facetas, à medida que tecemos uma relação desse fenômeno com a

literatura. A rede de saberes construída a partir do encontro literatura e bullying forneceu a

matéria-prima necessária para que entendêssemos e analisássemos as interações construídas

pelos sujeitos durante as sessões de leitura.

Relativamente às produções stricto sensu publicadas no nosso país, foram encontrados,

em 2016, 272 trabalhos que focalizam o bullying como temática. Desse universo, 225 são

dissertações em diversas áreas do conhecimento (Educação, Psicologia, Comunicação,

Sociologia, Letras, Inclusão e Acessibilidade, Serviço Social, Teologia, Direito e Saúde) e 47

são teses que se restringem às áreas de Psicologia, Educação, Saúde e Direito. Como se pode

constatar, o número de produções em nível de doutorado ainda é bastante reduzido.

Ainda no que se refere aos trabalhos em nível de doutorado, verificamos acentuada

concentração em determinadas regiões do Brasil. Das 47 teses encontradas, 38 foram

desenvolvidas no Sudeste, Centro-Oeste e Sul, o que equivale a 80,9% das pesquisas, enquanto

que, no Nordeste, foram realizadas 9 pesquisas, representando 19,1% do total. Outro ponto a

se tomar em conta é o fato de que, dentre as 47 teses, apenas 14 são registradas na área de

Educação. Pela análise desses dados, consideramos possível afirmar, mais uma vez, a relevância

do desenvolvimento deste trabalho.

Partindo desse levantamento inicial, buscamos identificar possíveis aproximações entre

os trabalhos em Educação e o nosso objeto de pesquisa. Para tanto, analisamos os seus objetivos

e pudemos observar que eles se agrupam basicamente nas seguintes categorias: percepção dos

adolescentes com relação ao bullying; percepção de segmentos da comunidade escolar – gestão,

professores, pais e/ou alunos – sobre o bullying; identificação da ocorrência de bullying e/ou

formas de intervenção e a relação entre bullying e desenvolvimento cognitivo.

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Na categoria Percepção dos adolescentes com relação ao bullying, registramos dois

trabalhos:

A construção social da personalidade de adolescentes expostos ao bullying

escolar e os processos de resiliência em-si: uma análise histórico-cultural, do

autor Marcos Vinicius Francisco (UNESP, 2013), que analisou criticamente a

construção social da personalidade de adolescentes expostos ao bullying

escolar, que se vêm posicionando frente às perseguições sofridas por meio dos

processos de resiliência; e

Violências nas escolas e juventude: um estudo sobre o bullying escolar, da

autora Rosana Maria César Del Picchia de Araújo Nogueira (PUC-SP, 2007),

que refletiu sobre o bullying e fez uma análise sobre a temática “violências nas

escolas e juventude”, focando principalmente o bullying escolar, sob a ótica de

adolescentes de classe média e da elite.

Na categoria Percepção de segmentos da comunidade escolar – gestão, professores,

pais e/ou alunos – sobre o bullying, destacam-se duas teses:

A escola não é um lugar fácil... Não mesmo: bullying, não-reconhecimento da

diferença e banalidade do mal, da autora Pamela Suellen da Motta Esteves

(PUC-Rio, 2015), que objetivou conhecer e compreender as relações entre pares,

permeadas por práticas agressivas conceituadas como bullying, buscando

investigar a percepção dos professores e dos estudantes acerca desse tipo

específico de violência escolar; e

Escola e Cyberbullying, da autora Andrea Muller Garcez (PUC-Rio, 2014), que

identificou e analisou as representações sociais do papel da escola nas questões

relativas ao cyberbullying a partir da fala de diretores e coordenadores

pedagógicos e da interação entre o discurso escolar e o discurso midiático.

Na categoria Identificação da ocorrência de bullying e/ou forma (s) de intervenção,

foram encontrados nove trabalhos:

Estratégias de prevenção e contenção do bullying nas escolas: propostas

governamentais e de pesquisa no Brasil e na Espanha, da autora Loriane

Trombini Frick (UNESP, 2016), que teve o objetivo de analisar projetos de

prevenção e contenção de práticas de bullying já propostos por pesquisadores ou

pelos governos do Brasil e da Espanha, observando as proximidades e

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distanciamentos entre eles;

Programa Mais Educação como proposta de intervenção para enfrentamento

do bullying escolar: contribuições à Educação Ambiental, da autora Samara

Pereira Oliboni (FURG, 2016), que avaliou o Programa Mais Educação (PME)

frente ao bullying escolar, verificando os tipos de bullying entre estudantes do

Ensino Fundamental e investigando diferentes elementos associados a essa

prática. Além disso, avaliou a contribuição do PME na redução desse tipo de

violência na escola e analisou, teoricamente, o PME como uma possível

estratégia micropolítica e microssocial de educação ambiental para o

enfrentamento da violência escolar;

Scraps de ódio no Orkut: cyberbullying, contextos e ressonâncias da violência

virtual que atinge o professor, da autora Telma Brito Rocha (UFBA, 2010), que

se propôs investigar o processo de produção discursiva, as práticas de

cyberbullying dirigidas a professores na rede social Orkut, os procedimentos e

as estratégias desse tipo de violência engendrado através do meio virtual;

Violência infanto-juvenil: o bullying como analisador dos processos de

subjetivação contemporâneos, do autor João Paulo Pereira Barros (UFCE,

2014), que buscou cartografar o bullying como um analisador de processos de

subjetivação contemporâneos, com a intenção de problematizar questões

teórico-conceituais acerca da violência escolar. Para tanto, articulou essa

violência à reflexão sobre a institucionalização e o panorama contemporâneo da

escola, de forma a empreender uma discussão arquegenealógica sobre o

bullying, averiguando suas condições de emergência como subcategoria de

violência. Por fim, intentou verificar modos de operação do bullying no

cotidiano escolar e seus efeitos de subjetivação;

Multiculturalismo e Ética/Moral em Educação: a retórica no discurso contra o

bullying, do autor William de Goes Ribeiro (UFRJ, 2014), que buscou desvendar

em que medida as práticas para se contrapor ao bullying sugerem uma ética

multicultural;

Sociedade da diversidade e a demanda por subjetividades inclusivas: a

necessidade de resistir, da autora Márcia Imaculada de Souza (UNIMEP, 2011),

que problematizou a convivência de políticas inclusivas com condições objetivas

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excludentes, a partir de políticas e dispositivos legais que respaldam as propostas

de inclusão e de situações cotidianas de exclusão, intolerância e violência;

Ações educativas aplicadas por professores em alunos do 6º ano do Ensino

Fundamental para a redução do bullying, da autora Ivone Pigoello (UNESP,

2012), que realizou práticas, junto aos professores, visando à prevenção do

bullying, bem como formas de intervenção;

O papel moderador de docentes na associação entre violência escolar e

ajustamento acadêmico, do autor Josafa Moreira da Cunha (UFPR, 2013), que

examinou a associação entre a vitimização entre pares e o ajustamento

acadêmico, avaliando como os comportamentos dos docentes podem exacerbar

ou reduzir o impacto da vitimização no ajustamento escolar; e

Da violência velada à violência física: o habitus de alunos do Ensino

Fundamental e a relação com a atividade física, da autora Luciana Renata

Muzetti (UNESP, 2009), que investigou a relação entre a disciplina Educação

Física e a influência dos diversos tipos de violência no desenvolvimento das

características e aptidões físicas dos estudantes do Ensino Fundamental.

Na categoria Relação entre bullying e desenvolvimento cognitivo, encontramos apenas

a seguinte tese:

O desenvolvimento cognitivo dos autores de bullying: implicações para a

aprendizagem escolar, da autora Maria Carolina Ribeiro (UNICAMP, 2016),

cujo objetivo foi investigar a relação existente entre o nível de desenvolvimento

cognitivo/moral dos autores de bullying com o fato de esses apresentarem

dificuldades na aprendizagem.

Certamente, todos esses estudos trouxeram contribuições significativas para o

entendimento da prática do bullying ao desvelarem os seus malefícios, o modo como os

indivíduos envolvidos interpretam essa forma de violência e até mesmo o conhecimento de sua

influência na instauração de problemas concernentes à aprendizagem. Não obstante, como nos

foi possível constatar, a maior parte das pesquisas enfocam a identificação do bullying ou o

modo de percepção das pessoas que integram a comunidade escolar em contextos específicos.

Poucos são os trabalhos que propõem encaminhamentos para que a escola ou, mais

especificamente, o professor possa trabalhar o bullying na sala de aula.

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Também constatamos o fato de que, das teses apresentadas, apenas duas propõem

direcionamentos indicando como o bullying pode ser abordado. Todavia, nenhum dos trabalhos

faz a interseção dessa prática de violência com a literatura.

Por essa razão, e no intuito de ampliar o nosso entendimento sobre o que já foi produzido

abordando o entrelaçamento literatura e bullying ou mesmo de identificar estudos que se

aproximem desse viés, buscamos também registros de dissertações e artigos, de algum modo,

devotados a essa temática. Nesse processo, deparamo-nos com dois trabalhos que apresentam

alguma convergência com a nossa pesquisa e que, portanto, merecem um olhar especial.

O primeiro estudo corresponde à dissertação de mestrado intitulada A descoberta da

barata Maria – identidade e bullying: uma leitura interdisciplinar, da autora Gleice José Maria

(Letras, Centro de Ensino Superior/CES, Juiz de Fora, 2011), que se propôs analisar a obra

infantil A descoberta da barata Maria, escrita por Dulce M. Godinho Pereira, com o intuito de

identificar como os elementos dessa narrativa propiciam o despertar da consciência acerca dos

temas identidade e bullying. Para além disso, ainda focalizou o estabelecimento de relações

entre literatura infantil e pedagogia, por meio de uma leitura interdisciplinar.

Vale ainda ressalvar o fato de que o estudo em foco, primordialmente bibliográfico,

versa sobre a análise da história mencionada e sobre os elementos estruturais da narrativa,

atendo-se tão-somente à discussão da dicotomia opressor/oprimido na visão de Paulo Freire.

Ademais, embora assuma a pretensão de analisar uma obra infantil fazendo alusão ao

bullying, não chega a esse alcance, vez que a história expõe, bem mais particularmente, a

questão da identidade, o que pode ser atestado pela leitura/análise dos seguintes trechos da

narrativa, destacados em itálico.

Dentro de um bueiro vivia a baratinha Maria. Ela tinha vergonha de ser

barata, porque achava que era um inseto muito nojento. Sonhava em ser

outro, qualquer um menos barata (MARIA, 2011, p. 108).

Quando chegava na praça, observava outros insetos. Achava todos mais

belos e inteligentes do que ela. E por isso, ela era muito triste. Não se

conformava em ser uma barata. Quando recebia um elogio de algum inseto

achava que estava mentindo para ela. Então, a baratinha nunca acreditava

em ninguém [...]. Durante a noite, ela se lamentava e pedia para ser

transformada em outro inseto (MARIA, 2011, p. 108).

[...] a barata Maria encontrou do outro lado da praça uma borboleta azul. A

baratinha achou aquele inseto o mais belo que já tinha visto e quis ser uma

borboleta.

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Pintou a sua carapaça de azul, tentou voar mais alto e fez promessas para se

tornar uma borboleta.

A borboleta quando viu a Maria pintada de azul, perguntou:

− Olá! Você é uma barata?

A baratinha respondeu sem graça:

− Sou sim. E você é uma linda borboleta.

A borboleta agradeceu e novamente perguntou:

− Por que você está azul? Caiu alguma lata de tinta em você?

− Não, não! Estou com essa cor porque eu gostei muito da sua e quis ficar

parecida com você.

A borboleta, sem entender, disse:

− Por que você quer ficar parecida comigo?

− Para me sentir mais bonita. − Disse Maria.

A borboleta ficou estarrecida por saber que a baratinha tinha vergonha de

ser o que era, e o pior: queria ser alguém que não era. Como uma barata

poderia se transformar em borboleta? Mas, a baratinha não se importava com

a opinião de ninguém. Queria ser uma bor-bo-le-ta. (MARIA, 2011, p. 108-

109).

− Como você pode ter um bom dia fingindo ser uma coisa que não é?

Falou a borboleta nervosa.

− Ora, mas eu quero ser uma borboleta.

− Acontece que uma barata é diferente de uma borboleta. As baratas

também são seres magníficos.

A baratinha triste respondeu:

− Não é verdade. Ninguém gosta de mim. As pessoas têm nojo de baratas,

tentam nos matar toda hora. Algumas amigas trazem bactérias, causando

mal à saúde do ser humano, provocando muitas doenças.

A borboleta falou:

− […] as baratas são seres vitoriosos, pois vocês conseguiram sobreviver a

várias mudanças do nosso planeta. Lembre-se: cada inseto tem o seu valor

no ambiente.

− Só que eu ainda não descobri minha função no meio ambiente. Qual a

minha importância? Choramingou a barata Maria (MARIA, 2011, p. 109-

110).

− Dona Borboleta! Dona Borboleta! Descobri algo sobre as baratas!

− Que bom, minha amiga. Hoje estou aqui para lhe dizer mais. Você sabia

que as baratas reciclam o lixo? Que todos os insetos realizam algo de bom

para o ambiente? [...]

A barata Maria começou a refletir sobre sua importância e ficou muito

satisfeita por saber que fazia parte de um grupo que tanto ajuda os seres

humanos. Ficou feliz por saber sobre o seu papel na natureza (MARIA, 2011,

p. 110).

A história, portanto, apresenta duas personagens: uma personagem principal – a barata

Maria −, insegura quanto à sua identidade e com baixa autoestima, e outra personagem – a

borboleta azul –, que surge na narrativa com a finalidade de ajudar a barata a se conhecer e,

principalmente, se aceitar como um ser que tem o seu valor. Na verdade, em todo o enredo,

poucas são as passagens que fazem menção a personagens considerados por Maria (2011)

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como antagonistas da barata. Recortamos, como alusivos a essa referência, os seguintes

enunciados: “[…] sempre que saía do bueiro encontrava alguém que não gostava de baratas.

Ela tinha que correr muito para não ser pisoteada pelas pessoas” (MARIA, 2011, p. 108);

“Precisava procurar comida toda noite, […], correr das chineladas e vassouradas das donas-

de-casa... […]” (MARIA, 2011, p. 108); e “Por um triz o funcionário não a atinge com um

jornal enrolado” (MARIA, 2011, p. 110).

Entendemos, observando esses registros, que não há, de fato, personagens envolvidos

em situações nas quais se evidenciam características de bullies; tampouco se praticam ações

que se configurem como bullying – isso considerando as definições de Middelton-Moz;

Zawadsky (2007) e Olweus (2006), respectivamente, apresentadas a seguir:

Os bullies (valentões/agressores) são especialistas no uso de técnicas de

intimidação. Repetidamente, usam comportamentos [...] para ganhar poder e

controle sobre outros, para estimular suas necessidades de poder ou para fazer

com que as coisas sejam como desejam. [...] Eles dependem de gerar confusão,

medo ou sentimentos de impotência em quem pretendem fazer de vítima. [...]

forçá-los a perder o controle faz com que ganhem controle sobre a situação

(MIDDELTON-MOZ; ZAWADSKY, 2007, p. 33).

Bullying ou “vitimização”, de um modo geral, se caracteriza quando uma

pessoa é atacada ou “vitimizada” e exposta, repetidamente, a ações negativas

partidas de uma ou mais pessoas. [...]. É ação negativa quando alguém

intencionalmente inflige ou tenta infligir, ferir ou inquietar outro –

basicamente o que é entendido como comportamento agressivo. Ações

negativas podem ser realizadas por palavras (verbalmente), por exemplo,

ameaças, zombaria, implicância e chamando nomes. É uma ação negativa

quando alguém bate, empurra, chuta, belisca ou reprime outro – por contato

físico. Também é possível haver ações negativas sem uso de palavras ou

contato físico, tal como fazer caretas ou gestos sujos, intencionalmente

excluindo alguém do grupo ou recusando-se a cumprir com os desejos de

outras pessoas (OLWEUS, 2006, p. 9, tradução nossa).

Com base nesses conceitos, ousamos afirmar que, na narrativa em análise (fazendo

remissão particular aos trechos focalizados), evidencia-se, não apenas intencionalmente mas

literalmente, a questão da identidade, não a da prática do bullying em sua essência.

Na verdade, o estudo realizado por Maria (2011), mesmo tendo o intuito de fazer a

interseção entre o livro infantil e o bullying, volta-se basicamente para a análise da estrutura

da narrativa, não demonstrando a preocupação de orientar caminhos para se discutir sobre o

bullying em sala de aula. Além disso, por ser uma pesquisa bibliográfica, não vislumbra a

prática de leitura de literatura como um meio para se refletir sobre o bullying. Assim sendo,

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difere, em vários aspectos, da investigação que propomos.

O segundo estudo corresponde à dissertação de mestrado intitulada A leitura do gênero

charge e o combate ao bullying em uma turma de 9º ano do Ensino Fundamental, da autora

Renata de Abreu e Silva Oliveira (Letras, UFMG, 2016), que se propôs buscar alternativas

para um trabalho mais efetivo com o gênero charge, tendo em vista seu funcionamento social.

Para a realização do estudo, consideraram-se, especialmente, os conceitos de

gêneros, inferência, leitura e retextualização. Para a coleta de dados, foi

desenvolvido, com uma turma de 28 alunos do 9º ano do Ensino Fundamental

de uma escola estadual no interior de Minas Gerais, um projeto didático, por

meio de oficinas que procurassem desenvolver estratégias para a leitura de

charges. Nessas oficinas, foram debatidos temas como discriminação e

bullying, a partir de charges que circulam na sociedade, com o objetivo de

construir junto com os discentes um conjunto de ações que pudessem ajudar

a minimizar esse problema na escola. Ao final das oficinas, montou-se uma

exposição com as charges estudadas e os textos produzidos pelos alunos a

partir das discussões das temáticas presentes no gênero em estudo, além de

murais e cartazes e um folder de conscientização sobre o bullying

(OLIVEIRA, 2016, resumo, grifos nossos).

Pela análise do resumo em foco, constata-se que a autora interveio em uma realidade

específica, trabalhando com o gênero charge; e, como resultado das oficinas, propôs aos alunos

ações que pudessem minimizar a ocorrência de bullying na escola por meio da exposição do

material produzido pelos participantes: textos analíticos, cartazes e folder de conscientização.

Verticalizando ainda mais o estudo, percebemos que as charges trabalhadas não apenas

discutiram o bullying mas, além disso, outras formas de violência, como o preconceito, a

intolerância, a discriminação e a violência física e psicológica direcionada às mulheres, e até

mesmo questões sobre ética. Essas outras temáticas abordadas nas oficinas também fizeram

parte da exposição organizada por Oliveira (2016) ao final das discussões das charges com os

alunos. Os

[...] itens que compuseram a exposição foram cartazes com imagens sobre

bullying feitos pelos próprios alunos [...]; um mural sobre a violência contra a

mulher, confeccionado pelas alunas que sugeriram o tema, a partir de

discussões nas oficinas [...]; e um outro grupo de alunos fez também um mural

sobre preconceito, tema que debatemos muito nas oficinas (OLIVEIRA, 2016,

p. 98).

Como o propósito de Oliveira (2016) era definir alternativas para um trabalho mais

efetivo com o gênero charge, optou por selecionar textos que discutissem práticas/concepções

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enraizadas na nossa sociedade, o que inclui a violência entre pares. Isso porque a charge,

substancialmente, tem a função de “mobilizar uma crítica, denunciar uma realidade, satirizar

alguém ou algum fato” (OLIVEIRA, 2016, p. 32).

Em se considerando alguns aspectos do modo de funcionamento da charge, conforme

se evidencia no trabalho de Oliveira (2016), podemos apontar uma notável diferença entre este

gênero discursivo e a literatura, o que vai configurar um dos distanciamentos a serem

assinalados entre a referida pesquisa e a nossa.

A literatura não tem uma função predefinida como o gênero em questão. Como nos

esclarece Zilberman (1989), ela é

propiciadora da emancipação do sujeito: em primeiro lugar, liberta o ser

humano dos constrangimentos e da rotina cotidiana; estabelece uma distância

entre ele e a realidade convertida em espetáculo; pode preceder a experiência,

implicando então a incorporação de novas normas, fundamentais para a

atuação na e compreensão da vida prática; e, enfim, é concomitantemente

antecipação utópica, quando projeta vivências futuras e reconhecimento

retrospectivo, ao preservar o passado e permitir a redescoberta de

acontecimentos enterrados (ZILBERMAN, 1989, p. 54).

Além disso, a literatura também possibilita ao leitor, no processo de interação com a

obra, construir significados particulares ao identificar-se com a história e/ou com seus

personagens.

É o leitor que apresenta à história suas perspectivas, angústias e dúvidas,

colhendo os significados que lhe são pertinentes, após refletir sobre o texto,

isto porque os sentimentos e as emoções vivenciadas nesse tipo de leitura

muito se assemelham aos sentimentos da vida real – afinal a ficção apesar de

imaginária, trata-se de uma construção paralela ao mundo real, além de uma

expansão dessa realidade, a partir da capacidade criativa do autor

(MEDEIROS, 2012, p. 37).

Bem à semelhança do que propomos em nosso estudo: estimular a reflexão de crianças

sobre o bullying por meio da ficcionalidade do texto literário que, em sua essência, não tem a

intenção de abordar essa prática, mas, por lhe ser possível apresentar situações de violência

vivenciadas pelas personagens, pode permitir ao leitor estabelecer relações com a sua própria

vida.

Não obstante existirem, ainda, outros distanciamentos a serem mencionados, há também

aproximações a serem apontadas entre o estudo desenvolvido por Oliveira (2016) e o nosso.

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Comecemos pelas semelhanças: ambos os trabalhos versam sobre pesquisas empíricas em que

houve intervenção, buscando discutir com os alunos do Ensino Fundamental o bullying; as duas

pesquisas buscam desenvolver a reflexão dos participantes com relação a esse tipo de violência.

A ressalva que fazemos diz respeito apenas ao fato de Oliveira (2016) apresentar textos que

abordam outras temáticas não atreladas a situações de violência entre pares, como mencionado

anteriormente.

Percebemos, por exemplo, que os textos trabalhados por Oliveira (2016), justamente

por se tratarem de charges, são abordados na perspectiva de observar se os alunos conseguem

entender a crítica por eles veiculada e se aproximar de uma “leitura adequada”, conforme revela

Oliveira (2006, p. 51) ao explicitar sua pretensão: “Pretendia que os alunos se posicionassem

criticamente sobre o tema. [...] trabalhar a habilidade escrita com eles. A seguir, as respostas

dos alunos que se aproximaram mais do esperado”. O estudo que propomos, ao contrário, tem

o objetivo de discutir o bullying a partir da identificação dos alunos com as personagens e as

situações por elas vivenciadas, assim como da relação que esses possam construir entre a ficção

e suas próprias realidades, por meio da catarse (ZILBERMAN, 1989).

Assinala-se, por conseguinte, uma diferença no modo como a reflexão é construída nas

duas situações de estudo. No caso do trabalho com as charges, direcionam-se e conduzem-se

os leitores à crítica que deve ser observada; no caso do trabalho com os textos literários,

estimulam-se os leitores a refletirem sobre suas convicções e experimentarem as frustrações

e/ou as superações vivenciadas pelos personagens, numa tentativa de motivá-los a reestruturar

a realidade que os cerca “[organizando] o impacto fragmentado e caótico da experiência de

mundo que seus limites de criança impõem” (AMARILHA, 2004, p. 20).

Também, em contrapartida, verificamos que Oliveira (2016) não registra, em seu estudo,

um referencial teórico sobre o bullying ou sobre qualquer outro tipo de violência

revelado/discutido por meio das charges, divergindo, assim, de nossa pesquisa, que, visando

desenvolver uma reflexão sobre o bullying entre as crianças participantes, constrói toda uma

fundamentação teórica para tratar sobre a temática.

De constatação em constatação, temos cada vez mais certeza da importância de nossa

pesquisa. E alimentamos ainda mais essa convicção quando tomamos conhecimento dos

resultados das Pesquisas Nacionais de Saúde do Escolar (PeNSE), conduzidas pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2009, 2012, 2015). Essas pesquisas, realizadas,

em sua maioria, com discentes do 9º ano do Ensino Fundamental de escolas públicas e privadas

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das capitais e de outros municípios do nosso país, demonstraram, a cada edição, um aumento

exponencial do número de escolares que se sentem agredidos por seus pares.

Na 1ª edição, em 2009, a amostra foi constituída por 1.453 escolas, com um total de

63.411 alunos pesquisados. Desses, 25,4% afirmaram que “raramente ou às vezes” se sentiam

humilhados pelas provocações de colegas da escola (fazendo remissão aos últimos 30 dias), e

5,4% disseram que experimentam esse sentimento “quase sempre ou sempre”. Na 2ª edição,

em 2012, a amostra foi ampliada para 2.842 escolas participantes e 109.104 alunos pesquisados.

Dentre esses, 28,2% asseguraram que “raramente ou às vezes” se sentiam humilhados pelas

provocações e 7,2% afirmaram sentirem-se assim “quase sempre ou sempre”. Na 3ª edição, em

2015, houve uma alteração na dinâmica da pesquisa, que passou a ser realizada a partir de duas

amostras: a primeira envolveu o mesmo público-alvo das edições anteriores, e a segunda

coletou dados de escolares de 13 a 17 anos que estivessem frequentando a escola,

independentemente da etapa do ensino (Fundamental II ou Médio). A amostra 1 contou com

3.040 escolas e 102.301 alunos participantes. A segunda amostra contou com 371 escolas e

16.608 alunos participantes, totalizando 3.411 escolas e 118.909 alunos pesquisados. Em

relação ao total da amostra 1, verificamos que 39,2% afirmaram que “raramente ou às vezes”

se sentiam magoados, incomodados, aborrecidos ou humilhados (observa-se que, nessa última

edição do PeNSE, os adjetivos com relação ao aluno vitimizado foram ampliados, para se

adequarem aos termos da Lei nº 13.185/2015) e 7,4% disseram que esses sentimentos afloraram

“quase sempre ou sempre”. Em relação à amostra 2, esse percentual subiu para 12,6% dos

alunos participantes, que afirmaram se sentirem humilhados “quase sempre ou sempre”.

Focalizando particularmente a amostra 2, que envolveu adolescentes até 17 anos,

observamos que a incidência do bullying é maior nessa fase da vida, o que só vem confirmar

os resultados já apontados por Olweus (2006). Também é um indicador da necessidade de se

construir uma reflexão com os aprendizes sobre essa forma de violência ainda no Ensino

Fundamental, conforme definido na nossa pesquisa. Acreditamos que, desse modo, estaremos

contribuindo para a “cultura da prevenção” no ambiente escolar, o que se configura como uma

das finalidades da educação (TREVISAN; FAGUNDES; PEDROSO, 2016).

Além das pesquisas do IBGE, outro documento que reforça a relevância deste estudo é

o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2009), que propõe, como ação

programática, fomentar a inclusão de temáticas que abordem a diversidade com vistas a evitar

a ocorrência de atos de violência

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[...] relativos a gênero, identidade de gênero, raça e etnia, religião, orientação

sexual, pessoas com deficiências, entre outros, bem como das formas de

discriminação e violações de direitos, assegurando a formação continuada dos

(as) trabalhadores (as) da educação para lidar criticamente com esses temas

[...] [que resultem na proposição de] ações fundamentadas em princípios de

convivência, para que se construa uma escola livre de preconceitos, violência,

abuso sexual, intimidação e punição corporal, incluindo procedimentos para

a resolução de conflitos e modos de lidar com a violência e perseguições ou

intimidações, por meio de processos participativos e democráticos (BRASIL,

2009, grifos nossos).

A proposição de meios para a discussão sobre o bullying alinha-se, por consequência, à

orientação do PNEDH, que visa a um modelo ideal de escola em que a “aceitação” e o respeito

se tornem palavras de ordem. Bem em sintonia com as Diretrizes Nacionais para a Educação

em Direitos Humanos (BRASIL, 2012), que orientam a disseminação de uma cultura de paz ao

apregoar que todo e qualquer tipo de violência na escola deve ser combatido.

E vale registrar o fato de que, mais recentemente, em 2016, foi implementado o Pacto

Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade, Cultura da Paz e Direitos Humanos

pelo Ministério da Educação com o apoio do Ministério dos Direitos Humanos. Seu objetivo é

promover a educação em direitos humanos nas instituições de educação superior e entidades

apoiadoras, com vistas a “superar a violência, o preconceito e a discriminação, e promover

atividades educativas de promoção e defesa dos direitos humanos nessas instituições”

(BRASIL, 2016).

Todavia, não é uma tarefa simples instituir essa cultura almejada, tanto pelo PNEDH

quanto pelo referido pacto e pelas diretrizes, considerando-se o fato de que boa parte dos

professores abstém-se de intervir em situações de bullying e nem sequer busca dialogar com os

alunos sobre o assunto, conforme mencionado anteriormente. Olweus (2006) destaca, ainda, a

impossibilidade de os envolvidos em casos de bullying − sejam as vítimas, sejam os agressores

− mudarem suas formas de agir sem que ocorra uma intervenção externa.

Atentas à necessidade da implementação dessa intervenção externa, as assembleias

legislativas de 20 estados brasileiros, incluindo o Distrito Federal, anteciparam-se ao Poder

Legislativo Federal e promulgaram leis antibullying direcionadas às instituições de ensino. A

exceção recai sobre os estados do Pará, Rio Grande do Norte, Roraima, São Paulo e Tocantins.

Também à parte devem ser considerados os estados de Minas Gerais e da Bahia, que instituíram

suas leis, somente após a Lei federal, em 2015.

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Dentre as leis promulgadas antes de 2015, as disposições são variadas. Há estados que

já apresentam como proposta a efetivação de programa de combate ao bullying na escola;

outros, contudo, se limitam a instituir, especificamente, um dia ou uma semana voltados a esse

combate, ou resolvem criar um disque-denúncia para os casos desse tipo de violência.

Restringindo-nos à Região Nordeste, vale o registro de que os estados do Ceará, do

Maranhão, de Pernambuco, do Piauí, de Sergipe e da Bahia possuem leis voltadas à prevenção

e/ou ao enfrentamento do bullying de forma mais ampla, entendendo a necessidade de ações

voltadas à conscientização, à sensibilização, à promoção de valores entre os estudantes, à

resolução de conflitos etc. enquanto que os estados de Alagoas e da Paraíba apresentam outros

vieses.

Em Alagoas, por exemplo, a Lei estabelece que o trabalho de conscientização não prevê

a realização de atividades contínuas para tal finalidade, o que prejudica o real combate às

práticas cotidianas de bullying na escola. Na Paraíba, a Lei usa a palavra “prevenção”, seguida

do termo “repressão”. Nessa perspectiva, apresenta o bullying como crime, devendo as

instituições de ensino denunciarem os casos ao Ministério Público (PARAÍBA, 2012). Sob essa

ótica, o cerne da Lei reside na punição, seja daquele que pratica o bullying, seja da instituição

que não o denuncia, o que foge à ideia de conscientização, tendo em vista que o bullying, “como

um substrato de violência, é uma forma de desrespeito, [sendo, portanto,] um problema moral”

(TOGNETTA; ROSÁRIO, 2013, p. 109).

No Rio Grande do Norte, não existe lei antibullying. Contudo, há Leis no Município de

Natal que regem sobre a temática, incumbindo o Poder Executivo de criar o “Programa de

Enfrentamento ao Bullying” (NATAL, 2011). Não obstante, até o ano de 2018, tal programa

ainda não havia sido criado.

Diante desse quadro, firma-se ainda mais nossa convicção (que foi sendo construída a

partir do contato realizado com professores e estudantes na escola locus desta pesquisa e de

diálogos com outros professores da rede municipal) de que há muitas dúvidas com relação ao

que é, de fato, bullying e mais ainda quanto às formas mais apropriadas para trabalhá-lo na

escola.

Conforme mencionado, o Poder Legislativo Federal promulgou, em 2015, a primeira lei

antibullying de abrangência nacional, a Lei nº 13.185, que instituiu o Programa de Combate à

Intimidação Sistemática (Bullying). Inicialmente, a referida Lei traz a definição do que se

entende por esse tipo de violência:

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§ 1o [...] considera-se intimidação sistemática (bullying) todo ato de violência

física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação

evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com

o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em

uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas (BRASIL,

2015).

E também apresenta, em seu art. 2º, a caracterização do bullying, afirmando que esse

ocorre quando há

violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação,

discriminação [...] ataques físicos, insultos pessoais, comentários sistemáticos

e apelidos pejorativos, ameaças por quaisquer meios, grafites depreciativos,

expressões preconceituosas, isolamento social consciente e premeditado e

pilhérias (BRASIL, 2015).

Adicionalmente, indica quais ações são consideradas como intimidação sistemática

verbal, moral, sexual, social, psicológica, físico, material e virtual (cyberbullying):

Art. 3o A intimidação sistemática (bullying) pode ser classificada, conforme

as ações praticadas, como:

I - verbal: insultar, xingar e apelidar pejorativamente;

II - moral: difamar, caluniar, disseminar rumores;

III - sexual: assediar, induzir e/ou abusar;

IV - social: ignorar, isolar e excluir;

V- psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar,

manipular, chantagear e infernizar;

VI - física: socar, chutar, bater;

VII - material: furtar, roubar, destruir pertences de outrem;

VIII - virtual: depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou

adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito

de criar meios de constrangimento psicológico e social (BRASIL, 2015).

Faz-se necessário observar, entretanto, que, embora conceitue a intimidação sistemática

(bullying) e defina quais ações podem configurar tal violência, a Lei 13.185/2015 não faz

qualquer menção à paridade que precisa existir entre os envolvidos para que a agressão se

caracterize como bullying. Desse modo, as ações descritas no artigo 3° podem ser interpretadas

de maneira abrangente, tendo em vista não se levar em consideração o fato de que essa prática

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ocorre entre pares, o que pode desencadear equívocos na classificação de casos reais desse

fenômeno.

Mesmo assim, não se pode negar a importância dessa Lei, uma vez que, além da

caracterização do bullying, atribui ações do Programa ao Ministério da Educação, às Secretarias

Estaduais e Municipais de Educação e, especialmente, às escolas, devendo estas últimas

assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e à

intimidação sistemática. Além disso, também define os objetivos que devem ser alcançados

com o Programa, dentre os quais, destacamos:

[...]

I - prevenir e combater a prática da intimidação sistemática (bullying) em toda

a sociedade;

II - capacitar docentes e equipes pedagógicas para a implementação das ações

de discussão, prevenção, orientação e solução do problema;

III - implementar e disseminar campanhas de educação, conscientização e

informação;

IV - instituir práticas de conduta e orientação de pais, familiares e

responsáveis diante da identificação de vítimas e agressores;

[...]

VII - promover a cidadania, a capacidade empática e o respeito a terceiros,

nos marcos de uma cultura de paz e tolerância mútua;

VIII - evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando

mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva

responsabilização e a mudança de comportamento hostil;

IX - promover medidas de conscientização, prevenção e combate a todos os

tipos de violência, com ênfase nas práticas recorrentes de intimidação

sistemática (bullying), ou constrangimento físico e psicológico, cometidas por

alunos, professores e outros profissionais integrantes de escola e de

comunidade escolar (BRASIL, 2015).

Observando tais objetivos, é possível afirmar que as escolas, de fato, constituem-se como

as principais instituições promotoras dessa conscientização sobre o bullying. Em contrapartida,

até a presente data, não foram apresentadas diretrizes nacionais sobre como alcançar tais

objetivos. Faltam, certamente, orientações que possam servir de base para que as escolas

elaborem seus próprios programas a partir das peculiaridades locais.

Como se constata, razões não faltam para justificar a importância deste estudo. Afinal,

nele se almeja construir proposições plausíveis para se discutir o bullying em sala de aula. Nessa

direção, apresentaremos não somente reflexões que suscitem o entendimento do quanto esse

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tipo de violência é prejudicial para o convívio entre pares mas também uma visão da literatura

como meio deveras apropriado para a construção de conhecimentos pelas crianças.

A fim de percorrermos o caminho que nos conduz à constatação da tese que nos

propusemos defender, estruturamos este trabalho em cinco capítulos.

Na introdução, correspondente também ao nosso primeiro capítulo, explicitamos as

justificativas para esta proposição investigativa, as razões particulares que nos estimularam a

aprofundar a interface literatura e bullying e ainda apresentamos o estado da arte.

No segundo capítulo, descrevemos a metodologia de pesquisa, definimos o objeto de

estudo, a tese a ser defendida e os objetivos propostos para chegar a esse alcance. Também

traçamos o desenho da pesquisa, considerando o desenvolvimento da proposta de intervenção

na escola (as observações iniciais, as entrevistas, o planejamento das sessões de leitura e sua

respectiva realização).

No terceiro capítulo, destinado à fundamentação teórica deste estudo, enveredamos,

primordialmente, por duas áreas do conhecimento: literatura e bullying. No que tange à

literatura, embasamo-nos em autores como Amarilha (2004; 2006; 2010); Bettelheim (2007);

Compagnon (2009); Iser (1996); Yunes (1995, 2003; 2010) e Zilberman (1989; 2003; 2015);

Lima (2002); e Lajolo (2002; 2009). No que se refere aos saberes sobre o bullying, fizemos

ancoragem em Olweus (2006); Avilés (2002, 2005, 2006; 2011); Beane (2010); Middelton-

Moz e Zawadsky (2007); La Taille (2006; 2009); Simmons (2004); Salmivalli (1999); Jares

(2002, 2004, 2007, 2008); Tognetta (2003); e Debarbieux (2002).

No quarto capítulo, realizamos a análise dos dados, considerando, para tanto, não apenas

o aparato derivado da fundamentação teórica mas, em associação, as demais fontes subsidiárias

(como as sessões de pós-leitura e as entrevistas) com potencial para afiançar a nossa tese.

Por derradeiro, delineamos algumas considerações finais, abordando os resultados

alcançados.

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2 O ROTEIRO DO VOO: CAMINHOS TRAÇADOS E TRILHADOS

2.1 OBJETO DE ESTUDO, TESE E OBJETIVOS

Privilegiamos, como objeto de estudo, a prática de leitura de textos literários que possam

induzir o leitor a refletir sobre o bullying, partindo da tese inicial de que a leitura de textos

literários, mediada pelo processo de discussão, contribui para suscitar a reflexão de sujeitos

aprendizes sobre o bullying.

Visando à sustentação dessa tese, propusemos como objetivo geral investigar o modo

como a prática sistematizada da leitura de textos literários pode propiciar uma reflexão sobre o

bullying entre escolares. A fim de alcançá-lo, elaboramos os seguintes objetivos específicos:

demonstrar como o trabalho mediado pela leitura de textos literários, considerando a

interface literatura e bullying, pode contribuir para a discussão sobre essa prática de violência

na sala de aula;

especificar, por meio da fala dos sujeitos, as possibilidades de identificação, derivadas

da interação texto-leitor, que favorecem o processo de julgamento, considerando a relação

ficção-realidade;

identificar, a partir da análise dos dados, que conhecimentos sobre o bullying foram

construídos pelos estudantes em decorrência da leitura de textos literários.

2.2 A ESCOLHA METODOLÓGICA: PESQUISA QUALITATIVA COM INTERVENÇÃO

O percurso metodológico adotado nesta pesquisa foi pensado em conformidade com o

paradigma qualitativo, que se constitui em um conceito amplo, mas, que, em sua essência, se

configura como

[...] um processo ativo, sistemático e rigoroso de indagação dirigida, no qual

se tomam decisões sobre o que é pesquisado quando se está no campo de

estudo. [O foco de atenção dos pesquisadores está na realização de]

descrições detalhadas de situações, eventos, pessoas, interações e

comportamentos que são observáveis, incorporando a voz dos participantes,

suas experiências, atitudes, crenças, pensamentos e reflexões [...] (PÉREZ

SERRANO apud ESTEBAN, 2010. p. 124).

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Esse processo é construído a partir de uma visão holística dos fenômenos, ao

considerar todos os componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas

(ANDRÉ, 2007). A pesquisa qualitativa configura-se como um espaço de discussão que

possibilita uma compreensão mais particular dos fenômenos, por meio de um equilíbrio entre a

descrição e a análise crítica (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). Além disso, essa abordagem tem caráter

interpretativo, uma vez que o “[...] pesquisador qualitativo trata de justificar, elaborar ou

integrar em um marco teórico os seus achados. [...] pretende que as pessoas estudadas falem

por si mesmas, deseja aproximar-se de sua experiência particular, dos significados e da visão

de mundo que possuem” (EISNER apud ESTEBAN, 2010, p. 129), intentando a construção de

resultados que reflitam a realidade da pesquisa a partir do seu contexto.

O momento atual reivindica uma pesquisa qualitativa cuja característica

fundamental está na reflexibilidade. Esse conceito significa que deve ser dada

especial atenção à forma que diferentes elementos linguísticos, sociais,

culturais, políticos e teóricos influem de maneira conjunta no processo de

desenvolvimento do conhecimento (interpretação) na linguagem e na

narrativa (forma de apresentação) e impregnam a produção dos textos

(autoridade, legitimidade) (ESTEBAN, 2010, p. 130).

Visando modalizar o potencial da literatura para essa mudança de postura,

desenvolvemos uma pesquisa qualitativa com intervenção que atua como “uma pesquisa sobre

a ação quando se trata de estudá-la para compreendê-la e explicar seus efeitos” (CHIZZOTTI,

2006, p. 80). A palavra intervenção, de acordo com o dicionário Houaiss, é o “¹ ato de intervir

² em um debate, ato de emitir opinião” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 1100). Por sua vez, o

verbo intervir significa “¹ ingerir-se, visando influir sobre o desenvolvimento; interferir,

interceder [...]; ³ suceder incidentemente, sobrevir; estar presente, assistir” (HOUAISS;

VILLAR, 2009, p. 1100). Considerando esse campo semântico, e em busca de desenvolvermos

uma intervenção pedagógica, procuramos realizar as sessões de leitura de literatura a partir de

um planejamento sistemático e controlado. Nessa perspectiva, elaboramos os planos das sessões

de leitura com base nos conhecimentos teóricos trabalhados, neste estudo, e nas potencialidades

de cada obra literária selecionada, de modo que nos fosse possível abordar o objeto desta

investigação.

Também fizemos ancoragem na concepção de Robson (1995 apud Damini, 2012), para

quem as intervenções são pesquisas no mundo real,

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pesquisas sobre ou com pessoas, fora do ambiente protegido de um

laboratório, característica que as distinguem de procedimentos clássicos

orientados pelo paradigma da ciência experimental. [...] as “pesquisas no

mundo real” somente se efetivam se trouxerem algum benefício – como, por

exemplo, auxiliar na tomada de decisão acerca de alguma mudança que

necessita ser realizada, na promoção de melhorias em algum sistema ou

prática já existente ou na avaliação de uma inovação. Essa afirmação remete

ao caráter aplicado (prático) desse tipo de pesquisa [...]. (DAMINI, 2012, p.

4, grifos da autora).

Em sendo assim perspectivada, podemos afirmar que esta pesquisa configura-se como

uma intervenção, na medida em que busca proporcionar benefícios aos sujeitos participantes e

à escola, de modo geral, oferecendo ao professor subsídios para o trabalho com a literatura em

sala de aula, ao apresentá-la como meio possível para a discussão sobre o bullying.

Para chegarmos à etapa da intervenção propriamente dita, fez-se necessário conhecer

bem o locus da pesquisa, o que nos demandou construir a ecologia da escola3, partindo “do

princípio de que o pesquisador sempre tem um grau de interação com a situação estudada,

afetando-a e sendo por ela afetado” (ANDRÉ, 2007, p. 28). A observação participante seria,

pois, de fundamental importância nesse processo de construção. Cruz Neto (2001) justifica,

com muita propriedade, a aplicação dessa técnica:

A técnica de observação participante se realiza através do contato direto do

pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a

realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. O observador,

enquanto parte do contexto de observação, estabelece uma relação face a face

com os observados. Nesse processo, ele, ao mesmo tempo, pode modificar e

ser modificado pelo contexto. A importância dessa técnica reside no fato de

podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são

obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na

própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na

vida real. A inserção do pesquisador no campo está relacionada com as

diferentes situações da observação participante por ele desejada. [...] Nessa

situação, o pesquisador deixa claro para si e para o grupo sua relação como

sendo restrita ao momento da pesquisa de campo. [...] ele pode desenvolver

uma participação no cotidiano do grupo estudado, através da observação de

eventos do dia-a-dia (CRUZ NETO, 2001, p. 59-60).

3 Construir a ecologia da escola significa enxergar o ambiente escolar como fonte de aquisições “cuja

intencionalidade e organização cria um concreto clima de intercâmbio, gera papéis e padrões de conduta individual,

grupal e coletiva, [que] desenvolve [...] uma cultura peculiar” (SACRISTÁN; GOMES, 1998, p. 76).

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Optamos por esse tipo de observação por entendermos que o contato do pesquisador

com os sujeitos pode revelar nuances não apenas das interações entre os sujeitos participantes

mas de toda a dinâmica estabelecida em sala de aula de modo mais rotineiro. Vislumbrando

essa possibilidade, e compreendendo a necessidade de um acompanhamento desses

acontecimentos em tempo real, recorremos ao diário de campo, por meio do qual poderíamos

registrar dados descritivos, situações de interação em sala de aula, assim como questões,

inquietações e reflexões que foram surgindo ao longo da etapa. Todas essas informações foram

primordiais para a intervenção pedagógica, uma vez que apontaram diretrizes relevantes para a

maneira como estruturamos as sessões de literatura.

Outro instrumento adotado foi a entrevista individual semiestruturada – flexível de

acordo com o desenvolvimento da atividade –, realizada com os alunos em dois momentos:

antes e após a conclusão de todas as sessões de leitura. Também foi realizada uma entrevista,

nos mesmos moldes, com a diretora pedagógica, a coordenadora de turno e a professora da

turma participante deste estudo, diferenciando-se da entrevista com os alunos somente no que

se refere ao teor das perguntas semiestruturadas. Isso porque, por meio da entrevista,

[...] o pesquisador busca obter informes contidos na fala dos atores sociais.

Ela não significa uma conversa despretensiosa e neutra, uma vez que se insere

como meio de coleta dos fatos relatados pelos atores, enquanto sujeitos-objeto

da pesquisa que vivenciam uma determinada realidade que está sendo

focalizada. [...]. Nesse sentido, a entrevista [...] [é] [...] [por] nós entendida

como uma conversa a dois com propósitos bem definidos. Num primeiro

nível, essa técnica se caracteriza por uma comunicação verbal que reforça a

importância da linguagem e do significado da fala. Já, num outro nível, serve

como um meio de coleta de informações sobre um determinado tema

científico. Através desse procedimento, podemos obter dados objetivos e

subjetivos. [Os subjetivos] se relaciona[m] aos valores, às atitudes e às

opiniões dos sujeitos entrevistados (CRUZ NETO, 2001, p. 57-58).

Almejando alcançar essa subjetividade, a partir das falas dos alunos, é que pensamos

em elaborar eixos temáticos distintos. O primeiro, que corresponde à entrevista inicial, contém

perguntas relacionadas à vida familiar e escolar do discente; ao seu conhecimento em relação à

literatura e ao modo como o contato com essa arte foi desenvolvido no decorrer da educação

escolarizada e também no seio da família; ao seu entendimento sobre o bullying e às relações

interativas ocorridas entre os colegas de turma. O segundo, que corresponde à entrevista final,

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inclui questões voltadas à compreensão do efeito estético provocado nos sujeitos a partir do

encontro com os textos literários.

Para a construção dessas entrevistas, ancoramo-nos em Gaskell (2002), com vistas a

uma percepção mais consistente do mundo social dos pesquisados, partindo do pressuposto de

que esses podem “fornecer informação contextual valiosa para ajudar a explicar achados

específicos” (GASKELL, 2002, p. 66). Também vislumbramos novas concepções construídas

pelos alunos a partir da intervenção, visto que “[...] [há] aspectos da entrevista que vão além

das palavras [...] (GASKELL, 2002, p. 85).

2.3 DESENHO DA PESQUISA

A pesquisa se constituiu a partir das seguintes etapas:

1. ecologia da escola;

2. planejamento da intervenção;

3. intervenção pedagógica;

4. análise dos dados.

2.3.1 Ecologia da escola

A ecologia da escola foi desenvolvida para que tivéssemos maior conhecimento do

ambiente em que se daria a intervenção. Para a caracterização da escola, levamos em conta os

documentos institucionais, mais especificamente o Projeto Político Pedagógico (PROJETO...,

2014); procedemos à observação in loco, fazendo os devidos registros em diário de campo e

realizamos entrevistas individuais e semiestruturadas com os alunos – elaboradas a partir das

orientações de Gaskell (2002) e registradas em áudio, por meio de um gravador portátil – antes

e após as sessões de leitura (gravadas por duas câmeras de vídeo), com o intuito de

compreendermos as suas percepções sobre literatura e bullying. Além disso, também

entrevistamos a professora da turma (buscando entender como a literatura estava inserida

naquela sala de aula e qual o seu conhecimento sobre o bullying) e as gestoras da escola (a

diretora e a coordenadora pedagógica) a fim de saber qual sua (delas) concepção de bullying,

se havia a ocorrência desse tipo de violência na escola e como a gestão lidava com o problema.

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2.3.1.1 A escola

A intervenção deste estudo foi realizada em uma escola pública municipal de Ensino

Fundamental situada na zona oeste da cidade de Natal−RN (Brasil). Nela, são atendidos alunos

do 1° ao 5° ano, nos turnos matutino e vespertino; no período noturno, a instituição atende

estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), para os quais se ofertam também turmas

do 5° ao 9° ano.

A escolha do locus foi motivada pela indicação de uma das professoras da escola que

nos informou sobre a receptividade da gestão escolar à participação em estudos acadêmicos,

bem como sobre a postura acolhedora em relação aos pesquisadores. Percebemos, nos contatos

iniciais, que a direção entendia a importância de se estudar a realidade escolar in loco e

acreditava que estudos de natureza acadêmica traziam benefícios para todos os envolvidos, na

medida em que contribuíam para o desenvolvimento dos discentes e colaboravam (ainda que,

em alguns casos, indiretamente) para a formação dos professores participantes.

Resolvidos os trâmites iniciais, agendamos o primeiro encontro com a professora da

turma. Entretanto, antes de iniciarmos a reunião, tivemos a oportunidade de participar do

planejamento pedagógico, presenciando um diálogo que nos causou grata surpresa: a

coordenadora orientava as professoras sobre a importância de as crianças levarem livros

literários, por empréstimo, para suas casas.

A aludida situação mostrou-se inusitada pelo fato de havermos constatado, a partir de

pesquisas desenvolvidas anteriormente, por Amarilha, que, apesar de “todos [os professores]

reconhecerem que, nas raras oportunidades em que as crianças entram em contato com a

literatura, mais especificamente com a narrativa, elas demonstram grande interesse”

(AMARILHA, 2004, p. 17), boa parte dos docentes dos anos iniciais da escolarização

(Educação Infantil e Ensino Fundamental I) não vislumbra a literatura como um discurso

importante, tampouco significativo, para a construção do conhecimento. Reconhecem-na

somente como medida disciplinar, o que torna o trabalho com a leitura de textos literários ainda

pouco explorado dentro da cultura escolar (AMARILHA, 2004).

Certamente podemos considerar, pela remissão a esse acontecimento, que parece haver

avanços em relação aos dados de pesquisas anteriores. A fim de fortalecer ainda mais essa

crença, retomamos o caso focalizado para o seguinte relato: após a recomendação da

coordenadora no sentido de os alunos serem estimulados à leitura levando os livros para casa,

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pelo sistema de empréstimo, uma das professoras, em contraponto ao dito, alegou que os livros

voltavam à escola gastos e amarrotados. A coordenadora respondeu, em tom de satisfação, que

isso era bom, pois demonstrava que os livros estavam sendo manuseados pelas crianças e talvez

até por outros membros da família. Esse episódio revela a importância atribuída à leitura por

essa escola, ratificando o acerto de nossa decisão pela escolha do locus.

Após essa interlocução protagonizada pela coordenadora, apresentamos à professora da

turma o projeto de pesquisa (de forma semelhante ao que havíamos feito com a direção)

explicando a sua finalidade, seus objetivos e sua metodologia.

Ao ter conhecimento de que a pesquisa seria realizada na área de literatura, a docente

mostrou-se bastante interessada, principalmente porque, segundo nos revelou, já planejava

desenvolver com as crianças uma espécie de “rodízio de leitura de livros literários”, a partir de

um número de obras pré-selecionadas. Contudo, não sabia como organizar tal atividade. A

pesquisa, portanto, poderia ajudá-la a traçar estratégias para colocar em prática sua ideia.

Essa acolhida foi alentadora; especialmente porque, ainda que não fosse objeto desta

pesquisa, poderíamos contribuir para a ampliação do conhecimento da docente sobre como

planejar uma aula de literatura, mostrando sua importância a partir da nossa intervenção junto

aos alunos.

O locus da pesquisa caracteriza-se como uma escola de médio porte que, em 2017,

atendeu 820 estudantes, assim distribuídos:

turno matutino: 12 turmas, sendo uma de 1° ano, duas de 2° ano, duas de 3° ano,

quatro de 4° ano e três de 5° ano, totalizando 294 alunos;

turno vespertino: 12 turmas, sendo duas de 1° ano, duas de 2° ano, três de 3°

ano, três de 4° ano e duas de 5° ano, totalizando 343 alunos;

turno noturno: 6 turmas, sendo uma de nível I (1° ao 3° ano), uma de nível II (4°

e 5° ano), duas de nível III (6° e 7° ano) e duas de nível IV (8° e 9° ano),

totalizando 183 alunos.

Nesse mesmo ano, o quadro funcional da escola totalizava 70 professores, 12 servidores

administrativos e 15 funcionários terceirizados, que se distribuíam no atendimento aos três

turnos.

No que se refere à estrutura física, a escola está instalada em um prédio amplo e com

uma boa configuração espacial. É composta por 12 salas de aula, distribuídas entre o térreo e o

primeiro andar; uma sala de recursos multifuncionais para o Atendimento Educacional

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Especializado (AEE), destinada a alunos que apresentam algum tipo de deficiência; uma sala

de informática; uma sala destinada à coordenação pedagógica; uma sala destinada à diretoria;

uma sala destinada à secretaria; uma sala para os professores, uma cozinha e um refeitório

(situado no amplo pátio do térreo), e um outro pátio, de igual dimensão, localizado no piso

superior. Também verificamos a existência de oito banheiros na escola: quatro disponíveis aos

alunos (localizados entre os dois pisos), um acessível às pessoas com deficiência e também

destinado aos visitantes, e três para uso exclusivo dos docentes e funcionários (dois na sala dos

professores e um no piso superior). Além disso, a escola tem um subsolo que abriga um

estacionamento para os carros dos professores e funcionários, uma quadra improvisada (onde

se realiza a educação física) e uma outra sala onde ocorrem as aulas de musicalização. Essas

aulas, assim como as de xadrez e balé, são realizadas no contraturno e estão abertas aos alunos

que demonstrem interesse em participar. Os professores de Educação Física e Artes são os

responsáveis por ministrá-las, desenvolvendo-as por meio de projetos com vistas à

complementação de suas cargas horárias.

A escola também dispõe de uma biblioteca, cujo acervo perfaz 7.321 itens (de acordo

com o livro de registro), desde livros de literatura – muitos provenientes do Programa Nacional

Biblioteca da Escola (PNBE) – a DVDs de aula, CDs de música, livros didáticos, histórias em

quadrinhos (gibis), revistas e enciclopédias. Entretanto, conforme a professora responsável,

essa quantidade de itens do acervo não condiz com a realidade, vez que a última atualização do

livro de registro foi realizada em 2013. Desse ano até 2017, muitos livros foram “extraviados”.

Vale a observação de que a sala onde funciona a biblioteca é bem grande. Não obstante, em

virtude do espaço ocupado pelas estantes, não comporta todos os alunos de uma mesma turma,

de uma só vez. Mesmo assim, é bem arejada e dispõe de armários de ferro com prateleiras, onde

estão organizados os livros de literatura e todos os outros materiais mencionados.

Desde fevereiro de 2017, sua administração é de responsabilidade de uma professora

que, por motivos de saúde, se encontra afastada de sala de aula. Segundo ela, anteriormente,

por não haver alguém responsável pelo espaço, essa sala apresentava-se desorganizada e com

grande quantidade de livros encaixotados e empilhados. Ela afirmou que, embora não

entendesse de catalogação de livros, buscou organizá-los agregando-os de acordo com suas

finalidades, de modo a ficarem em uma mesma prateleira. Constatamos que alguns livros

literários estavam agrupados por autor e que os livros do PNBE também estavam próximos uns

dos outros.

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A visita de cada turma à biblioteca ocorre uma vez a cada duas semanas e tem duração

média de duas horas, sendo cada uma hora destinada à metade dos alunos que compõem a

classe. Processa-se a dinâmica da seguinte forma: a professora, responsável pela biblioteca, vai

à sala de aula e dirige os primeiros alunos àquele espaço enquanto que a professora da turma

fica com os estudantes restantes realizando as atividades programadas para o dia. Não se

verificou qualquer trabalho integrado entre as docentes.

Outro espaço que merece destaque nesta caracterização é a sala de aula ocupada pela

turma participante desta pesquisa. Situa-se no primeiro andar; é ampla, bem ventilada e

iluminada, em decorrência das inúmeras janelas. O mobiliário abrange, além das vinte e seis

carteiras estudantis, um birô com cadeira para a professora, um armário de aço com portas (onde

ela guarda o seu material, livros dos alunos e atividades), um quadro branco e três ventiladores

de parede – raramente utilizados em virtude da boa circulação de ar; um armário suspenso de

madeira, situado ao fundo da sala, e um armário de aço aberto, com prateleiras que abrigam

livros e revistas.

Não há dúvidas quanto ao fato de que, nesse ambiente espaçoso, a ventilação e a

iluminação são pontos positivos que favorecem o processo de ensino-aprendizagem; entretanto,

a acústica do prédio, de modo geral, não é boa, o que prejudica a paisagem sonora da sala, um

problema de que trataremos posteriormente.

Ao longo de todo o período de observação, deparamo-nos com algumas situações que

nos fizeram refletir sobre a maneira como se processava a interação entre os estudantes na

escola, considerando, especificamente, o intervalo.

Constatamos, por exemplo, que o momento do recreio era simplesmente caótico. Como

a escola é fechada, todo o barulho provocado pelas crianças ficava concentrado no ambiente,

tornando-o ensurdecedor. As crianças faziam brincadeiras de diversa natureza, mas era notório

o grande número de interações envolvendo “luta”. Esse tipo de “brincadeira” não se restringia

aos meninos; havia meninas agredindo fisicamente seus colegas (tanto meninos quanto

meninas). Apesar desse convívio nada saudável ser evidente, observamos que os funcionários

responsáveis por velar pelos alunos, normalmente não intervinham nessas situações. Os

professores, em sua maioria, mostravam-se insensíveis ao caos estabelecido. Limitavam-se a

aproveitar sua folga na sala a eles reservada (sala dos professores).

Essa situação, em sendo assim configurada, deixa subentender que as relações de

violência se faziam presentes no cotidiano de todos os envolvidos naquele contexto (estudantes,

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professores e funcionários), sem despertar (ou merecer) a atenção de nenhum de seus

responsáveis, sob a alegada justificativa (para não dizer, desculpa) de que se tratava apenas de

simples brincadeira. As crianças agiam daquela forma por julgarem ser o natural; os

funcionários apenas observavam porque, para eles, nenhuma norma estava sendo infringida; os

professores passavam por aquele caos “fechando os olhos”, como se aquela situação não lhes

dissesse respeito.

Decerto, observar esses acontecimentos numa situação particular de interação foi

essencial para a composição da ecologia do locus. Isso porque as interações que se estabeleciam

no ambiente serviram para explicitar as atitudes e os valores que assumem prevalência no seio

da instituição escolar. Numa situação tão real não foi possível simplesmente nos esquivarmos

e ignorarmos a violência evidenciada naquele espaço, tornando-se esse fato mais uma

justificativa para que conduzíssemos nossa pesquisa nessa escola municipal, particularmente.

2.3.1.2 Os sujeitos

A pesquisa de campo começou a ser efetivamente realizada no mês de junho de 2017.

A turma selecionada para este estudo cursava o 5° ano do Ensino Fundamental I e era

composta por 24 alunos (13 meninas e 11 meninos), numa faixa etária entre 10 e 12 anos. Vale

ressaltar, entretanto, que os participantes efetivos desta pesquisa foram apenas 20 sujeitos (12

meninas e 8 meninos), em virtude de não havermos obtido os termos de autorização necessários

à participação de 4 estudantes. Isso por três razões: a falta de interesse do próprio(a) aluno(a)

em participar; a impossibilidade de contato com os responsáveis pelo(a) aluno(a) ou a não

autorização por parte dos pais/responsáveis.

Para compor um perfil mais aprofundado dos sujeitos, executamos duas ações: a

observação in loco e as entrevistas iniciais.

2.3.1.2.1 Observação in loco

A observação in loco, primeira etapa da pesquisa, teve início em 20 de julho de 2017 e

finalizou em 26 de setembro do mesmo ano. Nesse período, estivemos presentes na sala de aula,

em média, dois dias por semana, durante todo o horário das aulas (das 13h às 17h30min). O

estabelecimento do intervalo de 2 meses para a observação foi definido em função do limite de

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tempo de que dispúnhamos para a realização de toda a pesquisa de campo, que deveria ser

concluída até dezembro de 2017, tendo em vista o fato de os sujeitos participantes integrarem

uma turma do último ano do Ensino Fundamental I, sendo, portanto, seu derradeiro ano de

permanência na escola. Acrescente-se a isso mais uma justificativa para essa periodicidade

semanal da observação: nossa disponibilidade para estar na escola.

Conforme mencionamos, essa etapa se configurou como uma observação participante,

desenvolvida em uma situação social (a sala de aula), com finalidade investigativa. Por essa

razão, focamos o nosso olhar nos seguintes aspectos: o modo como os sujeitos interagiam entre

si e se dirigiam uns aos outros; o tipo de diálogo que mantinham; as particularidades de cada

sujeito; o modo como a professora intervinha (e se intervinha) em situações de conflito, e a

forma como a literatura era inserida na sala de aula e na biblioteca escolar. Esse conhecimento

foi fundamental para que pudéssemos traçar as estratégias de intervenção.

Antes de tratarmos mais particularmente dessa etapa de observação, é interessante

registrarmos o modo como se deu a nossa acolhida pela turma. Como tática para que

pudéssemos observar melhor as situações de interação em seu desenvolvimento, procuramos

sentar nos últimos lugares da sala de aula (local adotado durante todo esse período).

Obviamente, nossa presença logo foi percebida pelos discentes que, frequentemente, olhavam

para trás, como se desejassem saber qual era a função que nos cabia desempenhar naquele

contexto.

Apesar de alguns olhares inquisidores, descobrimos, desde o primeiro dia, por que a

dinâmica da sala de aula não se havia alterado em função de nossa presença, seja no trato dos

alunos entre si, seja na relação com a professora. O fato é que a escola (locus) frequentemente

recebia, em suas salas de aula, estagiárias(os) de cursos de Pedagogia que precisavam cumprir

as horas de prática de ensino curricular (informação, posteriormente, confirmada pela

professora). Essa dinâmica costumeira, portanto, era conhecida e assimilada pelos estudantes

que, ao longo do ano letivo, tinham contato com professores em formação, que após um período

de observação assumiam atividades com a turma, durante determinado tempo, sob a supervisão

da professora titular.

Também ficamos sabendo que o período de observação desenvolvido pelas(os)

estagiárias(os) era bem curto (geralmente com duração de uma semana), o que visivelmente se

diferenciava da nossa proposta já que a pesquisa demandaria um longo tempo de observação.

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Isso despertou a curiosidade dos sujeitos que passaram a questionar quando começaríamos a

“dar aulas”. Para eles, seguindo suas vivências anteriores, “estava demorando demais”.

Há justificadas razões para a diferente duração do tempo de observação do estágio

curricular e de nossa pesquisa. O nosso objetivo com essa atividade foi pensado a partir de

aspectos específicos (anteriormente mencionados) que necessitavam de tempo para que

pudessem ser percebidos e analisados, especialmente no que se refere à presença ou não de

conflitos, que resultassem em algum tipo de agressão, entre os sujeitos participantes e o lugar

(ou não) destinado ao trabalho com a literatura naquele ambiente escolar. Acreditamos que

esses aspectos certamente não poderiam ser observados em poucos momentos, considerando

que “as capacidades de empatia e de observação por parte do investigador [...] são fatores

decisivos nesse procedimento metodológico e que não são alcançados através de simples

receitas” (CRUZ NETO, 2001, p.61) e, muito menos, de maneira aligeirada.

Vale ressaltar ainda o fato de que a professora não nos apresentou à turma, conforme o

combinado. Essa apresentação ocorreu após uma semana de convivência com os alunos, o que

não influenciou na naturalidade das relações interativas estabelecidas entre eles.

A turma mostrava-se bem tranquila. Eventualmente, ocorriam conversas paralelas que

eram encerradas rapidamente pelas reclamações da professora. Era perceptível o controle que

ela exercia sobre os alunos. A sala de aula tornava-se, assim, em princípio, silenciosa,

permitindo que houvesse, em alguns momentos, uma paisagem sonora high-fidelity (alta

fidelidade), em que os sons eram facilmente entendidos.

Contudo, em razão do grande barulho externo à sala (geralmente provocado pelos

estudantes das outras turmas ou pelos instrumentos da aula de música, que ocorria no subsolo

da escola), não era possível o prolongamento de uma paisagem sonora de alta fidelidade durante

toda a aula, dificultando o processo de ensino-aprendizagem, uma vez que não permitia a clara

comunicação entre os interlocutores. Essa paisagem sonora de low-fidelity (baixa fidelidade)

era evidenciada, especialmente, em dois momentos no horário das aulas (no pré e no pós-

intervalo), provocando uma visível inquietação nos alunos.

Isso ocorria porque o horário do recreio era distinto para as turmas, em razão do elevado

número de alunos no turno vespertino. A turma dos sujeitos da pesquisa permanecia na sala de

aula enquanto as turmas localizadas no térreo eram liberadas para o lanche, derivando enorme

barulho externo. Esse momento geralmente coincidia com a correção da atividade do primeiro

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período da aula, dificultando, sobremaneira, a escuta da voz da professora e, consequentemente,

o entendimento por parte dos aprendizes tendo-se como resultado um verdadeiro

amontoado sonoro em que não se [podia] singularizar os diferentes sons do

ambiente. A ausência de perspectiva do ambiente sonoro, em que os sons se

alternam, evidencia uma oralidade conspícua, autoevidente, de baixa

informação. Isto é, muitos falam, mas não se consegue discriminar o que se

diz; em decorrência, a informação que circula é mínima (AMARILHA, 2006,

p. 22).

Essa mesma situação se repetia após o intervalo, quando os alunos das outras turmas,

ainda em grande agitação, faziam muito tumulto, o que se somava à inquietação dos nossos

sujeitos que chegavam, muitas vezes, suados e cansados da correria e das brincadeiras próprias

daquele momento de lazer. Acalmar essa desordem demandava algum tempo e muito empenho

da professora, para, enfim, conseguir retomar o controle da sala.

Esse controle exercido pela professora refletia-se na própria rotina da turma. Todos os

dias a aula começava pela escrita da agenda, anotando-se os conteúdos que seriam estudados e

seus respectivos exercícios. Rotineiramente, eram duas disciplinas trabalhadas; uma antes do

intervalo e a outra após esse.

Os alunos sentavam em lugares previamente definidos em sala; entretanto, isso não os

impedia de circularem o tempo todo e se sentarem perto de algum colega. Por vezes,

observamos dois alunos dividindo a mesma carteira durante a execução de atividades,

geralmente com a intenção de terem uma visão mais privilegiada do quadro para copiar a tarefa.

A circulação dos alunos na sala possibilitou-nos o entendimento do modo como eles interagiam.

Ainda no primeiro dia de observação, alguns fatos nos despertaram a atenção. Pareceu-

nos estranho verificar que todas as fileiras de carteiras alinhavam-se próximo ao quadro branco,

à exceção da carteira de uma aluna que, embora estivesse enfileirada, colocava-se na parede

oposta ao quadro, ou seja, em uma posição distante, tanto do quadro quanto da professora e dos

colegas.

Observei que os alunos têm lugares marcados na sala. No entanto, Caroline4

senta-se ao fundo, isolada dos colegas, por quê? Nem a professora tampouco

4 Os sujeitos participantes estão nomeados por pseudônimos, que foram escolhidos por eles próprios durante a

entrevista final.

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os alunos parecem perceber ou se importar com a situação. [...] no decorrer da

aula, algumas colegas vieram falar com ela e Caroline também saiu do seu

lugar para pedir um corretivo emprestado. [...] Frente a essa interação –

aparentemente tranquila – entre Caroline e as colegas, o “sentar afastada” pode

ser apenas uma opção? (Diário de campo, 20/07/2017).

Esse estranhamento, contudo, foi-se desfazendo no decorrer do período de observação,

ao percebermos que Caroline tinha uma boa relação com os colegas, conversava com os

meninos e com as meninas e estava junto deles nas decisões sobre quais brincadeiras fariam no

intervalo, deixando evidente que se sentava distante dos colegas por escolha própria.

Ao longo dessa etapa da pesquisa, também observamos que o aluno André5, de 12 anos,

com diagnóstico de autismo, era praticamente um ser invisível em sala de aula. Somente a

professora dialogava com ele – quase sempre para chamar-lhe a atenção em virtude do barulho.

Quando dispunha de tempo, ela também realizava atividades diferenciadas com ele, colocando-

-o ao seu lado e o acompanhando no passo a passo da tarefa. Em sua opinião, quando auxiliado,

André conseguia identificar as sílabas e decodificar palavras, bem como desenvolver algumas

outras atividades relacionadas às cores e aos números. Contudo, como esse acompanhamento

não era diário, o aluno, na maior parte do tempo, ficava “perdido e isolado” dentro de uma

turma com outras 23 crianças que, lamentavelmente, não interagiam com ele.

Quando André foi sentar ao fundo da sala, escutamos uma aluna falando para

outra colega: “Olha, já caiu no chão” e ambas riram. Nem a professora nem o

aluno pareceram notar o comentário. [...] Em outro momento, a aluna Caroline

comentou: “Só sabe bater palmas mesmo”, enquanto André ainda estava no

chão (Diário de campo, 20/07/2017).

Para a realização da atividade sobre o folclore, André, que não se havia

agregado a nenhum dos colegas, foi inserido pela professora em um dos

grupos; contudo, não houve qualquer tipo de acolhimento a esse aluno. Os

colegas nem mesmo lhe deram a oportunidade de manusear o livro; agiram

como se ele não estivesse sentado naquele círculo. Na verdade, não lhe

dirigiram a palavra. A professora também não fez qualquer tipo de mediação.

Por fim, André se levantou e saiu da sala. Pouco tempo depois, retornou, mas

5 Esse pseudônimo, especificamente, foi dado por nós, uma vez que o referido aluno não participou efetivamente

da pesquisa, em virtude do grande número de faltas às aulas e de não termos conseguido contatar os

pais/responsáveis para assinatura do Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

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não se sentou junto ao grupo, veio para o fundo da sala e seguiu o padrão

ritualístico que costuma fazer (Diário de campo, 28/08/2017).

O caso de André retrata muito bem tantos outros em igual situação: são inseridos na

escola, mas não acolhidos em seu seio.

Infelizmente, para nossa tristeza, André não participou da pesquisa. Isso ocorreu porque

ele faltava muito às aulas em virtude do acometimento de doenças várias (segundo relato da

professora), o que se tornou um empecilho para que conseguíssemos contato com os seus pais.

Dessa forma, não tivemos a oportunidade de explicar-lhes a pesquisa e os convencer quanto à

importância da participação de seu filho nas atividades propostas, o que poderia vir a ser um

avanço, ainda que pontual, na sua integração com a turma.

Além da ausência do acolhimento de André por parte dos colegas, percebemos que

também existiam, naquele contexto, situações de hostilidade embotando o estabelecimento de

uma relação saudável entre os sujeitos pesquisados. O caso da aluna Carla é um exemplo disso.

De nossa observação, consta o seguinte registro, feito bem no início do processo observacional:

No 1° tempo da aula, Carla começou a empurrar um colega. Este, por sua vez,

a chamou por um apelido [que não consegui ouvir]. Carla não gostou e deu

início a uma pequena discussão. A professora, ocupada olhando as atividades

de outros alunos e enchendo os pilotos de quadro branco, não notou a situação.

Após alguns empurrões, de ambas as partes, Carla alertou o colega: “Pare de

me chamar assim, senão vou fazer bullying com você”. Aparentemente, a

aluna tem noção do que seja bullying, é possível? (Diário de campo,

20/07/2017).

Nessa oportunidade, apesar de havermos recém-chegado à sala de aula, percebemos que

Carla, propositadamente, havia dado início à confusão, uma vez que, no momento, o colega

estava sentado em sua carteira, fazendo a atividade. Essa situação serviu-nos de alerta para que

observássemos mais atentamente as interações da referida aluna com os seus colegas.

A partir de então, verificamos a ocorrência de várias situações de conflito diretamente

ligadas à aluna. No dia 14 de agosto de 2017, ocorreram três episódios dessa natureza, conforme

registramos em nosso diário:

A professora precisou se ausentar da sala. Inicialmente, os alunos

permaneceram sentados, mas, aos poucos, se foram levantando para

conversar. Nesse ínterim, houve duas quedas de energia na sala, o que deixou

os alunos agitados. Quando a luz voltou a se manter constante, a aluna Carla

e o colega Ítalo Gabriel iniciaram uma briga porque Ítalo desligou o

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interruptor da sala, dizendo que o manteria desligado para que a escola os

liberasse. Carla o ligou imediatamente. Nessa hora, Ângelo falou com Carla

[não consegui ouvir o que ele disse] e ela mandou ele calar a boca. Esse, por

sua vez, disse que não calaria, fazendo com que a referida aluna colocasse a

mão na boca dele, gerando um início de briga física. Contudo, a professora

retornou e os alunos foram sentar em seus lugares (Diário de Campo,

14/08/2017).

Carla entrou em embate com o colega Lucas e mandou ele se f... (palavra de

baixo calão). Lucas, em resposta, tentou dar um tapa em Carla. A professora

interveio mandando que eles parassem. Disse que eles não eram pais um do

outro para estarem se batendo. Aproveitando essa afirmação da professora, a

referida aluna falou para o colega que ele não podia bater nela, pois nem

mesmo seus pais faziam isso. Lucas, em resposta, “estirou o dedo” (Diário de

campo, 14/08/2017).

Ao final da aula, os meninos reuniram-se em círculo para brincarem com um

hand spinner (brinquedo que gira, bastante popular atualmente). Carla se

aproximou por trás para mexer com Ângelo. O aluno não gostou, mas, dessa

vez, não reagiu (Diário de campo, 14/08/2017).

Analisando os episódios em foco, notamos que Carla não apenas estava inserida em

praticamente todos os conflitos que ocorriam na sala de aula mas também era a protagonista

dessas situações ao provocá-las, demonstrando, inclusive, prazer em comportar-se de tal

maneira. Outra percepção derivada desses conflitos, assim como de outros no decorrer dos dias

em que observávamos os sujeitos, é a de que a referida aluna geralmente entrava em choque

com os mesmos colegas (Ítalo Gabriel, Ângelo e Lucas), o que poderia sinalizar para a prática

de bullying.

Adicionalmente, há de se pôr em relevo os seguintes eventos:

Após concluírem a tarefa, alguns meninos foram para o fundo da sala e

“ensaiaram” brincar de luta. Carla, observando a interação dos garotos, se

aproximou do grupo provocando Ítalo Gabriel com chutes nas pernas e

empurrões. O garoto, que até então estava concentrado na brincadeira, correu

atrás dela. Quando viu que não conseguiria alcançá-la, voltou para o grupo.

Carla repetiu a provocação (Diário de campo, 21/08/2017).

No segundo tempo da aula, no momento em que a professora estava “dando o

visto” no caderno, Carla foi até Ítalo Gabriel e pediu algumas folhas de

caderno. Antes que ele pudesse atender ao pedido, Carla arrancou várias

folhas e o colega a chamou de “Possuída”. A aluna não pareceu se importar e

saiu rindo com as folhas na mão (Diário de campo, 22/08/2017).

Carla emprestou a Lucas sua garrafa para que o colega bebesse água. Quando

Lucas devolveu, Carla, propositadamente, bateu a garrafa no rosto de Lucas,

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que só fez enxugar o rosto. A ação provocadora não obteve sucesso (Diário de

campo, 11/09/2017).

Carla chamou Ítalo Gabriel de “filho de rapa...”, em alto e bom som, na frente

da professora. Ítalo revidou verbalmente. A professora disse ao aluno que o

mudaria de lugar. Ele disse que Carla tinha começado. A professora afirmou

que Ítalo dava cabimento e que não era para dar. Quanto às palavras de baixo

calão, a professora nada disse (Diário de campo, 11/09/2017).

Partindo dessas observações, buscamos traçar paralelos entre o comportamento de Carla

e as características inerentes aos bullies.

De acordo com Olweus (2006), os agressores são indivíduos caracterizados pela

impulsividade e por uma forte necessidade de dominar o outro. Têm pouca empatia pelas

vítimas e apresentam uma visão relativamente positiva sobre si mesmos. Gostam de estar no

controle e precisam subjugar os outros. Além disso, tendo em vista a má condição familiar em

que a maioria está inserida, esses indivíduos desenvolvem um certo sentimento de hostilidade;

não se incomodam em infringir as leis e até podem alcançar um grau máximo de satisfação

coagindo suas vítimas a fim de conseguir dinheiro e/ou outras coisas de valor.

Ainda segundo o autor,

[...] psicólogos e psiquiatras [acreditam] que os indivíduos agressivos são

geralmente ansiosos e inseguros “no seu íntimo”. Esta percepção que os

bullies são intimamente inseguros foi testada de forma séria nos meus próprios

estudos, também usando métodos “indiretos” sobre o stress e testes especiais

sobre personalidade. Nada nos resultados deu suporte a esta visão comum;

eles apontaram para a direção contrária: os bullies demonstraram pouca

ansiedade e insegurança. Eles não sofrem de baixa autoestima. [...] Os

resultados, é claro, não implicam que indivíduos bullies não possam ser

simultaneamente agressivos e ansiosos (OLWEUS, 2006, p. 34, tradução

nossa).

Partindo dessa caracterização, percebemos que, semelhantemente aos bullies, Carla era

impulsiva e também demonstrava ser ansiosa. Esta última condição atestada pelo fato de que,

“mesmo quando a turma estava sentada, em silêncio, ela arrumava uma razão para andar pela

sala, indo na mesa de um e de outro, às vezes, mexendo com um e com outro” (Diário de campo,

21/08/2017). Evidente, igualmente, era o seu desejo de dominar os colegas por meio de suas

ações, de modo que pudesse estar no controle. Além disso, demonstrava ter uma visão positiva

sobre si mesma, sempre procurando estar à frente das atividades.

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O episódio que exemplifica esse controle e o domínio que Carla tentava exercer sobre

os colegas aconteceu no seguinte contexto:

A professora pediu que Lucas parasse de conversar (o aluno estava fazendo

uma atividade de recuperação de matemática). Carla, imediatamente, falou

que o colega estava querendo “cola” (o detalhe é que a aluna estava ao lado

do birô da professora e Lucas estava sentado ao fundo da sala; não havia como

ela ver, porque muitos alunos estavam em pé, próximos à professora). Lucas

respondeu que não estava “colando”, porque não era burro. Carla retrucou que

ele não era burro, era jegue. O aluno não respondeu à provocação. Diante da

situação, Carla falou: “Ele tá assim porque levou um fora de Emanuela”.

Lucas desdenhou da afirmação da colega, respondendo apenas: “Ah, tá!”. Ela

parou de provocá-lo. Todavia, instantes depois, Carla se levantou e foi para

perto do colega [não consegui ouvir o que ela falou], o que fez Lucas ficar

visivelmente chateado, levantar e tentar chutá-la. A aluna disse que ele não

podia chutá-la e se afastou (Diário de campo, 22/08/2017).

Nesse cenário, constatamos que, mesmo frente ao não revide de Lucas à provocação,

Carla insistiu, mudando claramente o tema do diálogo a fim de afrontá-lo, numa demonstração

de que o silêncio do colega não era o que ela desejava. Entendemos que o aluno, ao manter-se

inerte, privou a colega do controle da situação, deixando-a ávida por algum confronto que a

pusesse em situação de domínio – o que, mesmo na segunda tentativa, não ocorreu. Não

satisfeita, Carla foi ao encontro do colega em uma nova investida; dessa vez, quase provocou

uma agressão física por parte de Lucas. Isso nos faz retomar o entendimento de Middelton-Moz

e Zawadsky (2007) sobre o comportamento dos bullies que, no intuito de ganhar poder ou fazer

com que as coisas sejam como almejam, tentam forçar o outro a perder o controle e partir para

a agressão.

Entretanto, a despeito de termos percebido semelhanças entre as atitudes de Carla e

aquelas apontadas como inerentes aos bullies, outras características atribuídas a esses

agressores não condiziam com a realidade observada naquele sujeito. Nesse sentido, não havia

indícios de que essa aluna poderia ser “[vítima] de abuso mental, emocional e, por vezes, físico,

[de que se mostrasse agressiva] como proteção contra a dor do trauma durante o

desenvolvimento, [ou que sentisse] mágoa e raiva, [e exercesse] o bullying da mesma forma

como o sofreu” (MIDDELTON-MOZ; ZAWADSKY, 2007, p. 58). Ao contrário, conforme as

próprias palavras da aluna, nem mesmo os pais batiam nela. Ademais, observamos que, apesar

dos conflitos de que era agente, conseguia manter uma boa relação com os colegas, destacando-

se, inclusive, como a aluna que mais interagia em sala de aula, tanto que, sempre após concluir

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as atividades, saía do seu lugar para conversar e até, por vezes, comunicava-se com as colegas

por meio de bilhetes.

Outra evidência que distancia Carla das atitudes comuns aos bullies, apesar de parecer

uma situação controvertida, é o fato de que, muitas vezes, logo após os conflitos em que

figurava como agressora, ela e a vítima superavam a desavença em pouco tempo

reestabelecendo o diálogo como se nada houvesse acontecido, como atestam os nossos registros

diários:

Carla novamente mandou Ângelo calar a boca. O colega, em contrapartida,

mandou que ela se calasse. A professora mandou todos ficarem quietos. Pouco

tempo depois, os dois estavam dividindo a mesma carteira para “copiar” a

atividade que estava no quadro e conversavam sem qualquer confusão.

Provavelmente eles não guardaram ressentimentos das discussões anteriores.

O que isso nos indica? (Diário de campo 14/08/2017).

Carla e Ester voltaram do intervalo brigando, trocando xingamentos verbais

aos gritos (put..., arromb...). Elas estavam fazendo um trabalho no mesmo

grupo. Carla falou para a professora que, se Ester não parasse, iria dar na cara

dela. A professora pediu que as alunas parassem. Outra colega, Lívia, também

reclamou que Carla tinha chamado ela de lésbica e que havia revidado,

chamando a colega pelo mesmo nome. A professora também pediu que elas

parassem. Ester foi para outro grupo. Carla ficou resmungando. Lívia ficou

em silêncio. Todas retomaram a atividade sobre o filme (Diário de campo

04/09/2017).

A professora saiu da sala por um instante, Carla levantou e entregou um

bilhete a Ítalo Gabriel; fez o mesmo com Ester, aparentemente no intuito de

combinar a brincadeira do recreio. É perceptível que a briga entre as duas,

ocorrida na semana passada, não deixou mágoas. No intervalo, observei-as

brincando juntas (Diário de campo 11/09/2017).

Pontuadas essas percepções, acreditamos que os conflitos rotineiros em sala de aula não

se enquadravam efetivamente como práticas de bullying, uma vez que iam de encontro ao que,

para nós, é a principal característica desse tipo de violência: o relacionamento assimétrico de

poder entre agressor e vítima (OLWEUS, 2006). Embora os conflitos fossem frequentes, não

se percebia qualquer “vulnerabilidade, medo, vergonha ou baixa auto-estima” (MIDDELTON-

MOZ; ZAWADSKY, 2007, p. 10) por parte dos agredidos. A típica vítima, como esclarece

Olweus (2006), é mais ansiosa e insegura que os demais alunos. Demonstra ser cautelosa,

sensível e quieta. Quando atacada, não revida; reage geralmente chorando ou se retirando do

local. Também tem uma visão negativa de si mesma e de sua situação, sempre se percebendo

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como um fracasso e sem atrativos. É também Olweus que nos apresenta um outro tipo de vítima.

Trata-se de

uma espécie de combinação entre ansiedade e agressividade e que apresenta

problemas de concentração, sendo [...] [algumas caracterizadas como

hiperativas]. [Elas] podem ter comportamento [...] [desafiador], o que [induz]

[...] reações negativas por grande parte da classe (MEDEIROS, 2012, p. 52).

Complementando os perfis de vítimas, Silva (2010) descreve a vítima agressora como

aquela que “faz valer os velhos ditados populares ‘bateu, levou’ [...], ela procura outra vítima

mais frágil [...] e comete todas as agressões sofridas (SILVA, 2010, p. 42).

Prosseguindo nessa caracterização, Fante e Pedra (2008) sustentam que um sujeito é

potencialmente vítima quando

em seu aspecto físico ou psicológico [há] traços que denunciam ser ele uma

presa fácil aos ataques. O “bode expiatório” deixa claro em suas atitudes que

não revidará e nem conseguirá motivar outros em sua defesa [...] são

considerados pela turma como diferentes ou “esquisitos”. São tímidos,

retraídos, passivos, submissos, ansiosos, temerosos, com dificuldades de

defesa, de expressão e de relacionamento (FANTE; PEDRA, 2008, p. 41-45,

grifos dos autores).

Pautando-nos por esses parâmetros, compreendemos que os alunos mais comumente

agredidos por Carla não se enquadravam em nenhum desses perfis. Ao contrário, mantinham

um bom relacionamento com todos os colegas, mostravam-se participativos nas atividades e

apresentavam bom desempenho escolar (com destaque para Ângelo, que era apresentado pela

professora como o melhor aluno da turma). Além disso, conforme mencionamos, excetuando-

-se os momentos de conflito, todos mantinham uma relação de cordialidade e demonstravam

divertir-se junto à referida colega.

Outro fato que reforçou nosso entendimento foi a notada ausência de assimetria em

relação à força e ao tamanho dos sujeitos que geralmente estavam implicados nesses conflitos,

contrariando o dito de que “os agressores são, em particular, mais fortes que as vítimas”

(OLWEUS, 2006, p. 30 tradução nossa) e que as vítimas, consequentemente, “tendem a ser

menores e mais fracas fisicamente do que a média dos alunos” (ROLIM, 2010, p. 39). Na

verdade, a própria configuração dos sujeitos envolvidos nos conflitos fugia ao que as pesquisas

apontam como sendo o corriqueiro: “são os meninos os mais atingidos pelo fenômeno, tanto na

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posição de vítimas quanto de agressores [...] os agressores das meninas, em grande parte,

também são meninos” (MEDEIROS, 2012, p. 51).

De todo modo, considerando a agressividade demonstrada, pensamos que, muito

embora, naquele momento, Carla não pudesse ser efetivamente enquadrada como uma bully,

ela, sem dúvida, se revelava um sujeito provocador. Questionamo-nos, inclusive, até que ponto

ela poderia vir a se tornar uma bully se inserida em outro contexto – com sujeitos que

“aceitassem” as suas pilhérias e sobre os quais ela lograsse exercer plenamente o poder e o

domínio que já ansiava impor sobre os seus colegas do 5° ano.

Essa perspectiva ganha mais peso quando se sabe que,

sem intervenção, os sentimentos e as crenças dos [bullies] que fazem isso

desde a infância se fortalecem e se enraizam. O bullying durante brincadeiras

com outros amigos muitas vezes é apenas começo de um padrão de atitude

durante a vida que culmina em violência doméstica e/ou bullying no local de

trabalho (MIDDELTON-MOZ; ZAWADSKI, 2007, p. 14).

Ressaltamos, todavia, que, apesar de colocarmos em maior evidência as atitudes de

Carla no que se refere às relações conflituosas estabelecidas com os colegas, observamos outros

conflitos entre os membros do grupo, como podemos atestar nos seguintes eventos:

Hoje, Carla faltou à aula. Tenho percebido que sempre que ela falta, Ítalo

Gabriel torna-se o aluno mais agitado da sala, movimenta-se com mais

frenquência, mexendo com um e com outro (Diário de campo, 05/09/2017).

No final da aula, Lucas e Maria Thayná iniciaram uma discussão. A aluna

começou a dar tapas no colega e ele, a cada tapa, continuava debochando dela.

Maria Thayná começou a bater com uma sandália. Lucas se irritou e ficou em

pé para brigar com ela. Nesse momento, a professora, que estava rodeada de

alunos, percebeu a situação e perguntou que briga era aquela. Maria Thayná

disse que Lucas estava mexendo com ela. Lucas, por sua vez, disse que a

colega tinha começado. A briga cessou. Lucas a chamou de "rapariga” em voz

baixa e ela disse que não lhe responderia (Diário de campo, 05/09/2017).

Ítalo Gabriel me perguntou a hora. Respondi. Contudo, o aluno não entendeu

e falou o horário errado aos colegas. Ângelo chamou-o de cego e surdo. Ítalo

retrucou dizendo que enxergava muito bem e que o colega podia testar e disse

que Ângelo dava o c... . É comum os alunos se tratarem com desrespeito,

usando palavras de baixo calão: via..., rapa..., [...], filho de rapa... (Diário de

campo, 11/09/2017).

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Ítalo Gabriel ficou perguntando aos colegas: “Tu me dá?” Carla disse que não,

mas que Ester daria. Ester estirou o dedo para Carla. Ítalo repetiu a pergunta

para Ângelo; este não respondeu, apenas estirou o dedo. É perceptível a falta

de respeito com a qual os alunos se tratam (Diário de campo, 12/09/2017).

Mais uma vez, foi possível perceber a maior inquietação de Ítalo Gabriel

quando Carla falta à aula. Hoje, em alguns momentos, Ítalo assumiu o papel

de provocador. As provocações observadas foram todas verbais; não houve

violência física em suas abordagens (Diário de campo, 18/09/2017).

Acreditamos que nossa intervenção possibilitará, não apenas a Carla mas a todos os

sujeitos participantes, uma reflexão sobre o bullying, levando-os a avaliar suas atitudes. Essa é,

portanto, uma ocasião propícia para plantar uma semente que suscite o pensar sobre essa

agressividade hoje evidenciada nas relações escolares, e que pode ser perpetuada para outros

momentos da vida desses indivíduos.

Essa compreensão remete-nos ao decisivo papel do professor diante dos conflitos entre

os alunos. Beaudoin e Taylor (2006) dizem que o primeiro impulso do docente é repreender

quem cometeu a agressão e ajudar a vítima; muitas vezes, sem questionar o porquê da situação

e sem procurar compreender o contexto da ação. Essa atitude, entretanto, não foi a observada

em relação à professora da turma. Nas vezes em que percebeu a ocorrência de embates

envolvendo discentes, ela adotou uma postura que oscilava entre a advertência (no intuito de

que o conflito imediato findasse) e a omissão (ao não se posicionar em defesa de nenhum dos

sujeitos) ou, simplesmente, o descaso/a legitimação da violência (deixando claro para os alunos

que se poderiam agredir, desde que fora da sala de aula e da escola). Registramos um único

momento em que a professora afirmou que a conversa era o melhor caminho para resolver as

desavenças; contudo, essa afirmação, de modo algum, atenua o que ela havia dito: “Se fosse

brigar, que fosse na rua”.

Os registros que seguem (cinco deles já conhecidos, mas necessários nessa remissão)

validam o que foi dito:

[...] A professora interveio mandando que eles parassem. Disse que eles não

eram pais um do outro para estarem se batendo (Diário de campo,

14/08/2017).

[...] A professora mandou todos ficarem quietos (Diário de campo,

14/08/2017).

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Na volta do intervalo, Carla passou pela professora e disse: “Vou dar cinco

tapas em Ítalo Gabriel”. A professora respondeu: “Fora da sala, na sala de

aula, não” (Diário de campo, 29/08/2017).

Vinícius reclamou para a professora que Rian tinha chutado a sua bolsa. A

professora perguntou: “O que você fez para que ele chutasse a sua bolsa?”

Vinícius disse que não tinha feito nada. A professora então perguntou a Rian

o porquê de ele haver chutado a bolsa e disse que se ele tivesse algum

problema com o aluno, deveria ir à diretoria resolver e não ficar chutando o

objeto alheio [...] A professora ressaltou que não se podia fazer aquele tipo de

coisa na escola e que se fosse para brigar, que fosse na rua. Depois acrescentou

que brigar nunca era a melhor solução e que se deveria conversar para resolver

as desavenças (Diário de campo, 29/08/2017).

A professora pediu que as alunas parassem. Outra colega, Lívia, também

reclamou [...]. A professora também pediu que elas parassem [...] (Diário de

campo, 4/9/2017).

Nesse momento, a professora, que estava rodeada de alunos, percebeu a

situação e perguntou que briga era aquela. [...]. A briga cessou (Diário de

campo, 5/9/2017).

Carla chamou Ítalo Gabriel de “filho de rapa...”, em alto e bom som, na frente

da professora. Ítalo revidou verbalmente. A professora disse ao aluno que o

mudaria de lugar. Ele disse que Carla tinha começado. A professora afirmou

que Ítalo dava cabimento e que não era para dar. Quanto às palavras de baixo

calão, a professora nada disse (Diário de campo, 11/9/2017).

Como é possível constatar, a professora demonstrava dificuldade para intervir em

situações conflituosas na sala de aula. De modo geral, agia por meio de rápidas advertências

e/ou fazia uso de estratégias imediatistas visando à resolução do impasse. Isso ocorre em razão

da multiplicidade de eventos (e problemas) que acontecem, simultaneamente, ou em um curto

intervalo de tempo, na sala de aula (TARDIF; LESSARD, 2011). Isso, de certa forma, explica

a postura da professora.

Todavia, embora a dinâmica de sala de aula influencie na postura adotada pelo docente,

é fundamental que se desenvolva um olhar mais crítico ao tratar de situações de violência.

Também se faz imprescindível tentar descobrir o porquê de tais atitudes e, principalmente,

procurar meios para dialogar com os sujeitos envolvidos. Afinal, “um professor não trabalha

sobre os alunos, mas com e para os alunos, e precisa preocupar-se com eles” (TARDIF;

LESSARD, 2011, p. 70).

A esse respeito, Tardif e Lessard (2011) fazem a seguinte ressalva:

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[...] o trabalho docente não se limita nem às atividades de classe, nem às

relações com os alunos, embora essas atividades e relações [...] sejam

essenciais no exercício da profissão [...] um dos maiores traços desse trabalho

é a grande diversidade de tarefas a cumprir, bem como seu caráter assaz

diferenciado que exige competências profissionais variadas. Ora, nem todas

essas tarefas respondem, necessariamente, a uma mesma lógica; também não

demandam o mesmo tipo de engajamento, nem as mesmas competências

(TARDIF; LESSARD, 2011, p. 44).

Considerando a amplitude do trabalho docente, o professor realiza uma função que

transpõe o mero “ensinar”, uma vez que passa a formar indivíduos para a vida em sociedade.

Se, tradicionalmente, o professor servia de mediador entre o aluno e os

conhecimentos sociais transformados em conhecimentos escolares, essa

mediação, hoje, tende a se pluralizar e relativizar-se: o professor é um

mediador de conhecimentos entre muitos outros. Os conhecimentos não se

limitam mais aos conhecimentos escolares. As crianças estão [e precisam

estar] mais informadas sobre toda espécie de assuntos (TARDIF; LESSARD,

2011, p. 145).

Esse é o caminho que deve ser seguido cotidianamente pelo professor, fazendo com que

assuntos ainda considerados tabus venham fazer parte da sala de aula. No caso da turma

participante da pesquisa, podemos dizer que já se “ensaiou” essa modalidade de transformação

dos conhecimentos sociais em conhecimentos escolares. Foi, pelo menos, a impressão que

tivemos ao testemunhar uma discussão encetada pela professora sobre o preconceito, conforme

registramos a seguir:

Aproveitando a temática de História (condição dos negros após a abolição da

escravatura), a professora perguntou aos alunos se algum deles já tinha

presenciado uma situação preconceituosa. [...] A professora perguntou a Lucas

se ele já tinha sido alvo de preconceito. O aluno disse que uma vez não

quiseram brincar com ele por causa da sua cor. A professora perguntou se ele

se sentiu humilhado com a situação. Lucas afirmou que não. (Não estou certa

de que o aluno compreendeu o significado da palavra “humilhado”).

Outros alunos falaram sobre novelas que retratam o preconceito. Nesse

ínterim, a professora explicou que não era a cor da pele que definia o caráter.

Uma aluna falou: “Pois é, professora, tem gente branca dos olhos azuis que

são ruins”. A professora reforçou a afirmação da aluna. [...] Ampliando um

pouco a questão, a professora falou sobre o preconceito direcionado às pessoas

com deficiência e deu um exemplo real de um caso envolvendo um rapaz, com

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Síndrome de Down, que estava em um ônibus. Logo após, retomando a

questão do negro, a professora deu como exemplo as propagandas de fraldas,

dizendo que, antigamente, nessas propagandas, só apareciam bebês brancos e

que agora havia negros e também orientais. Ângelo ressaltou que, apesar de

ter esses bebês diferentes, a maioria ainda era branca. A professora concordou

(Diário de campo, 28/08/2017).

Como se vê, não obstante a boa intenção da professora em socializar os conhecimentos

de mundo no âmbito da escola, sua abordagem foi um tanto inadequada, especialmente

considerando o modo como Lucas foi exposto à pergunta a ele direcionada, deixando-o

visivelmente desconfortável.

À vista de tal discussão, questionamo-nos sobre as razões de a professora não haver

aproveitado esse momento para sensibilizar os alunos em relação a André, ou mesmo promover

uma interação entre os colegas e o referido discente. Afinal, como ressaltam Tardif e Lessard

(2011), uma das principais funções da docência é trabalhar a socialização. Nessa turma em

específico, esse processo desenvolve-se satisfatoriamente entre 23 alunos, à exceção de André,

que fica esquecido ao fundo da sala, sentado no chão.

Certamente é preciso sensibilizar-se diante dessa situação; mas, principalmente é

preciso agir em favor de uma solução possível e viável. E essa não é uma responsabilidade

individual – só da professora. Cabe à escola em seu todo. Ademais, essa ação conjunta não deve

se restringir a esse caso isoladamente. Convém à resolução de outros tantos casos que estão a

exigir intervenções mais apropriadas, como mostram nossos registros:

No horário do intervalo, percebi que é comum alunos entrarem correndo na

sala reservada aos docentes, procurando seus respectivos professores para

reclamar de algum colega. Eles sempre são alertados que não podem entrar

naquela sala e “convidados” a sair. A quem será que eles recorrem quando

saem? (Diário de campo, 14/08/2017).

Hoje escutei uma professora, durante o intervalo, dizer ao seu aluno para

procurar resolver a situação com a diretora, quando este foi procurá-la na sala

dos professores (Diário de campo, 22/08/2017).

Hoje presenciei uma situação, na hora do intervalo, na sala dos professores,

que me inquietou profundamente. O porteiro da escola adentrou à sala

trazendo um aluno parcialmente imobilizado por ele, pelos braços, e disse que

o garoto estava dando chineladas em uma colega. O menino (que estava com

a feição transtornada), aproveitando o fato de ter sido “solto”, deu 3 chineladas

fortes no braço do porteiro. Este olhou incrédulo para os professores que

estavam sentados à mesa. Mas apenas uma docente manifestou-se mandando

que o menino parasse, enquanto os demais continuaram conversando

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paralelamente e lanchando como se nada tivesse acontecido. Um outro

professor, que estava no canto da sala, mandou que o aluno se sentasse. Nesse

momento, outros discentes entraram na sala provocando o garoto e este,

aproveitando-se da desatenção momentânea do professor, saiu correndo da

sala atrás dos colegas. O professor saiu atrás e não voltou. As professoras

comentaram superficialmente a ocorrência, dizendo que achavam aquilo um

absurdo. Fiquei surpresa com a agressividade do aluno, mas, ainda mais, com

a atitude dos professores que não fizeram qualquer intervenção, como se nada

daquilo tivesse a ver com eles. Que tipo de escola estamos perpetuando? Um

lugar onde agredir é comum? (Diário de campo, 26/09/2017).

Apesar de compreendermos que o momento de recreio também pode ser considerado

como um intervalo destinado ao descanso dos professores; de havermos constatado que

existiam funcionários designados para velarem as crianças durante esse período; de sabermos

que a Coordenadora e a Diretora costumavam dar-lhes suporte, em grande parte do dia, a fim

de acalmar a euforia exacerbada de alguns alunos; de entendermos que há uma multiplicidade

de eventos no dia a dia da turma que influenciam na postura adotada pelos docentes em sala de

aula (TARDIF; LESSARD, 2011), as situações focalizadas causaram-nos espanto − tanto no

que se refere às atitudes dos docentes durante o intervalo quanto às ações da professora na sala

de aula em que atuamos – levando-nos a questionar: não deveriam os professores estar

preocupados com situações dessa natureza, especialmente quando a agressividade mostra-se

visível, seja na sala de aula, seja na sala dos professores ou mesmo no pátio durante o intervalo

escolar?

Esses questionamentos fazem-nos refletir sobre o conceito de desengajamento moral

definido por Bandura (1999; 2002 apud GONÇALVES, 2017) “como as formas pelas quais as

pessoas agem de maneira desapegada ao problema do outro, sem que haja, por isso, vergonha

ou culpa [...]” (GONÇALVES, 2017, p. 84). Diante da abrangência dessa conceituação,

podemos dela nos valer para analisar as situações hostis observadas e descritas neste trabalho.

Por certo, estas não correspondem a práticas de bullying, mas deixam evidente a atitude de

desengajamento moral frente à violência cotidiana presente naquela instituição de ensino.

Esse desengajamento é uma forma de legitimação da violência, quando a professora, na

sala de aula, diz aos alunos que parem de se bater porque não são pais um do outro, ou quando

afirma que um pode bater no outro desde que seja fora da sala de aula (DIÁRIO DE CAMPO,

2017). São afirmações que, de modo inevitável, nos conduzem a perguntar: então, pai e mãe

podem bater em seus filhos? Um aluno pode agredir outro desde que não esteja sob o olhar do

professor ou dentro de uma sala de aula?

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Vinha (1999) assim interpreta essa questão:

A construção dos valores, o desenvolvimento moral, se dá a partir da interação

da criança com pessoas e situações. Não existe moral sem o outro. A moral,

necessariamente, envolve o outro, porque se refere a regras, a normas, como

as pessoas devem agir perante o outro. A construção dos valores se dá a partir

das experiências com o outro. [...]. A moralidade vai se dando a partir das

pequenas experiências diárias que a criança tem ao se relacionar com o outro

(VINHA, 1999, p. 18).

Como adverte a autora, é fundamental que os professores compreendam o alcance de

suas atitudes em relação aos alunos, não apenas na resolução de situações de conflito e/ou de

violência mas em todas as circunstâncias, pois “ele [o professor] está ensinando a moralidade

nesse dia-a-dia. Com cada resposta que ele dá, ou com as que ele não dá, a moralidade e a ética

são abordadas” (VINHA, 1999, p. 20). E não podemos esquecer o fato de que é também nessa

convivência que as crianças constroem os seus valores e as suas percepções acerca do que

vivenciam e observam ao seu redor.

Perante o que se expôs, apesar de não termos o objetivo de desconstruir o

desengajamento dos docentes ou mesmo formá-los no sentido de que entendam que suas

posturas e atitudes influenciam diretamente na formação do outro, acreditamos que este

trabalho pode vir a ser um semeador para que compreendam que pensar a violência escolar

(incluindo-se, obviamente, nesse quesito, o bullying) é também responsabilidade deles. E não

há como se eximir desse encargo. Por isso mesmo, precisam descobrir maneiras adequadas para

poderem realizar intervenções deveras proficientes em situações do porvir.

Foi justamente apostando nessa perspectiva que propusemos este estudo contando com

o suporte da leitura de literatura. Em sendo esse o encaminhamento, precisávamos saber que

tratamento era dado à literatura naquele ambiente escolar. Ela estava presente na sala de aula?

Sob que condições? E, por extensão, ainda nos questionamos: Havia um trabalho com a

literatura na biblioteca? Como era este desenvolvido?

No processo mesmo de observação, foram-se configurando situações que respondiam

aos nossos questionamentos. Tivemos, por exemplo, a oportunidade de acompanhar uma

atividade em que um texto literário foi apresentado à turma. O registro seguinte transcreve

fielmente esse acontecimento:

Hoje, como atividade de português, foi feita a leitura da lenda “O neguinho do

pastoreio”, uma lenda pertencente ao folclore brasileiro. Esse texto estava

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inserido no livro didático da disciplina. Inicialmente, a professora passou as

instruções aos alunos sobre como seria a atividade: leitura em voz alta,

respeitando a pontuação. A leitura foi coletiva. O primeiro parágrafo foi lido

pela professora e, a partir do segundo, por alguns alunos que foram sendo

indicados para continuarem a leitura (em alguns parágrafos, a professora

retomava a leitura, especialmente quando o aluno lia muito baixo). Durante a

leitura, a professora aproveitava para apontar alguns sinais de pontuação,

como: “–” e “!”, além de esclarecer alguns significados de palavras. Após a

conclusão da leitura, os alunos foram orientados a responder oralmente às

questões de interpretação de texto presentes no livro. Após as respostas orais,

os alunos responderam, por escrito, no caderno.

Observei que, das 13 questões, apenas a última dava margem para que os

alunos pensassem sobre o porquê da história. Ou seja, todas as outras

perguntas eram literais, de modo que bastava que os alunos voltassem ao texto

para respondê-las (Diário de campo, 24/07/2017).

Em relação a esse episódio, vale ressalvar o fato de que, muito embora tenhamos

testemunhado a inserção da literatura na sala de aula, sua abordagem não foi meritória; o

trabalho com o texto restringiu-se basicamente a testar a competência leitora dos alunos,

atentando, mais especificamente, à pontuação e à interpretação, que era pautada, quase que em

sua totalidade, em perguntas literais. “[A] verdade é que pouca atenção tem-se dado aos

componentes da literatura que a transformam em objeto de prazer [...]” (AMARILHA, 2004, p.

25).

Nessa mesma linha de análise, outras atividades de leitura, tendo como referência as

lendas, foram desenvolvidas pela docente, como revelam os seguintes registros:

A professora construiu um gráfico (atividade de matemática) na lousa e

questionou os alunos sobre qual a lenda predileta de cada um. Quando a

docente começou a fazer a “enquete”, imaginei, em um primeiro momento,

que o objetivo desse levantamento era para que ela lesse para a turma a lenda

mais votada, mas, na verdade, os dados fornecidos pelos alunos serviram para

preencher o gráfico em construção. Terminado o gráfico, a professora propôs

uma outra atividade, dessa vez de português, em que cada aluno deveria

escrever uma narrativa sobre a sua lenda preferida ou desenhar uma história

em quadrinhos. Penso que a tarefa foi proposta em alusão ao dia do folclore,

comemorado hoje (Diário de campo, 22/08/2017).

Hoje a professora trouxe livros de lendas e dividiu os alunos em grupos de 3

componentes. [...] Cada grupo deveria ler uma história (grupo 1: Curupira;

grupo 2: Onça boi; grupo 3: Saci; grupo 4: Boitatá e grupo 5: Boto cor de rosa)

e construir uma releitura dessa. Para tanto, a professora instruiu sobre o que

era uma releitura. Todo o horário da aula foi destinado a essa atividade, que

valeria como ponto de participação. Foi comunicado aos alunos que, no dia

seguinte, um dos integrantes do grupo teria que ler em voz alta, para a turma,

o texto produzido (Diário de campo, 28/08/2017).

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Conforme nos foi possível constatar, nas três ocasiões em que se realizaram trabalhos

com o gênero literário lenda, a finalidade dessas atividades estava atrelada à interpretação do

texto (considerando as perguntas do livro didático), à comemoração do dia do folclore (22 de

agosto) ou à escrita (associada à nota avaliativa por participação). Assim sendo, ganham força

as palavras de Amarilha (2004) com relação ao olhar dos professores sobre a literatura, tendo

em vista o fato de que eles não demonstram saber lidar com os textos literários de forma

libertadora.

No que tange aos textos literários, são esses que têm a faculdade de

desenvolver pensamentos autônomos e críticos, mas essa peculiaridade nem

sempre é levada em consideração quando a comunidade escolar se empenha

em resolver problemas leitores, uma vez que é comum nos depararmos com

práticas que parecem receitas ou que fazem uso de estratégias sem fundamento

(FEBA; ARIOSI; VALENTE, 2017, p. 55).

Essa constatação, decorrente do período de observação, foi ratificada pelos alunos e pela

própria professora nas entrevistas, conforme atestaremos posteriormente. E vale lembrar que

esses registros remetem apenas ao trabalho com o texto literário na sala de aula. Seria diferente

na biblioteca? Haveria leitura para as crianças nesse ambiente? Nada acontecia no sentido de

satisfazer nossa curiosidade. E já se passara um mês desde o início de nossa observação. Os

próprios alunos chegaram a questionar a professora sobre o porquê de não estarem

frequentando a biblioteca. Ela respondeu que o horário dedicado a essa finalidade estava

totalmente descontrolado (Diário de campo, 22/08/2017). Constava como reservado à turma

um horário às terças-feiras, a cada quinze dias.

Finalmente, no dia 29 de agosto de 2017, essa situação foi revertida e os alunos tiveram

novamente a oportunidade de frequentar a biblioteca. Lá, as crianças foram orientadas a se

sentarem (as cadeiras estavam dispostas em círculo) e a professora começou a explicar como

se desenvolveria a atividade. Inicialmente, houve a apresentação de alguns livros, previamente

separados. A professora comentou, brevemente, sobre cada título, momento em que ressaltava

o que havia de interessante em cada obra e destacava aquelas que ela já havia lido. Explicou

que, pelo fato de algumas histórias serem longas, o aluno que desejasse poderia levar o livro,

por empréstimo, para casa. Informou que, além dos livros exibidos, também poderiam pegar

outros localizados nas prateleiras. Por fim, ressaltou que eles teriam uma hora para ler o que

desejassem.

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Os alunos se movimentaram bastante pela biblioteca. Poucos, de fato,

escolheram um livro e sentaram para lê-lo; a maior parte ficou folheando os

livros e os trocando rapidamente por outros. Caroline sentou ao meu lado e

disse que não gostava de histórias e sim de gibis e saiu para buscar várias

revistas de histórias em quadrinho. [...] Busquei me movimentar na sala para

observar melhor os alunos. Emanuela se aproximou de mim e disse que não

gostava de ler (Diário de campo, 29/08/2017).

Decerto, o simples fato de ter acesso à biblioteca ou à sala de leitura, durante o período

escolar, não garante a experiência e a prática leitora, conforme atestam estudos conduzidos por

Feba, Ariosi e Valente (2017). Essa conclusão também serve de alerta para a fundamental

importância da mediação de leitura, especialmente a leitura de literatura, a fim de que, por essa

via, os alunos possam perceber que ler histórias, e compreendê-las, vai muito além do ato

simplista de decodificar palavras e entender superficialmente a mensagem, visto que os textos

literários nos permitem

ler, refletir e pensar em possibilidades diferentes da vida, por meio da

experiência de viver simbolicamente uma infinidade de alternativas junto com

os personagens de ficção, e dessa forma, ter elementos de comparação mais

variados [que incidem na vida real]” (MACHADO, 2002, p. 18-19).

Parece-nos interessante registrar o fato de que, durante todo o período de observação,

quando tivemos a oportunidade de ir às aulas na biblioteca, presenciamos somente um momento

em que foi realizada a contação de história para as crianças.

A professora da biblioteca fez a contação da história “O casamento da Dona

Baratinha” para os alunos, utilizando uma caixa de madeira em formato de

casa e as personagens feitas de PVC. Os alunos se envolveram na atividade.

Ficaram em silêncio e riram de trechos que consideraram engraçados. Após a

contação, a professora disponibilizou alguns fantoches aos alunos e sugeriu

que, aqueles que desejassem, criassem uma história para contar aos demais.

Alguns ficaram empolgados com a possibilidade. Inicialmente, a

desorganização foi geral: cada um querendo contar uma história sem qualquer

combinação prévia sobre o enredo. Nesse momento, a professora interveio e

explicou que eles tinham de pensar na história antes de apresentá--la. Ela disse

que filmaria a apresentação (com o próprio celular), o que deixou os alunos

ainda mais empolgados. Participaram da apresentação: Carla, Ângelo, Maria

Thayná, Emanuela e Rian. A história foi sobre Maria Chiquinha, uma menina

que fugia do pai para encontrar-se com os amigos. Todavia, antes de chegar

ao lugar combinado, Maria era descoberta e levada para casa, onde ficava de

castigo. Percebendo a demora de Maria, seus amigos decidiam ir à casa dela.

Assim terminava a história. Na hora da apresentação da peça, alguns colegas

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se mobilizaram para assisti-la e demonstraram ter gostado, enquanto outros

permaneceram alheios à atividade, folheando e/ou lendo livros. Mas, mesmo

sem tanta plateia, ficou visível que os criadores da peça se divertiram bastante.

Ao final, a professora reproduziu o vídeo para que eles assistissem (Diário de

campo, 12/09/2017).

Esse momento de promoção do encontro mediado das crianças com a literatura e a

ludicidade a partir do teatro revelou-nos que a mediação era realizada naquela escola, porém

não de modo regular. Mesmo porque, durante todo o período da observação, presenciamos

apenas aquele momento em que, claramente, se lançou mão desse recurso, o que se fez

insuficiente para que os alunos aproveitassem as possibilidades propiciadas pelo contato com

os textos literários, conforme defende Machado (2002).

Assim, podemos afirmar, pelo observado (tanto na sala de aula quanto na biblioteca),

que, em geral, a literatura era apresentada àqueles alunos como qualquer outro tipo de texto.

Emprestando ainda mais veracidade ao dito, basta lembrar que, na biblioteca, independia a

escolha dos alunos [...]: se era uma revista [...] ou um livro de imagens. A professora restringia

o acesso apenas a alguns materiais [...]. Fora isso, apenas os observava (Diário de campo,

29/08/2017). Normalmente, não havia qualquer critério estabelecido em relação ao tipo de obra

que os alunos deveriam ler.

Semelhante ausência de critérios na escolha das obras literárias tornou-se ainda mais

evidente quando descobrimos que uma das alunas optou por ler o livro Bullying na escola: por

trás da maldade virtual, que trazia, ainda na capa, a indicação: “mentiras e ofensas pela

internet”. Diante dessa escolha, e especialmente atentando para o título, perguntei a Ana Alice

se havia mais livros iguais àquele. Ela disse que sim, e me levou até a estante (Diário de campo,

29/08/2017).

Deparamo-nos com um total de cinco livros com semelhantes características. Todos

possuíam o mesmo título, porém com subtítulos diferentes relacionados às práticas de bullying.

Considerando que “essas obras que versam sobre inclusão [...] são as que mais excluem os

leitores de uma literatura-arte verdadeiramente inclusiva [...] [com] estatuto legítimo de obra

de arte que provoca a subjetividade do leitor, transformando-o, humanizando-o” (SOUZA,

2009, p. 154), entendemos que esses livros têm exclusivamente a função de instruir. Constroem

um discurso explícito sobre a temática bullying, oferecendo ao leitor o “passo a passo” do que

não fazer – ao mostrar as ações do (s) agressor (es) e as consequências de seus atos – e do que

fazer – caso esteja na condição de vítima.

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“Tais obras utilizam o disfarce da linguagem literária, muitas vezes de forma superficial

e pobre, para chamar a atenção das crianças, alvo [...] do ponto de vista mercadológico, sobre

temas que se referem à interioridade infantil” (SOUZA, 2009, p. 154). As obras em questão,

por exemplo, não apresentam qualquer literariedade. Ao contrário, buscam conduzir o leitor a

lições diretas e didáticas sobre o bullying.

Ao tomarmos conhecimento desses livros, pesquisamos a existência de outros com o

mesmo viés. Constatamos que essas obras, encontradas na biblioteca, fazem parte da coletânea

Bullying na escola (KLEIN, 2011), que se compõe de vinte títulos, conforme disposto no

quadro 1 a seguir.

Quadro 1 – Livros da coletânea “Bullying na escola”

N° Título Indicação 1 Bullying na escola: medo de gaguejar Agressão verbal

2 Bullying na escola: amizade não tem cor Preconceito racial

3 Bullying na escola: quem zomba tem inveja Violência verbal

4 Bullying na escola: verdade ou mentira? Maledicência e fofocas

5 Bullying na escola: ver todos com bons olhos Deboche da aparência

6 Bullying na escola: voando sim, mas em direção do futuro Chacota das orelhas de abano

7 Bullying na escola: piolho não escolhe cabeça Apelido por fato embaraçoso

8 Bullying na escola: também quero brincar! Exclusão do grupo

9 Bullying na escola: bater é malvadeza Agressão física

10 Bullying na escola: livre para seguir sua crença Preconceito religioso

11 Bullying na escola: forte para vencer na vida Piadas do aspecto físico

12 Bullying na escola: defeito mesmo é desrespeito Preconceito físico

13 Bullying na escola: a riqueza que o dinheiro não compra Preconceito social

14 Bullying na escola: tamanho não é documento Zombaria da estatura

15 Bullying na escola: manual de orientação aos pais e professores Unidos pelo fim do bullying

16 Bullying na escola: por trás da maldade virtual Mentiras e ofensas pela internet

17 Bullying na escola: meu material está sumindo Roubo de material

18 Bullying na escola: preciso de ajuda Agressão a aluno tímido

19 Bullying na escola: todo mundo tem sotaque Preconceito regional

20 Bullying na escola: quando a covardia pesa muito mais Ataques contra aluno obeso

Fonte: Blu editora (2017).

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Como se percebe, cada título trata, de modo claro e direto, de um motivo possível para

a vitimização, o que é reforçado pela instrução da capa que assinala qual tipo de discriminação

cada um abordará.

De acordo com o site da própria editora, esses livros relacionam-se às temáticas de

inclusão e responsabilidade social, apresentando-se, em suas fichas catalográficas, como

literatura infantojuvenil.

Aprofundando a pesquisa sobre livros que abordam a temática bullying, encontramos o

trabalho dissertativo desenvolvido por Campos (2013), cujo objetivo foi analisar, a partir dos

estudos culturais, 28 livros infantis que tratam do bullying na escola, buscando identificar quais

as representações e os significados produzidos nessas obras acerca da diferença.

Campos (2013) analisou dezenove, dentre os vinte livros da coletânea Bullying na

escola (KLEIN, 2011), expostos no quadro anterior (quadro 1), excetuando-se a história

Bullying na escola: medo de gaguejar e mais as seguintes obras:

Quadro 2 – Livros infantis com a temática bullying

N° Título Autor (es) Coletânea/Ano

1 Bullying escolar: perguntas e respostas Cleo Fante e José Augusto

Perreira

2008

2 Bullying: uma brincadeira que não tem graça Maria Rita Zoéga Soares;

Milene Ferrazza e Mariana

Amaral

2011

3 Um peixe de calças jeans e outras histórias para

unir

Allan Pitz 2011

4 Os óculos do Dudu Silmara Rascalha Casadei Bullying não é

brincadeira/ 2011

5 Meu amigo, o Cotó Silmara Rascalha Casadei Bullying não é

brincadeira/ 2011

6 Quando Tomé engordou Silmara Rascalha Casadei Bullying não é

brincadeira/ 2011

7 Os lacinhos de Bilu Silmara Rascalha Casadei Bullying não é

brincadeira/ 2011

8 Gióia, uma cachorra diferente Silmara Rascalha Casadei Bullying não é

brincadeira/ 2011

9 A teca ficou sozinha Silmara Rascalha Casadei Bullying não é

brincadeira/ 2011

Fonte: Campos (2013).

Os dados apresentados por Campos (2013) corroboram as afirmações de Souza (2009)

com relação à superficialidade e à pobreza dos enredos, cujo fim é claramente instrucional.

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Dos 28 livros analisados, constatou-se que todos mostram personagens que,

em um dado momento da narrativa, demonstram algum tipo de sentimento

como tristeza, ansiedade, raiva, vergonha, humilhação etc. quando vítimas de

bullying. [...] Verificou-se também que, em vários livros, as personagens

agressoras demonstram, de modo exagerado, satisfação ao agirem com

violência. [...]. [...], algumas personagens são eleitas como “figuras heroicas”

– principalmente por não se omitirem e denunciarem as agressões sofridas [...]

percebe-se [que é] a figura da personagem professora [que mais intervém] [...]

junto aos alunos [ou] [...] os próprios colegas da “vítima” que percebem a

violência cometida por outros e resolvem levar a situação ao conhecimento da

Direção da escola. [...] os agressores são punidos, expulsos da escola, ou

ouvem um “sermão” dos pais, professores ou diretores. [...] Outro desfecho

bastante recorrente nos livros diz respeito a uma “lição” que a personagem

(tanto “vítima” de bullying quanto “agressor”) aprendeu (CAMPOS, 2013, p.

77-93, grifos da autora).

Considerando a ausência de qualquer literariedade nessas obras, “repletas de clichês,

estereótipos e desfechos bastante previsíveis e [de] um teor pedagogizante para a ‘aceitação do

diferente’ e a ‘harmonização das diferenças’” (CAMPOS, 2013, p. 9, grifos da autora),

chamamos a atenção para o fato de que livros dessa natureza estão presentes nas bibliotecas das

escolas (conforme observamos na instituição locus da pesquisa), sendo disponibilizados às

crianças como se fossem obras literárias.

Apoiando-nos nas reflexões apresentadas por Souza (2009) e por Campos (2013),

entendemos ser imprescindível discutir brevemente, a título exemplo, um dos 5 livros que

compõem o acervo da biblioteca escolar, de forma a explicitarmos sua abordagem informativa

a partir de uma ótica higienizada sobre o que se configura como prática de bullying. Com essa

finalidade, escolhemos a história Bullying na escola: quando a covardia pesa muito mais

(KLEIN, 2011), que aborda o preconceito e a discriminação relacionados à obesidade.

Essa história traz, na própria capa, o enquadramento “ataques contra aluno obeso”,

deixando claro, para o leitor, que se trata de uma história envolvendo uma personagem obesa

vítima de bullying.

Tiago sempre foi gordinho. Ele nunca deu trabalho à mamãe na hora de comer.

“Meu fofinho” era como ela chamava seu querido filho. Mas na escola não era

assim. Desde o começo daquele ano, Tiago andava tendo problemas com um

grupo de meninos, que debocham do seu peso. Ele achava que tudo ia passar

logo. [...] as implicâncias e deboches contra Tiago começaram sem nenhum

motivo. Ele nunca brigou com ninguém, nem mesmo sem querer esbarrou

num colega! (KLEIN, 2011, p. 1-3).

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Figura 1 – Capa do livro Bullying na escola: quando a covardia pesa muito mais (KLEIN, 2011).

Identificamos, no transcorrer do enredo, algumas características comuns à vitimização:

Tiago sofre agressões de colegas da escola há algum tempo, mas, por acreditar que a violência

será passageira, não conta aos pais ou a outro adulto sobre a situação (o que demonstra sua

submissão em relação aos ataques). Além disso, apesar de Olweus (2006) afirmar que os

“desvios de aparência” não são os pontos decisivos para a escolha das vítimas, o garoto

retratado no texto é obeso, podendo esse ser um motivo para a potencialização das agressões,

especialmente quando os bullies percebem que há sujeição por parte da vítima, podendo ser

isso comprovado pela inércia da personagem frente aos abusos.

Outro aspecto a se destacar é a ênfase dada na história ao fato de Tiago não ter cometido

qualquer ação que justificasse a sua escolha como vítima do grupo de agressores, como se

sobressai da passagem: “Ele nunca brigou com ninguém, nem mesmo sem querer esbarrou num

colega!” (KLEIN, 2011, p. 3). Esse realce do texto alinha-se ao entendimento de que as

agressões praticadas pelos bullies não têm nenhuma relação com vingança, uma vez que se

dirigem a indivíduos sobre os quais se consiga exercer controle.

No decorrer da história, faz-se notório que Tiago passa a ser vítima constante de abusos,

mas, mesmo assim, não conta para os pais, investindo-se, portanto, do papel da vítima típica

(OLWEUS, 2006). Como costuma acontecer, a vivência dessa rotina de ataques leva-o a uma

mudança de comportamento, uma deriva do bullying comum às vítimas dessa prática de

violência.

Em casa, Tiago ficava cada vez mais tempo sozinho, no quarto. Mesmo

quando ia brincar com o irmãozinho no quintal, dava para perceber uma

tristeza nele. Tiago andava muito calado. Os pais notaram que o filho estava

diferente, mas não imaginavam o que poderia ser. Então veio o pior. Os

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meninos debochados da escola resolveram dar socos em Tiago. [...] muita

gente via, mas ninguém fazia nada para impedir. Que vergonha tudo isso!

(KLEIN, 2011, p. 7-9).

Como se evidencia no excerto acima, os pais da personagem, mesmo percebendo a

alteração emocional do filho, não procuram investigar suas causas. Esse fato corrobora a

afirmação de Beane (2010) no sentido de que os pais têm pouca habilidade para lidar com as

situações que fogem ao cotidiano. Esse mesmo pensamento é reiterado por Silva (2010) quando

admite que os pais, muitas vezes ocupados com as suas funções, não dão a devida atenção e o

necessário apoio aos filhos.

Adicionalmente, vale ponderar sobre o comportamento dos colegas que presenciam as

agressões. Esses espectadores também se podem enquadrar no perfil de “passivos”, ou seja,

aqueles que não concordam com os atos de bullying, porém não assumem qualquer

posicionamento; permanecem inertes diante da agressão (SILVA, 2010).

E não se pode deixar de sublinhar também a frase “Que vergonha tudo isso!” (KLEIN,

2011, p. 9), tendo em vista o fato de que, com seu caráter moralizante, alerta o leitor sobre o

quanto a violência praticada e a falta de empatia à vista da situação vivenciada pelo colega são

atitudes desonrosas.

Em todo o seu curso, a história enfatiza o sofrimento de Tiago em decorrência das

agressões diárias vivenciadas na escola. Em determinado momento, entretanto, deixa

subentender que a personagem tem força física suficiente para reagir às agressões, mas não o

faz por ser um menino bom e por não querer machucar os agressores, tentando apenas se

defender.

Não obstante, esse traço de passividade mostra-se em uma nova versão na seguinte

passagem:

Só que chegou a um ponto que não dava mais para aguentar! Então um dia,

quando o malvado do grupo veio para cima dele, querendo bater, Tiago reagiu:

rodopiou o menino, que gritava de medo, e depois o atirou sobre um canteiro

de roseiras [...].Foi só nesse dia que Tiago contou para os pais (KLEIN, 2011,

p. 13).

A cena narrada remete-nos imediatamente ao caso vivenciado por Casey Heynes, vítima

de bullying, que ficou famoso após reagir a uma agressão e ter o vídeo do episódio publicado

na internet (NETO, 2011). Casey, assim como Tiago, rodopiou o seu agressor, lançando-o no

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chão. Tamanha semelhança leva-nos, inclusive, a pensar que não se trata de mera coincidência,

mas de outro indicativo do cunho instrutivo e referencial do texto.

O próprio desfecho revela uma clara intenção de instruir o leitor quanto à solução

considerada mais apropriada para que o conflito seja desfeito:

Os pais foram com o filho falar com o diretor. Disseram que cenas de briga

não podem acontecer dentro de uma escola. O diretor concordou e chamou os

meninos valentões. Eles foram suspensos! Tiago se sentia livre de novo.

Agora ele podia brincar, conversar e estudar sem medo de apanhar. E o melhor

de tudo: Tiago percebeu que podia contar com a ajuda dos pais e da escola

para se defender (KLEIN, 2011, p. 13-15).

Essa instrução torna-se aparente quando as ações que culminam no término da prática

do bullying são assim encaminhadas: a ciência dos pais em relação à agressão; a presença dos

pais na escola a fim de oficializarem a reclamação sobre a violência entre os alunos; a

concordância do diretor quanto à instituição de uma política da não violência, e a imediata

suspensão dos agressores; e, finalmente, a satisfação de Tiago que, a partir daquele instante,

passa a não ser mais vítima.

Apresentar essa sequência hermética ao leitor pode, muito provavelmente, induzi-lo à

crença de que revidar é a solução para pôr fim à violência e de que comunicar aos pais sobre a

situação de sofrimento é suficiente para que ações assertivas sejam tomadas com o objetivo de

acabar com as agressões. Todavia, essa idealizada trajetória apresentada pela história não

suscita qualquer reflexão no leitor. Ao apontar, previamente, qual caminho seguir, impede-o de

pensar criticamente sobre a situação, inibindo a sua compreensão para outras perspectivas de

interpretação e julgamento, impossibilitando-o de entender que há inúmeras variáveis a serem

consideradas quando se trata de violência entre pares.

Conforme ressalta Yunes (2010),

[o] aprendizado de ser humano pode ser executado pelo foco das artes, da

literatura particularmente, que se aproxima pelos afetos que desperta e se

distancia de nós pela reflexão que clama, dando-nos a ver o que vivemos pelos

olhos dos outros. A literatura nos oferece a vida em alteridade que ajuda a

tomarmos posição, a fazermos escolhas, criticamente, com discernimento, não

nos deixando enganar pelo fácil, imediato e modernamente “verdadeiro”

(YUNES, 2010, p. 60, grifos da autora).

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Definidas as potencialidades da literatura e reconhecida a sua influência na formação do

leitor como ser autônomo, constatamos ser extremamente equivocada a nomeação da obra

Bullying na escola: quando a covardia pesa muito mais (KLEIN, 2011) como um livro literário

“quando na verdade [é] apenas cartilha” (AMARILHA, 2004, p. 48). Ratificamos essa

constatação a partir do exame da linguagem superficial, instrutiva e moralizante de que se

utiliza a autora ao longo de toda a narrativa.

Após essa análise, acreditamos que todo o percurso desenvolvido durante o período de

observação foi fundamental para entendermos o ambiente em que iríamos intervir, uma vez que

pudemos compreender a dinâmica entre os sujeitos participantes, suas interações e quais

conflitos eram os mais comuns entre eles. Além disso, observamos o modo como a literatura

era inserida no dia a dia escolar daquelas crianças, tanto na sala de aula, sob a regência da

professora titular da turma, quanto na biblioteca, sob a orientação de uma outra professora.

Em suma, compreendemos que essa imersão no espaço escolar foi de indizível

importância, especialmente em se considerando a abordagem qualitativa de nosso estudo, que

demanda um pesquisador familiarizado com o locus de sua atuação para que, conhecendo suas

particularidades, consiga traçar estratégias adequadas para a intervenção.

2.3.1.2.2 Entrevistas iniciais

Transcorrido o período destinado à observação, iniciamos as entrevistas com os sujeitos

participantes, visando aprofundar ainda mais o nosso entendimento sobre o ambiente da

intervenção e conhecer melhor aqueles indivíduos. Para tanto, elaboramos perguntas

semiestruturadas, por meio das quais buscamos compreender um pouco do ambiente familiar

onde cada criança estava inserida, qual o lugar destinado à leitura de literatura em sua casa e na

escola/sala de aula, o que eles conheciam sobre o bullying e como percebiam a violência entre

pares naquela instituição de ensino.

As respostas, registradas no quadro abaixo, possibilitaram-nos construir um panorama

geral em relação aos sujeitos, reforçando algumas das percepções que construímos durante a

observação.

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Quadro 3 – Perfil social dos sujeitos participantes: família, leitura e bullying

Pontos abordados Respostas

1. Idade Os sujeitos têm entre 10 e 12 anos de idade.

2. Local de nascimento Todos os sujeitos (100%) nasceram no Estado do Rio

Grande do Norte. A maioria, na capital: Natal (75%).

3. Com quem reside 11 sujeitos (55%) moram com os pais e têm irmãos.

8 sujeitos (40%) moram com apenas um dos genitores.

Alguns ainda convivem com padrasto/madrasta e

outros membros, como irmãos e avós, na mesma casa.

1 sujeito (5%) mora com uma tia.

4. Convivência familiar 20 sujeitos (100%) consideram boa a relação com os

familiares com os quais residem.

5. Gosto pela leitura 15 sujeitos (75%) afirmaram que gostam de ler.

4 sujeitos (20%) afirmaram que gostam mais ou menos

ou não muito. Eles consideram a atividade: cansativa,

chata ou não têm vontade de realizá-la.

1 sujeito (5%) afirmou que gosta de ler; entretanto,

disse que não tem muito tempo, em virtude das tarefas

em casa.

6. Preferência de leitura Dentre os 15 sujeitos que disseram gostar de ler, 12

(80%) souberam especificar suas preferências de

leitura (40% contos/narrativas; 26,6% histórias em

quadrinhos e 13,3% poemas), os outros 3 (20%) não

souberam especificar.

7. Ouvem histórias em casa 13 sujeitos (65%) não têm momentos em que escutam

histórias lidas pelos pais ou outro familiar.

4 sujeitos (20%) afirmaram que, às vezes, escutam

histórias, geralmente contadas pelos pais para um

irmão menor.

3 sujeitos (15%) disseram que os pais ou algum

familiar leem para eles e que apreciam o momento.

8. Contato com histórias literárias na escola 16 sujeitos (80%) relacionam o contato com a

literatura às aulas na biblioteca.

2 sujeitos (10%) estabelecem relação da leitura de

literatura com as histórias presentes no livro didático.

1 sujeito (5%), além de relacionar esse contato com a

biblioteca, cita também a aula de artes.

1 sujeito (5%) afirmou que ele mesmo lê histórias na

sala de aula, de forma autônoma, no intervalo entre as

tarefas.

9. Contato com histórias literárias na sala de aula 11 sujeitos (55%) entendem que, na sala de aula, o

contato com histórias ocorre apenas por meio dos

livros didáticos (Português e História).

6 sujeitos (30%) afirmaram que não têm contato com

histórias na sala de aula.

2 sujeitos (10%) disseram que têm contato com

histórias nas aula de artes ou religião.

1 sujeito (5%) afirma que esse contato ocorre

exclusivamente nas aulas na biblioteca.

10. Apreço pelas aulas na biblioteca 20 sujeitos (100%) consideram boas as aulas na

biblioteca, destacando o gosto por esses momentos.

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11. Entendimento sobre bullying 19 sujeitos (95%) afirmaram saber o que é bullying e

citaram algumas características que consideram como

inerentes a essa violência.

1 sujeito (5%) disse não saber do que se tratava.

12. Bullying na sala de aula 11 sujeitos (55%) afirmaram que acontece ou já

aconteceram práticas de bullying na sala de aula.

6 sujeitos (30%) afirmaram que não acontece ou nunca

aconteceram ações de bullying na sala de aula.

2 sujeitos (10%), apesar de afirmarem saber o que é

bullying, não souberam dizer se houve ou não casos

desse tipo de violência na sala.

1 sujeito (5%) não respondeu porque não sabia o que

era bullying.

13. Bullying na escola 11 sujeitos (55%) já presenciaram ações que eles

nomeiam como bullying na escola.

8 sujeitos (40%) afirmaram que não há bullying na

escola.

1 sujeito (5%) não respondeu porque não sabia o que

era bullying.

14. Sofreu bullying 10 sujeitos (50%) consideram já ter sofrido bullying.

9 sujeitos (45%) afirmaram nunca ter sofrido bullying.

1 sujeito (5%) não respondeu porque não sabia o que

era bullying.

15. Praticou bullying 15 sujeitos (75%) afirmaram nunca ter praticado

bullying.

4 sujeitos (20%) consideram já ter praticado bullying.

1 sujeito (5%) não respondeu porque não sabia o que

era bullying.

16. Convivência com os colegas de classe 17 sujeitos (85%) consideram que têm uma boa

relação com os colegas.

2 sujeitos (10%) consideram a relação com os colegas

“normal”.

1 sujeito (5%) considera essa relação “mais ou

menos”.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

A partir dos dados coletados, destacamos alguns aspectos que nos chamaram a atenção.

Em primeiro lugar, a convivência das crianças em seus lares, que entendemos ser satisfatória,

uma vez que elas demonstraram sentir-se bem no local onde viviam, bem como estarem

satisfeitas na relação com seus familiares. Não percebemos nenhuma hesitação ou desconforto

nos sujeitos quando questionados sobre o vínculo estabelecido com suas famílias, permitindo-

nos inferir que eles viviam em ambientes sem graves conflitos.

Acreditamos que essa constatação é positiva, levando em conta o fato de que “lares

violentos estão entre o maior fator de risco para o desenvolvimento de comportamento

antissocial; [o] bullying, a esse respeito, foi encontrado por estar associado com a violência no

contexto familiar” (FARRINGTON apud BALDRY, 2003, p. 714, tradução nossa). Reforçando

esse entendimento, Assis et al. (2011) afirmam que

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os fatores [...] familiares, comunitários e macrossociais que se mesclam à vida

do jovem [e da criança], [...] fundamentam a forma como ele conduz suas

relações interpessoais, sociais e suas ações. Para crianças e adolescentes, viver

em uma família ou em uma comunidade violenta se constitui em aprendizado

sobre como se comunicar e sobre como agir nas relações cotidianas que

exigem enfrentamento e tomada de decisões. As experiências permanentes de

situações agressivas se traduzem no estímulo a relacionamentos conflituosos

e no aprendizado do uso da violência para obter poder e para amedrontar os

outros (ASSIS, S. G. et al., 2011, p. 153).

É, portanto, bastante animador o fato de as respostas das crianças apontarem para

relações pacíficas em seus lares, considerando-se, afirmativamente, que isso influencia na

forma com que veem (e como agem sobre) o mundo ao seu redor, o que inclui o ambiente

escolar.

Em segundo lugar, atentamos para a prática de leitura e para as preferências dos sujeitos

participantes como leitores. A maioria (15 sujeitos/ 75%) afirmou gostar de ler. Dentre esses,

12 souberam especificar o tipo de gênero de que mais gostavam enquanto 3 não souberam dizer

sobre sua preferência. 20% dos participantes (4 sujeitos) declararam que gostavam ‘mais ou

menos’ ou ‘não muito’ de ler, por considerarem uma atividade cansativa ou chata, o que os

levava a não terem estímulo para realizá-la. Destoando dos demais, 1 sujeito (5%) sustentou

que, apesar de gostar de ler, não tinha muito tempo para se dedicar a essa atividade.

Também se faz interessante considerarmos as respostas referentes a outros pontos que

serviram de base aos questionamentos relativos ao contato desses sujeitos com histórias em

casa, a partir da mediação de familiares; ao contato com histórias, especificamente na sala de

aula; e, por fim, na escola, de modo geral.

Os dados revelam que, apesar de 15 sujeitos (75%) haverem declarado gostar de ler, não

foi possível estabelecer uma relação clara entre esse apreço pela leitura e o incentivo de

familiares quanto a essa prática, uma vez que 65% dos participantes afirmaram que não escutam

histórias em seus lares. Tampouco foi possível relacionar o desenvolvimento do gosto pela

leitura de literatura com as atividades desenvolvidas na sala de aula. Isso porque, quando

questionados, a maioria dos sujeitos (55%) afirmou que, nesse espaço escolar, se trabalham

apenas os textos inseridos nos próprios livros didáticos (literários e não literários),

especialmente das disciplinas de português e história, cuja finalidade é a resolução de tarefas.

Essa informação pôde ser ratificada pelas seguintes transcrições:

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(19) PP: E você tem aula de leitura de histórias na sala de aula também?

(20) Caroline: Às vezes.

(21) PP: E que tipo de história a professora lê?

(22) Caroline: Das atividades do livro que é texto para a gente ler.

(41) PP: E na sala de aula, você tem aulas de leitura de histórias?

(42) Maria Thayná: Sim.

(43) PP: E como é que acontecem essas aulas?

[...]

(46) Maria Thayná: [...] a gente lê histórias assim do livro que foi de

antigamente, assim, dos portugueses, essas coisas assim.

(47) PP: Entendi. Então a disciplina que você está falando é história.

(48) Maria Thayná: Isso.

(53) PP: E na sala de aula, você tem momentos de leitura de histórias?

(54) Lucas: Temos.

(55) PP: E como acontece? A professora traz livros para vocês lerem?

(56) Lucas: Não, mas ela manda a gente ler o texto que tem no livro da

atividade.

(57) PP: No livro que vocês já usam?

(58) Lucas: É, mas a gente considera isso como uma leitura em classe.

(43) PP: Você tem leitura de histórias na sala de aula?

(44) Edu: Tem.

(45) PP: Como são essas aulas?

(46) Edu: Só dia do ((+)) esqueci o nome agora.

(47) PP: O que vocês geralmente leem na sala de aula?

(48) Edu: Abre o livro, lê um texto e depois a gente responde.

(49) PP: Esses textos vêm no livro que vocês trabalham no dia a dia?

(50) Edu: Sim.

(35) PP: E na sala de aula, você tem momentos de leitura de histórias também?

(36) Ester: De vez em quando, quando a professora bota atividade de

português que tem algum conto. Aí, a gente lê.

(37) PP: A professora traz algum livro ou é no livro de português que vocês

estudam?

(38) Ester: É no livro que a gente estuda.

O fato de as histórias apresentadas aos alunos serem as provenientes das atividades

presentes em livros didáticos denuncia o caráter restritivo da opção do professor de adotar

somente essa estratégia. Lajolo (2002, p. 63) esclarece bem melhor essa questão:

Num balanço geral, as críticas superam os aplausos e fundamentam-se nas

mais diferentes razões: apontam que muitos livros didáticos contêm erros

graves de conteúdo, que reforçam ideologias conservadoras, que subestimam

a inteligência de seu leitor/usuário, que alienam o professor de sua tarefa

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docente, que – no caso dos livros de Comunicação e Expressão – às vezes

pirateiam textos, que direcionam a leitura, que barateiam a noção de

compreensão e de interpretação, e tantos outros quês e etecéteras que quem é

freguês da matéria conhece bem.

Decerto isso acaba por distanciar o leitor da literatura; particularmente porque, muitas

vezes, teima-se em oferecer-lhe textos fragmentados e/ou descontextualizados em vez da obra

em si. Ademais, a finalidade com a qual esses textos são trabalhados é questionável, haja vista

que sua principal função é servir de subsídio às respostas de atividades, o que vai de encontro

à real função da leitura, como podemos depreender das palavras de Lajolo (2002):

Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É,

a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo

a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de

leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta

leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista (LAJOLO, 2002,

p. 59).

Esse encontro leitor-texto, enfatizado pela autora, é impedido em razão do didatismo e

do pedagogismo (FRANTZ, 2011) adotados no trabalho com a leitura – incluindo-se nessa

menção os textos literários –, o que pode desencadear um desapreço pelo ato de ler. Reforçando

esse ponto de vista, Lima (2015) exemplifica o modo como uma atividade decorrente do texto

O boi, de Elias José, foi elaborada em determinado livro didático. A tarefa exigida do aluno

resumia-se a transcrever, como resposta, trechos a serem localizados no poema.

Assim, “não bastassem as atividades evidentemente focadas no código [alfabético],

[esse livro didático] confirma o uso da leitura do texto literário distanciado da finalidade de

formação do leitor, reduzindo seu potencial à mera identificação de [...] informações literais”

(LIMA, 2015, p. 124), o que diverge absolutamente do papel humanizador da literatura

(CANDIDO, 2004).

Ainda sobre a percepção dos sujeitos com relação à leitura de histórias na sala de aula,

é importante destacar que 6 deles (30%) admitiram que ela não existia. Vejamos alguns

exemplos:

(41) PP: E na sala de aula, você tem aulas de leitura de histórias de literatura?

(42) Carla: Não.

(43) PP: Em nenhum momento?

(44) Carla: Tem de história.

(45) PP: Na disciplina de História?

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(46) Carla: Sim.

(47) PP: Mas, e de histórias como a que você falou: “Cachinhos Dourados”

(...)

(48) Carla: Tem na biblioteca.

(33) PP: E você tem aula de leitura de histórias de literatura também na sala

de aula?

(34) Lívia: Só nos livros, assim, de atividade, porque não tem na sala de aula.

(29) PP: Na escola, em quais momentos você tem contato com histórias?

(30) Priscila: No dia da leitura, terça-feira, na biblioteca.

(31) PP: E você tem aula de leitura de histórias também na sala de aula?

(32) Priscila: Não.

(45) PP: E na sala de aula, você tem aula de leitura de histórias?

(46) Yasmin: Não.

(47) PP: A professora não traz histórias para vocês?

(48) Yasmin: Não.

(35) PP: E na sala de aula, você tem aula de leitura de histórias?

(36) Pâmela: Eu acho que tem, não tenho certeza porque eu sou novata.

(37) PP: Mas, e nesse tempo que você está aqui, já teve?

(38) Pâmela: Não. A professora não contou história ainda.

Adicionalmente, 2 sujeitos (10%) disseram que a leitura de histórias era uma prática

presente apenas nas disciplinas de religião e artes – que são ministradas por professores das

respectivas áreas –, e não uma atividade realizada no dia a dia da turma, sob a regência da

professora titular.

(31) PP: E na escola, em quais momentos você tem contato com histórias?

(32) Keylla: Na biblioteca.

(33) PP: E você tem aula de leitura de histórias de literatura também na sala

de aula?

(34) Keylla: Temos, com a professora de artes.

(31) PP: E você tem aula de leitura de histórias também na sala de aula?

(32) Kesley: Tenho, só quando é sexta-feira, que tem religião. Aí, a professora

conta alguma história.

Essa limitação (ou ausência) de contato com a literatura na sala de aula, relatada pelos

sujeitos, coaduna-se com as respostas à questão: “E na escola, em quais momentos você tem

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contato com histórias?” Isso porque 100% dos participantes restringiram o espaço onde tinham

a chance de ler/ouvir histórias à biblioteca.

Isso corrobora o que constatamos no período de observação: que o contato com a

literatura resumia-se, quase que exclusivamente, às aulas quinzenais na biblioteca. Todavia,

mesmo considerando o importante papel da biblioteca como “agência social de comunicação

da cultura” (AGUIAR, 2006, p. 258), entendemos que esses momentos não são suficientes para

a formação de leitores. Acreditamos que é necessária uma integração entre o trabalho

desenvolvido na sala de aula e aquele realizado na biblioteca, tendo em vista que esse espaço

não pode estar à parte do processo educativo.

Entretanto, conforme verificamos, não acontecia qualquer planejamento didático

conjunto entre as duas professoras; e nem mesmo o apreço demonstrado pelos sujeitos em

relação às aulas na biblioteca – como podemos constatar pelas transcrições abaixo – as motivava

a fazê-lo.

(43) PP: Você gosta das aulas na biblioteca?

(44) Ítalo Gabriel: Gosto muito.

(45) PP: Por que que você gosta?

(46) Ítalo Gabriel: Porque eu sinto alguma coisa dentro de mim que faz bem.

Tem vezes que a gente fica brincando lá.

(35) PP: O que você acha das aulas da biblioteca?

(36) Keylla: Acho legal, interessante.

(37) PP: Por que que você acha interessante?

(38) Keylla: Porque tem livros de história pra gente ler.

(37) PP: O que você acha das aulas da biblioteca?

(38) Ana Alice: Muito boas.

(39) PP: E por que você as acha muito boas?

(40) Ana Alice: Porque é bom ler, e os livros de lá é muito bom.

(37) PP: E o que você acha das aulas da biblioteca?

(38) Ângelo: Legal.

(39) PP: E por que que você acha legal?

(40) Ângelo: Porque eu gosto de ler e aqui tem vários livros.

(47) PP: O que você acha dessas aulas na biblioteca?

(48) Emanuela: Acho legal.

(49) PP: Por que você acha legal?

(50) Emanuela: Porque é a hora que a gente pode ler, pensar em outras coisas

[...].

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(59) PP: [...]. E o que você acha das aulas da biblioteca?

(60) Lucas: Eu acho boa, que às vezes tem festinha de quadrinhos, é ((+))

historinhas que a professora conta. O bom é que ela deixa levar pra casa os

[livros] da área vermelha, porque da área vermelha são os mais legais que tem.

(49) PP: O que você acha dessas aulas na biblioteca?

(50) Carla: Muito legal, a pessoa se diverte.

Parece inquestionável o fato de que esses sujeitos realmente sentiam apreço pelos

momentos em que tinham a possibilidade de ler por prazer, de escolherem os livros que

desejavam; que lhes agradava. Além disso, demonstraram gostar bastante das leituras e das

outras atividades promovidas pela professora da biblioteca. Igualmente notável era a maneira

diferenciada como o ato de ler era percebido (e experienciado) na sala de aula e na biblioteca,

especialmente no que diz respeito à sua finalidade.

Esse fato revela a necessidade de o professor da sala de aula – aquele que interage a

maior parte do tempo com os alunos – estar também comprometido (e envolvido) com a

literatura; isso porque “novos leitores, novas sensibilidades não surgirão se não houver um

trabalho experimental e de risco das gerações precedentes, como se espera que sejam as de

professores-mediadores” (AMARILHA; FREITAS, 2016, p. 26).

Além desses pontos ora salientados, também vale destacar as respostas dos alunos no

que se refere ao conhecimento do que seja o bullying. Entre os sujeitos pesquisados, apenas

dois não souberam expressar com clareza o que entendiam sobre o que se lhes foi questionado:

um deles demonstrou dificuldade para conceituar o bullying e o outro afirmou não saber do que

se tratava de fato. Em contrapartida, os demais, num total de 18 sujeitos (90%), revelaram saber

o que era o bullying, inclusive ilustrando com exemplos de situações em que essa forma de

violência acontecia. Os excertos abaixo comprovam o dito.

(59) PP: Mudando um pouquinho de assunto, você sabe o que é bullying?

(60) Emanuela: Sim, tipo um exemplo, eu chamo uma menina de negra e ela

não gosta, aí é um bullying.

(51) PP: Entrando em outro eixo de perguntas: você sabe o que é bullying?

(52) Carla: Sei. Tipo assim: eu bato numa pessoa, digo que é uma baleia, digo

que é uma bruxa ((+)) é um bullying.

(47) PP: Você sabe me dizer o que é bullying?

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(48) Ítalo Gabriel: Bullying é quando ((+)) é xingamento, ficar batendo nos

outros, essas coisas assim.

(57) PP: Você já ouviu falar em bullying?

(58) Edu: Já.

(59) PP: Você sabe me dizer o que é?

(60) Edu: Palavrão.

(61) PP: Palavrão? Mais alguma outra coisa?

(62) Edu: Xingar.

[...]

(65) PP: Você pode me dizer uma situação?

(66) Edu: Quando a pessoa não termina a atividade na sala de aula; aí quando

sai, falam: “Ó o burro”, “ó o jumento”.

(39) PP: Você sabe o que é bullying?

(40) Keylla: Sim.

(41) PP: Você pode explicar?

(42) Keylla: Deixe eu ver se eu me lembro ((+)) é alguém que xinga o outro,

chama um palavrão com outra pessoa, aí é bullying. Quando chama alguma

coisa preconceituosa.

(47) PP: E o que você entendeu do que ouviu sobre bullying?

(48) Kauã: Apelido, empurrão.

(41) PP: O que você entende sobre bullying?

(42) Kesley: Tipo: chega uma pessoa na escola e ela é meia cheinha, não é

gorda, é cheinha normal. Aí vem uma pessoa e diz: “Olha aquela menina é

gorda, ela é uma baleia”. Aí a pessoa fica bem chateada com isso.

(55) PP: Você sabe dizer o que é bullying?

(56) Yasmin: É briga, chamar as pessoas de palavrão e falar coisas erradas

com outras pessoas.

(57) PP: E o que são essas coisas erradas?

(58) Yasmin: Coisas erradas como chamar a gente de gorda, de magrela,

cabelo de bucha.

(47) PP: Outra coisa: você sabe me dizer o que é bullying?

(48) Ester: Eu acho que é ((+)) um racismo entre crianças, adultos.

(49) PP: E o que acontece nesse tipo de situação?

(50) Ester: Xingamento, espancamento, depende.

(37) PP: Mudando de novo de assunto: você sabe o que é bullying?

(38) Priscila: Não, muito não.

(39) PP: Mas você já ouviu falar?

(40) Priscila: Já ouvi falar que é pessoas que não gostam de chegar perto

daquelas pessoas que sofrem bullying, tipo: gente negra, o povo não gosta de

ficar perto delas porque eles não acham tão bonito assim, esses negócios. Eles

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têm racismo com gente negra, com gente magra, gorda, esses negócios. Gente

que é deficiente.

Percebemos que a grande maioria dos sujeitos relaciona o bullying a situações de

agressão em geral que ocorrem entre os estudantes. E ainda que alguns destaquem o fato de a

vítima apenas se chatear diante da circunstância, observamos que, para eles, qualquer tipo de

violência se configura como sendo bullying. Não há, portanto, uma compreensão mais nítida

sobre as suas características ou sobre o que diferencia eventos de agressividade gratuita de casos

em que há intencionalidade e repetição da ação – uma das peculiaridades dessa violência.

Já nas respostas de outros sujeitos, mesmo não havendo uma conceituação efetiva do

bullying, foi possível notar alguns pontos de aproximação com as características mais

reveladoras de sua ocorrência, como se pode constatar nos seguintes fragmentos de discurso:

(53) PP: Entrando em outro assunto, você sabe me dizer o que é bullying?

(54) Ângelo: É quando outra pessoa fica falando várias coisas, xingando a

outra por causa da pele, do cabelo e por causa da religião.

(33) PP: O que é bullying? quando o bullying acontece?

(34) Caroline: Geralmente na escola, porque tem alguém ((+)) eu já sofri

porque uso óculos e as pessoas chamam eu de quatro olhos e eu acho errado

isso.

(69) PP: Que legal. Mudando um pouco de assunto de novo: você sabe o que

é bullying?

(70) Maria Thayná: Mais ou menos.

(71) PP: Você sabe explicar um pouquinho?

(72) Maria Thayná: Bullying é assim, pronto, faz de conta que uma pessoa

tem as pernas tortas, como as da minha amiga, aí as outras pessoas ficam

dizendo: “Olha a perna torta e tal e tal”. Tem outras coisas assim do corpo da

pessoa, aí as outras pessoas ficam dizendo: “Olha como é feio e tal”, essas

coisas assim.

(65) PP: Mudando de assunto: você já ouviu falar em bullying?

(66) Lucas: Já.

(67) PP: Você sabe me explicar o que é?

(68) Lucas: Quando fica apelidando os outros de “baleia”, “saco de areia”,

isso é bullying quando a pessoa não gosta.

(69) PP: E tem alguma outra situação que você considera como sendo bullying

fora apelido?

(70) Lucas: Tem, a situação de bullying é quando bater, xingar ((+)) fazer as

coisas que outra pessoa não quer. Por exemplo: brigar e ignorar a outra

pessoa, pegar o caderno da outra pessoa e jogar pela janela. Isso é coisa

que a outra pessoa não aceita, aí isso eu considero como bullying.

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(43) PP: Mudando agora um pouquinho de assunto: você sabe o que é

bullying?

(44) Lívia: Bullying é tipo chamar a pessoa ((+)) Ficar mexendo com a

pessoa sem a pessoa fazer nada. Se a pessoa for magrinha, fica dizendo: “Ó

ela é muito magrinha e tal”. Fazer bullying é mais ou menos isso.

(47) PP: Você sabe dizer o que é bullying?

(48) Vinícius: Sei. É xingar a pessoa, falar mal dela, aí ela se sente mal.

Isso é bullying.

(47) PP: Mudando de novo de assunto: você sabe o que é bullying?

(48) Pâmela: Eu já passei por isso. É xingar, é apelidar os outros, dizer que a

pessoa é magra, gorda, feia.

(49) PP: Você disse que já passou por isso, o que aconteceu?

(50) Pâmela: Foi na outra escola que eu estudava. Tinha uns meninos que

ficavam me chamando de branca e magra.

(51) PP: Como você se sentia?

(52) Pâmela: Eu não gostava. Me senti muito mal.

(49) PP: Mudando um pouquinho de assunto de novo: o que você entende

sobre bullying?

(50) Ana Alice: O bullying é uma pessoa pegar e ficar falando coisas com

a outra, tá chamando a pessoa de magra, de gorda.

Em seus discursos, como nos é possível conferir, os sujeitos Ângelo, Maria Thayná e

Ana Alice ressaltaram expressões como “ficar falando”, “ficar dizendo” que, em se

caracterizando como ações contínuas, sinalizam a repetição de uma determinada ocorrência –

a repetição de uma prática –, um dos requisitos para configurar, por exemplo, a existência de

bullying. Caroline e Pâmela afirmaram já ter sofrido essa violência por parte de colegas que

apontavam repetidamente determinadas características suas com o intuito de atormentá-las.

Pâmela destacou, inclusive, que não gostava da situação, e demonstrava esse desagrado,

confirmando, por esse gesto, a insatisfação que as vítimas, em geral, costumam sentir. Lívia,

por sua vez, sublinhou, em seu discurso, o fato de que a vítima é agredida mesmo sem ter feito

nada contra o agressor, deixando subentendido que a prática do bullying não se trata de uma

vingança, mas da possibilidade de se exercer poder sobre um indivíduo mais fraco. Lucas

enfatizou o desgosto que a vítima sente ao ser agredida.

Apesar das diversas inferências que conseguimos construir a partir dessas respostas,

constatamos haver uma flagrante desinformação sobre essa problemática. Os excertos a seguir

conferem essa afirmação.

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(71) PP: Você acha que, na sua classe, acontece ou já aconteceu alguma

situação de bullying?

(72) Lucas: Já. Geralmente acontece todo dia bullying.

(73) PP: E como acontece? Me conte uma situação.

(74) Lucas: Numa sexta-feira já aconteceu bastante bullying nessa sala.

Pegaram o caderno de Vinícius e jogaram na parede. A bolsa de Ítalo

Gabriel jogaram pela janela. Roubaram as coisas que eram da menina

Keylla. Mexeram nas coisas da gente e a gente considerou isso como

bullying [...]. Eu não estava na rebelião, porque não mexeram na minha bolsa,

mas um menino da sala 11 achou que eu estava, então ele veio me bater [...]

eu revidei ele e a gente acabou numa grande briga [...].

(75) PP: Você considera que isso foi bullying?

(76) Lucas: Considero, porque bullying significa que você mexe nas coisas

que é totalmente de outra pessoa [...].

(55) PP: Você pode me dizer um evento que você acha que foi bullying na sua

sala?

(56) Carla: Quando os meninos começam a bagunçar e ficam apelidando

as meninas e as meninas apelidando os meninos.

(49) PP: Você acha que, na sua classe, já aconteceu ou acontece algum caso

de bullying?

(50) Ítalo Gabriel: Já.

(51) PP: Você pode me dizer o que aconteceu?

(52) Ítalo Gabriel: Foi no dia que a gente tava brincando dentro da sala, aí o

menino veio e começou a bater no outro. Aí eu fui e separei os meninos.

[...]

(55) PP: E na escola, de uma maneira geral, você acha que acontecem

situações de bullying?

(56) Ítalo Gabriel: Muito.

(57) PP: Você sabe relatar algum caso?

(58) Ítalo Gabriel: Muito não, que foi até no dia ((+)) Foi eu e o menino ((+))

que ele começou a vir pra cima de mim, aí eu comecei a ficar irado. Daí

eu fui e parti para a agressão mais ele.

(71) PP: Você acha que, além da sua sala de aula, na escola acontece bullying?

(72) Edu: Acontece.

(73) PP: Você já presenciou? Já viu?

(74) Edu: Eu tava no terceiro (ano), aí fui pro quarto (ano), aí o menino falou

para o outro: “Isso aí é um burro, quando crescer vai ser um menino de

rua”.

(45) PP: E na escola, você acha que já aconteceu?

(46) Keylla: Já aconteceu com uma menina.

(47) PP: Como é que foi, você lembra?

(48) Keylla: Ela tava brincando, aí veio um menino e chamou as coisas

com ela.

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(59) PP: Você acha que na sua classe já aconteceu ou acontece algum caso de

bullying?

(60) Yasmin: Às vezes.

(61) PP: E que situação você pode me dizer que aconteceu e que você lembra?

(62) Yasmin: Um pouquinho de palavrão e bullying ((+)) bullying que a

menina chamou a outra de cabelo de bucha e a outra queria bater nela.

[...]

(65) PP: E você acha que, na escola, acontece bullying, em outras turmas?

(66) Yasmin: Acontece.

(67) PP: Você já viu alguma vez?

(68) Yasmin: Um bocado de vezes.

(69) PP: Me conte a vez que mais lhe chamou atenção.

(70) Yasmin: É que menino não tava fazendo nada, aí o outro pegou e

empurrou ele. Aí ele pegou e foi para cima dele, bater nele. Aí o pequeno

que tava quieto começou a chorar.

(39) PP: Você acha que, na sua classe, já aconteceu ou acontece algum caso

de bullying?

(40) Rian: Já.

(41) PP: Qual? Você pode me contar?

(42) Rian: Às vezes o povo me xinga.

(43) PP: De quê?

(44) Rian: Às vezes me chamando de filho da puta, esses negócios.

Conforme ficou evidenciado, para esses sujeitos, o bullying está atrelado ao ato de

brigar, xingar e apelidar o outro, independentemente da frequência com que isso ocorre, se parte

de um determinado indivíduo/grupo direcionado a um colega ou se há disparidade de força e

poder entre os envolvidos. Lucas, por exemplo, relatou um caso isolado em que alunos da turma

vizinha, supostamente, entraram na sala de aula deles e depredaram seus objetos pessoais.

Quando questionado novamente se considerava aquele evento como bullying, Lucas foi

enfático ao dizer que “bullying significa que você mexe nas coisas que é totalmente de outra

pessoa” (ENTREVISTA INICIAL COM O SUJEITO LUCAS, 2017).

Sabemos, contudo, que a intencionalidade de agredir o outro não é suficiente para que

a situação se caracterize como bullying. Tão equivocada interpretação revela o quanto essa

concepção é deturpada no ambiente escolar. Prova disso é que foram raros os sujeitos capazes

de relatar, com propriedade, casos que pudessem ser assim configurados. As sequências

discursivas abaixo são bem exemplares.

(35) PP: Você acha que, na sua turma, acontece ou já aconteceu situações de

bullying?

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(36) Caroline: Sim.

(37) PP: Quais? Você pode me dizer uma situação?

(38) Caroline: É ((+)) Yasmin, ela é ((+)) gordinha e o cabelo dela é cacheado,

aí as meninas ficam chamando ela de baleia assassina e os meninos.

(39) PP: Os meninos e as meninas? Você sabe como ela se sente quando isso

acontece?

(40) Caroline: Triste.

(49) PP: Você acha que, na sua classe, já aconteceu ou acontece algum caso

de bullying?

(50) Vinícius: Já.

(51) PP: Qual foi a situação?

(52) Vinícius: Quando eu era do quarto ano, já fizeram isso com a menina que

tinha problema. Aí ficavam fazendo bullying com ela.

(51) PP: Você acha que, na sua classe, já aconteceu ou acontece algum caso

de bullying?

(52) Ester: Sim.

(53) PP: Você sabe me dizer qual foi o caso que aconteceu?

(54) Ester: Foi que tinha uns meninos no ano passado que eles começaram a

me chamar de macaca, um bocado de coisa. Eu fiquei com trauma de vir para

a escola.

(55) PP: E o que aconteceu? O que você fez?

(56) Ester: Eu fiquei com trauma de vir para a escola por conta disso, mas

minha mãe disse que não tinha nada a ver, porque eu não sou nada do que eles

disse.

(57) PP: Mas sua mãe chegou a vir à escola?

(58) Ester: Sim.

(59) PP: Você sabe dizer o que foi feito com os meninos?

(60) Ester: A diretora apenas conversou com os meninos e mandou eles parar,

porque se eles fizessem mais uma vez, iam pro conselho tutelar.

O relato de Caroline a respeito do modo como Yasmin era tratada pelos colegas não

foi confirmado pela própria Yasmin que, ao ser questionada se havia sofrido bullying, relatou

uma história isolada em que foi arranhada por uma menina em virtude de uma confusão por um

biscoito. Não houve qualquer menção ao fato de ser vítima de seus colegas da turma, o que nos

leva a crer que a hostilidade citada por Caroline não se caracterizava como bullying e/ou não

era percebida por Yasmim.

Vinícius, por sua vez, narrou um caso ocorrido em outra turma da qual fez parte;

todavia, nos registros sobre conflitos entre os discentes, arquivados na escola, não localizamos

nenhuma ocorrência que se assemelhasse ao episódio descrito por ele. Já Ester mencionou uma

prática de bullying, passada em outro ano letivo, em que ela foi vítima de determinados garotos.

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Sobre esse acontecimento, também não havia registros na escola para que pudéssemos entender

a ocorrência e o modo como foi tratado o caso.

Entretanto, faz-se interessante destacar, na fala de Ester, o posicionamento assumido

por sua mãe ao saber das agressões: “[...] minha mãe disse que não tinha nada a ver, porque eu

não sou nada do que eles disse” (ENTREVISTA INICIAL COM O SUJEITO ESTER, 2017).

Essa colocação da mãe de Ester corrobora a visão de Waasdorp, Bradshaw e Duong (2011 apud

STRAUSS, 2018), que assim interpretam a situação quando os pais são envolvidos na resolução

do conflito:

Embora os pais sejam frequentemente aconselhados a notificar à escola se o

seu filho sofrer bullying e, em seguida, a trabalhar colaborativamente com os

funcionários [da instituição] para resolver a situação, muitos decidem lidar

com o vitimização [a sua maneira]. Em vez de contatar a escola, os pais podem

optar por conversar com o filho, conversar com o bully ou os pais dele ou

simplesmente ignorando o problema. Muitos pais não sabem como ajudar seu

filho [...] (STRAUSS, 2018, p. 01, tradução nossa).

Decerto, aconselhar o filho a não se incomodar com o que os colegas dizem não deixa

de ser uma forma de ignorar o problema. Além do mais, é uma estratégia bem arriscada a ser

adotada pelos pais com o fim de refrear uma violência como o bullying, considerando-se o fato

de que as agressões tendem a se agravar diante da inércia da vítima (OLWEUS, 2006).

O certo é que, apesar de os estudos indicarem que as escolas e as famílias devem

trabalhar juntas na prevenção e na intervenção do bullying (WAASDORP, et al., 2011 apud

STRAUSS, 2018), prevalecem ainda, na instituição locus desta pesquisa, intervenções

meramente pontuais, que não envolvem a comunidade escolar de uma maneira geral, o que,

sem dúvida, resvala na desinformação sobre essa forma de violência e em atitudes como a que

foi relatada por Ester.

Essa percepção, decorrente do processo observacional, indicou a necessidade de

buscarmos compreender, mais aprofundadamente, as formas como o bullying é reconhecido e

trabalhado na escola. Para tanto, realizamos entrevistas, com a diretora, com a coordenadora

pedagógica e com a professora titular da turma.

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2.3.1.3 Integrantes da equipe escolar: entrevistas

2.3.1.3.1 Diretora

Na entrevista com a Diretora pedagógica, buscamos elucidar três pontos relativos ao

bullying. Em primeiro lugar, procuramos saber dessa gestora escolar qual sua compreensão

sobre essa forma de violência; em segundo lugar, indagamos-lhe se naquele espaço educativo

eram identificados casos assim configurados; e, por fim, perguntamos sobre quais medidas eram

tomadas para a resolução dos conflitos instaurados em razão de tais ocorrências.

Em relação ao primeiro questionamento, obtivemos a seguinte resposta:

[...] enquanto escola a gente compreende que bullying é toda e qualquer

brincadeira que desagrada o outro. É essa compreensão que temos; que não é

saudável para a vida do outro. Então, aquelas pequenas brincadeiras de

apelido, de tocar no outro sem a permissão; brincadeira que tira o outro do

sério (às vezes nem tanto), que constrange, que traz constrangimento para o

outro é o bullying e ele tá no dia a dia, presente na escola a todo momento [...].

Ele parte, às vezes, de uma brincadeira que não é uma brincadeira e ele é muito

comum no dia a dia da escola porque ((+)) porque nós [adultos] praticamos

bullying com os amigos, com os colegas de trabalho. Os adultos também

praticam bullying uns com os outros e, às vezes, a gente não se dá conta que

faz isso [...] Com as crianças, o adulto também, às vezes, faz bullying [...]

(ENTREVISTA COM A DIRETORA PEDAGÓGICA, 2017).

Essas afirmações ratificam a nossa percepção de que o conceito de bullying ainda não é

bem compreendido na escola, seja pelos alunos – como mostramos anteriormente – seja pelos

que compõem a própria gestão, como fica evidente nesse discurso. Basta observar a forma como

se define/se compreende essa prática: toda e qualquer brincadeira que desagrade o outro [...]

brincadeiras de apelido, [...]. [...] Que constrange [...]. [...] ele tá [...] presente na escola a

todo momento. [...]. Com as crianças, o adulto também, às vezes, faz bullying (ENTREVISTA

COM A DIRETORA PEDAGÓGICA, 2017).

E vale ainda considerar o fato de que as próprias escolhas linguísticas (“brincadeira”,

“toda e qualquer brincadeira que desagrade”, para se referir à prática de bullying; e as demais

classificações do que se define como sendo um caso de bullying: “apelido”, “tocar no outro sem

permissão”, “tirar o outro do sério”, “constranger” etc.) denunciam uma perceptível dificuldade

para caracterizar, de modo mais apropriado, o que realmente se enquadra nessa forma de

violência. É bem provável que “[...] o educador sequer saiba as características que [...] poderiam

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caracterizar-se [como] bullying e entenda tal situação como uma ‘simples brincadeira’. Assim

sendo, não é por acaso que o bullying se constitui em grande problema para as escolas”

(TOGNETTA; VINHA; AVILÉS, 2015, p. 20, grifo dos autores).

Na verdade, como é possível observar, em nenhuma passagem de seu discurso, a diretora

faz alusão às reais características do bullying, como a intencionalidade, a repetição e o

desequilíbrio de poder entre os pares (OLWEUS, 2006). É certamente esse seu visível

desconhecimento sobre como se caracteriza, na realidade, essa forma de violência que justifica

sua dificuldade para distinguir as ações que se podem configurar como sendo meras

“provocações” e as que são, de fato, verdadeiramente bullying – sejam estas relativas ao ato de

“apelidar”, “tocar o outro”, “tirar do sério” ou “constranger”. Além disso, não podemos deixar

de mencionar também seu desconhecimento da relação de paridade que precisa ser estabelecida

entre os envolvidos para que se possa configurar o bullying.

Tognetta; Vinha e Avilés (2015) explicitam ainda melhor essa questão:

[...] diferentemente do que algumas pessoas pensam [...] ninguém tem mais

[...] autoridade sobre o outro [quando se trata de bullying]. Se o professor

menospreza, intimida, apelida o aluno; se o diretor intimida, menospreza e

rebaixa um professor; se o pai faz isso com o filho, ou se o aluno por exemplo,

risca o carro do professor, são violências, mas não bullying (TOGNETTA;

VINHA; AVILÉS, 2015, p. 21).

Como vemos, há muita desinformação acerca do bullying. E, então, nos perguntamos:

o que se pode fazer para desconstruir essas noções confusas? Segundo Espelage e Swearer

(2003), para que haja essa mudança, é necessário que os professores recebam formação

específica sobre o bullying, assim como a equipe escolar de modo geral. Isso deve ser feito não

apenas no intuito de levá-los a se apropriarem de uma concepção pertinente mas visando

capacitá-los a identificar situações de violência entre pares e saber intervir, com o devido

conhecimento de causa, para solucionar o conflito. A compreensão sobre a necessidade de uma

ação nesse sentido, entretanto, não é demonstrada no discurso da gestora.

E muito embora ela tenha afirmado haver casos de bullying na escola, relatando,

inclusive, acontecimentos ocorridos nos últimos anos, faz-se perceptível (a partir da resposta

ao segundo questionamento abordado na entrevista sobre a resolução de eventos dessa natureza)

que, nas referidas situações, conta-se tão-somente com o envolvimento da própria gestão, dos

alunos implicados e do(s) docente(s) da(s) turma(s). Não há, na verdade, um trabalho educativo,

que seja extensivo a toda a comunidade escolar, visando à prevenção dos conflitos nem

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tampouco se apontam formas apropriadas de intervenção para o caso de estes virem a instaurar-

se no âmbito institucional.

Conforme revela a diretora, em seu discurso, somente para os casos considerados mais

graves buscam-se formas de intervenção:

[...] no ano passado, [...] houve uma situação que [...] apelidaram a menina de

“Catimbozeira” e essa menina também sofreu, inclusive quiseram bater nela.

Nessa situação, nós tivemos de fazer uma intervenção familiar, porque a gente

trabalha com “A justiça restaurativa”, que é um núcleo ligado à promotoria. A

gente solicitou ajuda para que a gente pudesse fazer um trabalho com as

famílias e as crianças [envolvidas], porque fugiu um pouco daquela situação

de bullying em que se vai empurrando com a barriga e, às vezes, a gente vai

deixando as coisas acontecerem, aí chega nessa situação. Então, às vezes,

dentro da escola, a gente acaba também, de certa forma, no contexto, deixando

que as coisas aconteçam, muitas vezes, esperando para ver: “Ah, vai passar”.

E não passa se não for com intervenção (ENTREVISTA COM A DIRETORA

PEDAGÓGICA, 2017).

Indubitavelmente, a gestora reconhece que a escola não trata como prioridade a

violência entre pares por acreditar que, com o passar do tempo, a situação se resolverá sozinha,

mesmo diante de casos (como o relatado) que demonstraram o contrário. Esse posicionamento

indicia a fragilidade da escola para intervir em situações que se caracterizam como bullying, o

que levou a gestora a solicitar auxílio externo para a resolução do problema. No referido

episódio, por exemplo, recorreu-se ao Núcleo de Justiça Juvenil Restaurativa – NJJR.

O NJJR é um órgão do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte

– MPRN, regulamentado pela resolução n° 118/2013 – PGJ/RN, que visa

oferecer uma equipe multidisciplinar para implementar métodos restaurativos

de resolução de conflitos no contexto escolar e no atendimento socioeducativo

no Estado. É composto por uma Equipe Técnica especializada, capacitada em

teoria e prática sobre Justiça Restaurativa, que diariamente dá suporte às

comunidades escolares e aos seus serviços e programas de atendimento

socioeducativo na realização de procedimentos restaurativos e na construção

de estratégias para que esses espaços institucionais se tornem mais harmônicos

e resolutivos de conflitos (MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO

NORTE, 2017).

Esse núcleo tem o objetivo de reunir todas as partes ligadas a uma ofensa em particular,

com a presença de um ou mais mediadores, para dialogarem sobre o conflito e encontrarem,

coletivamente, uma solução que satisfaça a todos.

A presença do mediador tem como finalidade garantir que o processo transcorra de

forma respeitosa. Para tanto, ele busca identificar as necessidades não atendidas, restaurar a

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harmonia entre os envolvidos e restabelecer o equilíbrio. Nesse processo, vale lembrar, a

participação, o respeito, o pertencimento, a honestidade, a responsabilidade, a humildade, a

interconexão e o empoderamento são considerados valores essenciais da Justiça Restaurativa.

Utilizando-se dos serviços oferecidos pelo NJJR, segundo a diretora, foi possível

solucionar alguns conflitos entre alunos, inclusive o da criança que era alvo de apelidos dados

pelos colegas. Com relação a esse caso específico, a gestora informou que houve intervenções

com os familiares dos alunos envolvidos e com a turma da qual os sujeitos eram integrantes. É,

de fato, o que atestam suas próprias palavras:

[...] nessa situação em especial, nós fizemos rodas de conversa com as

famílias, colocamos as famílias em situações diferentes, aquele que estava

sofrendo e aquele que estava praticando e depois invertemos a situação, para

que cada um dissesse o que sentia. Foram rodas de conversas em cinco

momentos. E aí a gente viu que houve um amadurecimento da própria turma,

em compreender que aquilo não era saudável e que trazia prejuízos

emocionais e também físicos, quando a gente pensa em agredir o outro. Foi

bastante interessante. [A dinâmica foi realizada somente] com as famílias em

alguns momentos e com as famílias e as crianças em outros. [...] [Depois] foi

feito um trabalho na sala de aula com os alunos (ENTREVISTA COM A

DIRETORA PEDAGÓGICA, 2017).

Outro caso em que o NJJR foi chamado a prestar apoio refere-se a um conflito

envolvendo três alunos de 5° ano, em que um deles, constantemente, agredia fisicamente os

outros dois colegas. Diante da situação, as mães dos dois alunos agredidos foram à escola

reivindicar que fossem tomadas medidas para sanar a situação, tendo em vista que seus filhos

estavam com medo de ir à aula.

Segundo o registro escolar realizado em 30 de março de 2016, a conversa com as mães

não foi bem-sucedida; por isso mesmo, decidiu-se que a escola recorreria à Justiça Restaurativa

em busca de apoio e de orientações sobre como deveria agir – apesar de a mãe do discente

apontado como agressor não ter concordado com essa resolução.

De todo modo, a intervenção foi realizada sob a mediação de uma assistente social

vinculada ao NJJR, que, inicialmente, fez atendimentos individuais com os sujeitos envolvidos

no conflito (os denominados pré-círculos restaurativos). Nesses pré-círculos, os sujeitos

agredidos puderam relatar o caso e expressar o sentimento de tristeza que sentiam por

apanharem do colega de turma sem motivo algum. Falaram também do medo que sentiam de

que as agressões continuassem. O discente apontado como agressor, por sua vez, admitiu o erro

e foi orientado sobre a necessidade do respeito ao outro e à diferença. Na etapa seguinte

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(círculos restaurativos), os envolvidos, juntos, puderam conversar com o objetivo de buscarem

uma solução para o caso e a restauração dos vínculos rompidos. O agressor garantiu aos colegas

que não agiria mais de forma violenta, pediu desculpas e disse que eles não precisavam mais

ter medo. As desculpas foram aceitas e, por fim, todos se comprometeram a disseminar, junto

aos outros colegas da turma, a mensagem sobre a importância de se respeitar o próximo. Assim,

o conflito foi dado por encerrado.

Pelos registros a que tivemos acesso na escola, percebemos que o NJJR foi chamado a

atuar em outros conflitos pontuais entre estudantes, que não apresentavam características de

bullying. Segundo a diretora, foram muitos os círculos restaurativos realizados pelo Núcleo;

contudo, grande parte dos registros ficou com os mediadores da promotoria, o que,

consequentemente, impediu que conhecêssemos as ocorrências.

Respondendo ao terceiro questionamento da entrevista, a gestora mencionou − além do

apoio prestado pelo NJJR − outro programa que foi difundido e trabalhado na escola em 2016

e que auxiliou na diminuição dos conflitos entre os discentes, apesar de ter tido um maior foco

na turma da aluna que sofria com os apelidos que lhe eram atribuídos pelos colegas. Segundo

ainda a diretora,

[...] foi trabalhado também valores do “Justiça e Escola” que são seis pilares:

de zelo, de solidariedade, de amizade. Aí, a gente juntou toda essa proposta e

usou uma metodologia que é do caráter “conta” para poder trabalhar [...]. Foi

um ano inteiro, na verdade, com toda a escola, em que se voltou o projeto para

toda a escola dos pilares do “Justiça e Escola”. Agora, em especial, essa turma

vivenciou situações mais específicas da sala de aula (ENTREVISTA COM A

DIRETORA PEDAGÓGICA, 2017).

Infelizmente, não foi possível entender, detalhadamente, como esses valores foram

trabalhados com os alunos e nem de que maneira os professores se envolveram na atividade.

Todavia, ao discorrer sobre um novo projeto a ser implementado na escola, denominado

“Recreio de paz” – que tem por base os valores do “Justiça e Escola” (o respeito, a tolerância,

a paciência, a lealdade e a justiça), desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do

Norte (TJRN), desde 2015, junto aos gestores das escolas da rede pública –, a gestora esclareceu

melhor o modo de funcionamento do projeto ao falar sobre como se dará a participação de um

professor, que assumirá o papel de monitor, e dos demais funcionários da instituição:

[...] a gente aprovou um projeto [...] pelo conselho [escolar] [...] [que] está

indo para secretaria [de Educação] [chamado] “Recreio de paz”, [...] para

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minimizar o impacto da violência na hora do recreio. O bullying repercute

muito na hora do recreio, que é na hora que eles estão mais ociosos. E aí, é

nesse momento que a gente tem pensado em buscar uma estratégia para

minimizar o impacto disso aí. [...] ele vai ser feito com as crianças, para

trabalhar os pilares do “Justiça e Escola”, que a gente vai trabalhar todos os

valores desta metodologia. Esse projeto vai ter um monitoramento de um

professor e todas as outras pessoas da escola vão estar envolvidas. Então vai

estar envolvido o ASG [Auxiliar de Serviços Gerais], o porteiro na hora do

recreio para estar trabalhando com brincadeiras, para buscar uma metodologia

pedagógica para esse recreio [...] através de brincadeiras para que a gente

consiga desenvolver a prática de um recreio de paz. E aí, a gente vai ter

cantinhos de brinquedo, de brincadeiras direcionadas para fazer um resgate

das brincadeiras tradicionais, para a gente poder ter esse impacto menor

(ENTREVISTA COM A DIRETORA PEDAGÓGICA, 2017).

Certamente, o encaminhamento desse projeto deixa antever a preocupação da gestora

com a violência entre os estudantes no horário do intervalo (momento em que presenciamos

interações hostis durante o período de observação e que, de fato, necessita de intervenção).

A ideia de conduzir as ações dos alunos por meio de brincadeiras é significativa, uma

vez que poderá promover, ainda que a longo prazo, uma mudança cultural na maneira como os

alunos interagem uns com os outros.

Entretanto, chama-nos a atenção o diminuto papel destinado ao docente no que tange ao

seu envolvimento com o projeto, tendo em vista que haverá somente um professor-monitor

supervisionando todas as atividades que serão conduzidas pelos funcionários da escola. É

importante ressaltar que, segundo a diretora, há formações que visam acurar o olhar da equipe

escolar para as interações dos alunos. Contudo, essas não se destinam ao professor. No

pronunciamento da diretora, uma explicação para isso:

[...] a gente tem feito formação com funcionário, para falar que esse grupo que

está dentro da escola, o ASG, por exemplo, falar que ele não é um ASG

qualquer, é um ASG que trabalha na escola, dentro da escola, e que a gente

precisa estar olhando para as brincadeiras dessas crianças o tempo inteiro.

Olhar uma criança que está reservada demais, por que razão ela está tão

reservada? Porque, às vezes, sofreu bullying e ela tá reservada porque tá triste,

porque criou angústias nela. Então, tem que estar olhando o tempo inteiro, por

isso a [...] formação [...], para discutir sobre a importância de estar olhando as

crianças de uma forma geral, em todos os aspectos. Além disso, a gente tá

trazendo a discussão da brincadeira saudável e não saudável, que é a que

impacta sobre o bullying (ENTREVISTA COM A DIRETORA

PEDAGÓGICA, 2017).

Não seria essa proposta de formação fundamental também para os docentes, a fim de

combater o perceptível desengajamento moral que muitos demonstram diante de situações de

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violência presenciadas no recreio? O próprio questionamento já aponta para a necessidade dessa

formação (ESPELAGE; SWEARER, 2003), como uma maneira de ensinar os professores não

apenas como conhecerem e/ou reconhecerem a violência (especialmente o bullying) no

contexto escolar mas também como uma maneira de implicá-los no processo para que possam

intervir como verdadeiros agentes de transformação da realidade, por meio da educação.

Evidentemente, essa mudança não se fará sem resistências. Isso porque “existem

múltiplos e complexos processos necessários para que a comunidade educacional chegue a um

acordo mínimo necessário para uma intervenção efetiva na convivência [entre os pares]”

(AVILÉS, 2005, p.1, tradução nossa). E vale enfatizar: para que se chegue a esse “acordo

mínimo”, sinalizado por Avilés, faz-se fundamental envolver os professores, desalojando-os da

condição de meros transmissores de conteúdos para alçá-los à posição de educadores

comprometidos com a formação ética de seus alunos. A justificativa para essa proposição não

poderia ser mais bem fundamentada:

Esquecemos que a convivência é um conteúdo necessário à formação do ser

humano. Os problemas vividos pelos alunos, muitas vezes, não são vistos

pelos professores porque estes estão mais preocupados com os conteúdos

acadêmicos do que com a dinâmica da sala de aula. [...]. Comumente o

professor transfere o problema para terceiros (orientadores, coordenadores e

diretores), esquecendo-se que a ética é um conteúdo da escola também e, por

conseguinte, sua responsabilidade. A sala de aula, com isto, torna-se apenas

um espaço para conteúdos e não para a convivência. E esta aprendizagem (de

convivência), que deveria ocorrer sob o olhar de especialistas, os educadores,

para chegar à construção da ética, não acontece como e onde deveria

(TOGNETTA; VINHA; AVILÉS, 2015, p. 23).

Observando sob esse ângulo, consideramos que o caminho apontado pela gestora, a

partir dos pilares do projeto “Justiça e Escola”, é deveras promissor, visto que sinaliza

positivamente a busca por uma convivência de paz entre os alunos. Entretanto, um ponto precisa

ser considerado:

Em uma perspectiva de educação fundada em valores e dentro de um projeto

de convivência (mais amplo), devemos embarcar no desenvolvimento de um

projeto antibullying por diversas razões. A razão fundamental é que várias

investigações e a implementação de projetos, em nível europeu e global, têm

mostrado que a melhoria da convivência nos centros educativos, se bem

realizada, consegue melhorar o clima do centro, mas não garante erradicar,

nem abordar os maus-tratos que configuram o bullying. Enquanto que, o

contrário, isto é, implementar programas que abordem o bullying [...]

singularmente [apresenta] resultados mais efetivos pela implementação de

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outras estratégias [...] que melhoram a convivência entre estudantes, como

mediação ou resolução colaborativa de conflitos [...] (AVILÉS, 2005, p. 3,

tradução nossa).

Sob essa ótica, fica evidente o fato de que além de pensar em um projeto amplo de

convivência, é necessário pensar em um projeto cujo foco seja o bullying, entendendo-se que

“o bullying não se minimiza, nem se erradica se não for abordado singularmente” (AVILÉS,

2005, p. 3). E que não se esqueça, obviamente, de inserir os docentes nessa dinâmica, o que,

sem dúvida, se apresenta como o maior desafio a ser enfrentado e superado no locus desta

pesquisa.

2.3.1.3.2 Coordenadora pedagógica

A entrevista com a Coordenadora pedagógica seguiu a mesma estrutura e almejou

esclarecer idênticas questões.

Em suas respostas, a coordenadora, assim como a diretora, demonstrou pouco domínio

de um conhecimento efetivo sobre o bullying, como revelam suas próprias palavras ao tratar da

questão:

Pelo que nós ouvimos ((+)) assim, na nossa época, nós chamávamos de

apelido; hoje em dia, ah, é a mesma coisa. [...] eu acho que é qualquer maneira,

qualquer modo de tratar alguém, de desafiar ou maltratar, física ou

psicologicamente, diante de determinada situação. Isso pode ser através de

fala, gestos, de ações que nem sempre todo mundo que está presente percebe,

mas, aquela criatura percebeu. Então, seria [...] fazer o outro passar por

constrangimentos ou situações conflituosas grandes ou não. Porque quem

sente é quem identifica, intensifica o tamanho e que pra nós, às vezes, quem

faz, é uma coisa banal, mas que para o outro não é tão banal e nem sempre

quem faz percebe o que está fazendo (ENTREVISTA COM A

COORDENADORA PEDAGÓGICA, 2017).

Como se pode perceber, logo no início de seu discurso, a coordenadora busca

estabelecer uma relação de similaridade entre a ação de apelidar o outro e o bullying,

assumindo, inclusive, a crença de que isso era algo já comum na sua época de estudante. E

segue pontuando outros aspectos que entende serem característicos dessa forma de violência e

do modo como se manifesta: ações que nem sempre todo mundo que está presente percebe;

que para nós, às vezes, quem faz é uma coisa banal [...] e nem sempre quem faz percebe o que

está fazendo (ENTREVISTA COM A COORDENADORA PEDAGÓGICA, 2017).

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Certamente o ato de apelidar é apenas uma dentre muitas outras formas de violência

praticadas pelo agressor, que, “sistematicamente, zomba, insulta, humilha e ridiculariza [...]

isola um colega de maneira categórica e severa [...] agride fisicamente de forma recorrente [...]

submete o outro a realizar tarefas forçadas” (AVILÉS, 2002, p. 2, tradução nossa) no intuito de

infligir dor à vítima, o que, sem dúvida, demonstra uma intencionalidade de praticar a violência.

Essa visível intenção desconstrói, assim, a tese da coordenadora de que o agressor não

percebe o que está fazendo e que age de maneira banal. Ademais, não se pode obscurecer o fato

de que é também intento do agressor mostrar aos outros colegas a sua soberania, o seu domínio,

tendo em vista que o reforço dos espectadores proporciona-lhe mais poder ante seus pares.

Reafirmando esse modus operandi do agressor, Tognetta, Vinha e Avilés (2015)

destacam, ainda, a sua falta de sensibilidade moral ante o estado psicológico do outro. Isso

porque “autores de bullying têm uma hierarquia de valores invertida; para eles, tolerância ao

diferente, humildade, misericórdia e generosidade estão abaixo do poder de ser ‘garanhão’, de

ser ‘o bom’ da turma” (TOGNETTA; VINHA; AVILÉS, 2015, p. 20, grifos dos autores), o que

reforça a ideia de que acreditar que se faz bullying sem intenção vincula-se à falta de

conhecimento sobre o assunto.

Quando questionada sobre a incidência de casos de bullying no ambiente escolar, a

coordenadora reafirma a relação (que ela acredita existir) entre o bullying e a ausência de

intenção por parte daquele que pratica a agressão. Em contraponto ao posicionamento assumido

pela diretora, a coordenadora insistiu na afirmação de que, na escola, a violência entre pares

não tem a intenção de maltratar, o que, portanto, não se configuraria como bullying. Seu

discurso atesta essa crença:

O que [...] nós vemos muito aqui na escola ((+)) eu não vejo muito a maldade,

eu não percebo o bullying como uma maldade para maltratar, para fazer

chorar, para deixar triste, não. Eu vejo como situações rotineiras que, talvez,

quem faça nem perceba o tamanho da violência, porque está tão habituado

com isso, porque, talvez, também viva isso, já traz em si alguns desses hábitos

e coloca para fora assim, de qualquer maneira. Não seria algo, no meu

entender ((+)) até existe, mas, eu não vejo, na maioria das vezes, como algo

proposital. Acho que está tão impregnado aquela maneira de falar, aquela

forma de tratar, aquele jeito de atuar que faz até sem ser maldade, digamos

assim (ENTREVISTA COM A COORDENADORA PEDAGÓGICA, 2017).

Além de retomar a questão da ausência de uma intencionalidade por parte do agressor,

a coordenadora estabelece uma associação entre o ato de agredir e a naturalização desse ato

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fazendo uma alusão ao próprio convívio familiar e social das crianças, em que, possivelmente,

situações bem similares podem ocorrer:

[...] é como se fosse passado de uma maneira não proposital, mas, tá tão

impregnada a brincadeira de mau gosto, a fala sem se sentir, que, querendo ou

não, o aluno traz consigo. [...]. [...] não é nem o preconceito, é a maneira de

colocar. E nas nossas famílias daqui, a nossa clientela vem de uma família que

não tem muita gentileza. Então, assim, a forma de colocar é espontânea, sem

muita preocupação e talvez nem venha tão impregnada de tanto preconceito,

racismo, maldade, mas, eu acho que já é tão comum no dia a dia, que acaba

chegando aqui [na escola] (ENTREVISTA COM A COORDENADORA

PEDAGÓGICA, 2017).

Essa banalização da violência, entendida como uma ocorrência trivial e socialmente

admissível porque faz parte da vida dos alunos para além do ambiente escolar, impede que se

pense numa possibilidades de “superação da situação ou [na] construção de personalidades mais

empáticas [visto que] docentes, profissionais legitimamente instituídos para favorecê-las,

justificam essa prática, naturalizando-a” (GONÇALVES; ANDRADE; GONZAGA, 2015, p.

117).

Esse modo de pensar termina por eximir a escola de educar para a convivência. Sem

esquecer também que atribui-se “a brincadeira de mau gosto” à falta de educação doméstica

(GONÇALVES; ANDRADE; GONZAGA, 2015). Mais agravante ainda é o fato de que a

violência entre pares acaba sendo vista como uma coisa banal, inerente ao ambiente escolar e à

interação entre os estudantes, em que “[atos de agressão são] tradicionalmente admitidos como

naturais, sendo habitualmente ignorados ou não valorizados [pelos] professores” (LOPES

NETO, 2005, p. 165). A violência, portanto, que deveria ser exceção acaba sendo encarada

como regra. Isso porque “vivemos tempos em que, apesar de todos os discursos tenderem para

a inclusão, a exceção [...] se normalizou” (TREVISAN; FAGUNDES; PEDROSO, 2016, p.

183).

Tendo em vista o posicionamento assumido por parte dos professores e a divergência

dos pontos de vista expressos pela diretora e pela coordenadora no que concerne à existência

de casos de bullying na escola, inclinamo-nos a pensar que esses desacertos se devem a uma

compreensão ainda bem incipiente que a comunidade escolar, em especial a equipe gestora, tem

em relação à prática de violência naquele espaço educativo.

Acreditamos que a falta de sintonia entre os discursos das gestoras, a falta de

conhecimento sobre os modos de manifestação do bullying, e a naturalização com que se

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costuma encarar o ato de agredir o outro são fatores que desfavorecem o desejável engajamento

dos docentes e potencializam a inércia de todos diante dos conflitos. Afinal, tratar mal o

próximo já é tão comum no dia a dia, que acaba chegando aqui [na escola] (ENTREVISTA

COM A COORDENADORA PEDAGÓGICA, 2017).

Emprestando ainda mais veracidade a esse dizer, transcrevemos mais um trecho do

discurso da coordenadora, em que esta reafirma perceber apenas conflitos comuns à

convivência diária na escola:

[...] eu não vejo essa maldade neles, não. O que é eu percebo, eu percebo

muito é brincadeira de mau gosto, é aquela prática diária mesmo, aquele

comentário que não foi tão bacana, mas, assim, de maldade, de criar um

discurso, de banalizar, de ridicularizar, isso eu não vejo. [...] eu não vejo

aquela mesma pessoa, aquela mesma criança maltratando alguém com falas e

gestos, eu não vejo. Eu vejo em situações diversas; alguém que falou algo que

o outro não gostou, que aí se senta, se pergunta o porquê: “Ah eu não gostei,

eu fiquei ofendido”. Tenta-se resolver pedindo desculpa, levando o outro a

chegar e se colocar no lugar do colega: “Se fosse com você, você acharia

bacana? Você tem o direito?” “Ah, porque o cabelo é de tal jeito ou a roupa

de tal jeito, nós temos o direito?”. Porque cada um tem um jeito de ser: “É

bacana esse tipo de coisa?” (ENTREVISTA COM A COORDENADORA

PEDAGÓGICA, 2017).

Aliás, como bem nos esclarece Avilés (2006), essa percepção de que as agressões são

“brincadeiras de mau gosto” está

presente em muitas concepções sociais, familiares e escolares que minimizam

a importância dos eventos, atribuindo-lhes à causas como piada, dinâmica

relacional ou contingências de situações, sendo expoentes da banalização e

justificação do abuso. A expressão “para fazer uma brincadeira” reflete uma

minimização (AVILÉS, 2006, p. 11, grifo do autor, tradução nossa).

Na verdade, há um reforço da naturalização dos conflitos na escola, o que provoca a

justificação das agressões e, em decorrência, a minimização dessas ações, conforme assinala

Avilés (2006). Lança-se, assim, um véu sobre a interação dos discentes, de modo que quem

convive diariamente naquele espaço educativo não enxerga, de fato, a violência. Todavia, esse

véu não se estende ao indivíduo externo àquela realidade; tanto que é suficiente observá-la com

mais acuidade para perceber claramente a hostilidade presente entre os alunos, especialmente

no momento do recreio.

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Pensando nessa minimização, evidenciada no discurso da coordenadora, e ainda

refletindo sobre a discordância de visão entre membros da equipe de uma mesma instituição de

ensino com relação à presença ou não do bullying na escola, perguntamos à coordenadora sobre

os registros de atendimentos de conflitos entre as crianças a fim de esclarecer melhor a questão.

Infelizmente, ela não focou sua resposta nos dados constantes nos registros escolares da

instituição. Na realidade, nem sequer os mencionou, o que apenas reforça o seu ponto de vista

de que não havia casos de violência entre pares naquele ambiente escolar. Restringiu-se a dizer

que as ocorrências haviam-se tornado mais numerosas quando o tema bullying e a ideia de

punição aos agressores ganharam destaque na mídia. Também revelou que a conversa foi o

recurso mais utilizado para a resolução desses impasses, como atestam suas próprias palavras:

[...] teve um período em que nós tivemos mais ocorrências. Eu acho que as

nossas crianças, de tanto ouvir na TV, ou até de muitos adultos já dizerem:

“Ah, responde processo, não sei o quê”, talvez isso desperte a cultura da

punição, o que é complicado porque eu não posso só deixar de fazer porque

vou ser punido; eu preciso saber que não é correto fazer, de qualquer jeito.

Mas, assim, nós temos tido menos casos, geralmente nas conversas resolve.

Os pais, quando vêm, não vêm com discurso carregado (ENTREVISTA COM

A COORDENADORA PEDAGÓGICA, 2017).

[...] qual o nosso principal foco? Fazer a criança perceber que aquela atitude

não é bacana. A gente ignora até a punição: “Ah, vai ficar sem intervalo?”

“Não”. Eu preciso que você entenda que isso aqui não é legal. E aí, quando a

gente vê que a situação não está bem resolvida, sugere à professora que leve

alguns vídeos ao laboratório de informática que leve alguma situação. [...]

trazer histórias em que trabalhem a questão textual, mas que levem a refletir

que isso não foi bacana, porque, às vezes, eu percebo na ação que o outro fez,

a minha ação. Às vezes, eu sou a vítima, mas, às vezes, fui eu que provoquei

o sofrimento. E aí, nada melhor do que essa reflexão através de ((+)) ou ver

um filme ou notar o quanto o outro ficou magoado comigo depois daquela

situação, dar tempo do outro dizer que não gostou, porque, geralmente, para

conversa, a gente chama quem magoou e quem foi ofendido. Então: “Por que

que você não gostou?” “Eu não gostei porque me senti assim”. “Eu não gostei

por isso”. “E você, fulaninho, está se sentindo feliz de saber que o outro ficou

triste por sua causa?”. Então, assim, a gente trabalha muito com a questão da

autorreflexão, do autoavaliar-se. Eu preciso perceber que o que eu fiz não foi

bacana, o que vai vir como consequência da minha ação eu posso até

responder, mas, assim, o principal é que eu perceba que o que eu fiz não foi

legal (ENTREVISTA COM A COORDENADORA PEDAGÓGICA, 2017).

É possível deduzir do dito que a intervenção, inicialmente, acontece com a promoção

de conversas isoladas com os estudantes envolvidos em conflitos, como uma maneira de

mostrar-lhes que estavam agindo de maneira errada. Quando o resultado não é satisfatório, entra

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em cena o docente responsável pelos alunos, que é orientado a fazer uma atividade diferenciada

com a turma, a fim de promover uma reflexão coletiva. De modo a exemplificar como a

coordenação conduz suas ações, a coordenadora pedagógica relatou-nos o seguinte caso, que

nos chamou a atenção por algumas peculiaridades, que apresentamos em destaque:

Teve um ano que os menorzinhos − porque nós temos crianças de 6 anos e

temos crianças que estão no 5° (ano) do “Acelera” que já têm, o quê, 13 anos,

temos crianças de 13, 14 anos [...]. Eu lembro que teve um ano que nas

brincadeiras os maiorzinhos tinham mania, um grupo tal, de colocar os

pequenininhos no braço e sair correndo, sem se preocupar se eles tavam

gostando ou não. E aí, a gente teve que conversar muito sobre isso: “São

menores, eles não gostam que qualquer um bote no braço”. “Isso é um direito

deles”. “O nosso corpo é muito íntimo”. E aí foi melhorando. E aí é como eu

comecei falando, não é nem a questão da maldade, às vezes, é uma

brincadeira inocente, que aí eu não percebo o limite do outro. Eu me acho

no direito de ir lá, pegar, brincar, botar no braço porque é menor do que

eu, sem parar para saber se ele gosta ou não, se é agradável ou não para

ele (ENTREVISTA COM A COORDENADORA PEDAGÓGICA, 2017).

Apesar de a coordenadora afirmar que se tratava de uma “brincadeira inocente”,

percebe-se, pela forma como ela constrói seu discurso, que a ação era praticada por um

determinado grupo de garotos maiores contra crianças de menor tamanho, e que isso ocorreu

várias vezes, o que se pode confirmar pela menção: Eles tinham mania (ENTREVISTA COM

A COORDENADORA PEDAGÓGICA, 2017). Segundo o relato, os garotos se achavam no

direito de ir lá, pegar, brincar, botar no braço porque é menor [...], sem parar para saber se

ele gosta ou não, se é agradável ou não para ele (ENTREVISTA COM A COORDENADORA

PEDAGÓGICA, 2017). Essa ação exigiu uma intervenção: foi preciso “conversar muito” para

que a situação melhorasse.

Não seria esse um indício de que possíveis casos de bullying naquela instituição – além

dos mencionados pela diretora – não tinham o devido reconhecimento? Sem dúvida, a falta de

registros sobre a maioria dos conflitos, especificando as ocorrências e as medidas tomadas para

a resolução de cada um, dificulta, sobremaneira, a ciência da dimensão do quanto as práticas de

violência (especificamente de bullying) faziam parte do cotidiano da escola.

O mais grave nisso tudo é o fato de que essas atitudes não são despercebidas pelos

estudantes, que podem passar a encarar a violência por eles praticada também como algo normal

e corriqueiro. Vislumbrando essa possibilidade, Gourneau (2012) faz um apelo:

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Professores e outros profissionais da escola podem ser as únicas figuras

adultas positivas na vida de um estudante. [...] os professores, portanto, não

devem apenas ser modelo em sala de aula, mas também ser um exemplo de

indivíduo respeitoso, empático. [...] as crianças aprendem em ambientes onde

conexões duradouras são feitas e relacionamentos respeitosos são obtidos.

Escolas e professores podem estar subestimando o poderoso efeito que a

empatia tem sobre as pessoas. Precisamos mudar a maneira como pensamos,

mudar a maneira como agimos (GOURNEAU, 2012, p. 124, tradução nossa).

Ter empatia diante dos conflitos diários observados (e ignorados) por grande parte dos

docentes, que se devem colocar no lugar daquele que é agredido e também do agressor, a fim

de descobrir a melhor estratégia para solucionar o problema, não é simples, mas é viável. De

acordo com Avilés (2005, p. 1, tradução nossa), “são múltiplos e complexos os processos

necessários para que uma comunidade educativa chegue a um acordo sobre o mínimo

necessário para uma intervenção efetiva na convivência [entre pares]”. Segundo esse autor,

para que isso se torne possível, é preciso encontrar respostas para várias questões: como será

feita a intervenção? Quais serão seus objetivos? Como os membros da equipe escolar irão

participar? Como será a comunicação das ações empreendidas? Que pontos precisam ser

abordados nessa intervenção? Quais conteúdos são prioritários para serem trabalhados com os

estudantes? Quais são as características dessas crianças e de suas famílias? Qual a satisfação

dos professores e da comunidade educacional para desempenharem suas funções e para

trabalharem em equipe? (AVILÉS, 2005).

Decerto, para responder, satisfatoriamente, a todos esses questionamentos, faz-se

necessário promover uma mobilização; e, para isso, é essencial que se proporcione uma

oportunidade de formação para aqueles que atuarão como mediadores junto aos discentes.

Caberá, portanto, a esses mediadores a incumbência de desmistificar a ideia de naturalização

da violência presente na escola, convencendo-se, finalmente, de que a educação é o caminho

para uma convivência pacífica.

Essa convivência de paz, entretanto, não deve ser entendida como a ausência de

conflitos, tão comuns nas interações em comunidade; afinal, “é uma ilusão crer que se possa

fazer desaparecer a agressividade e, como consequência, a agressão e o conflito” (CHARLOT,

2002, p. 436), uma vez que esses estão presentes (e até de forma desejável) no esporte, na arte

e em outras formas de concorrência no ambiente escolar. Na verdade, deve-se não apenas

combater a violência mas também procurar esclarecer sobre seus consequentes malefícios.

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Concretamente isso significa que o problema não é fazer desaparecer da escola

a agressividade e o conflito, mas regulá-los pela palavra e não pela violência

– ficando bem entendido que a violência será bem mais provável, na medida

em que a palavra se torna impossível. [...] o que está em jogo é também a

capacidade de a escola e seus agentes [...] gerirem situações conflituosas

(CHARLOT, 2002, p. 436).

Em sintonia com o pensamento de Charlot (2002) e Avilés (2005), acreditamos que a

elaboração de um projeto na escola – tal qual foi pensado pela diretora – que motive as crianças

a mudarem o foco em relação à violência, de forma a agirem de modo respeitoso com o outro,

é um passo importante, além de necessário. Contudo, para que seu alcance seja satisfatório, é

imprescindível o engajamento de todos que compõem a escola, iniciando-se com uma mudança

de visão que implique enxergar os atos de violência, de fato, como violência.

2.3.1.3.3 Professora titular da turma

Nas entrevistas com a Diretoria e com a Coordenadora Pedagógicas focalizamos o

bullying visando a uma compreensão de como era este entendido, reconhecido e trabalhado na

escola. Na entrevista com a Professora titular dos nossos sujeitos participantes – que foi

realizada em meio ao período de intervenção –, buscamos ir além desse objetivo.

Começamos questionando sobre o que, de fato, entendia por bullying, deixando-a bem

à vontade para discorrer livremente. Depois, conduzimos a entrevista de tal modo a satisfazer

nossa pretensão de descobrir como essa docente lidava com as situações de violência

instauradas na sala de aula. Também visávamos saber se, em sua vida profissional, havia

identificado caso(s) de bullying entre os seus alunos, ou mesmo se havia tido conhecimento de

alguma ocorrência dessa natureza com qualquer um deles.

Adicionalmente ao tratamento da temática em foco (o bullying) ainda procuramos

identificar se havia um trabalho com os textos literários; se a professora fazia uso da biblioteca

como recurso para apresentar histórias de literatura aos seus alunos; se a nossa pesquisa havia

ajudado, de algum modo, a pensar na inserção da literatura em suas aulas – regularmente −; e

qual a percepção dela sobre o trabalho que estávamos desenvolvendo com as crianças.

Em se tratando do bullying, podemos dizer que a docente, apesar de não ter sido muito

assídua às nossas sessões de leitura, conseguiu assimilar alguns dos saberes derivados das

discussões que promovemos com os sujeitos participantes, nos momentos de pós-leitura, dando-

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nos indícios de que ela não estava assim tão alheia à nossa intervenção quanto imaginávamos.

É, pelo menos, o que revela o teor de sua resposta a seguir:

[...] bullying é ((+)) [...], principalmente quando as crianças são maiores,

sempre tem aquela questão de apelidos [...], mas daí que não chega a ser o

bullying, porque o bullying é quando tem insistência, não é? [...], quando

você realmente tem a intenção de constranger de vez. Aí quando está

aquela brincadeira de apelidar o outro, eu ainda nem considero como bullying,

porque, enfim, alguns levam na brincadeira e entram ali, não ligam muito.

Mas, o bullying é essa questão de querer constranger a pessoa, tanto pode

ser só a questão só verbalmente mesmo, oralmente, chamando a pessoa de

tal, tal coisa e que, às vezes, chega realmente em agressões físicas, né? que,

às vezes, você simplesmente ninguém sabe o porquê, porque, às vezes,

nem a criança tem essa diferença e mesmo que tivesse. É ((+)) o tal

valentão não foi com a cara daquela criatura, que, às vezes, é só porque é

muito mais inteligente do que ele, vamos dizer, aí já fica fazendo aquela

pressão psicológica, que vai realmente às vias de fato. Eu entendo como isso,

chega na agressão física e na agressão também verbal (ENTREVISTA

COM A PROFESSORA TITULAR, 2017).

Nesse fragmento de discurso, a professora começa relacionando o bullying ao ato de

apelidar, assim como o fez a coordenadora. Também atribui essa prática, mais particularmente,

às crianças maiores. Contudo, demonstra uma percepção mais aguçada ao discorrer sobre

alguns elementos característicos dessa forma de violência: a repetitividade das agressões (que

ela nomeia de “insistência”); a intencionalidade do agressor (“querer constranger”) (OLWEUS,

2006) e as formas de praticar as agressões, que podem ser verbais, físicas e/ou psicológicas.

Além disso, mostra-se propensa a acreditar que o agressor não escolhe a sua vítima

necessariamente em razão de um desvio de aparência (OLWEUS, 2006). Na realidade, ele “é

perspicaz, conhece a fragilidade daqueles a quem tem a intenção de ferir” (TOGNETTA;

VINHA; AVILÉS, 2015, p. 20).

Numa particular apreciação, podemos dizer que os saberes demonstrados pela docente

acerca de algumas características inerentes ao bullying são reveladores de que − apesar de não

ter sido nosso objetivo instruí-la − o fato de ela estar presente em alguns momentos da nossa

intervenção contribuiu para que ampliasse os seus conhecimentos sobre essa questão. E isso só

vem reforçar a importância da formação docente a fim de que o professor possa estar preparado

para executar uma tarefa elementar frente às situações de violência: saber distingui--las, para

que, a partir daí, possa atuar de modo apropriado.

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Quando questionada sobre já haver testemunhado algum caso de bullying entre os seus

alunos, a professora respondeu que isso nunca ocorrera e ainda acrescentou que as crianças

costumam apelidar-se, mas que considera essa prática como sendo uma mera brincadeira.

No que diz respeito à sua percepção da existência da prática de bullying na escola, a

docente relatou a seguinte situação:

[...] não sei se chegou a ser bullying, porque eu acho ((+)) a professora

interveio para que não chegasse a esse ponto, mas, realmente, teve aquela,

vamos dizer, aquela ((+)) aluno “x” tava sendo alvo de quase todos da turma

e outros alunos de outras salas, por determinado problema que ele tinha, mas

aí a professora em sala foi intervindo. Principalmente, porque é a professora

que está convivendo com aquela criança, né? E, às vezes, ele vem se queixar

com ela, porque é a professora da sala. Acho que não chegou ao ponto extremo

de o menino ter que sair da escola, porque às vezes acontece, ele se sente tão

ridicularizado que pede pra sair, né? Acho que não, bullying nos anos que eu

estou aqui, não (ENTREVISTA COM A PROFESSORA TITULAR, 2017).

Como se vê, apesar de conhecer algumas características do bullying e até mesmo

conseguir identificá-las no caso relatado, a professora não se mostra convicta de que se tratou

veramente de uma prática de violência entre pares; isso porque, conforme seu alegado, a outra

docente “foi intervindo”. Diante do exposto, questionamo-nos: mesmo com a intervenção da

professora, a partir das queixas apresentadas pela vítima, não é possível afirmar que, por um

período, ainda que curto (não sabemos), a violência direcionada a essa criança se configurou

como bullying?

Além da visível insegurança demonstrada pela professora para definir o que realmente

se pode caracterizar como sendo um caso de bullying, vale ainda sublinhar, em seu discurso, a

lamentável ausência de uma interlocução a ser estabelecida entre os docentes na busca de uma

resolução conjunta para o referido problema. Como fica subentendido, tão-somente se comenta

o caso com os demais colegas, mas cada professor, quando identificada ou denunciada a

ocorrência da agressão, assume a responsabilidade de lidar com a situação e tentar, sozinho,

resolver com seus alunos (apesar de o caso descrito ter envolvido alunos de outras turmas e

exigir que também se envolvessem outros professores). Isso quando a questão não passa a ser

uma responsabilidade direta da gestão para a tomada das providências cabíveis – como vimos

nos registros de atendimento de conflitos.

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Segundo nos orienta Avilés (2005), para que se possa alcançar uma bem-sucedida

intervenção/uma resolução mais definitiva dos conflitos devem-se levar em consideração os

seguintes requisitos:

Motivação/Necessidade: trata-se do que sentimos como sendo algo necessário

a ser feito, não por uma determinação legal de uma autoridade.

Funcionalidade: o que fazemos deve servir para algo, não deve ser um projeto

para ficar engavetado. Deve servir para resolver os problemas existentes.

Participação: a legitimação do que fazemos dependerá de que todos os

membros da comunidade educativa tenham participado ativamente [...] em um

processo de consenso.

Representação: indubitavelmente, o que é acordado será nosso e representará

nossas intenções educacionais. [...] Será nossa declaração institucional. O que

vamos defender, o que nos representará e nos identificará (AVILÉS, 2005, p.

2, tradução nossa).

Mas é preciso observar que nenhum desses pontos poderá ser alcançado sem que haja,

primeiramente, o esclarecimento de que a violência escolar é um problema e que, portanto, deve

ser encarado como tal. Também se faz necessário disseminar a ideia de que, sem planejamento

e engajamento daqueles que compõem a comunidade escolar, não há como desenvolver um

trabalho eficaz. Mesmo porque sem a cooperação de todas as partes atuantes, apenas uma

parcela das agressões poderá ser identificada e combatida, de maneira isolada, persistindo o

discurso de que cabe ao professor do estudante que está sendo vítima (ou à gestão) a

incumbência de resolver o conflito; afinal, é a professora que está convivendo com aquela

criança, né? (ENTREVISTA COM A PROFESSORA TITULAR, 2017).

Encerrado esse momento inicial da entrevista, em que buscamos desvelar os saberes da

professora em relação ao bullying, passamos a tratar, mais particularmente, sobre a literatura,

em especial sobre o lugar que lhe cabe no processo de ensino-aprendizagem. Perguntamos-lhe

como era desenvolvido o trabalho de leitura de literatura na sua sala de aula. Sua resposta,

contudo, em vez de contemplar o ponto focalizado, derivou para o ensino da leitura na disciplina

de Língua Portuguesa, como pode ser observado no trecho abaixo:

[...] a leitura que a gente trabalha, principalmente ((+)) assim, eu dou

preferência ((+)) se bem que Português é praticamente todo dia, a disciplina.

Aí a gente tem leituras individuais, né? Que é quando eu peço pro aluno ler

individualmente, depois a gente faz aquela interpretação e também tem a

leitura coletiva, que cada um vai lendo uma parte e tal, pra eles aprenderem a

ouvir um e o outro, né? E daí a questão de gêneros textuais diversos, vai

depender do que a gente tá estudando (ENTREVISTA COM A

PROFESSORA TITULAR, 2017).

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Em seu discurso, não há indícios da existência de um trabalho regular com a literatura,

mas sim a prática de leitura em prol da fluência entonacional. Além disso, constatou-se que os

alunos leem com o objetivo de responderem atividades de interpretação e de distinguirem os

gêneros textuais. Esse modo de encarar a leitura obscurece (para os próprios discentes) a sua

real finalidade na/para a vida, uma vez que vai de encontro “[às] experiências de leitura que a

escola deve patrocinar [, que] precisam ter como objetivo capacitar os alunos para que, fora da

escola, lidem competentemente com a imprevisibilidade das situações de leitura [...]”

(LAJOLO, 2009, p. 105).

Assim, apesar de “o exercício da leitura [ser] o ponto de partida para a aproximação à

literatura, [observa-se que] a escola dificilmente o [promove], a não ser quando condicionado

a outras tarefas, a maior parte de ordem pragmática” (ZILBERMAN, 2015a, p. 2), como se

percebeu no discurso da professora.

Ler confunde-se [...] com a aquisição de um hábito e tem como consequência

o acesso a um patamar do qual não mais se consegue regredir; porém, a ação

implícita no verbo em causa não torna nítido seu objeto direto: ler, mas ler o

quê? Desta maneira, o cerne da leitura não se esclarece para o aluno que é

beneficiário dela. Por conseguinte, sabendo ler e não mais perdendo esta

condição, a criança não se converte necessariamente num leitor, já que este se

define, em princípio, pela assiduidade a uma instituição determinada − a

literatura (ZILBERMAN, 2015b, p. 1).

O ensino da leitura, portanto, não se relaciona à literatura com a finalidade de formar

leitores. O ato de ler ganha status de uma ação mecânica e estática, que os estudantes devem

praticar para aprender a decodificar – de forma automatizada – a escrita da sua língua materna,

cabendo interpretá-la apenas para responderem as tarefas. Essa conduta contribui,

significativamente, para o afastamento da criança da literatura, uma vez que essa associa a

leitura à resolução de exercícios (ZILBERMAN, 2015b). Desconsidera-se a importância da

leitura como “um ato da sensibilidade e da inteligência, de compreensão e de comunhão com o

mundo; [e que] lendo, [expande-se] o estar no mundo, [alcançam-se] esferas do conhecimento

antes não experimentadas [...] [comove-se] catarticamente e [amplia-se] a condição humana”

(YUNES, 1995, p. 185). Tal comoção é propiciada “[...] através da experiência de alteridade,

[...] [que permite ao leitor] [...] a experiência de viver, temporariamente, a história de uma

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personagem sem correr riscos reais” (AMARILHA, 2006, p. 30), o que pode possibilitar uma

das virtudes mais importantes quando se trata da relação entre sujeitos: a empatia.

Essa potencialidade da literatura, todavia, não era explorada pela professora. E isso pode

ser comprovado tanto por nossas observações (quando vivenciamos a dinâmica da sala de aula)

quanto pela fala dos próprios sujeitos (nas entrevistas iniciais). Nessas duas circunstâncias,

ficou evidenciado o fato de que a literatura era trabalhada esporadicamente, a depender de uma

data comemorativa (como o dia do folclore) ou da presença de algum texto literário no livro

didático.

Ainda assim, insistimos em perguntar-lhe sobre a utilização do acervo literário da

biblioteca em suas aulas, a fim de ratificarmos outro aspecto que havíamos observado: a

ausência de um trabalho integrado entre as atividades desenvolvidas na sala de aula e a dinâmica

na biblioteca. Em sua resposta, além de confirmar o uso do livro didático para a leitura de textos

– não necessariamente literários – para as crianças, a docente afirmou também que apenas os

estudantes têm a prática de pegar livros da biblioteca, o que atesta a já anunciada falta de

integração. Em suas próprias palavras, a confirmação:

[...] quando eles [os estudantes] vão para aquele dia lá [da biblioteca] [eles

pegam livros], [...] eles têm essa atividade de ((+)) e que tem o empréstimo.

Em sala, normalmente, ou é livro meu mesmo, que eu faço a leitura, conto

alguma história, alguma coisa desse gênero ou é o livro que eles seguem [o

didático] porque daquele livro tem vários tipos de histórias, tem vários tipos

de gêneros textuais e tem atividades relacionadas aquilo ali, normalmente é

dessa forma (ENTREVISTA COM A PROFESSORA TITULAR, 2017).

Embora a professora faça referência ao fato de levar seus próprios livros para a sala de

aula e de contar histórias para os alunos, não observamos nenhuma atividade de leitura de

literatura conduzida por ela. Os textos trabalhados, conforme mencionado, restringiram-se aos

presentes nos livros didáticos e tinham por objetivo verificar a proficiência dos alunos para a

leitura oralizada ou tão-somente para responder as questões propostas na atividade. Essa

conduta reforça, “de certa maneira, [o] arquétipo do livro em sala de aula, [que] acaba por

exercer um efeito que embacia a imagem que a prática da leitura almeja alcançar. [...]. [...]

exclui a interpretação e, com isto, exila o leitor (ZILBERMAN, 2015b, p. 3). Há, desse modo,

um fortalecimento da crença de que a leitura está diretamente, e de maneira irremediável,

relacionada aos conteúdos específicos de Língua Portuguesa – uma crença já enraizada no

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discurso docente e repassada aos alunos ao longo da escolarização, induzindo-os a acreditar que

precisam ler unicamente para adquirir a prática de uma impecável oralidade.

Considerando o modo como a leitura e a literatura eram trabalhadas na sala de aula e

rememorando a intenção da professora – mencionada antes de iniciarmos a pesquisa – de

implementar um “rodízio de livros de literatura” na turma, buscamos saber se, a partir do nosso

trabalho com a literatura, tinha havido alguma mudança quanto à sua percepção sobre a

importância da inserção de textos literários no dia a dia das aulas. Para tanto, formulamos a

seguinte questão: pelo que você aprendeu com a nossa pesquisa, nas intervenções

especialmente, você teve alguma ideia de como elaborar e colocar em prática esse seu projeto?

Sua resposta foi assim construída:

Em relação ao rodízio de livros, ainda não, [...] até porque não tem número de

livros suficiente e, tipo, por exemplo, pela manhã, que é um projeto, não sei

se é “Acelera”, eles têm um número ideal para que todos possam ler. [...] eu

não tenho essa quantidade de livro, mas aí eu acho que, a princípio a gente já

trabalha. O que importa é a questão de diversificar os diversos tipos de texto,

porque a gente entrou com receita, com notícias, isso tudo é trabalhado

(ENTREVISTA COM A PROFESSORA TITULAR, 2017).

Diante dessa resposta, e na tentativa de aprofundar a temática ora focalizada, retomamos

o curso da conversa com o seguinte questionamento: [...] no dia [...] do folclore, você trouxe

livros [lendas], eles [os alunos] leram e fizeram uma releitura. É desse modo que você trabalha

[a literatura]? A resposta foi elaborada nos seguintes termos:

Sim, foi um trabalho sobre lendas. Pronto, meu recurso é esse e assim por

diante, a gente faz o que pode (ENTREVISTA COM A PROFESSORA

TITULAR, 2017).

Essas colocações dão margem às seguintes ponderações: primeira, é possível que, ao

observar a nossa intervenção – em que, normalmente, tínhamos vários exemplares de uma

mesma obra para serem entregues aos sujeitos participantes –, a professora tenha concluído que

somente com aquele recurso seria viável o trabalho com a literatura; segunda, o fato de que não

dispor de muitos exemplares, poderia justificar o não desenvolvimento do projeto “rodízio de

livros”; terceira, a professora parece ter uma compreensão pouco clara sobre o texto literário,

considerando-se o fato de que, embora afirme trabalhar com literatura, atém-se a mencionar,

em seu discurso, textos não literários, sem fazer qualquer referência ao texto literário; e quarta,

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é preciso rever a crença de que o trabalho com as lendas é bastante porque, na sua visão, “faz o

que pode”.

Com relação ao primeiro e ao segundo pontos, acreditamos que a possibilidade de dispor

de um livro para cada aluno configura-se como uma situação ideal; contudo, sabemos que a

grande maioria das escolas (especialmente as públicas) não dispõe desse recurso. Mas seria essa

uma justificativa para não se realizar aulas de literatura? Certamente que não. O

desenvolvimento de uma aula de literatura satisfatória baseia-se no planejamento (SAMPAIO,

2005). Se não temos a quantidade de livros suficientes, que outra estratégia podemos utilizar?

Recursos como o projetor multimídia, a divisão dos alunos em pequenos grupos (a depender do

número de exemplares existentes) ou a entrega do texto digitado para que os alunos

acompanhem a leitura – estratégias que também adotamos durante as nossas sessões de leitura

– são apenas algumas das possibilidades para a inserção da literatura na vida das crianças. Para

Vasconcelos (1999), quando se trata da elaboração do planejamento, uma das dimensões a

serem levadas em consideração é a realidade, sendo fundamental que se reflita sobre ela antes

de intervir. Conhecendo a realidade e sabendo das limitações existentes na escola, é possível

formular um plano de ação viável, sempre embasado na finalidade da atividade que está sendo

planejada (VASCONCELLOS, 1999).

Desse modo, a impossibilidade de ter vários exemplares de uma mesma obra literária

não seria, de forma alguma, impedimento para não se planejar/implementar o projeto pensado

pela professora. Ademais, acreditamos que a própria ideia do “rodízio” de livros já permitiria

inúmeras estratégias metodológicas, considerando o acervo diversificado existente na

biblioteca escolar.

Diríamos, pois, que o desejo de desenvolver um trabalho com a literatura deve estar

incorporado não somente no discurso do professor mas também em suas ações, que precisam

ser reflexo do seu planejamento. Sobre a necessidade de ação docente, Pound (2013) faz a

seguinte afirmação:

[O professor] pode sempre despertar os seus alunos com um “aperitivo”, ele

pode ao menos fornecer-lhes uma lista de coisas que vale a pena ler em

literatura ou num determinado capítulo dela. O primeiro pântano de inércia

[entretanto] pode ser a mera ignorância da extensão do assunto ou o simples

propósito de não se afastar de uma área de semi-ignorância. A maior barreira

é erguida, provavelmente, por professores que sabem um pouco mais que o

público, que querem explorar sua fração de conhecimento e que são totalmente

avessos a fazer o mínimo de esforço para aprender alguma coisa a mais

(POUND, 2013, p. 42).

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É necessário, portanto, que o professor assuma a responsabilidade pelo aprendizado de

seus alunos, que ele se mostre engajado no projeto de aprender a ensinar. No caso da literatura,

que ele aprenda como apresentá-la aos aprendizes. Mas para que isso se torne realidade, faz-se

imprescindível que ele seja um leitor proficiente e que esteja aberto a aprender e a ampliar

constantemente os seus próprios horizontes literários. Em contrapartida, se preferir não fazê-lo,

mergulhará num ciclo vicioso em que só lhe será possível revelar sua pequena “fração de

conhecimento” (POUND, 2013), permanecendo na sua zona de conforto, da qual acredita,

piamente, que não precisa sair.

No que concerne ao terceiro ponto, chama-nos a atenção o modo como a docente vincula

o trabalho com os textos ao ensino dos gêneros textuais. Será que a única finalidade que os

textos – sejam estes literários ou não literários – têm na escola é a de ensinar os discentes a

identificar o que é uma receita, uma notícia de jornal, um conto ou um poema? Esses

ensinamentos, sem dúvida, são importantes, mas ir além da classificação ou da mera

decodificação é essencial para a formação leitora, que se aprimora à medida que se tem contato

com a literatura, ou seja, quanto mais se leem textos literários, mais se amadurece como leitor.

E alcançar essa maturidade não é uma exigência que se coloca tão-somente ao aluno; é,

primordialmente, um dever do professor, como alerta Amarilha (2010):

[...] destaco a importância de o professor de literatura, sobretudo, ter repertório

de leitura, podendo com esse domínio cultural ampliar a visão de seu aluno

sobre determinada temática, superando o limite dos manuais. [...] o domínio

desse [repertório] possibilita ao professor exercer continuamente sua

capacidade de refletir e inovar sua prática, justamente porque traz as marcas

de sua formação pessoal e as relaciona às necessidades do contexto

pedagógico em que atua. É com essa visão, que valoriza a capacidade de

perceber oportunidades de avanços para si e para seus alunos, que o professor

deve buscar enriquecer cada vez mais o seu repertório literário, capacitando-

se, assim, a exercer uma docência ao mesmo tempo rigorosa, porque em

contínua formação, e em sintonia com as provocações que o entorno apresenta

(AMARILHA, 2010, p. 87-88).

Sendo um leitor contumaz e compreendendo a importância de ter um bom repertório

literário, o professor poderá sobrepujar a ideia de que trabalhar textos em sala de aula é

sinônimo de ensinar gêneros textuais; isso porque “o repertório de leitura re-estabelece o

professor na docência consciente, permanente, engajada com autoridade e, portanto, afasta-o

da alienação de cumprir uma pauta determinada por outros” (AMARILHA, 2010, p. 88).

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Amplia-se, assim, o horizonte do trabalho docente que, muitas vezes, esbarra na descabida

justificativa: “[...] a gente faz o que pode” (ENTREVISTA COM A PROFESSORA TITULAR,

2017).

Essa afirmação da professora leva-nos ao quarto ponto que destacamos no seu discurso.

Será que trabalhar a literatura na sala de aula, esporadicamente – em datas comemorativas como

o dia do folclore –, é aceitável sob a justificativa de que se faz o que pode? Acreditamos que

não.

Como forma de transpor essa alienação docente (AMARILHA, 2010), Costa (2010)

alerta sobre a necessidade de qualificação do professor para o trabalho com a leitura, uma vez

que “a leitura qualificada tem também o poder de libertar o leitor de preconceitos, ideias

prontas, mesmice e tédio. [...] [de modo que para] educar para a libertação através da leitura,

faz-se necessária a continuada atenção e preparação dos professores” (COSTA, 2010, p. 83).

Esse, sem dúvida, é o caminho que pode conduzir à real mudança da prática de leitura de

literatura na sala de aula. Todavia, isso só será possível se houver, além do desejo em iniciar

um projeto de literatura, a conscientização e o engajamento por parte do professor, que deve

buscar estratégias para fazer um trabalho diferente do comumente executado. Caso contrário,

as limitações – que inevitavelmente existem – continuarão a servir de argumento para o “não

fazer”.

Em relação à conscientização, percebe-se, no discurso da professora, que há a

compreensão sobre a importância da leitura de literatura – ainda que essa não esteja inserida na

sua prática docente. Quando questionamos sobre os pontos positivos e negativos que ela

identificou na nossa intervenção, obtivemos a seguinte resposta:

[...] só os pontos positivos mesmo, porque além de tratar da questão do

bullying [...] teve a questão prática de leitura. A prática de leitura é muito

importante; principalmente, assim pro 5° ano. Para eles saberem ler ((+))

porque a questão da leitura envolve vários assuntos, nem só a questão de ler

bem, tem a questão de saber entonação, de depois de toda a leitura você

realmente saber do que é que tava falando, que chega na parte de interpretação.

Não só ler por ler, decodificar aquilo ali. Aí, quando você (PP) trabalha isso,

faz a leitura. E aí? Tal coisa, e aí? Realmente eu percebi que [...] a grande

maioria se envolveu, leu, interpretou, soube do que estava falando. E também

boa parte veio falar para mim que gosta e tal. Eu achei bem válido mesmo

(ENTREVISTA COM A PROFESSORA TITULAR, 2017).

É notório o descompasso assinalado entre o discurso da professora (considerando a sua

compreensão de leitura) e a sua prática propriamente dita. Ela demonstra entender a importância

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do momento de pós-leitura, em que os alunos se envolvem na discussão, e dialogam sobre a

história, mobilizados pela mediação docente. Revela ainda ter tido a confirmação dos próprios

discentes de que eles gostavam da forma como as sessões de leitura eram realizadas. Por que,

então, não incorporar essa dinâmica à sua prática? Retorna-se, mais uma vez, à questão do

interesse/da disposição do professor. Não basta reconhecer o apreço das crianças pelos textos

literários e sua satisfação quando se lhes dá a oportunidade de poder ter acesso a eles

(AMARILHA, 2004); é preciso levá-los sempre para a sala de aula. É fundamental explorá-

los, discuti-los, dando aos alunos a chance de estabelecer relações com suas próprias

experiências e, para além, poder ampliar, a cada dia, o seu repertório de leitura.

Este é, sem dúvida, um grande desafio a ser superado!

2.3.2 Planejamento da intervenção

2.3.2.1 Seleção dos contos

No processo seletivo, escolhemos contos clássicos e contemporâneos, privilegiando

histórias que problematizassem a vivência humana e apresentassem conflitos envolvendo as

personagens (e, consequentemente, permitissem a interlocução sobre o bullying), de modo que

tornassem “acessíveis ao leitor experiências imaginárias que [fossem] catalisadoras dos

problemas do desenvolvimento humano e assim [proporcionassem] autoconfiança sobre o seu

próprio desenvolvimento” (AMARILHA, 2004, p. 73).

Os contos selecionados foram os seguintes:

1. A Gata Borralheira (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a);

2. As Cegonhas (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002);

3. Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKI,

2003b);

4. João-trapalhão (ANDERSEN; FRANÇA; FRANÇA, 2004);

5. O Patinho Feio (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002);

6. Um garoto chamado Rorbeto (PENSADOR; BUENO, 2005);

7. Raul da ferrugem azul (MACHADO; FARIA, 2012); e

8. Obax (NEVES, 2010).

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Ressaltamos o fato de que os cinco primeiros contos listados formaram o corpus da

nossa pesquisa bibliográfica desenvolvida na dissertação de mestrado. Optamos por revisitar

esses contos em razão de compreendermos, a partir das análises realizadas, o potencial das

histórias para discutir o bullying. Além disso, entendendo este estudo como uma continuidade

do anterior, consideramos de fundamental importância colocar em prática as constatações

teóricas, alcançadas outrora, da maneira como aqui propomos: realizar a leitura e a discussão

de contos literários na sala de aula. Os outros três contos foram selecionados visando expandir

o leque de características das práticas de bullying na discussão com os sujeitos, enriquecendo,

assim, as dinâmicas de pós-leitura e ampliando a visão desses sujeitos com relação a esse tipo

de violência.

Tendo em mente a plurissignificação intrínseca ao texto literário (FIORIN; SAVIOLI,

1992), que possibilita ao leitor diversas interpretações, faz-se necessário esclarecer que os

contos selecionados para este estudo não foram escritos com a finalidade de servirem à

discussão sobre o bullying, mas, exatamente em decorrência da polissemia presente na

literatura, permitem que decidamos seguir por esse caminho. Outro esclarecimento que

consideramos imprescindível diz respeito à nossa convicção de que, mesmo trabalhando textos

literários para discutir sobre o bullying, não significa, de modo algum, que daremos à literatura

uma abordagem pragmática ou meramente utilitária, uma vez que o texto literário, por permitir

a katharsis,

[...] [concretiza o] [...] processo de identificação que leva o espectador a

assumir normas de comportamento social [...] [coincidindo] com o prazer

afetivo resultante da recepção de uma obra verbal e que motiva “tanto uma

transformação de suas [do recebedor] convicções, quanto a liberdade de sua

mente”. A catarse constitui a experiência comunicativa básica da arte,

explicitando sua função social, ao inaugurar ou legitimar normas, ao mesmo

tempo que corresponde ao ideal da arte autônoma, pois liberta o espectador

dos interesses práticos e dos compromissos cotidianos, oferecendo-lhe uma

visão mais ampla dos eventos e estimulando-o a julgá-los (ZILBERMAN,

1989, p. 57, grifo da autora).

Considerando esses aspectos (temático e literário), passamos a apresentar os contos

selecionados:

A Gata Borralheira (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a): conta a história

de uma garota que perde a mãe e passa a conviver com a madrasta e suas duas

filhas. A garota, apesar das maldades praticadas pela madrasta e pelas “irmãs”,

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não revida, submetendo-se às tarefas domésticas mais pesadas e às constantes

humilhações.

Figura 2 – Capa do livro A Gata Borralheira (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a).

As Cegonhas (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002): conta a história de

quatro filhotes de cegonha que vivem em uma cumeeira, sob os cuidados da mãe

e do pai-cegonha, e sentem medo da cantoria dos meninos da rua que afirmam

que eles serão queimados, enforcados e trancafiados. À medida que os filhotes

vão crescendo, aflora neles o desejo de vingança frente à tortura psicológica

exercida pelos meninos. Esse sentimento vai sendo nutrido até o momento em

que obtêm sucesso e podem, enfim, se vingar.

O Patinho Feio (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002): conta a história

de um patinho que, em razão de sua feiura, sofre todo tipo de intimidação −

verbal, física e psicológica − por parte dos irmãos e de outros grupos com os

quais interage ao longo da vida.

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Figura 3 – Capa do livro que contém os contos As Cegonhas e O Patinho Feio (ANDERSEN; PEDERSEN;

FROLICH, 2002).

Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos (GRIMM; GRIMM;

GRABIANSKY, 2003b): conta a história de três irmãs que têm aspectos físicos

diferentes – a primeira possui apenas um olho, a segunda, dois olhos, e a terceira,

três olhos. A diferença, nesse contexto, apresenta-se de maneira pouco

frequente, uma vez que é a irmã com dois olhos quem é alvo de diversas

agressões ao longo do conto, em razão ser “comum”, se comparada às irmãs.

Figura 4 – Capa do livro que contém o conto Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos

(GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b).

João-trapalhão (ANDERSEN; FRANÇA; FRANÇA, 2004): conta a história de

João, que é desacreditado pelo pai e pelos irmãos, sendo, portanto, apelidado por

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eles de João-trapalhão. João, entretanto, no decorrer de todo o conto, demonstra

não se importar com as investidas de seus agressores, que menosprezam

completamente as suas habilidades.

Figura 5 – Capa do livro que contém o conto João-trapalhão (ANDERSEN; FRANÇA; FRANÇA, 2004).

Um garoto chamado Rorbeto (PENSADOR; BUENO, 2005): conta a história de

Rorbeto, menino em fase de alfabetização, que adora enumerar suas coisas

prediletas. É numa dessas enumerações que ele descobre que tem seis dedos em

uma das mãos, constatação que o deixa extremamente envergonhado!

Figura 6 – Capa do livro Um garoto chamado Rorbeto (PENSADOR; BUENO, 2005).

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Raul da ferrugem azul (MACHADO; FARIA, 2012): conta a história de um

garoto chamado Raul que, ao se manter inerte diante da violência que presencia,

observa o surgimento gradativo de manchas azuladas pelo seu corpo.

Figura 7 – Capa do livro Raul da ferrugem azul (MACHADO; FARIA, 2012).

Obax (NEVES, 2010): conta a história da pequena Obax, que habita uma aldeia

na savana africana. Obax é uma menina solitária, que se diverte enormemente

com suas aventuras imaginárias, as quais faz questão de relatar aos adultos e às

demais crianças. Todavia, suas histórias sempre são postas em “xeque” – uns

duvidam, outros riem –, deixando a menina muito triste e desiludida.

Figura 8 – Capa do livro Obax (NEVES, 2010)

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2.3.2.2 Organização das sessões de leitura

Realizada a seleção dos contos, organizamos as sessões de leitura de acordo com a

metodologia da andaimagem (scaffolding), apresentada por Graves e Graves (1995), em que a

mediação deve partir das inferências desenvolvidas pelos aprendizes para então chegar a um

novo conhecimento. Nesse processo, o planejamento das ações do mediador é fundamental, e

deve levar em conta o público-alvo e a adequação quanto à escolha do texto, com foco principal

nas suas potencialidades.

Segundo a metodologia formulada por esses autores, a instituição da leitura deve

compreender três momentos: a pré-leitura, que tem por objetivo motivar os sujeitos, criar

expectativas sobre o texto, ativar os conhecimentos prévios e fazer uma pré-abordagem do

vocabulário existente; a leitura, que oportuniza a aproximação/a exploração do texto de várias

maneiras (a leitura silenciosa, a leitura guiada, a leitura oral realizada pelo docente ou pelos

estudantes); e a pós-leitura, que dá condições aos aprendizes de organizarem o que

compreenderam do texto, a partir da reflexão, do questionamento e da discussão. Esse

momento, em particular, fornece indícios importantes para que o mediador possa avaliar a sua

intervenção e desenvolver atividades criativas que estimulem o aprendiz a pensar sobre o texto

e a estabelecer relações com sua realidade.

No quadro 4, a seguir, apresentamos, de modo sucinto, a sistemática que adotamos em

cada uma das intervenções.

Quadro 4 – Sistemática das sessões de leitura

Data Conto Pré-leitura Leitura Pós-leitura

09/10/2017 A Gata Borralheira

(GRIMM; GRIMM;

TEIXEIRA, 2003a).

Motivação para a

leitura a partir da

adivinhação de

objetos (sapatinho e

coroa).

Formação de

vocabulário (pré-

ensino).

Leitura em voz

alta.

Cada sujeito, com

um livro,

acompanhando

individualmente.

Discussão.

Elaboração de

esquema: atitudes

das personagens x

características do

bullying.

16/10/2017 João-trapalhão

(ANDERSEN; FRANÇA;

FRANÇA, 2004).

Exploração do título,

por meio de

questionamentos.

Formação de

vocabulário (pré-

ensino).

Leitura em voz

alta.

Cada sujeito, com

um livro,

acompanhando

individualmente.

Discussão.

Elaboração de

esquema: atitudes

das personagens x

características do

bullying.

Retomamos o

conto “A Gata

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130

Borralheira”, para

fins de registro.

17/10/2017 Um garoto chamado

Rorbeto

(PENSADOR; BUENO,

2005).

Apresentação breve

do autor. Exploração

da capa do livro, por

meio de

questionamentos.

Leitura em voz

alta.

Cada sujeito com

um livro,

acompanhando

individualmente.

Discussão.

Elaboração de

esquema: atitudes

das personagens x

características do

bullying.

13/11/2017

Raul da ferrugem azul

(MACHADO; FARIA,

2012).

Exploração da capa

do livro, por meio de

questionamentos.

Formação de

vocabulário (pré-

ensino).

Leitura, em voz

alta, dos capítulos

1, 2, 3 e 4.

Os sujeitos foram

agrupados em

duplas.

Utilizaram-se

fotocópias dos

capítulos

supracitados.

Discussão.

14/11/2017 Raul da ferrugem azul

(MACHADO; FARIA,

2012).

Retomamos, por

meio de

questionamentos, os

capítulos da história

lidos anteriormente.

Leitura, em voz

alta, dos capítulos

5, 6, 7 e 8.

Os sujeitos foram

agrupados em

duplas.

Utilizaram-se

fotocópias dos

capítulos

supracitados.

Discussão.

Elaboração de

esquema: atitudes

das personagens x

características do

bullying.

23/11/2017 As Cegonhas

(ANDERSEN;

PEDERSEN; FROLICH,

2002).

Motivação para a

leitura a partir de

duas imagens:

cegonhas e meninos.

Formação de

vocabulário (pré-

ensino).

Leitura em voz

alta.

Cada sujeito, com

uma fotocópia,

acompanhando

individualmente.

Discussão.

Elaboração de

esquema: atitudes

das personagens x

características do

bullying.

27/11/2017 Um-olhinho, Dois-olhinhos,

Três-olhinhos

(GRIMM; GRIMM;

GRABIANSKY, 2003b).

Exploração, por

meio de

questionamentos, de

uma imagem com as

três personagens

principais.

Formação de

vocabulário (pré-

ensino).

Leitura em voz

alta.

Cada sujeito, com

uma fotocópia,

acompanhando

individualmente.

Discussão.

Elaboração de

esquema: atitudes

das personagens x

características do

bullying.

28/11/2017 O Patinho Feio

(ANDERSEN;

PEDERSEN; FROLICH,

2002).

Formação de

vocabulário

(Atividade: caça-

palavras).

- -

04/12/2017 O Patinho Feio

(ANDERSEN;

PEDERSEN; FROLICH,

2002).

Exploração, por

meio de

questionamentos, do

título da história.

Leitura em voz

alta.

Cada sujeito, com

uma fotocópia,

acompanhando

individualmente.

Discussão.

Elaboração de

esquema: atitudes

das personagens x

características do

bullying.

07/12/2017 Obax

(NEVES, 2010).

Exploração da capa

do livro, por meio de

questionamentos.

Leitura em voz

alta.

Livro exibido em

projetor

Discussão.

Elaboração de

esquema: atitudes

das personagens x

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131

Formação de

vocabulário (pré-

ensino).

multimídia. Cada

sujeito, com o

texto digitado,

acompanhando

individualmente.

características do

bullying.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

Como demonstrado no quadro, a realização de todas as sessões de leitura de literatura

(excetuando-se a aula de formação de vocabulário para a leitura do conto “O Patinho Feio”)

envolveu atividades de pré-leitura, leitura e pós-leitura, conforme estudos de Graves e Graves

(1995) que apresentam estratégias especificamente voltadas à aula de leitura.

Essas estratégias fundamentam-se em Bruner (1986), que investigou a forma como

crianças pequenas adquirem os usos de sua linguagem de origem. Para esse pesquisador, “a

principal ‘ferramenta’ que o bebê tem para alcançar seus objetivos [incluindo o

desenvolvimento da linguagem] é outro ser humano familiar” (BRUNER, 1986, p. 27, grifo do

autor, tradução nossa). Ou seja, há a atuação de um par mais experiente, que auxilia a criança a

se desenvolver para além dos seus limites (aquilo que ela já consegue realizar sozinha), o que

corresponde ao que Vygotsky (2007) denomina de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP).

Essa é, aliás, a proposição de Graves e Graves (1995) com a metodologia da

andaimagem: fornecer andaimes aos aprendizes, a partir da mediação do professor, para que,

posteriormente, na medida em que adquirem autonomia, transformem a aprendizagem de

leitura, até então mediada, em desenvolvimento real. “[É] um processo que permite [...] ao

aprendiz resolver um problema, levando adiante uma tarefa [...] que poderia estar além de seus

esforços não assistidos” (GRAVES; GRAVES, 1995, p. 2). “Esta é, precisamente, a maneira

como nós usamos o termo [andaimagem]” (GRAVES; GRAVES, 1995, p. 2). Assim sendo, se

queremos que os estudantes se tornem leitores autônomos no futuro, é necessário auxiliá-los no

percurso a fim de que os desafios advindos de seu encontro com os textos sejam transpostos

satisfatoriamente (GRAVES; GRAVES, 1995).

Para tanto, é primordial planejar a atividade a partir da realidade dos discentes. Isso

garantirá a escolha do texto apropriado e a construção de andaimes adequados ao

desenvolvimento do aprendiz. Outro ponto fundante desse planejamento é ter clareza quanto ao

propósito da leitura que será realizada. Mas vale lembrar que todos esses quesitos referem--se

à fase de planejamento (GRAVES; GRAVES, 1995).

Seguindo as orientações precedentes, elaboramos os planos de aula das sessões de

leitura.

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O período de observação bem como as entrevistas com os participantes serviram-nos de

subsídio para que pudéssemos entender como a violência estava inserida na vida daqueles

sujeitos e qual o conhecimento real deles em relação ao bullying, especificamente. A partir das

informações daí derivadas, pudemos finalizar a escolha dos oito contos a serem trabalhados e

formular os objetivos de cada intervenção.

Para cada conto, traçamos objetivos diferentes que possibilitassem a interlocução com

características inerentes ao bullying, de modo a suscitar discussões fecundas com os alunos, e

entre eles mesmos, no momento da pós-leitura.

No quadro a seguir, apresentamos os objetivos gerais das referidas sessões de leitura.

Quadro 5 – Objetivos gerais das sessões de leitura

Conto Objetivo Geral

A Gata Borralheira

(GRIMM; GRIMM;

TEIXEIRA, 2003a).

Refletir sobre a submissão da personagem principal no contexto familiar e o

bullying entre meninas.

João-trapalhão

(ANDERSEN; FRANÇA;

FRANÇA, 2004).

Refletir sobre a utilização de apelidos e formas de se portar frente a situações

de bullying.

Um garoto chamado

Rorbeto

(PENSADOR; BUENO,

2005).

Refletir sobre o que é ser diferente e a aceitação dessa diferença.

Raul da ferrugem azul

(MACHADO; FARIA,

2012).

Refletir sobre o posicionamento dos espectadores diante da violência entre

pares.

As Cegonhas

(ANDERSEN;

PEDERSEN; FROLICH,

2002).

Refletir sobre o desejo das vítimas de revidar o bullying sofrido.

Um-olhinho, Dois-olhinhos,

Três-olhinhos

(GRIMM; GRIMM;

GRABIANSKY, 2003b).

Refletir sobre os padrões sociais de beleza estabelecidos e a violência praticada

pelas personagens femininas da narrativa.

O Patinho Feio

(ANDERSEN;

PEDERSEN; FROLICH,

2002).

Refletir sobre as consequências das agressões para a autoestima das vítimas

típicas de bullying.

Obax

(NEVES, 2010).

Refletir sobre a maneira de lidar com as próprias convicções e as reações das

outras pessoas com relação a elas.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

O foco das abordagens, como se vê, recaiu sobre aspectos como o bullying entre

meninas; a submissão da vítima ao (s) agressor (es); o ato de apelidar como estratégia de

intimidação; a maneira de a vítima se portar diante das agressões; a hostilidade às diferenças e

sua aceitação; o papel dos espectadores no cenário da violência; o desejo de vingança, que pode

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aflorar naqueles que são vítimas; a suscetibilidade dos padrões sociais de beleza à prática do

bullying; a influência que as agressões exercem na autoestima dos que as sofrem e o modo

como o olhar do outro atua nas convicções das vítimas.

Definidos os objetivos gerais, foram elaborados os específicos, tal como se apresentam

no quadro a seguir.

Quadro 6 – Objetivos específicos das sessões de leitura

Conto Objetivos Específicos

A Gata Borralheira

(GRIMM; GRIMM;

TEIXEIRA, 2003a).

discutir sobre a condição da personagem principal dentro da família;

refletir sobre as ações de violência praticadas pelas personagens femininas da

narrativa;

refletir sobre as atitudes da personagem principal, que proporcionaram a

mudança em sua vida;

identificar as características do bullying no conto.

João-trapalhão

(ANDERSEN; FRANÇA;

FRANÇA, 2004).

discutir sobre as ações praticadas pelos familiares da personagem principal;

refletir sobre a postura e as atitudes da personagem principal frente às

adversidades;

rememorar as características de bullying presentes na obra trabalhada na

aula anterior (A Gata Borralheira), buscando estabeler uma relação com a

história de João-trapalhão.

Um garoto chamado

Rorbeto

(PENSADOR; BUENO,

2005).

discutir sobre o modo como a personagem principal enxerga a sua diferença;

refletir sobre o modo como as outras personagens (professora e colegas) se

posicionam diante das qualidades e da diferença inerentes à personagem

Rorbeto;

relacionar as características do bullying, discutidas nas aulas anteriores, com

a diferença.

Raul da ferrugem azul

(MACHADO; FARIA,

2012).

discutir sobre as reações e os sentimentos da personagem principal diante das

situações de violência observadas;

refletir sobre a mudança de postura da personagem ao longo da narrativa;

relacionar as características do bullying, discutidas nas aulas anteriores, com

as atitudes dos espectadores.

As Cegonhas

(ANDERSEN;

PEDERSEN; FROLICH,

2002).

discutir sobre a situação de violência vivenciada pelos filhotes de cegonha;

refletir sobre o posicionamento da mãe cegonha diante da violência;

refletir sobre as possíveis consequências de ser uma vítima provocadora;

relacionar as características do bullying, discutidas nas aulas anteriores, com

as atitudes das vítimas provocadoras.

Um-olhinho, Dois-olhinhos,

Três-olhinhos

(GRIMM; GRIMM;

GRABIANSKY, 2003b).

discutir sobre as agressões relacionadas à aparência física;

refletir sobre as atitudes das irmãs (Um-olhinho e Três-olhinhos) para com

Dois-olhinhos, relacionando-as ao sentimento de inveja;

relacionar as características de bullying, discutidas nas aulas anteriores, com

as particularidades mais evidentes no bullying entre meninas.

O Patinho Feio

(ANDERSEN;

PEDERSEN; FROLICH,

2002).

discutir sobre a visão que o patinho tem de si, a partir do que os outros pensam

e dizem;

refletir sobre as atitudes dos outros animais diante da diferença;

relacionar as características do bullying, discutidas nas aulas anteriores, com

sentimentos comuns às vítimas típicas.

Obax discutir sobre a necessidade de respeitar o modo como cada sujeito enxerga

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(NEVES, 2010). o mundo;

refletir sobre as atitudes das personagens, com relação às histórias contadas

por Obax;

refletir sobre os sentimentos da personagem Obax frente à zombaria dos

outros;

relacionar as características do bullying, discutidas nas aulas anteriores, com

a tristeza de Obax diante do descrédito dado às suas histórias.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

Vale observar o fato de que todos os objetivos específicos foram elaborados a partir do

enredo de cada história, buscando explorar aspectos relacionados às formas de violência

sofridas pelas personagens principais e aquelas praticadas por outras personagens. Essa

configuração foi estabelecida para que, durante a discussão, os sujeitos pudessem não apenas

refletir sobre essas ocorrências mas também se posicionar diante das atitudes tomadas, tanto

por aqueles que sofrem a agressão quanto por aqueles que a praticam.

Outro ponto interessante na elaboração desses objetivos foi a proposição de se refletir

sobre as atitudes das personagens e as especificidades do bullying, que foi contemplado durante

as próprias discussões de pós-leitura e retomado em atividades posteriores. Desse modo, os

sujeitos participantes tiveram a oportunidade de ampliar os seus conhecimentos sobre as

peculiaridades dessa forma de violência passando, assim, a entender, com a devida clareza, a

distinção entre as ações caracterizadas como bullying e outros tipos de agressão.

Em relação à metodologia adotada, informamos que esta seguiu o mesmo padrão em

todas as sessões, conforme descrito no quadro 4, com algumas raras adaptações que se fizeram

necessárias já no início mesmo do processo de implementação das aulas.

O propósito maior era discutir, com os sujeitos, a relação entre as ações das personagens

(comportamentos) e o bullying (características e formas de combate) e construir um esquema,

registrando-o na lousa para que eles pudessem visualizar aquilo que havia sido discutido e

contemplado no decorrer da aula.

Partindo dessa ideia basilar, após a discussão do conto A Gata Borralheira (GRIMM;

GRIMM; TEIXEIRA, 2003a), retomamos a discussão, com os sujeitos, sobre as atitudes

tomadas por cada personagem e a(s) característica(s) da violência praticada, assim como as

possíveis formas de combate. Posteriormente, registramos, na lousa, a síntese do que havia sido

falado. Todavia, ao analisarmos essa nossa primeira intervenção, verificamos que, no momento

em que escrevíamos no quadro, os sujeitos ficavam muito dispersos, o que dificultava,

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135

sobremaneira, qualquer sistematização que auxiliasse no esclarecimento sobre as

peculiaridades do bullying.

Por essa razão, e, compreendendo que “o planejamento escolar é uma tarefa docente que

inclui tanto a previsão das atividades em termos de organização e coordenação em face dos

objetivos propostos quanto a sua revisão e adequação no decorrer do processo de ensino”

(LIBÂNEO, 1994, p. 34), decidimos alterar a formulação do esquema, colocando-o como

atividade escrita a ser realizada após as discussões de pós-leitura.

Para tanto, os sujeitos receberam material impresso (um esquema a ser preenchido).

Dessa forma, à medida que escrevíamos no quadro, os alunos também o faziam, o que os

mantinha mais atentos e, certamente, mais envolvidos no processo de construção do

conhecimento.

Esse procedimento não apenas trouxe resultados positivos concernentes à atenção

despendida pelas crianças mas ainda lhes possibilitou uma proveitosa retomada dos registros

esquemáticos das aulas anteriores, antes de avançarmos para a construção de um novo esquema.

Além disso, os sujeitos também puderam relembrar as características do bullying, identificadas

até aquele momento, as formas de combatê-lo e ainda foram acrescentando outras a cada sessão

de leitura.

Em virtude dessa mudança, na segunda intervenção (Conto: João-trapalhão),

retomamos o que havíamos discutido na aula anterior (Conto: A Gata Borralheira), fazendo,

assim, um esquema duplo com as duas histórias e iniciando um outro, que intitulamos Bullying.

Seguindo essa lógica, nas demais intervenções, os sujeitos recebiam o esquema da

história trabalhada na aula anterior (para que pudessem rememorá-la), o esquema da história

lida na aula do dia – que era preenchido após a discussão – e o esquema Bullying:

características e formas de combate, que ia sendo complementado a cada aula.

Ainda sobre esse quesito, esclarecemos que a atividade de elaboração dos esquemas

constituiu-se como uma tarefa cuja finalidade foi a de consubstanciar – por meio do registro

escrito – todos os pontos que haviam sido debatidos pelos (com os) sujeitos participantes

durante as aulas. Essa dinâmica resultou em ganho para os sujeitos, que consolidaram conceitos;

e para a pesquisa, que produziu um registro da participação dos sujeitos. Tais registros,

entretanto, por serem apenas a materialização do que havia sido discutido oralmente, não

compuseram os dados da análise, uma vez que focamos a nossa análise nas falas dos sujeitos.

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Além dessa alteração, outros pontos do planejamento foram revistos antes da realização

de determinadas sessões. Um deles refere-se à aula destinada à leitura da história Raul da

ferrugem azul (MACHADO; FARIA, 2012), a qual, a princípio, ocorreria em uma sessão – tal

como as outras –, mas foi dividida em duas, realizadas em dias distintos, o que acarretou a

reformulação de todo o plano inicial.

Essa mudança justificou-se em virtude de verificarmos, ainda nas primeiras

intervenções, que a ausência da prática de leitura de literatura no cotidiano da sala de aula

influenciava diretamente no envolvimento dos sujeitos com a atividade. Esse envolvimento,

felizmente, ampliou-se a cada sessão. Levando em consideração essas particularidades, não

podíamos aplicar a mesma estratégia de abordagem à história contada por Machado e ilustrada

por Faria (2012). É uma narrativa longa (constituída por 8 capítulos), o que, no nosso ponto de

vista, poderia afetar o engajamento dos sujeitos. Ademais, em razão da extensão da obra, o

momento de pós-leitura poderia ficar comprometido, vez que acordamos com a professora

titular que as sessões teriam duração média de uma hora (60 minutos). Por esses motivos,

fizemos a referida adequação e obtivemos resultados satisfatórios, conforme se poderá constatar

na análise dos dados.

Outro planejamento que passou por modificações foi o da história O Patinho Feio

(ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002). Isso porque, ao relermos o conto, observamos

que a linguagem utilizada pelo autor era por demais rebuscada, contendo inúmeras palavras que

fugiam ao vocabulário cotidiano daqueles sujeitos. Diante dessa dificuldade, entendemos que

seria praticamente inviável realizar um pré-ensino de vocabulário que lhes possibilitasse

compreender plenamente a história e executar todas as outras etapas planejadas, dentro do

tempo estimado.

Orientando-nos por tais constatações, preferimos desenvolver uma aula com uma

atividade específica de pré-ensino, para que, na sessão de leitura, as crianças estivessem

familiarizadas com as palavras e ainda, em caso de necessidade, tivessem os significados em

mãos para consulta. Essa reformulação foi parcialmente satisfatória, justamente porque, no dia

da sessão, muitos sujeitos esqueceram o material com o registro dos significados. Contudo,

tirando proveito da possibilidade de flexibilizar o planejamento (LIBÂNEO, 1994), colocamos

os discentes que estavam de posse dos dados junto daqueles que os haviam esquecido. Com

isso, todos puderam realizar suas consultas.

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Em suma, vale pontuar o fato de que os oito contos foram trabalhados em dez momentos,

sendo nove sessões de leitura e uma destinada, exclusivamente, à formação de vocabulário.

O último ponto que julgamos relevante mencionar, sobre o planejamento das

intervenções, diz respeito aos recursos de que dispúnhamos para a realização das sessões. Como

demonstra o quadro 4, apenas para a leitura de algumas obras tínhamos um número suficiente

de exemplares para atender a todos os sujeitos, podendo cada um ter a possibilidade de

manusear o livro individualmente.

Nas demais intervenções, necessitamos planejar outras formas que permitissem aos

sujeitos terem em mãos os textos para acompanhar as leituras. Assim, a depender da situação,

e configurada a necessidade, adotávamos os seguintes procedimentos: entregávamos-lhes o

texto fotocopiado, dividíamos a turma em duplas ou exibíamos o livro por meio de projetor

multimídia. Certamente, esse processo é plenamente viável desde que se prepare bem cada ação,

organizando-a adequadamente (FERREIRA, 1981). Mas ainda alertamos para o fato de que, a

fim de ser bem-sucedido no percurso, o professor precisa conhecer bastante a realidade da

escola – e estar a par do acervo literário da biblioteca – para que possa planejar a melhor

estratégia a ser adotada frente às dificuldades que estorvam a realização de seu intento.

2.3.3 A intervenção

Para a efetivação das sessões de leitura de literatura planejadas, optamos por reservar

uma sessão para cada história selecionada − à exceção das obras Raul da ferrugem azul

(MACHADO; FARIA, 2012) e O Patinho Feio (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002)

−, por julgarmos ser esse decurso de tempo suficiente para a realização de observações

consistentes e para estimular uma reflexão a respeito do bullying.

Conforme apresentado no quadro 4, as intervenções foram realizadas no período de 9

de outubro a 7 de dezembro de 2017. Seguíamos, em todas as sessões, um ritual semelhante:

organizávamos as carteiras em semicírculo, posicionando a filmadora ao fundo da sala, de modo

que pudesse captar todas as nossas ações, assim como visualizar a maior parte dos sujeitos.

Uma outra câmera móvel – manuseada por uma colaboradora – focava, individualmente, os

discentes enquanto estes falavam. Esse recurso facilitou bastante o processo de transcrição das

sessões, proporcionando a correta identificação dos sujeitos – na maioria dos casos.

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Observamos que a mudança na disposição das carteiras caracterizou-se em novidade

para os sujeitos – que sempre se sentavam enfileirados. Essa nova forma de organização

resultou em uma maior incidência de conversas paralelas, especialmente nos momentos de pós-

leitura, o que nos exigiu a retomada constante (especialmente em algumas sessões) dos acordos

que havíamos feito, inicialmente, com as crianças.

No decorrer das sessões – que aconteciam às segundas e terças-feiras –, percebemos

uma maior concentração e um envolvimento dos sujeitos na atividade. Contudo, nas

oportunidades em que precisamos alterar a aula para outro dia da semana – o que nos exigiu

revisitar constantemente o planejamento –, notamos uma maior inquietação da parte deles.

Acreditamos que a mudança na rotina das intervenções tenha contribuído para essa

agitação além do comum. Isso porque, como dissemos anteriormente, a professora-titular

mantinha uma rígida sequência quanto às etapas a serem executadas durante as aulas e os

estudantes estavam habituados a segui-la, inclusive no que concerne ao fato de nossas aulas

serem realizadas em dias específicos. Assim sendo, quando essas ocorriam em outro dia,

vinham sempre nos questionar sobre o porquê.

Não obstante, apesar do frenesi enfrentado em algumas aulas, era perceptível o apreço

que grande parte dos sujeitos demonstrava pelas sessões de literatura, o que repercutia

diretamente num maior índice de participação durante as etapas de pré-leitura e pós-leitura, em

que, aqueles mais cativados pela atividade, faziam questão de se posicionar e responder às

questões que formulávamos.

Os momentos de pré-leitura foram desenvolvidos primeiramente com o pré-ensino de

vocabulário – à exceção da obra Um garoto chamado Rorbeto (PENSADOR; BUENO, 2005),

que, por apresentar uma linguagem comum ao cotidiano dos alunos, não necessitou que se

aplicasse essa estratégia.

A atividade de pré-ensino foi realizada de duas maneiras. Num primeiro formato, líamos

as palavras – previamente descritas nos planos de aula – e perguntávamos aos sujeitos se eles

conheciam seus significados. Somente após a formulação das respostas é que o conceito

dicionarizado era-lhes apresentado. Num segundo formato, um aluno voluntário apresentava

aos demais a palavra e, após as hipóteses proferidas pelos colegas, fazia a leitura do seu

significado.

Após a etapa de pré-ensino, buscamos motivar as crianças à atividade, explorando, por

vezes, o título da história, alguma imagem contida na obra, a capa do livro ou objetos

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relacionados ao enredo. A participação, nessa etapa, foi satisfatória em todas as sessões, apesar

de percebermos que alguns sujeitos demonstravam maior envolvimento do que outros.

Quanto à leitura propriamente dita – sempre realizada por nós −, optamos por fazê-la

em voz alta a fim de tirar proveito de todos os recursos que a leitura oral do texto literário

disponibiliza para o leitor e que Amarilha (2004) explicita muito bem:

A leitura oral de literatura apresenta um potencial fecundo para a abertura de

um canal cognitivo, linguístico, social e afetivo ao desenvolver a capacidade

do leitor de participar pela palavra da experiência inventiva e comunicativa e

sair dela em condições de refletir sobre ela, sobre si próprio e sua

contingência. Esse é o prazer decorrente do texto – promover o conhecimento

pela participação intelectual, sensível, social e afetiva. E isso o mediador de

leitura pode fazer (AMARILHA, 2004, p. 21).

Com vistas a promover esse encontro leitor-texto, foram firmados alguns acordos com

os sujeitos; dentre outros, o acerto de que deveriam acompanhar as leituras sem interrompê-las,

deixando para sanar as possíveis dúvidas somente ao final das histórias.

Observamos que o grau de concentração dos alunos nessa etapa foi enorme. Alguns

deles, para nossa satisfação, acompanhavam o texto lendo-o em voz baixa; outros faziam a

leitura silenciosa, enquanto os demais preferiam apenas ouvir a história pela voz da professora-

pesquisadora.

Na etapa de pós-leitura, buscamos suscitar a discussão, por meio de questões, auxiliando

os alunos a construírem uma relação entre as várias formas de violência praticadas no mundo

ficcional e o bullying – a partir da experiência proporcionada pelas histórias –, de modo que

eles pudessem transportar essa relação para suas próprias experiências de vida.

Após essa discussão, sistematizamos, oralmente, em conjunto com os sujeitos, os tipos

de comportamentos identificados nas personagens de cada história, relacionando-os com

características inerentes ao bullying e com formas de combatê-lo, construindo, então, esquemas

escritos. A adesão a essa fase da atividade oscilou bastante. Algumas histórias foram mais bem

acolhidas pelos sujeitos, suscitando discussões profícuas. Em outras sessões, constatamos maior

dispersão, ficando a cargo de uns poucos alunos a discussão, o que exigia da professora-

pesquisadora relembrar constantemente os acordos. Contudo, ressaltamos que, em todas as

intervenções, se obteve um saldo positivo no encontro – ainda por demais incipiente – daqueles

indivíduos com a literatura.

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Vale salientar, por fim, que, em nenhuma das aulas, os 20 sujeitos participantes

estiveram todos presentes. Essa alternância presencial dificultou a familiarização dos alunos

com as características do bullying e as respectivas formas de combatê-lo, que eram discutidas

e registradas em cada sessão. Diante dessa conjuntura, a estratégia planejada de retomar o que

havia sido discutido na aula anterior revelou-se essencial para todo o processo.

2.3.4 Análise dos dados: estruturação

Para esse estágio, recorremos à análise de conteúdo que “procura conhecer aquilo que

está por trás das palavras sobre as quais se debruça” (BARDIN, 2010, p. 45), fazendo uso,

especificamente, de três etapas desse método.

Dando início à fase de pré-análise, reunimos todo o material coletado durante a

pesquisa, a fim de constituirmos o nosso corpus. E o que se denomina como pré-análise?

É a fase de organização propriamente dita. Corresponde a um período de

intuições, mas tem por objectivo tornar operacionais e sistematizar as ideias

iniciais, de maneira a conduzir a um esquema preciso de desenvolvimento das

operações sucessivas, num plano de análise. [...] trata-se de estabelecer um

programa que, podendo ser flexível [...] deve, no entanto, ser preciso. [...]

Estando o universo demarcado (o gênero de documentos sobre os quais se

pode efectuar a análise), é muitas vezes necessário proceder-se à constituição

de um corpus. O corpus é o conjunto dos documentos tidos em conta para

serem submetidos aos procedimentos analíticos (BARDIN, 2010, p. 121-122,

grifos do autor).

As três missões dessa fase são a escolha dos documentos, a formulação de hipóteses e

objetivos e a elaboração de indicadores. Esses passos, conforme observa Bardin (2010), não

precisam seguir uma ordem cronológica. Por isso, foi pensando nos objetivos e na proposição

(tese) da nossa pesquisa que escolhemos os documentos e construímos os indicadores.

Nesse processo, todos os dados coletados – os documentos institucionais, as

informações derivadas da observação participante (diário de campo), as entrevistas com os

sujeitos participantes (iniciais) e aquelas realizadas com a professora titular da turma, com a

diretora e com a coordenadora pedagógica da instituição – foram fundamentais para que

formulássemos a estrutura necessária, capaz de avivar nosso olhar sobre o corpus a ser

analisado: as sessões de leitura de literatura – dando-se relevância aos momentos reservados à

pré-leitura e às discussões de pós-leitura – e as entrevistas finais com os sujeitos participantes.

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Ressaltamos, todavia, que esses dois conteúdos foram analisados separadamente e de modos

distintos, conforme apresentaremos no capítulo 4.

Com vistas à organização da análise do referido corpus (sempre tendo em conta nossos

objetivos e a proposição de pesquisa) é que elaboramos a última missão da pré-análise: os

indicadores. Para tanto, construímos as unidades de registro e as categorias.

A unidade de registro é a unidade de significação a codificar e corresponde ao

segmento de conteúdo a considerar como unidade de base, visando à

categorização. A unidade de registro pode ser de natureza e de dimensões

muito variáveis. [...] Efetivamente, executam-se certos recortes a nível

semântico, o <<tema>> [...]. O tema é geralmente utilizado como unidade de

registro para estudar motivações de opiniões, de atitudes, de valores, de

crenças, de tendências, etc. (BARDIN, 2010, p. 130-131, grifo do autor).

Os temas para constituírem as nossas unidades de registro (recortes) foram pensados

na tentativa de alcançarmos os seguintes objetivos específicos deste estudo: demonstrar como

o trabalho mediado pela leitura de textos literários, considerando a interface literatura e

bullying, pode contribuir para a discussão sobre essa prática de violência na sala de aula;

especificar, por meio da fala dos sujeitos, as possibilidades de identificação, derivadas da

interação texto-leitor, que favorecem o processo de julgamento, considerando a relação ficção-

realidade; e identificar, a partir da análise dos dados, que conhecimentos sobre o bullying foram

construídos pelos estudantes em decorrência da leitura de textos literários.

Também pensando nesses objetivos e, em busca de elucidarmos a nossa proposição

(tese) de pesquisa a leitura de textos literários, mediada pelo processo de discussão, contribui

para suscitar a reflexão de sujeitos aprendizes sobre o bullying, definimos as categorias de

análise. Entendemos que

[a] categorização é uma operação de classificação de elementos constitutivos

de um conjunto por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento

segundo o gênero (analogia), com critérios previamente definidos. As

categorias são rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos

[...] sob títulos genéricos, agrupamento esse efetuado em razão das

características comuns destes elementos (BARDIN, 2010, p. 145).

Em suma, podemos afirmar que as definições, tanto das unidades de registro quanto das

categorias, foram reflexo das intenções da nossa investigação (BARDIN, 2010). Toda essa

estrutura, que será apresentada oportunamente, abriu caminho para que realizássemos a segunda

fase denominada exploração do material.

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Com esse intuito, os dados foram codificados (BARDIN, 2010), levando em conta o

fato de que “tratar o material é codificá-lo”. “A codificação corresponde a uma transformação

[...] dos dados em bruto do texto, transformação esta que, por recorte [unidades de registro] [...]

[e] agregação [categorização] [...] permite atingir uma representação do conteúdo [...]”

(BARDIN, 2010, p. 129, grifo do autor). E não nos esqueçamos de fazer um alerta importante:

Se as diferentes operações da pré-análise forem convenientemente concluídas,

a fase de análise propriamente dita não é mais do que a aplicação sistemática

das decisões tomadas. [...]. Esta fase, longa e fastidiosa, consiste

essencialmente em operações de codificação [e] decomposição [...] em função

de regras previamente formuladas (BARDIN, 2010, p. 127).

Definidas as regras, com base na composição das unidades de registro e das categorias

a serem seguidas, procedemos à análise final: a apreciação dos resultados – a inferência e a

interpretação.

A inferência é realizada a partir da classificação dos dados em categorias. Nesse

processo, “o analista tira partido do tratamento das mensagens [comunicações] que manipula

para inferir (deduzir de maneira lógica) conhecimentos sobre o emissor da mensagem ou sobre

o seu meio” (BARDIN, 2010, p. 41). Portanto, “o que se procura quando se realiza uma análise

[...] é a correspondência entre as estruturas semânticas [...] e as estruturas psicológicas ou

sociológicas (por exemplo: condutas, ideologias e atitudes) dos enunciados” (BARDIN, 2010,

p. 43). Dessa forma,

[...] a tentativa do analista é dupla: compreender o sentido da comunicação

(como se fosse o receptor normal), mas também e principalmente desviar o

olhar para uma outra significação, uma outra mensagem entrevista através ou

do lado da mensagem primeira. A leitura efectuada pelo analista, do conteúdo

das comunicações, não é, ou não é unicamente, uma leitura <<à letra>>, mas

antes o realçar de um sentido que se encontra em segundo plano. Não se trata

de atravessar significantes, para atingir significados, à semelhança da

decifração normal, mas atingir através de significantes ou de significados

(manipulados), outros <<significados>> de natureza psicológica,

sociológica, política, histórica, etc. (BARDIN, 2010, p. 43, grifos do autor).

Vale, por fim, considerar o fato de que, para efetivar esse processo de inferência, toda a

comunicação foi considerada, o que inclui a comunicação em si e o modo como foi produzida

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(ou seja, o código e a sua significação), os interlocutores, o contexto e ainda a forma como a

interação foi realizada.

Esse percurso dedutivo conduziu-nos à última etapa desse processo: a interpretação, que

gera os resultados.

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3 ENCRESPANDO AS ASAS: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 BULLYING: CONHECÊ-LO PARA DISCUTI-LO

A história da violência na escola […] - assim como muitas outras formas de

violência - é a história da descoberta gradual das vítimas […]. Essa descoberta

acontece quando, gradualmente, passamos a reconhecer o que as vítimas têm

a dizer, e a reconhecer, portanto, seu poder de colocar seu sofrimento em

palavras (DEBARBIEUX, 2002).

Se minha lancheira falasse,

diria o quão triste fica toda vez que temos que comer sozinhos na escola.

Se meus ouvidos falassem,

diriam que angústia sentem quando alguém zomba de mim.

Se meus sapatos falassem,

diriam o quão rápido correm quando queremos chegar a um lugar seguro.

Se meus óculos falassem,

diriam sobre todas as coisas que vejo e das quais não digo nada.

Se meu relógio falasse,

diria que quando chego atrasado para as aulas é porque tenho medo.

Se meus cadernos falassem,

diriam que meus melhores pensamentos não estão lá.

Se meu boletim escolar falasse,

diria que com tanta dor eu não posso ter notas melhores.

Se o seu coração escutasse quando o meu quer falar com você…

(TETTNER, 2006, tradução nossa).

Considerando a violência como um problema sério e sempre presente no cotidiano da

escola, Debarbieux (2002) ressalta que, para se descobrir em que patamar ela se encontra –

independentemente do tipo de violência praticada –, é necessário conhecer as vítimas e lhes dar

voz. Isto é, saber pelo que passam e o que sentem; isso porque “[…] a pior violência deriva da

microviolência” (DEBARBIEUX, 2002, p. 60), ou seja, daquela violência que não resulta em

tragédia (pelo menos não imediata), que é “repetida, às vezes tênue e dificilmente perceptível,

mas que, quando acumulada, pode levar a graves danos e a traumas profundos nas vítimas”

(DEBARBIEUX, 2002, p. 82).

Essa microviolência tem [...] efeitos sociais danosos: o baixíssimo nível de

auto-estima das vítimas costuma ser acompanhado de uma introversão que

anula qualquer possibilidade de ação conjunta, qualquer maneira coletiva de

lidar com as incivilidades (DEBARBIEUX, 2002, p. 83).

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Por essa razão, trazer à tona as vozes das vítimas não é um processo simples e, por isso,

deve ser construído paulatinamente, por meio de um trabalho contínuo e persistente, a fim de

que essas vítimas tenham coragem de falar sobre as agressões que as afligem e, especialmente,

apontar seus agressores, o que, certamente, não é fácil uma vez que perpassa uma série de

questões envolvendo conscientização, autoestima e empoderamento.

Essa percepção de Debarbieux (2002), muito embora não esteja exclusivamente

relacionada ao bullying, corrobora a ideia de que é fundamental desenvolver a proatividade

daqueles (as) que sofrem diariamente com essa violência, no sentido de estimulá-los (las) a

buscar ajuda e, acima de tudo, acreditar que é possível quebrar o ciclo de violência que os (as)

envolve.

Procurar conhecer a violência na escola a partir da percepção das próprias vítimas

certamente atenuaria a angústia descrita nos versos de Tettner (2006) e vivenciada diariamente

por tantos meninos e meninas que não veem perspectivas de mudança simplesmente porque

não se sentem acolhidos, nem pelos colegas nem pelos pais, nem tampouco pelos integrantes

da escola.

Em seus versos, Tettner (2006) evidencia a agonia daqueles que vivem constantemente

acuados diante das agressões. O autor sublinha algumas características que são inerentes às

vítimas típicas, tais como o isolamento e a falta de amigos, a tristeza frente aos ataques do bully,

o medo de ser agredido e de relatar a violência sofrida (OLWEUS, 2006), além do baixo

desempenho escolar (ROLIM, 2010).

Não obstante os abundantes sinais revelados no modo como se comportam aqueles que

são vítimas, o problema – muitas vezes – ainda é negligenciado, tanto na instituição escolar

quanto na família, que ainda acredita que o bullying não passa de uma “brincadeira de mau

gosto” (AVILÉS, 2006) e que, portanto, basta ser ignorado para que cesse. Falta-lhes a

compreensão de que a apatia da vítima pode agravar as agressões (OLWEUS, 2006). Essa

arraigada concepção dificulta, sobremaneira, o encorajamento das vítimas para buscarem

auxílio, mesmo porque esbarram na inércia dos pais que, em boa maioria, costumam ignorar o

problema por não saberem como enfrentá-lo (BEANE, 2010; WAASDORP, BRADSHAW;

DUONG, 2011 apud STRAUSS, 2018). Semelhante inação pode ser percebida entre os

membros da escola que, por não saberem identificar o bullying, acabam, igualmente,

classificando-o como uma “simples brincadeira” (TOGNETTA; VINHA; AVILÉS, 2015).

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Contrapondo-se a essa visão, decerto simplista, adotada pela escola e pela família,

colocam-se as notícias jornalísticas que – de forma um tanto quanto exacerbada – classificam

sumariamente qualquer tipo de agressão como bullying, denunciando também a falta de um

saber mais consistente sobre a questão.

Aliás, as matérias jornalísticas sobre o bullying, em sua maioria, não somente

obscurecem as suas peculiaridades mas ainda reforçam a noção equivocada de que este é

configurado a partir de qualquer forma de agressão. Tognetta, Vinha e Avilés (2015) são

categóricos ao afirmar que “uma única ameaça ou agressão física, embora seja um tipo de

violência, não caracteriza bullying. A vítima de bullying sofre cotidianamente diferentes formas

de agressão” (TOGNETTA; VINHA; AVILÉS, 2015, p. 20).

A título de exemplificação do modo como uma situação discriminatória é veiculada nos

jornais, apresentamos as seguintes chamadas de notícias: “Apresentadora é acusada de bullying

por ridicularizar aulas de ballet do príncipe George” (APRESENTADORA..., 2019) e “Após

bullying com príncipe George, apresentadora pede desculpas” (APÓS..., 2019).

No caso focalizado, uma apresentadora norte-americana faz referência, em tom de

deboche, ao fato de o Príncipe George ter, em seu currículo escolar, aulas de ballet. Podemos

considerar tal atitude como discriminação? Sem dúvida! Podemos afirmar que se tratou de um

ato de bullying? Definitivamente, não! Nota-se, nitidamente, a confusão que os próprios

veículos de comunicação (lidos por inúmeras pessoas) fazem ao replicar, na manchete, que um

comportamento desrespeitoso é considerado bullying.

No exemplo analisado, não houve a paridade entre os “envolvidos” ou a repetitividade

da ação. Ademais, provavelmente, o pequeno George sequer tomou conhecimento da colocação

da repórter, ou seja, não se sentiu ofendido, muito menos intimidado diante de tal situação.

A manchete “Após bullying com o príncipe George...” incute nos leitores a ideia de que

o ato de rir do outro, ainda que uma única vez, já pode ser classificado como bullying, enquanto

que a “Apresentadora é acusada de bullying...” reforça a crença de muitas pessoas de que o

comentário da apresentadora foi, de fato, uma manifestação de bullying.

Acreditamos ser essa uma razão bastante justificável para tratarmos sobre as

especificidades do bullying e ainda reiterar o conceito adotado neste trabalho:

Bullying ou “vitimização”, de um modo geral, se caracteriza quando uma

pessoa é atacada ou “vitimizada” e exposta, repetidamente, a ações negativas

partidas de uma ou mais pessoas. [...] . É ação negativa quando alguém

intencionalmente inflige ou tenta infligir, ferir ou inquietar outro –

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basicamente o que é entendido como comportamento agressivo. Ações

negativas podem ser realizadas por palavras (verbalmente), por exemplo,

ameaças, zombaria, implicância e chamando nomes. É uma ação negativa

quando alguém bate, empurra, chuta, belisca ou reprime outro – por contato

físico. Também é possível haver ações negativas sem uso de palavras ou

contato físico, tal como fazer caretas ou gestos sujos, intencionalmente

excluindo alguém do grupo ou recusando-se a cumprir com os desejos de

outras pessoas (OLWEUS, 2006, p. 9, tradução nossa, grifo nosso).

Adicionalmente, de acordo com Olweus (2006), de forma concisa, o bullying pode

caracterizar-se como práticas de agressão física, verbal e psicológica que sejam intencionais e

repetitivas, sem motivação aparente, em que há desequilíbrio de poder entre agressor e vítima.

Bem em sintonia com a concepção de Avilés et al. (2011):

A natureza do fenômeno “violência entre pares”, também conhecido em nível

internacional como "bullying", faz referência ao estabelecimento e

manutenção de relações desequilibradas de poder entre sujeitos que convivem

em contextos compartilhados do ambiente escolar, por períodos de tempo

prolongados, em que se estabelecem dinâmicas de dominação e submissão que

resultam em agressões daqueles que exercem poder de maneira abusiva contra

aqueles que são submetidos ao papel de [...] vítimas de tais abusos (AVILÉS

et al., 2011, p. 58, grifos dos autores, tradução nossa).

Considerando tais esclarecimentos, passamos à abordagem de alguns aspectos

relacionados mais particularmente ao bullying (que, por certo, servirão de base àqueles que

desejam conhecer mais sobre essa forma de violência) que subsidiaram a análise dos dados

desta pesquisa.

Comecemos com a classificação dos envolvidos nessa prática de violência, a saber: o

agressor, a vítima e o espectador.

Antes, vale ressalvar o fato de que não desconhecemos as críticas atualmente feitas ao

uso das nomenclaturas “agressor” e “vítima”, tendo em conta a individualização que é dada aos

envolvidos nos atos de agressão, sem considerar o papel que ocupam no processo de interação.

Como esclarece Dytham (2018) “[...] estruturas dominantes de bullying se apoiaram em uma

estrutura modernista e individualista, onde as ações e a psicologia de 'agressores' e 'vítimas'

individuais são o foco, em vez de inter-relações e construções coletivas” (DYTHAM, 2018, p.

213, grifos da autora, tradução nossa). É, portanto, olhando o bullying como uma construção

coletiva que se vem refletindo sobre a substituição dos vocábulos “vítima” por “alvo” e

“agressor” por “autor”, em razão da carga semântica desses termos.

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Não obstante, apesar de compreendermos que a referida substituição relativiza o

posicionamento dos sujeitos como responsáveis e implicados individualmente no cenário da

prática do bullying – uma vez que outros aspectos precisam ser considerados como os

comportamentos assumidos por cada um e o próprio jogo de poder que se constrói nas relações

entre os envolvidos –, e que, além disso, os termos em questão sejam utilizados “ na tentativa

de evitar preconceitos por parte dos agentes que trabalham com situações problemas em que

haja [bullying] […]” (TOGNETTA; VINHA, 2008, p. 3), decidimos adotar as nomenclaturas

pensadas originalmente por Olweus (2006) pelo fato de as havermos encontrado em

praticamente todas as referências em que se ancora este estudo (OLWEUS, 2006; AVILÉS,

2002, 2005, 2006; TOGNETTA, VINHA, AVILÉS, 2015; BEANE, 2010; BEAUDOIN;

TAYLOR, 2006; MIDDELTON-MOZ; ZAWADSKY, 2007; SIMMONS, 2004; BATSCHE, G.

M.; KNOFF, H. M., 1994, dentre outros).

Justificada a escolha relativa ao uso dos vocábulos, passamos a discorrer sobre as

principais características dos envolvidos nessa prática de violência.

Está claro que não existe um perfil único nem das vítimas, nem dos agressores,

nem dos espectadores. Ainda que se atribuam perfis mais frequentes para cada

um dos papéis, por exemplo, no papel da vítima com mais frequência

encontra-se é uma figura passiva e o agressor mais comum é o seguro; no

entanto, há exceções que valem a pena registrar. No caso das vítimas, além da

passiva, é normal também encontrar vítimas provocadoras que geram em seu

entorno situações irritantes e acabam amargando as consequências, além de

serem alvos da ira do agressor. [...]. Também nos deparamos com vítimas

'seguras' [...] meninos e meninas brilhantes na escola e que, entre outras

razões, também por isso se tornam alvo dos agressores. O caso dos agressores

também oferece variações como a do agressor 'que acompanha' [...] que se

junta aos ataques [atuando de forma subordinada] uma vez que o agressor

principal tenha feito ou dado a ordem, mas que talvez sozinho não o faría.

Mesmo no caso de espectadores, variantes também foram descritas [...]

variando desde os indiferentes aos que se atribuem a culpa pelas situações que

contemplam (AVILÉS et al., 2011, p. 60-61, grifos dos autores, tradução

nossa).

Tais variações estão presentes desde os estudos de Olweus (2006), que primeiramente

nomeou de vítima típica a figura passiva descrita por Avilés (2011), descrevendo-a como aquela

que se submete às investidas do agressor sem revidar ou procurar auxílio, sendo, portanto, a

passividade sua principal idiossincrasia (EISENBERG; NEUMARK-SZTAINER; PERRY,

2003). A vítima provocadora, no entanto, foi denominada do mesmo modo por Olweus (2006),

que a classificou como ansiosa e agressiva simultaneamente. Além desses dois tipos mais

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comuns, há ainda a vítima agressora (SILVA, 2010), que reproduz a violência sofrida em outro

sujeito mais “fraco”, também designada por Avilés (2009) como “perfil misto”, e a vítima

reativa, que tenta revidar a agressão sofrida (AVILÉS, 2009).

Em contrapartida, faz-se necessário conhecer as características comuns aos agressores

que são capazes de despertar medo e aflição naqueles que se submetem continuamente às suas

agressões, sejam estas físicas, verbais e/ou gestuais.

Para Olweus (2006), assim como afirmou Avilés et al. (2011), os agressores,

comumente, não demonstram ansiedade ou insegurança; ao contrário, têm segurança em suas

ações, executando-as com intencionalidade. Mesmo aqueles que “acompanham” o agressor

principal e que, provavelmente, não agiriam de tal modo se não fossem incentivados à prática

do bullying não estão alheios, isto é, não deixam de ter ciência de seus atos.

Para além de sujeitos seguros, os agressores são caracterizados pela impulsividade e

pela vontade de submeter o outro ao seu domínio, colocando-se no controle da situação e tendo

sempre um olhar positivo sobre si mesmos (OLWEUS, 2006). Sentem prazer quando chamam

a atenção para os seus atos, por se considerarem “os maiorais” diante dos demais. Mas para

manter essa performance, dependem do “[...] medo, [da] [...] impotência e […] [do] silêncio

[das vítimas]” (MIDDELTON-MOZ; ZAWADSKY, 2007, p. 15). Assim, o “orgulho de parecer

[...] um ‘vencedor’, associa-se à necessidade de humilhar o outro” (LA TAILLE, 2009, p. 216,

grifos do autor).

Segundo Menesini e Salmivalli (2017), “evidências recentes sugerem que o narcisismo,

ou um senso de grandiosidade e direito, bem como características emocionais insensíveis

(caracterizadas pela falta de empatia e vergonha) estão associados ao bullying” (MENESINI;

SALMIVALLI, 2017, p. 244, tradução nossa) e se tornam visíveis nas ações dos agressores.

Ainda segundo as citadas autoras, embasadas nas pesquisas de Peeters, Cillessen, e Scholte

(2010), “foram identificados três subtipos de bullies: o grupo inteligente popular socialmente,

o grupo popular moderado e o grupo inteligente menos impopular socialmente” (MENESINI;

SALMIVALLI., 2017, p. 244). Tais dados mostram, portanto, que não há um único perfil

também entre os agressores.

Sabe-se, entretanto, que, sem embargo dos subtipos de perfil do agressor, o gênero

masculino, por décadas, foi o mais comumente observado em situações de bullying (OLWEUS,

2006). Mas até mesmo essa percepção tem sido alterada, tendo em vista o fato de que pesquisas

recentes vêm comprovando que o bullying está fortemente inserido no universo feminino

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(SIMMONS, 2004; DYTHAM, 2018) – muito embora de forma um tanto velada, é verdade.

Essa falsa aparência parece estar relacionada à afabilidade que socialmente se espera das

meninas (SIMMONS, 2004) e que elas buscam manter na prática de suas ações.

É sob o véu da docilidade que “os grupos sociais das meninas [se hierarquizam] e as

meninas usam manipulação, intimidação e provocações para controlar e excluir outras pessoas

para manter essa hierarquia e os limites de seus grupos” (DYTHAM, 2018, p. 213), visando à

manutenção da popularidade (DYTHAM, 2018; GUIMARÃES, 2018).

Um dos principais empregos sociais do bullying é na competição por

popularidade. As adolescentes afirmavam haver entre elas uma disputa «por

atenção», «pra aparecer». Popularidade significa apreciação, visibilidade,

proeminência social, ou seja, ser distinguível e reconhecível no seu meio.

Seguindo o requisito normatizado de moldar uma feminilidade sustentada na

aparência, atratividade e conduta decorosa, coletivamente as meninas

assumiam a prática de neutralizar possíveis situações de sobreposição

(GUIMARÃES, 2018, p. 172, grifos da autora).

Observa-se, desse modo, que o bullying praticado entre meninas é tão presente quanto

aquele praticado entre meninos, com a diferença de que a disputa pelo poder no mundo feminino

perpassa o “estar em evidência”, especialmente no que se refere ao olhar que conseguem

despertar nos garotos (GUIMARÃES, 2018). Essas variações quanto às formas de ação e

objetivos a serem alcançados pelo agressor, a partir de sua conduta, evidenciam o quanto o

bullying é contextual e fluido (DYTHAM, 2018), a depender das particularidades de cada caso

e dos sujeitos envolvidos.

De igual modo, a variação de perfil também ocorre com os espectadores − aqueles que

presenciam a prática do bullying costumeiramente −, uma vez que podem assumir mais de um

posicionamento: reforçar a agressão (espectadores ativos) ou omitir-se diante da violência

perpetrada (espectadores passivos).

Salmivalli (1999) desenvolveu uma pesquisa na Finlândia, buscando o seguinte

esclarecimento:

O ponto de partida foi o pressuposto de que, [...], outras crianças e

adolescentes também estão envolvidos em bullying. Já se sabe que a maioria

dos alunos de uma turma com problemas de bullying está ciente do que está

acontecendo em volta deles; de fato, muitos deles estão presentes em situações

reais de bullying (Salmivalli, 1992). A questão era: o que essas outras crianças

fazem enquanto o agressor está assediando a vítima? (SALMIVALLI, 1999,

p. 453, tradução nossa).

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Embora buscasse, particularmente, uma resposta ao questionamento proposto,

Salmivalli (1999) também descobriu que a maneira como os espectadores se posicionam

influencia diretamente na prática do bullying.

Algumas crianças e adolescentes participam do bullying quando alguém o

inicia e atuam como assistentes do agressor. Outros, mesmo que não ataquem

ativamente a vítima, oferecem feedback positivo ao agressor. Por exemplo,

eles vêm para ver o que está acontecendo, fornecendo assim uma audiência

para ele/ela ou eles, ou seja, o(s) incita rindo ou encorajando com gestos. Esses

alunos podem ser chamados de reforçadores. Além disso, um número notável

de estudantes tende a ficar longe e não tomar partido de ninguém: eles podem

ser reconhecidos como “aqueles que ficam de fora”, somente observando.

Nem mesmo essas crianças, no entanto, podem ser consideradas como “não

envolvidas”. A seu modo, eles permitem que o bullying continue sendo

aprovado silenciosamente. Por fim, também existem estudantes cujo

comportamento é claramente anti-bullying: eles confortam a vítima, tomam

partido e tentam fazer com que os outros parem de intimidar. Eles são os

defensores (SALMIVALLI, 1999, p. 253-254, grifos da autora, tradução

nossa).

Logo, observa-se que não há neutralidade, nem mesmo entre aqueles que se pretendem

colocar na posição de “isentos”; não há essa possibilidade. Todos aqueles que estão envolvidos,

direta ou indiretamente, assumem o papel que desejam desempenhar. De acordo com O´Connell

et al. (1999), por várias razões, nem sempre as intenções de ação positivas dos espectadores

são, de fato, colocadas em prática; isso porque, se o número de colegas envolvidos for elevado,

eles podem sentir-se desencorajados a participar de situações consideradas perigosas; e se

outros observadores estiverem agindo com indiferença, eles tendem a agir da mesma maneira.

Ainda no que se refere à influência da modelagem na ação do outro, O’Connell et al.

(1999), ancorando-se em Bandura (1977), constataram pontos semelhantes quando se trata de

bullying.

No caso de bullying, essas condições [de imitar o modelo quando se trata de

uma figura poderosa ou quando este é recompensado ao invés de punido por

determinado comportamento] geralmente estão presentes. Pares que estão

presentes durante um episódio de bullying têm a oportunidade de observar

uma figura poderosa (o agressor). [Além disso,] nossas observações indicam

que os agressores raramente são punidos por seu comportamento agressivo:

colegas e professores foram observados intervindo em apenas 11% e 4% dos

episódios, respectivamente (Craig e Pepler, 1997). Dadas essas condições, os

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agressores podem influenciar os pares a se envolverem no bullying como

participantes ativos (O´CONNELL et al., 1999, p. 439, tradução nossa).

É por essa razão que os agressores, na maioria das vezes, não agem sozinhos; recebem

o apoio dos espectadores ativos, que preferem estar ao lado da “figura poderosa”− que se vai

firmando nessa posição a cada ação violenta da qual sai sempre impune – em vez de defenderem

a vítima e correrem o risco de também se tornarem alvo das agressões.

Conforme o exposto, independentemente de qual papel o indivíduo assuma dentro da

dinâmica do bullying, em função da diversidade de perfis, não há como traçar um único

parâmetro de como intervir, visto que é o contexto da violência e a forma como agem os

envolvidos que fornecerá os indícios necessários para que se reflita e se descubra “como agir

naquele caso”. Na verdade, trata-se de uma intervenção bem complexa, por variadas razões,

como nos esclarece Avilés (2006):

Estariam em jogo aspectos cognitivos na compreensão dos fenômenos grupais

de agressão [violência entre pares, ou seja, bullying]; avaliação dos fatos em

função da situação-posição específica dos que participam do abuso, seu grau

de independência e autonomia moral; e finalmente a influência que a própria

história socioemocional de experiências de agressão e o perfil que o sujeito

acaba ocupando a dinâmica do grupo [...] (AVILÉS, 2006, p. 3, tradução

nossa).

Todos esses fatores descritos por Avilés (2006) influenciam na dinâmica do bullying.

Por isso mesmo, ressalta-se a importância de se pensar em estratégias intervencionistas com o

intuito de solucionar o problema, começando esse trabalho no próprio contexto escolar.

Visando a esse alcance,

identificar as ações, assim como estabelecer sistemas de identificação e

avaliação das condutas de bullying nos ambientes escolares com base na

tipificação das ações mais frequentes [é fundamental]. Isso [é] possível após

catalogar, relacionar e classificar as diferentes formas que o bullying assume

quando ocorre (AVILÉS ET AL., 2011, p. 59, tradução nossa).

É esse levantamento de informações que possibilitará a implementação de um programa

de convivência (AVILÉS, 2005; TOGNETTA ET AL., 2017), em que o respeito ao outro seja o

ponto de partida. Para tanto, é fundamental ter clareza quanto ao fato de que educar para uma

convivência pacífica não significa que haverá a extinção de conflitos. Segundo Jares,

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é necessário diferenciar agressão ou qualquer outro comportamento violento,

resposta negativa a um conflito, e o próprio conflito. A confusão vem porque

a violência é assimilada a conflito. [...] a violência é apenas um dos meios para

resolver o conflito, destruindo o outro […]. Igualmente tem que se distinguir

[…] entre agressão e outros comportamentos violentos da agressividade ou

combatividade. [...]. A agressividade faz parte do comportamento humano,

não negativo em si (JARES, 2004, p. 247, tradução nossa).

Charlot (2002) reitera essa compreensão ao afirmar que não há como fazer desaparecer

os conflitos, a agressividade e nem mesmo a agressão, devendo-se, portanto, agir de modo a

conscientizar os escolares sobre a violência e os prejuízos que dela derivam.

E já que o conflito e a agressividade são inevitáveis porque estarão sempre presentes

nas relações entre os sujeitos ─ o que, certamente, contempla as relações entre os discentes na

escola ─, precisamos cuidar para que as pequenas desavenças não se transformem em graves

conflitos ou mesmo num ato de violência desmesurada. Para tanto, faz-se necessário “oferecer

[...] meios adequados e enfatizar [...] estratégias de resolução [do conflito] pacífica e criativa”

(JARES, 2002, p. 134).

Mas é preciso entender que nada disso será possível se não contarmos com o

envolvimento do professor, com o seu conhecimento, tanto no que concerne à diferenciação

entre “agressividade” e “conflito” ou à violência em si, quanto no que diz respeito à distinção

entre a violência em geral e o bullying ou, ainda, no que se refere à naturalização da violência

entre os estudantes (GONÇALVES; ANDRADE; GONZAGA, 2015). Em sendo esclarecidos,

os professores terão a possibilidade de mudar sua compreensão do que seja um ato de violência

pura e simples e uma manifestação de bullying, deixando de assumir uma postura

exclusivamente punitiva que “[…] [leva] professores e alunos a […] [ficarem] presos em um

ciclo vicioso cheio de problemas, no qual as mesmas reações se repetem” (BEAUDOIN;

TAYLOR, 2006, p. 53), isto é, em que o agressor é punido recorrentemente, mas continua a

praticar a violência (MIDDELTON-MOZ e ZAWADSKY, 2007).

Muitas escolas tentaram gerar mais segurança estabelecendo políticas

antibullying, que punem o autor por seu comportamento. Essa estratégia para

tratar o problema mostrou-se ineficaz. Muitas crianças que praticam o

bullying grave se habituaram à punição ao longo de suas vidas. Punições como

detenções escolares, sair da sala de aula, chamar os pais ou expulsões e

envolvimento em disputas de poder, geralmente, são enfrentadas pelo aluno

com desafio e indiferença (MIDDELTON-MOZ; ZAWADSKY, 2007 p. 88).

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Essa é mais uma constatação no sentido de que se faz deveras necessário investir na

formação do professor para que se torne capaz de intervir de modo apropriado nas situações de

conflito, aproveitando-se, inclusive, das ocorrências de bullying para discutir o próprio

bullying.

As oportunidades de aprendizado que a representação de situações de bullying

oferece, geralmente são negligenciadas por muitos educadores que evitam tais

atividades, mas a realidade é que as crianças aprendem umas com as outras,

através de brincadeiras interativas e grupos [...]. Fornecer essas oportunidades

para discutir cenários da vida real pode trazer a mudança positiva que estamos

procurando nas comunidades e que pode começar na sala de aula

(GOURNEAU, 2012, p. 124, tradução nossa).

Abordando essa mesma questão, Espelage e Swearer (2003) destacam que os

“professores podem não apenas desconhecer a extensão em que o bullying ocorre em suas

escolas, mas podem não querer intervir caso reconheçam casos de bullying” (ESPELAGE;

SWEARER, 2003, p. 378, tradução nossa). E essa factível “negligência” pode, muito

provavelmente, ser decorrente do fato de que

[nos] cursos de formação de educadores, os programas tratam do

desenvolvimento e da aprendizagem do aluno como um todo, como um ser

harmônico. No entanto […], pouco ou nenhum tempo sobra para a reflexão e

mesmo para o conhecimento de um aspecto tão importante quanto o

desenvolvimento cognitivo, alvo maior das diferentes disciplinas: o

desenvolvimento moral. Em outras palavras, pouco ou nenhum tempo é

destinado ao conhecimento de como crianças e adolescentes desenvolvem-se

moralmente e, portanto, de como constroem entre si as regras de um bom

relacionamento. O engraçado é que ninguém negaria o fato de que tal

conteúdo é imprescindível à formação do professor, mas na prática sobram os

problemas de indisciplina, de agressividade e mesmo de violência entre os

alunos, sem que seus professores saibam lidar com eles ou se sintam seguros

para isso. O fato é que, tendo estudando ou não em sua formação esse aspecto

do desenvolvimento humano, lá está o professor em sala de aula: sua função,

ele sabe bem, é educar (TOGNETTA, 2007, p. 9-10).

Como alternativa a essa lacuna na formação dos professores, sugere-se buscar a

promoção de treinamentos que os tornem mais bem preparados para identificar as situações de

bullying e saber lidar com elas de modo apropriado (ESPELAGE; SWEARER, 2003). Mas não

podemos esquecer que somente serão capazes de fazer intervenções proficientes se também

lhes for possível conhecer a realidade da escola e da comunidade escolar. Esse saber favorecerá

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o desenvolvimento de um trabalho em prol de uma convivência mais pacífica, em que a cultura

da empatia possa ser disseminada entre todos.

Avilés (2005) adverte para o fato de que não se busca estabelecer uma convivência

pacífica sem antes contar com o amparo de um projeto voltado para esse fim, e que conte com

uma anuência mínima dos responsáveis e dos demais sujeitos envolvidos em sua aplicação.

Essa perspectiva reitera a necessidade de os professores terem clareza sobre o assunto para

poderem, enfim, tornar-se atores/mediadores ativos no combate ao bullying, partindo, inclusive,

de seu exemplo pessoal: que sejam eles próprios sujeitos que respeitam o próximo e que

demonstram empatia pelo outro (GOURNEAU, 2012), dentro e fora da sala de aula. À vista

disso, “[...] o foco principal na prevenção e intervenção do bullying deve gravitar em torno da

educação da empatia. Se há falta de empatia, há falta de respeito” (GOURNEAU, 2012, p. 124,

tradução nossa).

E nem é preciso dizer que esses sentimentos e virtudes são capazes de proporcionar um

clima de confiança entre os pares, gerando uma interação positiva em que todos se mostram

deveras comprometidos com uma “educação para a paz, [compreendendo ser esta] […] uma

educação pela ação e para a ação” (JARES, 2007, p. 82) dentro do espaço educacional.

Trata-se [,portanto,] de impregnar o processo educativo dos princípios da não

violência, assentada no respeito, na transformação das situações de injustiça e

no cumprimento dos direitos e deveres. Aspectos que podem sintetizar o

slogan lançado pelos estudantes do secundário da França em 1997: “mais

poderoso que a violência é o respeito” (JARES, 2002, p. 106-107, grifo do

autor).

Esse parece ser o caminho para a construção da solidariedade, que, em nossa

compreensão, vai além do “ser empático ou respeitoso”, uma vez que implica ação.

“Tolerância, respeito, justiça, [...], solidariedade são virtudes necessárias à experiência humana

da convivência. Uma delas nos demanda um caráter especial: o sair de si e contemplar o outro

em sua condição [...] demanda um gesto de acolhida, de doar-se [...] [: a] solidariedade”

(TOGNETTA; ASSIS, 2006, p. 56). Não obstante, é preciso também entender que, para alcançar

essa virtude, é necessário não apenas trabalhar o olhar do sujeito em relação aos outros, mas

trabalhar a sua própria autoestima e a forma como ele se vê (TOGNETTA; ASSIS, 2006), de

modo que ele “[…] [esteja] bem consigo mesmo, [e tenha] [...] uma representação equilibrada

de si” (TOGNETTA; ASSIS, 2006, p. 55).

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Certamente, esse ponto de vista vem reforçar a ideia de que, quando se trata de bullying,

“uma abordagem meramente repressiva” (DEBARBIEUX, 2002, p. 75) direcionada aos

sujeitos agressores não resulta em mudança de comportamento. É preciso ajudá-los para que

desenvolvam a propalada “representação equilibrada de si”, de modo que superem o narcisismo

(MENESINI; SALMIVALLI, 2017) e o desejo de ser o “bom” (TOGNETTA; VINHA;

AVILÉS, 2015) perante os demais, para que, assim, possam desenvolver um olhar empático em

relação ao outro.

Ademais, uma “representação equilibrada de si” também se destina àqueles que são

vítimas, uma vez que eles precisam acreditar em si mesmos e no potencial que possuem para

que rompam com a submissão à situação de violência vivenciada. Por isso mesmo, estimular o

empoderamento daqueles que sofrem é essencial (GONÇALVES, 2017); inclusive corrobora a

ideia defendida por Debarbieux (2002) sobre a necessidade de as vítimas poderem expressar-

se. Mesmo porque é certo que “[a] pior situação que [...] qualquer pessoa pode provocar para

uma vítima [...] [é] relegá-la ao reino do “subjetivismo”. [É necessário abrir] caminho para que

as vítimas possam dizer o que sentem, e para o aumento do nível de conscientização [...]”

(DEBARBIEUX, 2002, p. 67).

Entendemos que essa conscientização, conforme propõe Debarbieux (2002), tem

relação direta com o empoderar-se. Afinal, entendendo que não precisa (nem merece) estar

submetida à violência, a vítima tem a possibilidade de encontrar meios que a conduzam à

superação.

Mas, para isso, a vítima precisa de um apoio constante, advindo tanto da ação do

professor, conforme mencionado anteriormente, quanto da atuação dos demais membros da

escola, incluindo-se o próprio corpo discente.

[Esse] apoio social [é] necessário para ajudá-las [as vítimas] a progredir. […]

[os] parceiros das vítimas [precisam se comprometer] contra o abuso e têm a

dupla função, [...] servir como canal de comunicação para elas e [...] incentivá-

las a confiar neles, organizados em sistemas de apoio: amigo do aluno, tutor

do aluno [...], equipes de ajuda [...], mediadores escolares, orientadores de

estudantes, tele--ajuda [...]. Essas estratégias devem ser ativas [...] (AVILÉS,

2009, p. 22-23).

Essas estratégias ativas devem ser aplicadas de maneira que as vítimas vislumbrem a

mudança de postura e se sintam realmente seguras quanto ao fato de que a intervenção proposta

não será uma ação meramente pontual. Ao contrário disso, ações rotineiras serão desenvolvidas

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em prol da mudança de sua condição de vítima e com o objetivo último de empoderá-la. Tais

proposições, mencionadas por Avilés (2009), visam, acima de tudo, ajudar as vítimas a

melhorarem a forma como se veem a si mesmas, transpondo a imagem, muitas das vezes

deturpada, que foi construída e reforçada continuamente por seus agressores.

Além desse trabalho interventivo, ações de prevenção ao bullying também precisam ser

constantes (SMITH, 2002) para que não se pense somente em ajudar as vítimas da violência

instalada mas se procure evitar que outros estudantes venham a se tornar bullies. Essas ações

[…] [devem] acontecer em meio às tarefas cotidianas da educação, e não

apenas nas grandes campanhas de “conscientização”, por mais úteis que elas

possam ser. O papel fundamental nessa prevenção deve ser desempenhado por

aqueles que administram a educação em base cotidiana, contando, se

necessário, com a ajuda de outros profissionais, especializados ou não: os

professores, é claro, mas também as famílias e as comunidades […]

(DEBARBIEUX, 2002, p. 86).

O certo é que, seja por meio da prevenção ou da intervenção, vários fatores precisam

ser congregados para que se alcance a tão almejada conscientização sobre as consequências que

podem advir do bullying. O importante, afinal, é que se proponham atividades que favoreçam

a discussão sobre essa forma de violência e, especialmente, criem a possibilidade de exaltar o

respeito, a empatia, a tolerância, a justiça e a amizade (TOGNETTA; ASSIS, 2006), assim como

a afetividade, que precisa permear todas as ações planejadas. Isso porque,

para que as atitudes das pessoas possam ser virtuosas, é preciso muito mais do

que a tomada de consciência em termos cognitivos. […] essa tomada de

consciência precisa pressupor, também, um outro lado do ser humano, que é a

afetividade. […]. Falar de sentimentos é favorecer sua manifestação, bem

como a reflexão sobre os estados de ânimo e as relações interpessoais que

podem provocá-los, amenizá-los ou acentuá-los (TOGNETTA, 2003, p. 107).

A literatura, por possibilitar ao leitor a experiência vicária a partir da observação dos

comportamentos e das ações de suas personagens, pode ser encarada como um caminho para

que todos os referidos sentimentos e virtudes possam aflorar e ser refletidos, especialmente

quando o encontro leitor-texto é potencializado pela mediação do professor. Esse encontro tem,

portanto, uma função formadora, e é essa a temática que abordaremos no item a seguir.

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3.2 A LITERATURA E SUA FUNÇÃO FORMADORA NA ESCOLA

[...] a escola e a literatura [...] quando se tornarem o espaço para a criança

refletir sobre sua condição pessoal, [poderão ser] os fatores de sua

emancipação. Gesto de rebeldia que inclui o professor [...] (ZILBERMAN,

2003, p. 24).

A visão da literatura como um dos fatores que pode contribuir para a emancipação do

sujeito é bem recente, considerando-se o fato de que a função primeira dos textos literários, nas

recém-popularizadas escolas laicas do século XVIII, era a de instruir (ZILBERMAN, 2003).

Em sendo assim, podemos dizer que a sua finalidade era unicamente pedagogizante: o objetivo

precípuo era fazer com que as crianças aprendessem a viver em uma nova conjuntura de

organização social condizente com a sociedade burguesa em ascensão.

Essa aplicação da literatura com fins meramente pragmáticos ainda hoje tem espaço na

escola, visto que muitos professores dos anos iniciais de escolarização – Educação Infantil e

Ensino Fundamental I – utilizam-na basicamente como medida disciplinar (AMARILHA,

2004), relegando-a, portanto, a momentos esporádicos na sala de aula. Assim, o verdadeiro

potencial dos textos literários acaba não sendo devidamente explorado. Acreditamos que esse

uso pragmático está relacionado à presença ainda incipiente da disciplina de literatura na

formação dos futuros professores das primeiras séries; é pelo menos o que se depreende da

análise das estruturas curriculares dos Cursos de Pedagogia nas universidades federais do nosso

país, conforme constataram Saldanha e Amarilha (2018).

Definitivamente, acreditamos que esse quadro só poderá ser alterado quando o professor

tiver a possibilidade de (re) conhecer a importância da literatura para a emancipação dos

estudantes, podendo, em função desse saber, modificar a sua prática. Mas, primeiramente, ele

necessita tornar-se um leitor de textos literários para que possa despertar nos seus alunos o

apreço pela literatura ao apresentar-lhes obras literárias (POUND, 2013; AMARILHA, 2010).

Sendo um leitor proficiente, o professor poderá perceber, com a devida ciência, que a aula de

literatura precisa ser uma atividade planejada (SAMPAIO, 2005), o que vai de encontro à ideia

de utilizá-la tão-somente com o objetivo de acalmar os alunos ou como uma atividade que os

entretenha enquanto se finaliza o tempo da aula.

Entendemos também que essa mudança está sujeita a mais uma nova mudança no

comportamento do professor: que ele se torne um rebelde nos moldes em que sugere Zilberman

(2003). Isso exige uma absoluta compreensão da literatura em sua função formadora e

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emancipadora. E, para além, conhecer as inúmeras possibilidades que a literatura apresenta ao

leitor e o modo como age sobre/com ele.

De acordo com Zilberman (1989), a literatura é emancipadora porque é capaz de

veicular, criar ou destruir normas na medida em que permite ao leitor refletir sobre o mundo ao

seu redor a partir da experiência estética, ou seja, da sua identificação com a narrativa e com

suas personagens.

Para Jauss [...], a obra se livra de uma engrenagem opressora e, na medida

em que [é] recebida, apreciada e compreendida pelo seu destinatário,

convida-o a participar desse universo de liberdade. De novo o conceito de

emancipação se faz presente, desta vez para servir de avalista para a natureza

simultaneamente comunicativa e libertadora da criação artística

(ZILBERMAN, 1989, p. 54).

Essa liberdade começa a ser construída no momento em que o sujeito assume o papel

de leitor e, como tal, experiencia três dimensões inerentes à literatura: a poíesis, a aisthesis e a

katharsis. Segundo nos esclarece Zilberman (1989), a poíesis configura-se como o prazer que

o leitor sente ao se enxergar como coautor da obra, isto é, de se sentir participante do texto

literário; a aisthesis corresponde ao efeito (o prazer estético) provocado pela obra de arte ─ a

renovação na percepção do mundo circundante, tendo-se em conta que “sempre foi uma das

funções da arte descobrir novos modos de experiência na realidade mutável ou propor

alternativas para ela” (ZILBERMAN, 1989, p. 56); e a katharsis manifesta-se pela

concretização do processo de identificação, que possibilita ao leitor assumir novas normas de

comportamento social através da reflexão e do julgamento e, consequentemente, da ação

(ZILBERMAN, 1989).

Ao imergir no texto literário, o leitor pode vivenciar imaginariamente outras vidas e se

inserir em novos contextos completamente distintos do seu, que tanto podem despertar o seu

desejo quanto suscitar a sua compaixão e/ou a sua empatia em relação ao outro

(COMPAGNON, 2009; MACHADO, 2002). Esse momento é propiciado pela experiência

vicária, que permite ao leitor vivenciar as situações em que se envolvem os personagens e,

assumindo o papel que estes desempenham, sentir-se tocado pelas mesmas sensações que só a

eles cabe experimentar.

Uma outra possibilidade que, igualmente, conduz o leitor à identificação e à katharsis é

o fato de as situações vividas pelas personagens serem, de algum modo, semelhantes àquelas

por ele vivenciadas na vida real, o que é possível em razão de a literatura ser uma representação

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da realidade, com a qual mantém uma íntima relação (BRAIT, 2017; ZILBERMAN, 2003). E

como definir, afinal, o que é ler literatura? Machado (2002) apresenta uma boa resposta:

É o gosto pela imersão no desconhecido, pelo conhecimento do outro, pela

exploração da diversidade. A satisfação de se deixar transportar para outro

tempo e outro espaço, viver outras vidas com experiências diferentes do

quotidiano. [...] [ou] o outro lado da moeda: o contentamento de descobrir em

uma personagem alguns elementos em que ele [leitor] se reconhece

plenamente. Lendo uma história, de repente descobrimos nela umas pessoas

que, de alguma forma, são tão idênticas a nós mesmos, que nos parecem uma

espécie de espelho. Como estão, porém, em um outro contexto e são fictícias,

nos permitem um certo distanciamento e acabam nos ajudando a entender o

sentido das nossas próprias experiências. Essa dupla capacidade de nos

carregar para outros mundos e, paralelamente, nos propiciar uma intensa

vivência enriquecedora é a garantia de um dos grandes prazeres de uma boa

leitura (MACHADO, 2002, p. 19-20).

Possibilita-se, com isso, a mobilização dos afetos do leitor, podendo levá-lo a refletir

sobre os sentimentos destacados por Tognetta e Assis (2006) e que são fundamentais para a

convivência na escola, dentre os quais destacamos o respeito, a empatia, a tolerância e a justiça

em relação ao próximo. O texto literário, desse modo,

[...] converte-se num dos responsáveis diretos pela configuração de um

horizonte de expectativas na criança. [...] lhe [...] [permitindo] pôr em questão

o universo representado. Por isso, ela [a literatura] é necessariamente

formadora, [...] cabe-lhe uma formação especial que, antes de tudo, interrogue

a circunstância social de onde provém o destinatário e seu lugar dentro dela

(ZILBERMAN, 2003, p. 131-132).

Acreditamos, por essa razão, que as relações desencadeadas a partir da leitura de

literatura implicam a formação do leitor, a qual não se limita ao domínio de um repertório de

obras literárias, à identificação de gêneros ou, simplesmente, ao aprendizado linguístico. Trata-

se de uma formação mais ampla em que o leitor é visto como um sujeito que está inserido em

um mundo de relações e de valores; logo, ao interagir com o texto literário, e também com os

seus pares, paulatinamente ele desenvolve o senso crítico sobre aquilo que está à sua volta.

Inserindo-se nessa discussão, Iser (1996) destaca o fato de que o efeito estético é

viabilizado a partir do encontro do leitor com o texto. Assim, o foco, antes direcionado ao autor

e à obra em si, volta-se, agora, para o leitor, que assume o papel central ao dar sentido à obra.

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Apoiado nas conclusões de R. Ingarden, para quem o mundo do imaginário

representado numa obra mostra-se de modo esquematizado, portanto,

incompleto e com pontos de indeterminações ou lacunas, Iser tem condições

de confirmar um dos postulados da estética da recepção: a obra literária é

comunicativa desde sua estrutura, logo, depende do leitor para a constituição

de seu sentido (ZILBERMAN, 1989, p. 64).

Ao preencher as lacunas da obra, o leitor vale-se de seu conhecimento de mundo e de

suas vivências (ISER, 1996), isto é, o seu repertório de vida, que inclui os aspectos social,

histórico e cultural. Assim, o texto ganha vida à medida que o leitor o lê e o interpreta a partir

dos seus saberes, fazendo conexões entre a ficção e a realidade.

Iser (1996) faz remissão a um leitor individual e concreto que, com todo o seu repertório,

se implica na obra seguindo as orientações do leitor implícito, aquele que faz parte da própria

estrutura do texto. Esse leitor implícito, portanto,

não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das preorientações que

um texto ficcional oferece, com condições de recepção, a seus leitores

possíveis. Em consequência, o leitor implícito não se afunda em um substrato

empírico, mas sim na estrutura do texto. Se daí inferimos que os textos só

adquirem sua realidade ao serem lidos, isso significa que as condições de

atualização do texto se inscrevem na própria construção do texto, que permite

constituir o sentido do texto na consciência receptiva do leitor. A concepção

do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a

presença do receptor (ISER, 1996, p. 73).

Dessa forma, o leitor real passa a desempenhar o papel de coautor do texto, ou seja, sua

função consiste em “suplementar a porção não escrita mas implícita do texto” (SANTOS, 2009,

p. 63), sem estar livre para fazer qualquer tipo de interpretação, uma vez que há limites impostos

pela estrutura da obra. Isso exige que o leitor “diante do texto ficcional, [...] [seja] forçosamente

convidado a se comportar como um estrangeiro, que a todo instante se pergunta se a formação

de sentido que está fazendo é adequada à leitura que está cumprindo” (LIMA, 2002, p. 51). E

vale ainda acrescentar o seguinte esclarecimento:

Qualquer que seja o equilíbrio na leitura entre os papéis oferecidos pelo texto

e as disposições habituais do leitor, nunca os dois se superpõem. Se essa

relação se caracteriza em princípio pelo fato de que papéis do texto se

sobrepõem às disposições do leitor, então estas não desaparecem por

completo, quando o leitor se apropria do papel prescrito. Ao contrário, as

disposições formam o pano de fundo, diante do qual os atos de apreensão do

texto, motivados pelo papel do leitor, se realizam; elas constituem o quadro de

referência necessário que torna possível a apreensão de algo que foi captado

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e, assim, a sua compreensão. Se nós nos transformássemos por completo nos

papéis oferecidos, então isso nos tiraria de cena, o que significa que nos

livraríamos de todas as experiências que, no entanto, introduzimos

constantemente na leitura e que são responsáveis pelos diferentes modos de

atualização do papel do leitor. Mesmo que o papel nos capte inteiramente,

sentimos no final da leitura a vontade de relacionar essa experiência estranha

ao horizonte de nossas idéias; esse horizonte dirigiu, de forma latente, nossa

disposição de responder ao texto. Daí segue que o papel do leitor se realiza

histórica e individualmente, de acordo com as vivências e a compreensão

previamente constituída que os leitores introduzem na leitura. Isso não é

aleatório, mas resulta de que os papéis oferecidos pelo texto se realizam

sempre seletivamente (ISER, 1996, p. 77-78).

Parece incontestável o fato de que, embora o texto literário evidencie, na sua estrutura,

as “suas condições”, é o leitor real quem dá vida ao escrito e, ao fazer isso, constrói relações

entre a ficção, a realidade e as suas vivências particulares. Isso porque, “o leitor real, concreto,

individual possui idiossincrasias de ordens várias, dentre elas […] as emocionais e cognitivas

que condicionam o preenchimento dos vazios do texto” (SANTOS, 2009, p. 36).

Ademais, ainda que o texto não permita toda e qualquer interpretação por parte do leitor,

ele possibilita uma “multiplicidade de comunicações” (LIMA, 2002, p. 52) em virtude de sua

natural plurissignificação (FIORIN; SAVIOLI, 1992).

Acreditamos que, compreendendo o potencial do texto literário e o efeito estético

decorrente da interação texto-leitor, o professor, na condição de sujeito mais experiente, será

capaz de desenvolver um importante trabalho na formação de indivíduos leitores. Todavia,

havemos de reconhecer que as constatações de Amarilha (2004) permanecem válidas, ainda

hoje, na prática de boa parte dos professores, que focam o seu trabalho unicamente no ensino

de conteúdos; isso porque se tem, na escola, uma visão limitada de que ensinar é um “[...]

trabalho cujo desenvolvimento é agendado em conformidade com programas, avaliações [...],

[comportando, assim,] inúmeros aspectos formais, codificados e rotineiros” (TARDIF;

LESSARD, 2011, p. 42).

Certamente, uma visão por demais equivocada, levando-se em conta o fato de que, para

trabalhar com o humano e, por conseguinte, em prol da formação humana, o professor precisa

estar mais bem preparado, principalmente porque, nessa atuação em particular, deverá lidar

com diversas outras realidades que exigem muito mais do que o ato de lecionar, simplesmente,

e que vão requerer profissionais que saibam “educar”; e isso pressupõe o desenvolvimento de

virtudes (TOGNETTA; ASSIS, 2016) essenciais à convivência em sociedade.

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É pensando na contribuição do trabalho docente para o desenvolvimento dessas virtudes

nos escolares que indicamos a literatura como um promissor discurso para trabalhar esse

aspecto da formação humana. E para melhor ainda justificar nossa indicação, diremos que a

literatura é capaz de mobilizar o sujeito, fazendo-o refletir para além de suas próprias

concepções, a partir das experiências e das sensações que lhe foram marcantes no encontro com

o texto e com suas personagens.

[...] [Assim,] o espectador não apenas sente prazer, mas também é motivado à

ação. Esta característica acentua a função comunicativa da arte verbal, que,

por seu turno, depende do processo vivido pelo recebedor: o de identificação.

Esta é provocada pela experiência estética e leva o sujeito à adoção de um

modelo (ZILBERMAN, 1989, p. 57).

Podemos dizer, então, que o processo de identificação realizado pelo leitor a partir das

impressões sugeridas pelo texto é o que, de fato, possibilita a adoção de certa conduta. É esse

processo que corresponde à efetiva realização da função comunicativa da obra, por permitir a

reflexão produtiva do sujeito estético (ZILBERMAN, 1989). Essa reflexão, portanto, é possível

justamente em virtude da função empática presente na literatura. Nesse sentido, a literatura “não

corrompe nem edifica, […]; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que

chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 1972, p. 85,

grifos do autor).

Reforçando essa compreensão, Bettelheim (2007) afirma que “as escolhas das crianças

[acerca das personagens] são baseadas não tanto sobre o certo versus o errado, mas sobre quem

desperta sua simpatia e quem desperta sua antipatia [...] com base em sua projeção entusiástica”

(BETTELHEIM, 2007, p. 17). Evidencia-se, desse modo, a dimensão afetiva na experiência

estética, que permite à criança externar emoções provenientes do efeito estético.

Mesmo porque,

[...] quando o narrador lhes dá [às crianças] tempo bastante para refletir sobre

ela [história], para mergulhar na atmosfera que sua audição cria, e quando são

encorajadas a falar sobre ela, então a conversa posterior revela que tanto

emocional e intelectualmente a história tem muito a oferecer (BETTELHEIM,

2007, p. 86).

Isso mostra que as reações provocadas pelas histórias nas crianças são extremamente

importantes e se potencializam quando elas têm a oportunidade de ouvir a opinião do outro.

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Destarte, devemos considerar os sujeitos como seres pensantes, capazes de discutir e refletir

sobre os mais variados assuntos presentes nas obras literárias (HELD, 1980).

Crianças [...], para quem as primeiras páginas foram lidas em voz alta,

puderam continuar a leitura sozinhas, interessar-se pelos problemas sociais e

políticos colocados e compreendê-los, ao menos parcialmente. Tanto é

verdade que não existem temas “tabus”, e a criança se interessa por assuntos

importantes e sérios toda vez que são abordados de maneira capaz de tocá-

las (HELD, 1980 p. 161).

É justamente porque são seres pensantes que se torna natural o surgimento de conflitos

na interação do indivíduo com o mundo circundante, o que não é diferente se considerarmos a

tríade texto-leitor-leitor, em que cada sujeito constrói relações com o enredo da obra ficcional

(a partir de suas próprias experiências) e com a visão dos colegas sobre esse texto. É dessa

interação que emergem vários pontos de vista.

Assim, ao confrontar as suas ideias previamente estabelecidas com o enredo da história

e com as ideias dos demais sujeitos envolvidos na atividade, o indivíduo participa de um

processo de interação capaz de modificar suas próprias convicções. Esse processo pode ser

potencializado a partir da mediação do professor, que deve estimular os discentes à (re)

estruturarem constantemente os seus pensamentos.

A mediação, portanto, torna-se um fator significativo para a dinâmica do trabalho com

a literatura. Essa é uma afirmação que nos leva de volta a Vygotsky (2007), que considera que:

"o caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa por outra pessoa" (VYGOTSKY,

2007, p. 20). Em outras palavras, o efeito da ação mediada está na construção de novas relações

no pensamento das crianças. Isso confere ao professor um papel privilegiado na aprendizagem

e no progresso de seus alunos a partir da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que

desencadeia processos internos de desenvolvimento na medida em que há a interação e a

cooperação do outro (VYGOTSKY, 2007).

É, portanto, pela interação e pela ajuda de outras pessoas que a criança avança em seu

desenvolvimento e se torna capaz de ações autogeradas e autônomas, demonstrando a sua

posição ativa no processo educativo e se apropriando do conhecimento disponível no contexto

sociocultural em que vive.

Essa internalização dá-se a partir de relações interpessoais significativas e na interação

com o mundo social e cultural, permitindo que cada sujeito construa a sua própria trajetória,

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tendo a possibilidade de ressignificar o que apreende e podendo dar contribuições singulares

para o processo constante de recriação do pensamento ou mesmo de atitudes. Sendo assim, à

mediação é conferida uma posição central, uma vez que é nesse processo que as funções

psicológicas superiores se desenvolvem.

Nesse sentido, a leitura de literatura configura-se como um meio que favorece inúmeras

possibilidades imaginárias para que o professor – mediador do processo –, observando e

investigando os conhecimentos trazidos à escola pelos alunos, possa intervir para reorganizar

suas compreensões, elevando-os a outro patamar ao fazê-los (re) pensar o mundo à sua volta.

Se por um lado, a comunicação verbal com o adulto é decisiva para a

sistematização dos conceitos por transmitir os significados estáveis do grupo

social à criança, a elaboração e a utilização desses significados a ultrapassa,

não só em função da especialidade do pensamento infantil, mas porque esses

processos (elaboração e utilização) constituem formas ativas de compreensão,

carregadas de um sentido ideológico (FONTANA, 2000, p. 58-59).

Em todo esse processo, vale lembrar, o planejamento é essencial, porque “planejar fica

sendo o mesmo que preparar bem cada ação, ou organizar adequadamente um conjunto de ações

interdependentes” (FERREIRA, 1981, p. 17). Assim, a “atividade do planejamento [constitui-

se] em um dos subsídios desencadeadores do processo de reflexão e autorreflexão simultâneo”

(SAMPAIO, 2005, p. 18).

Esse entendimento é sumamente importante porque consideramos que “o processo de

ensino-aprendizagem [...] depende de fatores que vão desde a mediação pedagógica, incluindo-

se a estruturação das atividades a serem desenvolvidas, aos diferentes processos interativos”

(SAMPAIO, 2005, p. 110), entendendo-se que a mediação é um processo consciente e

intencional (VASCONCELLOS, 1999).

Ademais, compreendemos que a mediação pedagógica deve ser assumida “na dinâmica

da interação, como forma de viabilizar o espaço do outro, o dizer do outro e a possibilidade de

[...] entretecer os dizeres em circulação, questioná-los, redimensioná-los e sistematizá-los”

(FONTANA, 2000, p. 71), permitindo, dessa maneira, que nos aproximemos do que os sujeitos

pensam sobre a questão da violência, especialmente o bullying, ao entrarem em contato com as

histórias.

E nesse ponto vale justificar que a escolha do gênero literário “conto” para ser

trabalhado com os discentes fundamentou-se no fato de este abordar, essencialmente, conflitos

humanos. Além disso, as especificidades desse gênero, como a personificação entre o bem e o

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mal, o embate vivenciado pelo personagem principal, a solução trazida através de um elemento

mágico e o desfecho em que o bem se sobressai e vence o mal (BETTELHEIM, 2007),

propiciam o envolvimento do leitor, levando-o a compreender que, apesar de a vida ser repleta

de dificuldades, existem soluções possíveis para os problemas, o que também pode acontecer

na vida real.

É importante prover a criança moderna com imagens de heróis que têm de

partir para o mundo sozinhos e que – apesar de no início ignorarem o futuro

que lhes reserva – encontram nele lugares seguros ao seguir seus caminhos

com profunda confiança interior. O herói do conto de fadas avança isolado

por algum tempo, assim como a criança moderna com frequência se sente

isolada (BETTELHEIM, 2007, p.19).

Nesse influxo ficção-realidade, abrem-se portas para verdades sobre as quais é

importante refletir. Assim, o encontro do leitor com o conto “funciona exatamente como deve

ser; o conto oferece um modelo para a vida, um modelo vivificador e encorajador que

permanece no inconsciente contendo todas as possibilidades positivas da vida" (FRANZ, 2003,

p. 74).

Desse modo, à medida que estimulam a imaginação, os contos ajudam o leitor a

desenvolver o seu intelecto e a clarificar suas emoções, a pensar sobre suas ansiedades e

aspirações, reconhecendo suas dificuldades e formulando soluções para os problemas que o

perturbam (BETTELHEIM, 2007). Todo esse processo, por se desenvolver no mundo ficcional,

acontece sem que o sujeito corra riscos reais (AMARILHA, 2006).

A grande carência [...] [da criança] é o conhecimento de si mesma e do

ambiente no qual vive, que é primordialmente o da família, depois o espaço

circundante e, por fim, a história e a vida social. O que a ficção lhe outorga é

uma visão de mundo que ocupa as lacunas resultantes de sua restrita

experiência existencial, por meio de sua linguagem simbólica [...] [.]

[Portanto,] [...] pelo conto de fadas [...], o leitor reconhece o contorno no qual

está inserido e com o qual compartilha lucros e perdas (ZILBERMAN, 2003,

p. 27).

Essas inúmeras possibilidades que os contos apresentam é que despertam nas crianças

um enorme interesse por esse gênero (BETTELHEIM, 2007), sendo, por isso mesmo, mais um

dos fatores que justificam a nossa escolha em trabalhá-lo nesta pesquisa.

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Em suma, considerando todas as características apresentadas, inerentes à literatura de

modo geral, e, especificamente, ao gênero conto, acreditamos que a discussão, por meio dos

textos literários, pode ser um caminho viável para se refletir sobre o bullying.

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168

4 O DESTINO DO VOO: RESULTADOS ALCANÇADOS

4.1 ANÁLISE DOS DADOS CONSTRUÍDOS: UNIDADES DE REGISTRO E

CATEGORIAS

Conforme apresentamos no capítulo 2, nosso corpus de análise é composto pelos

seguintes conteúdos: as sessões de leitura de literatura e as entrevistas finais realizadas com os

sujeitos participantes.

Considerando o fato de que os dados foram coletados a partir de modalidades distintas

– uma coletiva e outra individual –, o que pode ter influenciado no modo de os sujeitos se

posicionarem diante dos questionamentos, optamos por aplicar critérios de análise também

diferentes (especificamente no que tange à elaboração das unidades de registro e das

categorias). Em razão disso, estabelecemos duas estruturas de análise.

Para a elaboração da primeira estrutura (referente à análise dos dados construídos nas

sessões de leitura de literatura), apoiando-nos nas instruções de Bardin (2010), definimos, como

unidades de registro, temas relacionados aos nossos objetivos de pesquisa. Com foco nesse

critério, estabelecemos as seguintes unidades: mediação pedagógica e relação texto literário x

bullying.

Definidas as temáticas, pensamos em categorias que pudessem ir ao encontro da

proposição deste estudo. Para tanto, todo o trabalho desenvolvido nas sessões de leitura foi

considerado – tendo em conta a dinâmica gerada a partir dos questionamentos feitos e das

respostas da professora-pesquisadora e dos sujeitos participantes –, ao mesmo tempo em que

buscamos elaborar categorias que tivessem estreita relação com os temas escolhidos. Partindo

dessas diretrizes, construímos três categorias para cada uma das duas unidades.

Para a primeira unidade – mediação pedagógica –, foram definidas as seguintes

categorias: motivação à atividade, em que destacamos ações da professora-pesquisadora nos

momentos de pré-leitura; estímulo à discussão; e incentivo à reflexão, em que consideramos os

questionamentos realizados durante a pós-leitura que propiciaram a discussão e a reflexão dos

sujeitos sobre o bullying. Essa unidade visou ao alcance do seguinte objetivo específico:

demonstrar como o trabalho mediado pela leitura de textos literários, considerando a interface

literatura e bullying, pode contribuir para a discussão sobre essa prática de violência na sala

de aula.

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169

Para a segunda unidade – relação texto literário x bullying –, determinaram-se as

categorias identificação com as personagens; relação texto-vida; e da reflexão ao julgamento,

em que procuramos reconhecer o efeito estético provocado nos sujeitos a partir das sessões de

leitura de literatura. Com essa unidade, buscamos atingir o seguinte objetivo específico:

especificar, por meio da fala dos sujeitos, as possibilidades de identificação, derivadas da

interação texto-leitor, que favorecem o processo de julgamento, considerando a relação ficção-

realidade.

No quadro abaixo, é possível ter uma visão geral da primeira estrutura de análise

elaborada.

Quadro 7 – Estrutura de análise das sessões de literatura

UNIDADES DE REGISTRO

MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA

RELAÇÃO TEXTO LITERÁRIO X BULLYING

Moti

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ativ

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Da

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CATEGORIAS

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2019.

Com relação ao desenvolvimento da segunda estrutura (referente à análise dos dados

resultantes das entrevistas finais com os sujeitos participantes), também foram estabelecidas

duas unidades de registro, alinhadas diretamente aos temas geradores da entrevista final:

Literatura e bullying.

Partindo dessas unidades, criamos categorias particularmente relacionadas às questões

semiestruturadas elaboradas para a entrevista, com vistas a alcançar o seguinte objetivo

específico: identificar, a partir da análise dos dados, que conhecimentos sobre o bullying foram

construídos pelos estudantes em decorrência da leitura de textos literários. Vale ainda

esclarecer o fato de que, para cada unidade, foram definidas três categorias.

A primeira unidade – Literatura – é constituída pelas seguintes categorias: avaliação

das sessões de leitura, em que cada sujeito foi incentivado a falar sobre o apreço (ou não) pelas

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intervenções; sentimentos despertados pelas leituras, em que cada um pôde discorrer sobre as

experiências vivenciadas a partir das histórias trabalhadas; e possibilidade de posicionar-se e

de ouvir o outro, em que cada um considerou a sua própria participação nas sessões de leitura,

assim como a participação dos colegas.

A segunda unidade – Bullying – é constituída pelas seguintes categorias: entendimento

sobre o bullying, em que cada sujeito definiu a sua compreensão sobre as características dessa

forma de violência entre pares, considerando, para tanto, todas as discussões construídas nas

intervenções; relação da violência nas narrativas e a realidade, em que os sujeitos puderam

identificar as situações de violência apresentadas em cada história, relacionando-as ao bullying

e vislumbrar a superação das personagens também na vida real; postura adotada frente ao

bullying, em que os sujeitos expressaram de que modo agiriam diante da violência entre pares,

após tudo o que foi discutido nas sessões.

Quadro 8: Estrutura de análise das entrevistas finais

UNIDADES DE REGISTRO

LITERATURA

BULLYING

Aval

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sess

ões

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yin

g

CATEGORIAS

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2019.

Finalizadas as etapas de classificação, fruto das estruturas supracitadas, começamos a

construir as inferências, fundamentando-as nos discursos dos teóricos das áreas de literatura e

bullying, apresentados no terceiro capítulo deste trabalho. Na composição dessas construções,

tecemos as interpretações que nos conduziram aos resultados, os quais apresentaremos a seguir.

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4.1.1 Sessões de leitura de literatura

Nesta seção, fazemos a análise das sessões de leitura, a partir de cada conto, destacando

as unidades e as categorias que foram identificadas nas nossas interações com os sujeitos na

tentativa de atingirmos os objetivos deste trabalho e averiguarmos a pertinência de nossa

proposição de pesquisa.

4.1.1.1 A Gata Borralheira

Então ela lavou as mãos e o rosto, apareceu e curvou-se diante do filho do

rei, que lhe estendeu o sapatinho de ouro. Ali ela sentou-se sobre o

banquinho, tirou o pé do pesado tamanco de madeira e enfiou-o no sapatinho,

que se adaptou com perfeição (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a, p. 22-

23).

O conto A Gata Borralheira narra a história de uma bela moça, órfã de mãe, que passa

a sofrer inúmeras agressões após o pai casar-se novamente. Sua madrasta e suas “irmãs” recém-

chegadas demonstram constantemente, em cada ação, o desprezo que alimentam por ela. Sua

situação começa a ser alterada quando ela pensa em ir ao baile real. No intuito de realizar seu

desejo incontido de ir ao baile, a moça resolve pedir, pela primeira vez, a ajuda dos passarinhos.

Contudo, mesmo diante de todo o seu esforço para realizar as tarefas que lhes foram solicitadas,

a madrasta não cumpre a palavra de deixá-la ir à festa. Sentindo-se injustiçada, a borralheira –

em mais um ímpeto – busca novamente a ajuda dos passarinhos (elementos externos), que a

estimulam a se libertar da situação opressora.

A partir desse enredo, é possível apontar dois pontos que serviram de base para a

discussão nesta pesquisa: a presença do bullying entre meninas, que, no mundo real, se

apresenta de modo mais sutil (SIMMONS, 2004), e a submissão da personagem principal à

situação de violência – característica comum da vítima típica.

Para a análise desse conto, destacamos 8 episódios que exemplificam as seguintes

categorias: motivação à leitura; estímulo à discussão e incentivo à reflexão (Unidade: Mediação

Pedagógica) e identificação com as personagens; relação texto-vida; e da reflexão ao

julgamento (Unidade: Relação texto literário x bullying).

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Vale salientar, antecipadamente, que esta foi a primeira sessão de leitura de literatura

realizada com a turma. Desse modo, considerando o pequeno contato com os textos literários –

constatado por meio das entrevistas com os sujeitos e também com a professora titular –, essa

sessão acabou servindo como adaptação para que eles entendessem a dinâmica da atividade.

Também ressaltamos o fato de que essa constatação vai de encontro à nossa ideia inicial

de que a escola locus, de modo geral, era um espaço onde a literatura se fazia presente

rotineiramente. Isso porque, apesar da observação da coordenadora sobre a importância de as

professoras incentivarem os alunos a ler obras literárias, levando-as para casa, na realidade,

segundo os sujeitos da pesquisa, o trabalho com textos literários resumia-se, basicamente, às

aulas da biblioteca.

Ademais, vale lembrar o fato de que o interesse inicial da professora da turma pelo

trabalho com a literatura também não se mostrou duradouro, uma vez que esta não realizava –

e nem se verificou uma intenção mais consistente por parte da docente, quando de sua

entrevista, de que passaria a realizar – atividades sistematizadas e regulares com a literatura na

sala de aula. Nem mesmo vimos indícios de que faria isso a partir da nossa intervenção.

Essa sessão, portanto, foi um momento de adaptação para que os sujeitos entendessem

que poderiam discutir a história após a leitura, emitir suas opiniões e também ouvir o que os

colegas tinham a dizer. Não obstante, cabe observar que, mesmo sendo essa (pelo menos

deveria ser) uma prática comum à sala de aula, tendo em vista ser esse um espaço natural de

ensino-aprendizagem, nesta sala, a referida dinâmica não acontecia dessa maneira. Lá, não

havia espaço para a reflexão sobre o texto literário; nem mesmo quando, eventualmente, este

era trazido para os alunos.

Situação semelhante se observou em relação ao bullying: não havia qualquer proposta

de trabalho, naquele ambiente escolar, que visasse discutir essa forma de violência tão comum

entre os escolares. Tal ausência, a nosso ver, reforçava o desconhecimento e a falta de clareza

no tratamento do bullying, quase sempre confundido com qualquer tipo de violência, como se

pôde constatar nas entrevistas supracitadas.

Considerando todas essas variáveis, podemos dizer que essa sessão foi de muito

aprendizado, tanto para os participantes quanto para nós, que tivemos a oportunidade de sondar,

na prática (especialmente na pré-leitura), a familiaridade dos sujeitos com o texto literário, de

modo que pudéssemos conduzir, bem mais adequadamente, a discussão sobre a referida forma

de violência.

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Assim, com vistas a motivar os sujeitos à atividade, propusemos, inicialmente, que eles

tentassem adivinhar, por meio do tato, dois objetos que tinham relação com a história e, a partir

daí, formulassem hipóteses. A orientação era para que eles, ao tatearem os objetos, pensassem

sobre qual história seria lida, sem, entretanto, partilharem com os colegas as suas previsões.

Episódio 1

(6) PP: Então, gente, a primeira coisa que nós vamos fazer (...) eu vou

passar isso aqui ((a professora mostra a bolsa preta para os alunos)) pra

cada um colocar a mão [...] dentro e tentar descobrir o que é, certo? [...]

(…) Pensem o que é e aí depois a gente vai discutir [...], está certo?

[...]

(11) PP: São duas coisas.

[...]

(14) ((Os alunos gostam da expectativa de adivinhar o que tem dentro da bolsa.

Há cochichos e conversas entre eles, enquanto a professora executa essa etapa

da atividade)).

(15) Ester: Acho que os meninos não vai saber o que é professora, é mais

coisa de menina. [...]

(18) Ítalo Gabriel: É tudo fácil, meu povo. ((o aluno fica agitado, se mexe

na carteira, demonstrando o seu desejo de dizer o que tinha descoberto)).

[...]

(21) Ítalo Gabriel: Já pode falar, professora?

[...]

(24) ASRJ: Eu sei, eu sei.

É possível observar que o fato de havermos iniciado a sessão apresentando elementos--

surpresa, que deveriam ser identificados (turno 6), ganhou a adesão dos sujeitos, que ficaram

na expectativa de poderem colocar a mão na bolsa e descobrir os objetos que lá estavam. A

associação foi imediata; todos afirmaram reconhecer os dois itens pelo tato.

Do mesmo modo, a relação entre os objetos e o possível título da história que seria lida

também foi instantânea. Grande parte dos sujeitos acreditava que leríamos Cinderela – um dos

nomes dado ao conto A Gata Borralheira e que foi popularizado por meio do filme, de mesmo

título, produzido pela Disney, em 1950, mas que apresenta algumas modificações contundentes

quanto ao enredo. Foi na tentativa de averiguarmos se os sujeitos tinham a ciência de que o

conto Cinderela poderia ter outro título, e qual o conhecimento deles com relação ao enredo da

história, que estabelecemos o seguinte diálogo.

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Episódio 2

(51) PP: [...]. E agora, conhecendo os dois objetos, sobre o que vocês

acham que vai tratar a história? (52) Priscila: É Cinderela. ((vários alunos também falam: Cinderela)).

(53) PP: Por que vocês acham que é a Cinderela?

[...]

(55) Priscila: Porque na história da Cinderela tem um sapatinho de

cristal.

(56) Lívia: E o príncipe vai dar uma coroa a ela.

[...]

(61) PP: Gente, deixe eu fazer mais uma pergunta: quem é que vai

estar nesta história? [...]

(80) PP: Agora, que nós já temos as previsões, vamos saber qual é o nome da

história. Vocês acham que é?

(81) ASRJ: Cinderela.

(82) PP: Alguém acha que pode ser alguma outra história? (83) SNI: Não.

(84) Yasmin: Não. Não é a Branca de Neve, nem nada.

Ao questionamento feito (turno 51), os sujeitos responderam tratar-se do conto

Cinderela e até conseguiram justificar suas respostas a partir da associação que estabeleceram

entre os objetos e a própria história, como demonstraram Priscila (turno 55) e Lívia (turno 56).

Fica evidente a convicção dos alunos quanto ao conto que seria trabalhado; isso porque, apesar

da pergunta (turno 82), que teve a intenção de incentivá-los a pensar em outra possibilidade,

ninguém refutou a ideia assentada pela maioria.

Outra estratégia aplicada na etapa de pré-leitura dessa sessão, em busca da adesão dos

sujeitos à atividade, foi a questão feita no turno 61, que almejou fazer com que todos os

envolvidos expusessem o que sabiam sobre a história e formulassem hipóteses sobre as suas

personagens, além das ações que seriam praticadas.

Sem dúvida, conceder aos alunos a oportunidade de emitir suas opiniões a respeito do

que está por vir, que poderá ser ratificado ou refutado posteriormente, cria uma expectativa,

motivando-os à etapa seguinte, que é a leitura propriamente dita, considerando que “[a]s

atividades de motivação incluem qualquer atividade desenhada a interessar os estudantes

sobre o texto selecionado e seduzi-los a ler” (GRAVES; GRAVES, 1995, p. 6, grifo nosso).

Acreditamos, portanto, que incentivar os alunos a se expressarem sobre o que deverá

acontecer na história e quem serão suas personagens é uma atividade motivacional, pois

desperta o sujeito à ação, tornando-o ativo diante da leitura, impelindo-o a descobrir se suas

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previsões e as dos colegas condizem, de fato, com o enredo. A leitura, desse modo, passa a

depender da previsão, que é a formulação de expectativas sobre o que o leitor irá encontrar

(expectativas essas derivadas de sua teoria de mundo), sendo possível, contudo, que, apesar das

previsões, a história surpreenda-o (SMITH, 2003). A partir desse jogo, o texto literário começa

a ganhar adeptos que ficarão atentos à sua leitura, tornando-se um “lugar por excelência do

aprendizado de si e do outro” (COMPAGNON, 2009, p. 57).

Essa motivação inicial resultou na adesão dos sujeitos à leitura, de modo que, ao final,

no momento da pós-leitura, puderam averiguar as suas previsões. E foi justamente com vistas

a promover o estímulo à discussão que incitamos os sujeitos a expor seus pontos de vista em

relação às personagens e ao enredo em si, considerando que “a fala do professor [se mostra] o

ponto de apoio, o centro para onde convergem as falas do aluno” (CORACINI, 2010, p 75).

“[...] Atividades de questionamento dão aos professores a oportunidade de encorajar e

promover o pensamento de ordem superior − de levar os estudantes a enfrentar o material, a

interpretar, a analisar e avaliar o que eles leram” (GRAVES; GRAVES, 1995, p. 12, grifo

nosso). Isso porque o desenvolvimento das funções psicológicas superiores depende justamente

da interação com o outro, que se potencializa a partir da mediação de um sujeito mais experiente

(VYGOTSKY, 2007); na escola, a figura do professor.

A atividade mediada [...] muda, fundamentalmente, todas as operações

psicológicas, assim como o instrumento amplia de forma ilimitada a gama de

atividades em cujo interior as novas funções psicológicas podem operar.

Nesse contexto, podemos usar o termo função psicológica superior, ou

comportamento superior como referência à combinação entre instrumento

e signo na atividade psicológica (VYGOTSKY, 2007, p. 56, grifos nossos)

Recorrendo a essa atividade como instrumento que “[serve de] [...] condutor da

influência humana sobre o objeto da atividade” (VYGOTSKY, 2007, p. 55), formulamos

questões didáticas. Assim procedemos levando em consideração o fato de que

[...] as perguntas didáticas [...] têm por função servir para estabelecer a relação

entre professor e alunos, com vistas a um certo material didático (texto ou

atividade) [...] têm por objetivo principal facilitar a aprendizagem [,]

[conduzindo os discentes] à compreensão de um texto e/ou ao

desenvolvimento de uma estratégia de leitura [...]. [...] São perguntas [com o

objetivo de] [...] perceber a situação enunciativa do texto ou fazer uma

abordagem global do mesmo (CORACINI, 2010, p. 76-77).

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Com esse tipo de questionamento já previsto para a discussão de pós-leitura do conto,

dividimos as perguntas didáticas, indicadas por Coracini (2010), em duas categorias: literais,

aquelas cujas respostas estão presentes no texto de maneira evidente; e inferenciais, aquelas que

não têm suas respostas explicitadas no enredo, havendo somente indícios, o que exige do leitor

analisar a obra e exercitar sua “capacidade de raciocinar [...] [para] elaborar soluções [...] [às]

questões colocadas” (CORACINI, 2010, p. 76).

Nesta análise, apresentamos um processo de interação em que nos ativemos às perguntas

literais, conforme se registra no fragmento seguinte.

Episódio 3

(195) PP: E o que é que ela diz à filha antes de morrer? ((alguns alunos

abrem o livro para fazer consulta)).

(196) Ângelo: Que ela fosse uma boa menina.

(197) Priscila: E que ia ver ela lá do céu.

(198) Ester: E disse que sempre estará perto dela.

[...]

(223) PP: [...] o que que as irmãs fizeram com ela logo no início?

(224) Yasmin: Botaram para ela a roupa de empregada.

(225) Lívia: Botaram ela para trabalhar para elas.

(226) Ângelo: Cozinhar, lavar a louça, pegar as lentilhas do borralho.

(227) Lívia: Obrigaram ela a lavar os sapatos delas, pentear os cabelos

delas.

No episódio acima, os sujeitos, consultando o livro, encontraram respostas para a

pergunta (turno 195), partindo do trecho: “− Filha querida, sê devota e boa; então o bom Deus

sempre te valerá, e eu olharei por ti lá do céu, e estarei perto de ti” (GRIMM; GRIMM;

TEIXEIRA, 2003a, p. 1). Essa consulta já foi suficiente para que Ângelo, Priscila e Ester

mencionassem quase todas as recomendações que a mãe deu à personagem principal (turnos

196, 197 e 198). Outra questão literal que fizemos (turno 223), e que também levou os alunos

a retornarem ao texto, contemplava o fato de a gata borralheira ser maltratada pelas irmãs. Para

responder a essa questão, os alunos selecionaram as seguintes passagens do texto:

Quem quer comer pão, tem que trabalhar para merecê-lo! Para fora com

essa criada! [...] deram-lhe um avental cinzento para vestir [...]. Lá ela tinha

que fazer serviços pesados [...] cozinhar e lavar. E ainda por cima as irmãs

[...] dela [...] esparramavam as ervilhas e as lentilhas na cinza do borralho,

para que ela tivesse de ficar a catá-las e separá-las de novo. [...] (GRIMM;

GRIMM; TEIXEIRA, 2003a, p. 4, grifos nossos).

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[...] chamaram Gata Borralheira e disseram: Penteia nossos cabelos, escova

nossos sapatos [...] (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a, p. 8, grifo

nosso).

Considerando que as respostas apresentadas pelos sujeitos encontravam-se distribuídas

ao longo de diversos trechos da obra – em vez de condensados em um dado ponto –, podemos

afirmar, no que se refere às perguntas literais, que os sujeitos demonstraram habilidade para

identificar as passagens que respondiam, objetivamente, as questões que lhes eram

direcionadas, conseguindo, inclusive, identificar, precisamente, no texto, as formas de agressão

verbal, psicológica e física sofridas pela personagem principal.

Nesse processo, à medida que os sujeitos iam identificando as formas de agressão,

aproveitávamos o ensejo para incentivá-los a refletir sobre aquela situação de violência.

Episódio 4

[...]

(315) PP: E as irmãs?

(316) Ângelo: Não deixa ela ((gata borralheira)) sentar na sala com elas.

Bota ela pra cozinhar e lavar a louça.

(317) Priscila: Tratam ela como uma empregada. Tiram os vestidos bom

dela e dão um tamanco de madeira e deu um avental cinza pra ela vestir.

[...]

(319) PP: E será que elas fizeram isso só uma vez?

(320) ASRJ: nã::::o:::.

(321) Priscila: Muitas vezes.

(322) PP: Tem alguma parte da história que diz isso?

(323) Ângelo: Professora, tem uma parte da história que diz assim:

“Quem quer comer pão tem que trabalhar para merecê-lo”.

[...]

(326) Priscila: Professora, também tem outra que as irmãs [...] manda

arrumar os cabelo dela, coisar os sapato (...)

[...]

(332) PP: [...]. Vocês acham que essa situação que ela vivenciava era uma

situação de violência?

(333) ASRJ: Era.

(334) Priscila: [...] Deviam ser presa.

(335) PP: Então, pensando que era uma situação de violência, que se

repetia muitas vezes, as irmãs tratavam ela assim cotidianamente, vocês

pensam que pode ser uma situação de bullying?

(336) Yasmin: Sim, professora.

[...]

(338) ASRJ: Pode.

(339) PP: Por quê?

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(340) Priscila: Pode, porque elas maltratam ela, fazem um monte de coisa

com ela, como se ela fosse outro tipo de gente e não do tipo delas.

(341) PP: Elas humilham a gata borralheira? ((Priscila concorda

balançando a cabeça)). E o que mais vocês acham que pode parecer uma

situação de bullying?

(342) Ângelo: Elas chamam ela ((gata borralheira)) de bobalhona e suja.

Nesse episódio, as irmãs da borralheira foram trazidas à discussão por assumirem um

importante papel dentro do cenário da violência, uma vez que se destacam como agressoras.

Refletir sobre as posturas assumidas por essas personagens permitiu aos sujeitos perceberem as

maneiras e as motivações que geraram/que geram os atos de agressão.

Podemos observar que, mais uma vez, Ângelo e Priscila se embasaram no texto para

descrever os maus-tratos aos quais a personagem principal era submetida (turnos 316 e 317).

No intuito de saber se os alunos compreenderam a ocorrência da repetitividade desse

tratamento (OLWEUS, 2006), formulamos mais um questionamento (turno 319). Os sujeitos

demonstraram não apenas reconhecer a constância do comportamento abusivo (turnos 320 e

321) mas também descreveram ações que comprovavam essa repetição (turnos 323 e 326).

Além disso, a partir de outra pergunta (turno 332), eles reconheceram que a situação se

configurava como uma violência (turno 333), devendo os agressores serem punidos (turno 334).

A resposta de Priscila (turno 334), contudo, vai no sentido contrário à concepção de que

a punição, por si só, constitui-se em uma atitude imediatista e, na maioria das vezes, ineficaz

quando se trata do bullying, uma vez que não se trabalha a raiz do problema. A própria Lei nº

13.185/2015 é enfática ao apontar como objetivo “[...] evitar, tanto quanto possível, a punição

dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva

responsabilização e a mudança de comportamento hostil” (BRASIL, 2015). Todavia, parece

bem compreensível que a aluna tenha esse discurso, considerando que, socialmente – o que

inclui a escola –, é passível de punição aquele que infringe as regras, o que acaba sendo

estendido ao bullying sem que se reflita sobre a questão.

Considerando as peculiaridades do bullying, e no intuito de saber o quanto os sujeitos

conheciam sobre o conceito, perguntamos-lhes se as situações de violência presentes no conto

poderiam assemelhar-se a essa prática (turno 335 e 341). Yasmin e mais alguns colegas

afirmaram que sim (turnos 336 e 338). As justificativas para tais afirmações foram apresentadas

por Priscila (turno 340) e por Ângelo (turno 342), que, respectivamente, apontaram as

humilhações vivenciadas pela Borralheira e os apelidos a ela atribuídos.

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Apesar de as respostas dos sujeitos apontarem para a possibilidade de a violência entre

as personagens se caracterizar como bullying, ressaltamos, mais uma vez, que esse conto foi

trabalhado na primeira sessão de leitura realizada com a turma e que, deliberadamente, em

nossos questionamentos, provocamos os sujeitos de modo que eles pudessem visualizar, na

história, algumas das características inerentes ao fenômeno (turnos 319, 322, 332, 335 e 341).

Essa atitude foi tomada em virtude da constatação – nas entrevistas iniciais – de que os sujeitos

tinham um conhecimento limitado e, por vezes, equivocado sobre o conceito de bullying,

conforme mencionado.

De todo modo, não podemos deixar de ponderar que as indicações presentes nas

perguntas podem ter influenciado as respostas dos discentes. Todavia, consideramos que a

escolha por conduzir a discussão dessa maneira, no primeiro momento, foi válida e importante

para que os sujeitos começassem a se familiarizar com as peculiaridades do bullying, as quais

diferem da violência de um modo geral.

O incentivo à reflexão também foi evidenciado no episódio abaixo, em que observamos

que houve, a partir da discussão do conto, a identificação com a personagem principal, assim

como o julgamento da conjuntura ficcional apresentada.

Episódio 5

(199) PP: O que vocês acham dessa recomendação que a mãe dá à filha?

[...] O que vocês acham com relação a isso? Acham normal a mãe falar isso

para a filha?

(200) ASRJ: É normal.

(202) PP: Por que é normal? [...]

[...]

(204) PP: Vocês escutam comumente isso?

(205) Ítalo Gabriel: Eu escuto.

(206) PP: Você escuta a recomendação para que você seja bom? ((Ítalo

balança a cabeça afirmativamente)).

[...]

(209) Priscila: Só da minha mãe, meu pai, só da família.

[...]

(211) Ângelo: E nessa história, professora, o pai é malvado. Ele não deixa

(...) não quer levar a filha.

[...]

(214) PP: Ela chega a pedir ao pai para ir para o baile?

(215) Ângelo: Não, mas era para ele se lembrar pelo menos dela.

[...]

(217) Priscila: Porque ela é a única filha dele.

[...]

(220) Lívia: Ela poderia ter vergonha de se oferecer (...).

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(221) PP: Ter vergonha de pedir ao pai para ir para o baile?

(222) Lívia: É. Ele que tinha de falar: “Vamos”. E ele, tipo que fazia ela

de escrava.

Com essa intervenção, pretendíamos levar os sujeitos refletirem mais criticamente sobre

a obediência da personagem principal às recomendações da sua mãe no leito de morte, o que a

fez sujeitar-se às maldades e aos caprichos das novas irmãs. Como se vê, alguns sujeitos

responderam que achavam normal aquela situação. Em busca de justificações para essa

resposta, tentamos instigá-los mais ainda (turnos 202 e 204).

Observamos que tanto Ítalo Gabriel quanto Priscila relacionaram a fala da mãe a uma

recomendação comum advinda da família (turnos 205 e 209). Expandindo o foco da questão

inicial, ampliando-o para o papel da família, de modo geral, Ângelo foi além do texto,

chamando a atenção para a inércia do pai, apontando-o, portanto, como “malvado” (turno 211).

Esse posicionamento de Ângelo é interessante, porque mostra o julgamento construído por ele,

uma vez que, no conto, “em nenhum momento [...] o pai da menina [tenta intervir] em favor da

filha, ou mesmo [...] se [mostra] incomodado com as humilhações manifestadas por suas

enteadas” (MEDEIROS, 2012, p. 70).

Para Ângelo, esse não deveria ser o posicionamento de um pai, tanto que o aluno é

categórico em sua resposta (turno 215) ao questionamento: “Ela chega a pedir ao pai para ir ao

baile?” (turno 214). Esse olhar crítico de Ângelo sobre a postura adotada pelo pai deixou claro

o seu descontentamento. Essa revelada indignação, segundo La Taille (2006b, p. 123), “é um

sentimento moral despertado [...] pelo fato de alguma injustiça ter sido cometida”; e pode até

ser que a própria experiência de vida de Ângelo tenha-o levado a admitir, com tamanha

convicção, que o comportamento do pai da personagem deveria ter sido outro: o de olhar para

a situação da filha, pensar mais nela.

Priscila reforçou o discurso do colega alegando que a personagem principal era a única

filha (turno 217), o que nos leva a inferir ser essa mais uma razão para o pai tê-la tratado de

maneira diferente. Na mesma direção, Lívia afirmou que o pai é quem deveria ter tomado a

iniciativa de levar a filha ao baile (turno 222) e não a tratar de modo hostil.

As percepções dos sujeitos revelam a compreensão que eles têm sobre a proteção

parental que deveria existir frente à violência sofrida pela personagem e o quanto eles

desaprovam a atitude desse pai na história. Tal entendimento remete-nos aos estudos de La

Taille (2006b), que aborda a necessidade de os pais – figuras de autoridade – despertarem em

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seus filhos um sentimento de confiança, de modo que o desenvolvimento moral possa ser

desencadeado. Esse sentimento de confiança entre filha e pai não está presente no conto, como

podemos perceber a partir das seguintes passagens:

Quando certo dia o pai ia viajar para uma feira, perguntou às enteadas o que

elas queriam que ele lhes trouxesse.

– Lindos vestidos – disse uma.

– Pérolas e pedras preciosas – disse a outra.

– E tu, Gata Borralheira – disse ele –, o que queres ganhar? (GRIMM;

GRIMM; TEIXEIRA, 2003a, p. 6, grifo nosso).

– Esta não é a certa – disse ele –, a senhora não tem outra filha?

– Não – disse o marido –; só da minha esposa falecida temos aqui uma

pequena e insignificante Gata Borralheira; não é possível ser ela a noiva

(GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a, p. 22, grifos nossos).

A maldade do pai apontada, primeiramente por Ângelo, evidencia que o incentivo à

reflexão, por meio da mediação pedagógica, possibilitou a esse discente julgar as atitudes do

pai da personagem principal diante da violência por ela vivenciada, o que nos conduz a duas

das categorias de análise: identificação com as personagens e da reflexão ao julgamento. Isso

porque, para que Ângelo emitisse o julgamento, indignando-se com a personagem paterna

naquele contexto ficcional, ele precisou identificar-se com o sofrimento da personagem,

sensibilizando-se, o que se dá pela experiência de alteridade (AMARILHA, 2006; YUNES,

2010) constitutiva do texto literário.

Após o desencadeamento dos processos de identificação e de julgamento assinalados no

episódio 4, consideramos pertinente fazer o registro das relações que os sujeitos conseguiram

estabelecer entre o texto e a realidade, considerando que

[a literatura] sintetiza, por meio dos recursos ficcionais, uma realidade que

tem pontos de contato com o que o leitor vive cotidianamente. Assim, [...] ela

[...] se [comunica] com o seu destinatário atual, porque [...] fala de seu mundo,

com suas dificuldades e soluções, ajudando-o, pois, a conhecê-lo melhor

(ZILBERMAN, 2003, p. 25).

Acreditamos que suscitar discussões em que os sujeitos possam entrecruzar o lido com

aquilo que eles conhecem, e que faz parte de suas realidades, pode ser um caminho fértil que

conduza à compreensão e à reflexão sobre o bullying. Isso é possível porque o exercício de ler

e discutir textos literários, relacionando-os ao cotidiano, tem uma função formadora, tendo em

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vista que “a literatura pré-forma a compreensão de mundo do leitor, repercutindo então em seu

comportamento social” (ZILBERMAN, 1989, p. 38).

Partindo desse entendimento, construímos o seguinte episódio:

Episódio 6

(343) PP: [...] vocês já receberam algum apelido de que não gostaram?

[...]

(345) Priscila: Só meus irmão que me chamam de magrela.

(346) PP: E como é que você se sente quando é chamada assim?

(347) Priscila: Triste, magoada.

[...]

(349) Ítalo Gabriel: Nunca me chamaram de nenhum apelido. Também

se me chamarem, eu dou pau.

(350) Priscila: Meu irmão já sofreu já isso. Meu irmão bateu num menino

lá perto de casa. O menino chamou ele de aleijado, porque ele tem um

problema na perna; ele anda mancando e mexeram com ele, aí ele foi lá e

começou a bater nele.

(351) PP: E resolveu a situação?

(352) Priscila: Obviamente que não. Da outra vez, o menino mexeu com

ele de novo, aí ele deu de novo, até que o menino parou.

[...]

(355) PP: Vocês acham o quê, dessa situação que a colega relatou?

Mexeram com o irmão dela, ele bateu, mas continuou acontecendo, o que

vocês acham disso?

[...]

(357) Lívia: O que eu faria era falar com os responsável.

(358) PP: Com os responsáveis de quem?

(359) Lívia: Dos meninos que bateram (...).

(360) Ester: Com a mãe dos que apanhou e dos que bateu.

(361) Lívia: Se acontecesse comigo, eu obviamente ia nos pais dele e

falava.

[...]

(363) Priscila: Professora, não ia adiantar não. Esse menino que bateu no

meu irmão, se falasse com o pai dele ou então com a mãe, a mãe dele ia

brigar com a gente, dizendo que a gente que tava mexendo com ele.

Tomando como exemplo o apelido dado à personagem principal (gata borralheira),

incentivamos os sujeitos a relacionarem o ato de apelidar, na ficção, a suas experiências

pessoais (turno 343). A discussão sobre o uso de apelidos é importante por ser esse um modo

de agressão bastante comum, habitualmente utilizado pelos agressores para atingir as suas

vítimas; em especial, quando percebem ser isso uma fragilidade inerente a elas (TOGNETTA;

VINHA; MARTINÉZ, 2015).

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Iniciada a discussão, Priscila foi a primeira a falar sobre o desconforto que sentia ao ser

tratada de modo pejorativo (turno 345). Além de expor o fato de ser apelidada pelos irmãos e

de sentir-se mal com isso, ela relatou uma situação vivenciada por um dos irmãos que possuía

uma limitação física.

Percebem-se, na forma como a agressão foi narrada pela discente, alguns traços de

bullying (turnos 350 e 352). Antes de tudo, vale dizer que o apelido depreciativo (aleijado),

pelo qual o irmão era chamado, indica a intenção do outro de agredir apoiando-se na diferença

aparente – provável ponto de fragilidade. Além disso, o fato de a agressão ter ocorrido mais de

uma vez, o que pode conspirar pela repetitividade da ação. Por fim, a evidência de que a

violência perdurou mesmo após a vítima ter revidado. Na verdade, não nos interessa averiguar

se havia ou não a prática de bullying na circunstância relatada por Priscila, mas sim o modo

como ela construiu o seu discurso, reconhecendo que o irmão havia sofrido por ter sido

apelidado e que revidar a agressão não significava que a resolução do problema seria imediata.

Sobre o modo de agir diante de um quadro de agressão que se prolonga (turno 355),

Lívia (turnos 357, 359 e 361) afirmou que entraria em contato com os pais do agressor, enquanto

Ester anunciou que, além de falar com os pais do agressor, falaria com os pais do agredido

(turno 360). Já Priscila, a partir da sua própria experiência, declarou que de nada adiantaria

tomar a atitude mencionada pelas colegas, vez que os pais do agressor não agiriam em prol da

vítima.

Certamente, não desconhecemos a existência desse perfil de pais apontado por Priscila:

aqueles que não se posicionam nos casos em que se denuncia a má conduta de seus filhos

(SILVA, 2010) e acabam reforçando “comportamentos [...] inaceitáveis, que influenciarão a

forma como [eles] crescerão” (PIAGET, 1994, p. 53). Não obstante, também vale considerar,

em contrapartida, que a opção de revidar (conforme Priscila relatou ter sido a ação do irmão)

pode pontencializar os atos agressivos daquele que pratica a violência em vez de solucionar a

situação. Assim, destacamos que a conduta recomendada por Ester e Lívia, de reportar os

acontecimentos a um adulto, quer aos pais, quer a outras pessoas próximas, é a mais adequada,

sendo, inclusive, uma ação imprescindível quanto se trata de intervir em um caso de bullying.

Falar para alguém sobre a sua vitimização ainda é uma das estratégias

disponíveis para ajudar os alunos a gerenciarem o problema e a reduzirem o

estresse. Pesquisas mostram que buscar apoio social, com uma abordagem

focada no problema ([ensinando a lidar] com o problema) e na emoção

([ensinando a lidar] com emoções negativas) é visto pela vítima como uma

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das mais bem-sucedidas estratégias para lidar com a vitimização (STRAUSS,

2018, p. 18-19, tradução nossa).

Essa atitude de buscar apoio externo, entretanto, não seria tomada por Ítalo Gabriel que,

em sentido contrário às respostas das colegas, afirmou que não toleraria o tratamento de ser

apelidado, e usaria de violência caso lhe fizessem algo semelhante (turno 346). Tal discurso

revela a imagem agressiva que o próprio discente buscou construir de si mesmo durante todo o

percurso da pesquisa.

Diante desse posicionamento, ressaltamos que Ítalo Gabriel, embora não tenha

manifestado atributos e ações inerentes ao perfil de agressor durante o período de observação,

envolveu-se em diversos conflitos com os colegas e apresentou, em grande parte das discussões,

uma característica semelhante à dos agressores de bullying: o desejo de poder ser “o bom” da

turma (TOGNETTA; VINHA; MARTINÉZ, 2015). Esse desejo, em nosso entendimento,

impregnou o seu discurso com uma falta de sensibilidade moral (TOGNETTA, 2012), que se

manifestou em várias sessões.

Considerando que, frente a essa falta de sensibilidade, “é preciso dar [...] [ao sujeito] a

oportunidade de [ampliar] [...] em seu repertório de aprendizagens [...] outras formas de

relacionamento senão a agressão” (TOGNETTA; ROSÁRIO, 2013, p. 133), acreditamos que

dialogar sobre a violência entre pares torna-se essencial.

No caso de Ítalo Gabriel, em particular, podemos dizer que − muito embora tenha

exibido um discurso permeado por um posicionamento agressivo junto aos seus colegas –

(como constatado em outros episódios) lhe foi concedida a oportunidade de ter contato com

opiniões contrárias às suas, o que lhe possibilitou rever suas posições e ainda, por meio da

leitura dos textos literários e da mediação no curso desse processo, refletir sobre suas

concepções. Isso se faz possível porque “a relação entre a literatura e o leitor pode atualizar-se

tanto no terreno sensorial como estímulo à percepção estética, como também no terreno ético

enquanto exortação à reflexão moral” (JAUSS apud ZILBERMAN, 1989, p. 39, grifos

nossos), justamente o que se pretendeu suscitar a partir das discussões de pós-leitura.

Por fim, no intuito de retomarmos a epígrafe desta seção, em que a Borralheira

demonstra empoderamento ao agir de modo diferente (“[...] ela lavou as mãos e o rosto,

apareceu [...] sentou-se sobre o banquinho, tirou o pé do pesado tamanco de madeira e enfiou-

-o no sapatinho” (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a, p. 22-23)), apresentamos outros dois

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episódios em que, a partir da mediação – do incentivo à reflexão –, os sujeitos revelaram--se

capazes de pensar sobre a história.

Episódio 7

(285) PP: [...] o que vocês acham da atitude da gata borralheira em pedir

ajuda? [...]

(286) Lívia: Ela foi inteligente, professora, porque, no final das contas, ela

que foi a princesa.

Excerto sobre o qual se discute:

Quando, então, não estava mais ninguém em casa, Gata Borralheira foi

para o túmulo da mãe debaixo da nogueira e falou: – Sacode teus ramos, querida nogueira, joga ouro e prata sobre a

Borralheira.

Sem perda de tempo, Gata Borralheira vestiu-se e foi para a festa

(GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a, p. 11, grifos nossos).

O episódio focalizado avalia justamente a atitude da personagem principal revelada no

excerto acima. Questionamos os sujeitos sobre o que eles pensavam acerca dessa atitude. Lívia

destacou a inteligência da personagem em agir de tal maneira, o que lhe possibilitou sair da

situação de violência na qual se encontrava. Esse entendimento vai ao encontro da importância

de a vítima compartilhar com alguém as agressões sofridas a fim de que possa ser ajudada.

Reconhecemos que essa atitude, no entanto, é, na maioria das vezes, impensável para

aqueles que se enquadram no perfil de vítima típica, tal qual a gata borralheira até esse momento

do conto, tendo em vista que a passividade é uma das características psicológicas inerentes a

esse grupo (EISENBERG; NEUMARK-SZTAINER; PERRY, 2003).

Não obstante, apresentar essa possibilidade às crianças tem muita importância, uma vez

que as faz refletir sobre a atitude corajosa da personagem em busca de mudar sua vida de

sofrimento e de submissão sem que fosse necessário recorrer à violência, como discutido no

episódio a seguir.

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Episódio 8

[...]

(298) PP: Mas vocês acham que se ela revidasse o fato de mandarem ela

fazer os serviços da casa, o fato de humilharem ela, se ela revidasse da

mesma forma, com violência, vocês acham que iria resolver a situação?

(299) ASRJ: Nã:::o:::.[ alunos falam ao mesmo tempo].

[...]

(305) Ângelo: Se ela fizesse ruindade com as filha da madrasta, elas iam

fazer pior. Ela foi inteligente, pediu ajuda.

Essa provocação dirigida aos sujeitos (turno 298) construiu-se a partir do discurso de

alguns que afirmaram que revidariam, com violência, se fossem tratados como a Borralheira.

Quando questionados, Ângelo, tal como Lívia (episódio 7), julgou inteligente a atitude da

personagem ao pedir ajuda para solucionar seu problema.

Tal entendimento reforça, cada vez mais, a crença de que se faz fundamental a

assistência externa (OLWEUS, 2006) para que a vítima tenha condições de romper com o ciclo

de agressão. Todavia, ressaltamos que “a proteção poderá evitar, mesmo que por alguns

minutos, a situação de sofrimento, mas não ajudará a superar as condições de sua produção”

(GONÇALVES, 2017, p. 56). Na verdade, a assistência deve buscar desenvolver o

empoderamento da vítima para que ela, por si só, supere a vitimização. Para tanto, “estratégias

como treinamento de assertividade e apresentação de um perfil visual mais forte [são

fundamentais]” (BATSCHE; KNOFF, 1994, p. 168, tradução nossa), tendo em vista que

“embora tente, quem sofre bullying não detém instrumentos capazes de cessar a agressão. A

vítima se coloca nessa situação inconscientemente [...]. A tomada de consciência seria

exatamente o que destituiria esse papel assumido por ela” (TOGNETTA; VINHA;

MARTINÉZ, 2015, p. 21).

Com base nessa compreensão, acreditamos que a personagem, ao pedir e receber

ajuda (“Então o passarinho jogou-lhe um vestido de ouro e prata, e sapatinhos bordados de seda

e prata” (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a, p. 11)), pôde trabalhar a sua autoestima,

despindo-se do avental cinzento, símbolo de sua submissão, e se vestindo de rica indumentária,

que lhe embelezava não apenas o corpo mas também a alma.

A partir das falas de Lívia e Ângelo, podemos inferir que eles estabeleceram a relação

entre a inteligência da personagem e a sua libertação, o que, consequentemente, pode ser

compreendido como a representação do seu empoderamento.

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Acreditamos que esse olhar dos sujeitos para além da discussão sobre o bullying entre

meninas e sobre a submissão da vítima (objetivos traçados para essa sessão de leitura) deu

margem à compreensão de que podemos tomar como ponto-chave da narrativa justamente o

fato de a personagem buscar ajuda. Mirando nessa nova direção, constatamos, no exato

momento da discussão com os sujeitos, que fizemos uma bem-sucedida ultrapassagem, em se

tomando como referência o meramente previsto para ser alcançado nessa sessão, o que é

perfeitamente condizente com a potencialidade simbólica inerente ao texto literário.

A ajuda simbólica e, por vezes, mágica trazida na literatura tem justamente a função de

arejar a mente do leitor, mostrando-lhe que é possível encontrar outros horizontes, outros

caminhos. É evidente que o auxílio mágico recebido pela borralheira extrapola a realidade;

contudo, o importante é a atitude de busca da personagem. Assim, olhando para a ficção, a

vítima real de bullying pode encontrar respostas para a sua angústia e vislumbrar uma saída que

resulte em uma mudança de condição. São possibilidades como essa que ratificam a função

humanizadora e formadora da literatura.

4.1.1.2 João-trapalhão

[...]

– Ando com uma vontade doida de me casar. Se a princesa quiser casar

comigo, casa. Se não me quiser, eu caso com ela assim mesmo, pois ela tem

que ser minha!

– Não fale bobagens! – disse-lhe o pai. – Não lhe dou cavalo nenhum. Nem

falar direito você sabe! Você não sabe usar as palavras. Seus irmãos sim, são

uns rapazes espertos.

– Bem, se não posso ter um cavalo – disse João-trapalhão -, monto no meu

bode. Ele é meu e pode me carregar muito bem.

Assim falou, assim fez. [...]

– Upa! Upa! Upa! Lá vou eu! – gritava João-trapalhão, e ia cantando, em voz

bem alta, que ressoava longe (ANDERSEN; FRANÇA; FRANÇA, 2004, p.

4-5).

Tão logo fica sabendo que a princesa escolherá um marido, João demonstra o desejo de

desposá-la. Contudo, ele é tido como um “trapalhão” por seus familiares e, por isso, “ninguém

o considerava porque ele não tinha o preparo dos outros dois [irmãos]. Ele era conhecido como

João-trapalhão” (ANDERSEN; FRANÇA; FRANÇA, 2004, p. 4).

É encarando com muita bravura os comentários depreciativos que lhes são dirigidos,

que João segue – montado em seu bode – em busca do seu objetivo. E consegue alcançá-lo,

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casando-se com a princesa. Suas ações evidenciam o quanto o modo como nos enxergamos é

fundamental para que a visão do outro sobre nós não nos aflija.

Esse conto abre espaço à discussão sobre os apelidos (bastante utilizados como armas

de intimidação às vítimas e bem presente nas relações estudantis) e permite que se ressalte,

sobretudo, o fato de que nem todo agredido se configura como vítima, o que tem relação direta

com a autoestima do sujeito, podendo, por tal esclarecimento, evitar que o bullying se instale.

Para a análise desse conto, destacamos 6 episódios que exemplificam as seguintes

categorias: motivação à leitura e incentivo à reflexão (Unidade: Mediação Pedagógica) e

identificação com as personagens; relação texto-vida; e da reflexão ao julgamento (Unidade:

Relação texto literário x bullying).

Objetivando estimular a motivação dos sujeitos à leitura do conto João-trapalhão,

começamos pela exploração do título da história (turno 6).

Episódio 1

(6) PP: [...] Olhando o título, sobre o que vocês acham que a história vai

tratar?

(7) Ester: Um menino chamado João, que é muito atrapalhado.

(8) Ângelo: Ele é um menino muito atrapalhado, a mesma coisa que ela

((apontando para Ester)).

(9) PP: E em que situações ele vai estar envolvido? (10) Ester: Acho que ((+)) como é que eu posso dizer ((a aluna fecha os

olhos e estala os dedos como se quisesse lembrar de alguma coisa)) em brigas

… como é ((faz o mesmo gesto anterior)), em arte, professora.

(11) PP: E quem mais vocês acham que pode estar nessa história?

(12) Ester: A mãe e o pai ((+)), ele principalmente.

(13) Ângelo: Os amigos.

(14) PP: O que vocês acham desse termo “trapalhão”?

(15) Pâmela: Ele deve atrapalhar as outras pessoas.

As respostas dos sujeitos foram bastante referenciais, como podemos observar nos

turnos 7 e 8. Diante dessas devolutivas, conforme o planejado, buscamos especular

especificamente sobre o termo “trapalhão” (turno 14); todavia, a resposta de Pâmela (turno 15)

também remeteu ao título e denotou referencialidade. Ficou claro que, na pré-leitura, não

conseguimos conduzir a discussão para a ideia de que o termo “trapalhão” poderia estar

relacionado a um apelido dado à personagem.

Mesmo assim, conseguimos suscitar (turnos 9 e 11) a formulação de hipóteses sobre o

conto. “Essa estratégia leva o leitor a [pensar] sobre o que o texto pode conter, força o leitor a

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buscar na memória uma informação fictícia que se tornará real ou não após a leitura”

(MAGALHÃES; MACHADO; FARIA, 2012, p. 52), tendo em vista que “a leitura [...] é um

processo contínuo de elaboração de expectativas e previsões que vão sendo verificadas” (SOLÉ,

1998, p. 84). Tomemos, por exemplo, a resposta de Ester (turno 10), prevendo que o

personagem era “trapalhão” porque estava envolvido em brigas, ou melhor, em “arte”, o que se

mostrou improcedente na verificação das hipóteses, após a leitura da obra.

De toda forma, chamou-nos a atenção o dizer de Ester (turno 10), que relacionou o termo

“trapalhão” à possibilidade de a personagem estar envolvida “em arte”, culpabilizando--a, de

certo modo, por ter um termo negativo vinculado ao seu nome, como se “fazer arte” desse

respaldo à forma pejorativa agregada ao nome João. Essa maneira de culpabilizar o próprio

indivíduo pode estar atrelada ao modo de pensar do educador, ou melhor, de muitos educadores

que acabam por considerar a vítima de violência como corresponsável pela situação em que se

encontra, como apontou a pesquisa realizada por Gonçalves (2011).

Apesar de não podermos afirmar que essa visão de Ester é decorrente de seu aprendizado

escolar, o fato de termos observado as atitudes da professora titular da turma diante da

agressividade cotidiana que, muitas vezes, resultava em agressões verbais ou físicas entre seus

alunos, alerta-nos para a importância de o professor policiar suas atitudes/seu comportamento

na sala de aula. Ele precisa compreender que a sua conduta também ensina valores e maneiras

de lidar com o outro (VINHA, 1999).

De todo modo, pelo menos no que se refere à narrativa, essa previsão inicial, formulada

pelos sujeitos na pré-leitura, de que a personagem tinha tal apelido por ser atrapalhada ou “fazer

arte”, foi superada ao se depararem com a esperteza da personagem João. É perceptível a

mudança de olhar dos sujeitos, que passam a enxergar João como um indivíduo empoderado, o

que poderia possibilitar a identificação do leitor com a personagem.

Episódio 2

(190) Ester: Professora, ele é esperto em não tá nem aí para o que os irmão

diz.

(191) PP: Por que você considera ele esperto?

(192) Ester: Porque ele não conquistou a princesa? Se ele tivesse ligado,

ia ficar pra baixo e aí ia ficar que nem os outro, sem conseguir falar nada.

(193) PP: Então me digam uma coisa ((+)) como é que João se comporta

quando os irmãos riem dele? Todos concordam com o que Ester falou?

Alguém pensa mais alguma coisa?

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(194) Ítalo Gabriel: É isso mesmo, professora.

[...]

(196) Priscila: Ele não ((+)), professora:::, ele não liga para o que os

irmãos diz.

(197) Ester: Ele dá a volta por cima e (...)

(198) PP: E?

(199) Ester: Procura outra coisa.

(200) Priscila: Faz o que ele quer.

Na seguinte passagem, retomamos o modo de agir dos irmãos da personagem João, que

riem de tudo o que ele fala.

Os irmãos riram-se dele e partiram a galope.

[...]

– Olá! – gritou-lhes João-trapalhão. – Cá estou eu. Olhem o que encontrei na

estrada!

Ele mostrou o que era, e era uma gralha morta.

– Mas Trapalhão...!!! – disseram. – O que você vai fazer com isto?

– Com a gralha? Ora, vou dá-la de presente à princesa.

– Ótimo! Faça isso! – disseram os dois rindo e continuaram no trote.

– Olá! Cá estou eu de novo! Olhem o que achei desta vez. Isto não se acha

todos os dias na estrada.

Os irmãos viraram a cabeça para ver o que era.

– Mas Trapalhão...!!! – exclamaram. – Isto é somente um tamanco velho,

faltando a parte de cima. Também vai oferecê-lo à princesa?

– Certamente que irei! – respondeu João-trapalhão.

E mais uma vez os irmãos riram e continuaram a cavalgar [...]

(ANDERSEN; FRANÇA; FRANÇA, 2004, p. 4-8, grifos nossos).

Observamos, no decurso do episódio 2, que Ester chamou a atenção para a esperteza de

João pelo fato de ele não se incomodar com as críticas dos irmãos (turno 190). Nesse momento,

solicitamos que ela argumentasse sobre a sua resposta (turno 191). Para responder, ela se

embasou na própria história, mas, em seguida, fez a ressalva de que, se João tivesse se

incomodado, “ficaria pra baixo” e não teria conseguido alcançar o seu objetivo (turno 192).

Dessa afirmação, inferimos que, no pensamento da discente, foi a enorme autoestima de

João que o fez casar-se com a princesa, ou seja, João demonstra ser um indivíduo empoderado,

uma vez que “[é investido] de poder a fim de promover ações que possam provocar mudanças

positivas” (EMPODERAR, 2019), como é evidenciado desde o início da história: “– Bem, se

não posso ter um cavalo – disse João-trapalhão −, monto no meu bode. Ele é meu e pode me

carregar muito bem. Assim falou, assim fez” (ANDERSEN, 2004, p. 4).

Com o intento de averiguar se os outros sujeitos pensavam do mesmo modo que Ester,

fizemos um novo questionamento (turno 193). Ítalo Gabriel concordou com a reflexão da colega

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(turno 194). Priscila direcionou suas respostas ao reforço das falas de Ester (turnos 196 e 200),

enquanto que a própria Ester, retomando uma ideia presente no texto, afirmou que João, por

não se incomodar com as investidas dos irmãos, ia juntando meios (objetos), ao longo do

caminho, para alcançar o seu objetivo (turnos 197 e 199).

Foi partindo desse olhar positivo sobre a personagem, construído em função da leitura,

que incentivamos os sujeitos a discutirem a realidade por meio da ficção, mencionando

situações de violência observadas em seu cotidiano, de modo que pudessem refletir sobre seus

próprios relatos, juntamente com os demais sujeitos. Afinal, esse é um dos propósitos da

literatura: “mudar, pela ficção, nosso olhar sobre a realidade” (CHARTIER, 2005, p. 144).

Desse modo, a própria experiência de vida do leitor está implicada no ato de ler, porque

“quem lê o faz com toda a sua carga pessoal de vida [...], consciente ou não dela e atribui ao

lido as marcas pessoais de memória, intelectual e emocional” (YUNES, 2003, p. 10). Essa

relação texto-vida pode ser observada no seguinte episódio:

Episódio 3

(173) PP: [...] então, como é que vocês se sentiriam? ((+)) vocês já disseram

que eles ((irmãos)) riram dele ((João-trapalhão)), ignoraram ele (...)

(174) Ítalo Gabriel: Eu chorava.

[...]

(178) PP: [...] como vocês se sentiriam se vocês tivessem algumas ideias,

como João tinha, e as pessoas rissem de vocês?

(179) Ítalo Gabriel: Eu ficaria triste, professora. Eu saía pra casa no

pinote (…)

(180) PP: Por quê?

(181) ((Ítalo Gabriel não responde)).

(182) Ângelo: Porque não é bom rirem da gente.

(183) PP: Vocês concordam com o que Ângelo falou?

(184) ASRJ: Sim.

(185) PP: E por que que às vezes a gente faz isso ((ri)) de outra pessoa?

((nenhum aluno responde [...]))

Considerando o efeito que o texto provoca no leitor, constatamos que esse episódio

revela muitas das posições que os sujeitos adotariam se fossem submetidos a mesma condição

da personagem João – alvo de risos constantes e menosprezo por parte dos irmãos e do pai

(turnos 173 e 178). Após refletir sobre essa condição, Ítalo Gabriel, pela primeira vez, não

elaborou sua resposta em favor da prática de ações de violência. Ao contrário, afirmou que se

abalaria emocionalmente ante a depreciação dos familiares (turnos 174 e 179). Não foi possível,

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entretanto, apurar a razão de Ítalo ter-se posicionado de modo contrário ao que lhe era habitual

em outras discussões, visto que ele não justificou sua resposta (turno 181).

Todavia, após observarmos os episódios de outras sessões, em que Ítalo Gabriel se

colocou favoravelmente a reações violentas, percebemos que, em nenhum deles, as personagens

envolvidas nos conflitos faziam parte do seu núcleo familiar, tal qual ocorre no conto João-

trapalhão. Evidentemente, sem a justificação dele não é possível dizer que a mudança de

comportamento está interligada a esse fato; entretanto, consideramos ser essa uma inferência

provável.

Isso demonstra que a agressividade negativa desse discente não se revela em todos os

contextos, o que aponta para a importância de trazermos para a discussão obras literárias

diversas, de modo que os sujeitos possam refletir sobre diferentes realidades e eventos. Mesmo

porque, o “[...] efeito alcançado pela arte [...] libera seu destinatário das percepções usuais e

[pode conferir-lhe] nova visão da realidade” (ZILBERMAN, 1989, p. 49). Desse modo, “[...]

[a] potencialidade emancipatória da obra de arte [...] [confere] ao leitor um lugar mais ativo e à

literatura uma importância social que ultrapassa o papel reprodutor” (ZILBERMAN, 1989, p.

50) ao conduzir a um constante processo de (re) avaliação de suas convicções.

Por sua vez, Ângelo sinalizou ser um leitor ativo, justificando o porquê de Ítalo ter

mencionado o sentimento de tristeza ao se colocar no lugar da personagem principal do conto

(turno 182), identificando-se com aquela situação, a partir da experiência vicária. Essa

justificação foi validada por outros sujeitos que demonstraram ter ciência do quanto é negativo

o ato de rir do outro (turno 184). Tal compreensão, no entanto, esbarrou no silêncio (turno 185)

quando se colocou em pauta o motivo de – apesar de considerado depreciativo – persistir esse

tipo de comportamento entre eles (considerando-se o fato de ser esse um tratamento corriqueiro

entre os discentes no ambiente escolar).

Acreditamos que, exatamente por terem a ciência de que fazer chacota do outro não é

uma atitude saudável, esse silêncio pode estar atrelado à vergonha moral, que se consolida na

construção da personalidade ética dos indivíduos por volta dos 9 anos de idade (LA TAILLE,

2006b). E vale esclarecer o fato de que,

[...] para ser experimentado, o sentimento de vergonha pressupõe um autojuízo

negativo. Dito de outra forma, quem sente vergonha julga negativamente a si

próprio [...]. [...] A vergonha, portanto, refere-se ao eu. “Quem sou eu? Eis a

pergunta que o envergonhado se faz”. Nesse pergunta, ele compara as “boas

imagens”, ou imagens idealizadas, que tem ou que quer ter de si, com a

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imagem por meio da qual ele realmente se vê (LA TAILLE, 2006b, p. 134-

135).

Entendemos, portanto, que o fato de compreenderem que a ação era negativa induziu os

sujeitos a se absterem de problematizá-la, preferindo não se exporem “[confessando]

publicamente [um] ato de transgressão” (LA TAILLE, 2006b, p. 138). Isso se justifica em razão

de a vergonha decorrer de um autojuízo negativo, construído – ainda que não de forma absoluta

– por meio dos juízos alheios (LA TAILLE, 2006b).

E também consideramos plausível que o fato de questioná-los, por si só, pode ter

desencadeado uma reflexão sobre seus modos de agir, tendo em conta os sentimentos gerados

a partir da condição vivenciada pela personagem João.

Isso é possível

[...] na medida em que [a literatura] [...] propicia a identificação entre a criança

e os heróis, uma vez que estes simbolizam as dificuldades pessoais dela, o

livro confere ao narratário um importante espaço em seu interior; e ainda lhe

oferece meios de reflexão sobre sua condição, enquanto ser carente de

autoconfiança e na busca do reconhecimento pelo grupo (ZILBERMAN,

2003, p. 77).

Foram justamente as dificuldades apresentadas pelo herói do conto em questão que

propiciaram aos sujeitos refletir sobre a maneira como ele conseguiu transpô-las, a partir do

nosso incentivo, como podemos observar no episódio abaixo:

Episódio 4

(210) PP: E João? O que vocês acham da atitude dele, quando ele chega

ao castelo?

(211) Ester: Ele vem montado no bode e vai direto falar com a princesa.

(212) PP: E por que vocês acham que ele teve uma atitude tão diferente

dos outros?

(213) Ester: Porque ele não tem medo.

(214) Ângelo: Porque ele não teve timidez … não ficou tímido.

[...]

(216) PP: Vocês acham que a maneira de João se comportar, o fato de ele

não ser tímido, de não ligar para o que os irmãos falavam, vocês acham

que essa maneira de ele se comportar ajudou ele a conquistar o que ele

queria?

(217) ASRJ: Sim. Ajudou.

(218) PP: Por quê?

(219) Priscila: Porque a pessoa se sente confiante.

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(220) PP: E se João tivesse acreditado no que os irmãos falavam, no que

o pai falava, será que ele teria conseguido a mesma coisa? O final teria

sido do mesmo jeito?

(221) Priscila: Não. ...

(222) PP: Por que não teria sido?

(223) Ângelo: Porque ele não ia conseguir nada; ia ficar igual os irmão, ia

sentir calor ...

Esse episódio abordou as atitudes positivas de João em busca de alcançar seu objetivo:

casar-se com a princesa. O primeiro questionamento suscitou a reflexão sobre a determinação

da personagem (turno 210). Ester, na formulação de suas respostas, ateve-se ao texto e apenas

fez referência à atitude tomada por João ao chegar ao castelo, em vez de revelar o que ela

pensava sobre essa atitude (turno 211). Orientada, no entanto, por uma nova pergunta (turno

212), ela consegue expor o seu ponto de vista, preenchendo um dos vazios deixados pelo texto

(turno 213). Nesse ponto, ela, enfim, estabelece uma conexão entre a ação praticada por João e

sua coragem, ou seja, a sua elevada autoestima, considerando-se que a personagem não teve

medo. Tal percepção foi complementada por Ângelo, que ressaltou a ausência de timidez da

personagem (o que também remete à compreensão de que João era corajoso). O modo de o

personagem portar-se foi entendido pelos sujeitos como sendo fundamental para que ele

conseguisse casar-se com a princesa (turnos 216 e 217).

Outro atributo próprio à elevada autoestima da personagem foi evidenciado por Priscila

ao destacar a confiança de João em si mesmo como um fator preponderante para o sucesso de

suas conquistas (turno 219).

Constatamos também que os sujeitos compreendiam o quanto o destino de João poderia

ter sido alterado caso ele adotasse outra postura diante do menosprezo constante dos irmãos

(turnos 220 e 221). Ângelo concluiu que se a personagem houvesse acreditado nos irmãos, teria

a sua autoestima abalada e, como resultado, “não ia conseguir nada, ia ficar igual os irmão, ia

sentir calor” (turno 223). Enfim, eles parecem, de fato, ter a noção do quanto a agressão é

prejudicial, podendo mesmo afetar a vida daquele que é vítima, nos mais diversos aspectos.

Essa percepção pode conduzir o leitor a se colocar no lugar do outro, deixando-se

“contaminar” pela sensibilidade moral. Essa mesma sensibilidade pôde ser visualizada em outro

episódio em que a relação texto-vida é evidenciada.

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Episódio 5

(112) PP: Voltando à pergunta que eu tinha feito, o que vocês acham sobre

esse tratamento [...]? Se uma pessoa não souber falar, ela deve ser tratada de

uma maneira diferente? O que vocês pensam sobre isso?

(113) Ester: Não, porque é ((+)) quando todo mundo começou a crescer,

todo mundo não sabia falar, ninguém sabia, começou a aprender então

((+)) muita gente aqui nessa sala aqui fala meio diferente, fala meio

emboloado como Lucas e Keylla ((Ester se refere à voz dos colegas)) e

nem por isso a gente vai excluir eles de ser nossos amigos.

Na sequência, solicitamos aos sujeitos que se posicionassem sobre o tratamento

dispensado a João (turno 112). Trazendo a questão para a sua realidade, Ester demonstrou

empatia frente ao que ela considera ser uma diferença marcante nos colegas (turno 113).

Essa colocação revela a presença dos sentimentos de aceitação e de respeito tão

necessários para que se construam “relações sociais onde a violência não faça sentido” (JARES,

2007, p. 186). Compreendemos que esse tipo de postura adotada por Ester, no episódio relatado,

motivou os sujeitos a pensarem suas próprias condutas diante das diferenças − e não apenas na

escola.

Além da possibilidade de refletirem sobre o texto e sobre as colocações dos colegas,

observamos que os sujeitos ultrapassaram os procedimentos da identificação e da relação texto-

vida. Eles foram capazes de julgar a situação apresentada pela narrativa e também o

posicionamento dos próprios colegas.

Episódio 6

(226) PP: E se vocês fossem tratados dessa forma, o que vocês fariam?

(227) Ítalo Gabriel: Eu saía de casa e morava lá na casa da minha avó.

[...]

(233) PP: Vocês acham que poderiam fazê-los entender de alguma forma

(...) fazer eles mudarem de opinião?

(234) Ítalo Gabriel: Não, só metendo o pau neles.

[...]

(236) PP: João poderia fazer alguma coisa para que o pai e os irmãos

mudassem a imagem que eles tinham dele?

(237) Ester: Ameaçar de morte.

[...]

(239) Ítalo Gabriel: É, assim num instante eles parava.

(240) PP: Vocês acham que fazendo isso, ele ia conseguir (...)

(241) Keylla: Não.

(242) Lucas: Os irmão ia partir pra agressão.

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(243) PP: Isso poderia piorar a situação?

(244) ASRJ: Sim.

Constatamos, a partir do diálogo mediado, que os sujeitos conseguem emitir seus

julgamentos sobre o modo como se tratou a personagem João. Ítalo Gabriel, que, de início,

manifestou um comportamento semelhante ao que demonstrou no episódio 5 − em que se

mostrou incomodado quanto à submissão às agressões dos irmãos e do pai (turno 227) − , neste

episódio, expressou a ideia de que a agressão física ou a ameaça eram a solução para a mudança

de situação do alvo (turnos 234 e 239). Nesses mesmos moldes, também foi construído o

discurso de Ester (turno 237).

Keylla, por sua vez (antes mesmo que concluíssemos nosso raciocínio (turno 240)),

manifestou-se contrária à sugestão de ameaçar ou atacar fisicamente os agressores, justificando

que, agindo dessa maneira, João não iria conseguir o respeito dos familiares. E, finalmente,

Lucas, reforçando a discordância da colega (turno 242), formulou uma justificativa em que se

pode contemplar claramente uma das premissas do bullying: a de que tentar revidar com

violência a agressão sofrida pode resultar no agravamento da situação (BEANE, 2010).

Ratificando o ponto de vista de Lucas, outros sujeitos (turno 244) emitiram pareceres

semelhantes concordando com a afirmação de que agir do modo como Ítalo Gabriel e Ester

haviam proposto não era o melhor caminho a seguir para que os agressores mudassem de

postura.

Obviamente, não há como precisar se o desacordo entre os colegas fez com que Ítalo e

Ester revissem o seu posicionamento, mas é fato que a discussão abre essa possibilidade,

podendo mesmo viabilizar uma mudança de pensamento.

Nesta sessão, o caminho trilhado pelos sujeitos foi bastante profícuo. Eles superaram a

hipótese inicial de que a personagem tinha o apelido “trapalhão” em virtude de suas próprias

atitudes e conseguiram visualizar o quanto a postura de João era positiva e fundamental para

que ele atingisse o seu objetivo. Acreditamos que encontrar tal resposta no texto − a partir do

trabalho mediado –, pode propiciar, para aqueles que estão imersos em um ciclo de vitimização,

um novo olhar sobre a sua própria condição.

4.1.1.3 Um garoto chamado Rorbeto

A turma ficou curiosa e alguém perguntou lá na frente:

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Por que está com a mão na sacola,

Rorbeto, então conta pra gente!?

Roberto venceu a vergonha

E mostrou a mão bem aberta.

Disseram:

“Tem um dedo sobrando!

Assim qualquer um acerta! (PENSADOR; BUENO, 2005, p. 42-43).

A personagem Rorbeto, triste com a diferença recém-descoberta, tenta, a todo custo,

esconder dos demais o seu “defeito”: ter seis dedos em uma das mãos. Para a execução de tal

façanha, Rorbeto coloca a mão em uma sacola para poder ir à escola “sem se expor”. Todos os

seus colegas, entretanto, ficam bastante curiosos com a novidade. É justamente a grande

habilidade de Rorbeto na escrita e a receptividade positiva dos seus colegas à sua diferença que

o fazem aceitar-se como ele é.

Esse conto apresenta a diferença sob uma outra ótica: do ponto de vista daquele que se

envergonha, sem nem mesmo saber o que os outros pensarão a respeito, permitindo, assim, que,

além da reflexão sobre o “ser diferente”, possamos discutir sobre a aceitação de si mesmo.

Nesta análise, destacamos 6 episódios, que exemplificam as seguintes categorias:

motivação à leitura; estímulo à discussão e incentivo à reflexão (Unidade: Mediação

Pedagógica); relação texto-vida e da reflexão ao julgamento (Unidade: Relação texto literário

x bullying).

A fim de motivarmos a turma à leitura, exploramos o título da história juntamente com

a imagem da capa do livro, de maneira que os sujeitos elaborassem suas previsões, tal como

registramos no seguinte episódio.

Episódio 1

(18) PP: [...] eu quero que vocês olhem aqui para a capa do livro (...).

(19) Priscila: É uma mão.

[...]

(21) PP: [...] o título do livro é: um garoto chamado Rorbeto.

[...]

(24) PP: [...]. Pensando neste título, sobre o que vocês acham que vai

tratar a história?

(25) Priscila: A história de um homem.

(26) PP: E por que de um homem?

(27) Priscila: Por causa do nome.

(28) Ângelo: Mas, professora, leia de novo. ((A PP repete o título. Ângelo

olhando para a colega diz)) um garoto.

[...]

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(30) PP: [...] pensando que se trata de uma história com um menino, em

que situações ele pode estar envolvido?

(31) Priscila: Em confusão.

(32) PP: Em confusão, igual vocês pensaram de João-trapalhão. Será? [...]

(33) Ester: Depende.

(34) ASRJ: Não:::.

(35) Ítalo Gabriel: Eu acho que sim.

[...]

(37) PP: E o que vocês pensam sobre o nome Rorbeto? Olha só como se

escreve o nome dele ((a PP escreve no quadro)). O que vocês pensam sobre

esse nome? Já viram esse nome escrito assim alguma vez?

[...]

(41) PP: [...]. O que será que aconteceu para ele ter sido registrado com

esse nome?

(42) Ângelo: Eu acho que esse nome devia ser de alguma pessoa especial

que morreu, eu acho.

[...]

(45) PP: Alguém mais pensa a mesma coisa?

[...]

(47) Keylla: Pode ter um significado, né?

(48) PP: Um significado diferente?

(49) Keylla: É.

[...]

(50) PP: Alguém tem mais alguma ideia?

[...]

(52) Priscila: Pode ser que esse seja o apelido dele, não?

(53) E olhando aqui para imagem da capa ((a PP mostra novamente a capa do

livro)) (...)

[...]

(55) PP: Tem um mapa, mas olhando aqui para a capa toda, o que será

que o título “um garoto chamado Rorbeto” tem a ver com a imagem da

mão?

(56) Keylla: Que ele viaja.

(57) Priscila: Viaja para vários países para explorar.

(58) Ester: Ele conhece o mundo como a palma da mão.

[...]

(59) PP: Alguma outra ideia?

Tendo em vista as respostas referentes aos turnos 18 e 24, e considerando que a

reorganização do planejamento é constitutiva da mediação pedagógica, solicitamos que Priscila

esclarecesse a sua resposta (turno 26). Não obstante, permaneceram as previsões já anunciadas,

remetendo à referencialidade do título, tanto na resposta de Priscila (turno 27) quanto na de

Ângelo (turno 28). Desse modo, retornando ao que havíamos planejado e, com a intenção de

que os alunos aprofundassem as ideias sobre o enredo da história que seria lida, formulamos

questões com a expectativa de levá-los a pensar sobre o título e sobre a imagem da capa (turnos

30, 32, 37, 41, 45 e 55).

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Vale esclarecer, quanto a esse último procedimento, que algumas dessas questões não

estavam no plano de aula; entretanto, decidimos acrescentá-las com o intuito de dinamizar a

atividade e motivar os sujeitos a participarem mais efetivamente.

Foi interessante perceber como os sujeitos envolveram-se na discussão no momento em

que Priscila fez alusão indireta (turno 31) a uma das previsões antes mencionada na discussão

da história de João-trapalhão (lida na sessão anterior). Alguns deles discordaram ou mesmo

demonstraram incerteza quanto à inferência construída pela colega. Entre acordos e desacordos,

consideramos esse momento como um marco importante porque, apesar de não ter havido a

formulação de uma contra-argumentação à resposta de Priscila – mesmo com a nossa tentativa

de ampliar a discussão (turno 32) –, observamos que os sujeitos começaram a emitir opiniões

divergentes (turnos 33, 34 e 35), o que é salutar à atividade proposta, vez que se caracteriza

como uma “atitude responsiva ativa” (BAKHTIN, 1997).

De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação (linguística) de um

discurso adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude

responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa,

adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em

elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão

desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo

locutor (BAKHTIN, 1997, p. 290).

Almejando ampliar, ainda mais, esse processo, suscitando uma maior participação dos

sujeitos, formulamos, inicialmente, seguindo o planejamento, mais uma questão (turno 37).

Contudo, eles não explicitaram o que pensavam em relação ao nome Rorbeto, o que nos

conduziu a ir além do que havíamos planejado (turnos 41, 45, 47 e 50). Isso porque entendemos

que o ato de mediar está estritamente relacionado a um “redimensionar constante do próprio

processo em curso” (FONTANA, 2000, p. 34). Esse incremento ao planejado, na dinâmica da

pré-leitura, desencadeou o surgimento de respostas curiosas (turnos 42, 47 e 52) que puderam

ser verificadas após a leitura.

Ainda buscando levantar hipóteses junto aos sujeitos e, seguindo o planejado,

formulamos outro questionamento (turno 55) que resultou em várias respostas (turnos 56, 57,

58). Segundo Solé (1998), as previsões dos alunos, ainda que não sejam condizentes com o

texto, são pertinentes porque criam expectativas.

Após a leitura, retomamos as hipóteses levantadas pelos sujeitos a fim de que estes

pudessem constatar se as suas expectativas estavam corretas em relação à obra. Finalizada essa

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etapa, elaboramos perguntas que estimulassem os sujeitos à discussão, o que desencadeou

algumas reflexões para além da história.

Episódio 2

(95) PP: Por que vocês acham que ele reagiu assim?

(96) Keylla: Porque ele pensou que ia virar ((+)) virar piada.

[...]

(98) Priscila: Porque ele era diferente.

(99) Carla: Ele ficou com medo por ser diferente.

[...]

(101) Priscila: Ficou com medo que as pessoa contasse que ele tinha seis

dedos numa mão.

(102) Keylla: Ficou com medo de ser zoado pelos amigos.

(103) Priscila: Ficou com medo de fazerem bullying com ele. De ser

“bullificado”, o povo jogar bullying nele.

(104) Ester: Ele ficou com vergonha de os amigo dele achar ele diferente

(sic).[...].

(105) Vinicius: Acharem ele especial.

(106) PP: Pensando no que Priscila disse: que Rorbeto ficou com medo

que fizessem bullying com ele. [...] é comum quem é diferente ser alvo de

bullying?

(107) ASRJ: Sim.

(108) PP: Por quê?

(109) Ester: Porque os outro gosta de mexer com quem é diferente.

Retomando a passagem da história em que Rorbeto tenta esconder sua mão com seis

dedos das demais pessoas, estimulamos os sujeitos a explicitarem suas opiniões sobre o porquê

de a personagem adotar essa postura (turno 95). Para construir seus pareceres a esse respeito,

os alunos poderiam orientar-se pelo texto, revendo os seguintes enunciados: “Sentindo um

grande embaraço. Chorou um pouquinho, coitado. [...] Ficou com vergonha da mão, a

direita e botou-a nas costas [...] Andando com cara de triste, com a mão dentro de uma

sacola [...] ele não teve coragem de mostrar a mão com defeito (PENSADOR; BUENO,

2005, p. 22-28).

E foi justamente a partir desses indícios que os alunos conseguiram estabelecer uma

relação entre o fato de Rorbeto preferir esconder sua diferença e o medo do que os outros iriam

pensar. Keylla opinou que a personagem agiu desse modo para não virar piada e para não ser

“zoado” pelos amigos (turnos 96 e 102). Priscila complementou a fala da colega afirmando que

Rorbeto tinha esse pensamento porque era diferente e que, portanto, ficou com medo (turnos

98 e 101). O mesmo raciocínio também se fez presente no discurso de Carla (turno 99), de Ester

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(turno 104) e de Vinícius (turno 105). Acreditamos, inclusive, que Vinícius tenha fundamentado

sua afirmação na própria experiência de conviver com um colega de turma autista.

Valendo-se de tais associações, Priscila acrescentou que esse medo da personagem

estava vinculado ao medo de ser “bullificado”, isto é, ao receio de se tornar vítima de bullying

em virtude de sua diferença (turno 103). Apoiando-nos na opinião da aluna, procuramos saber

se os demais sujeitos acreditavam que a diferença era um motivador para a prática do bullying

(turno 106). Boa parte deles respondeu afirmativamente (turno 107). Quando questionados

sobre o porquê (turno 108), Ester reafirmou, categoricamente, o que havia dito, levando-nos a

inferir que, no cotidiano da escola, os alunos apontados como “diferentes” eram alvos comuns

daqueles que “gostam de mexer” (turno 109) com os outros.

Sabemos que, apesar do desvio de aparência não ser um ponto crucial para a prática do

bullying (OLWEUS, 2006), o fato de sentir-se diferente pode influenciar diretamente na

autoestima do indivíduo e que, por sua vez, a baixa autoestima pode ser considerada um dos

fatores para a vitimização (GEEL et al., 2018). Desse modo, o medo de ser vítima de bullying

foi inferido por Priscila a partir do texto, em razão de o personagem passar a andar cabisbaixo

após a descoberta do sexto dedo e de esconder dos colegas a sua diferença. Essa mudança de

comportamento da personagem, que passa a ficar retraída, poderia, portanto, torná-la um

potencial alvo. Isso nos indica que os sujeitos estabeleceram relação entre uma característica

conceitual do bullying que estava sendo aprendida e a situação vivenciada por Rorbeto.

A partir das respostas dos sujeitos, é possível perceber que “ser diferente” pode levar

alguém a sentir medo, e até se colocar em atitude defensiva, diante da possibilidade de, tendo

o seu defeito exposto, tornar-se alvo de zombaria. Esse temor foi manifestado por alguns dos

sujeitos em suas falas, enquanto outros assumiram um posicionamento contrário quando foram

incentivados a refletirem sobre a condição de Rorbeto e a se colocarem no lugar da personagem.

Episódio 3

(112) PP: Pensando em tudo isso que vocês disseram, e se vocês estivessem

no lugar dele? tivessem algo diferente dos demais, se um dia contassem e

vissem que tinham seis dedos, como é que vocês reagiriam?

(113) Vinícius: Eu saía mostrando.

[...]

(116) Ítalo Gabriel: Ia ser cabuloso.

(117) Ângelo: Eu ficaria com vergonha.

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(118) Priscila: Eu não vinha nem na porta da escola, ficava em casa

trancada.

(119) Keylla: Eu não ficaria com vergonha não, porque a gente não deve

ligar para o que as pessoa vai falar com a gente.

Quando questionados sobre como reagiriam se estivessem no lugar de Rorbeto (turno

112), três sujeitos (Ítalo Gabriel, Ângelo e Priscila) demostraram que não teriam uma

representação positiva de si mesmos (turnos 116, 117 e 118), o que certamente os colocaria em

uma posição de vulnerabilidade, em virtude da baixa autoestima. Contrariamente, as falas de

Vinícius e Keylla exprimiram confiança diante da ideia de terem alguma singularidade física.

Dentre as respostas, chama-nos a atenção aquela proferida por Priscila, que demonstra não

somente a vergonha que sentiria por ser diferente mas também o receio de ir para a escola,

ambiente muitas das vezes pouco acolhedor à diferença de diversas ordens.

Diante de tal cenário, é necessário refletirmos sobre o papel formador da escola no que

se refere ao desenvolvimento das virtudes (TOGNETTA; ASSIS, 2006) fundamentais à

convivência em sociedade. Se essa é uma função da instituição escolar, não é contraditório que

a aluna expresse o medo de ir à escola em razão de uma diferença? O discurso de Priscila acende

um alerta e nos remete à importância de se abordarem as temáticas da diferença e da violência

presentes nos atos de zombaria. Pensamos que somente o trabalho constante de toda a

comunidade escolar em prol de uma convivência pacífica (AVILÉS, 2005; JARES, 2008) é

capaz de, ainda que indiretamente, minimizar a angústia daqueles que, como Priscila, receiam

tornar-se vítimas.

Em outro episódio, os próprios sujeitos demonstram ter a compreensão de que o amparo

positivo dos colegas é igualmente importante.

Episódio 4

(149) PP: Gente, então vamos lá, qual é a reação dos colegas quando eles

veem a letra do Rorbeto?

(150) Keylla: Eles acham maneiro.

(151) Ester: Eles acham muito bonita a letra.

(152) PP: E quando ele revela que tem 6 dedos em uma das mãos? Qual

a reação da professora e dos colegas?

(153) Ester: A professora diz que isso é normal ter seis dedos em uma mão

e que isso não tem nada a ver. Os colega também não liga. Acham que é

mais fácil fazer a letra bonita com seis dedos.

(154) PP: Vocês acham que essas reações ajudaram Rorbeto a se aceitar?

Aceitar a sua diferença?

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(155) SNI: Sim.

(156) Ester: Com certeza.

(157) PP: Como ele passou a se enxergar depois que revelou a sua mão

diferente à turma?

(158) Ângelo: Ficou feliz, sem ter medo que os amigos rissem.

(159) Keylla: Ele não ficou mais com vergonha.

Questionados sobre a reação dos colegas à bela letra de Rorbeto (turnos 149 e 152) e ao

fato de ele ter seis dedos, os sujeitos, ancorando-se no texto, formularam suas respostas (turnos

150, 151 e 153) julgando positiva a forma como aquelas personagens encararam a diferença.

Para os sujeitos, esse posicionamento dos colegas e da professora influenciou

positivamente Rorbeto no que tange a aceitação de si (turnos 154 e 155). Esse novo olhar diante

de sua diferença, na concepção de Ângelo (turno 158) e de Keylla (turno 159), foi o que libertou

Rorbeto da vergonha e do seu receio de ser ridicularizado por ser diferente.

Mas vale, nesse ponto, ressalvar o fato de que não se explicita, na linha do texto, que

Rorbeto ficou com medo de ser vitimizado em razão da diferença. Mesmo assim, é uma

interpretação plausível, considerando-se que, por mais que o autor tenha

[...] um objetivo completo e definido, segundo uma intenção bem precisa,

aspirando uma fruição que o reinterprete assim como o autor pensou e quis

[...], no entanto, é desfrutado por uma pluralidade de fruidores e cada um deles

levará ao ato de fruição as próprias características [...] portanto, [...] cada

fruição será inevitavelmente pessoal e restituirá a obra num de seus aspectos

possíveis. Em geral, o autor não ignora esta condição da situacionalidade de

cada fruição, mas produz a obra como “abertura” para essas possibilidades,

uma abertura que, todavia, oriente tais possibilidades no sentido de provocar

respostas diferentes, mas consonantes com o estímulo definido em si (ECO,

2016, p. 153-154).

Desse modo, a “resposta diferente” construída por Ângelo é, a nosso ver, uma

possibilidade que está em conformidade com a intenção do autor. A vergonha da personagem

em ser “descoberto” pode ser encarada, portanto, como o medo de ser vítima em virtude da

diferença, especialmente se levarmos em consideração o contexto escolar (propício ao

surgimento de relações conflituosas entre os discentes) em que a obra estava sendo discutida.

Buscando fazer com que os sujeitos transpusessem a reflexão sobre a ficção e

construíssem uma relação texto-vida, iniciamos o seguinte diálogo:

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Episódio 5

(181) PP: Pensando ainda na questão da diferença, vocês conhecem alguém

que tem alguma diferença aparente?

[...]

(183) Priscila: O menino lá na minha rua tem os dentes aqui da frente

torto ((aponta para os dentes)) e uma menina lá da rua fica chamando ele

de dentista.

(184) PP: E ele se incomoda de ser chamado de dentista?

(185) Priscila: Às vezes, porque ele fala meio estranho, mas ele não se importa

não, às vezes que ele fica querendo bater na pessoa.

(186) PP: E o que você acha de ele ser tratado assim?

(187) Priscila: Acho errado, porque todo mundo tem uma diferença [...].

Nesse diálogo, Priscila expôs um caso de apelido fruto da diferença (turno 183),

conforme solicitado (turno 181). Quando questionada sobre tal forma de tratamento (turno 186),

sua resposta demonstrou o seu nível de desenvolvimento moral, ainda heterônomo (PIAGET,

1994), frente à agressão verbal praticada contra o seu colega (turno 187), ao considerar que,

afinal, todos somos diferentes.

Lamentavelmente, sabemos que essa moralidade verbalizada por Priscila não é

predominante nas relações entre pares no âmbito das escolas, porque “em todo o mundo o

bullying cria um ambiente [...] inseguro para muitos estudantes e a vitimização, pelas mãos do

agressor, tem uma séria consequência social, emocional e acadêmica ao longo da vida”

(STRAUSS, 2018, p. 5, tradução nossa).

É de se notar, entretanto, que esse discurso de Priscila não se alinha ao proferido

anteriormente (episódio 3). Isso porque, ao passo que demonstrou entender que é necessário

aceitar a diferença do outro (episódio 5), ela revelou que não se aceitaria positivamente, caso

tivesse alguma diferença (episódio 3) – o que sugere que, de fato, a discente é heterônoma.

Acreditamos que identificar contradições dessa natureza evidencia o quanto é importante

discutir aspectos que influenciam diretamente no ambiente escolar e na vida de modo geral.

Dessa maneira, os sujeitos, cada vez mais, poderão refletir sobre suas próprias concepções do

que é a diferença, a forma como ela é percebida na escola e a sua aceitação, seja pelos outros

indivíduos ou por si mesmo, como representado nessa história.

Em outro episódio, buscamos aprofundar a questão da diferença tentando inseri-la na

realidade dos sujeitos.

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Episódio 6

(160) PP: Gente, e se acontecesse aqui na sala, se chegasse um aluno novo

e vocês descobrissem que ele tinha seis dedos, como vocês reagiriam?

(161) Priscila: Eu acharia estranho.

(162) Ítalo Gabriel: Eu acharia que era um alienígena.

(163) Vinícius: Eu acharia legal.

(164) PP: Priscila acharia estranho, Vinícius acharia legal e Ítalo Gabriel

acharia que ele era um alienígena, mas como vocês tratariam ele quando

ele chegasse?

(165) Ítalo Gabriel: Eu ia brigar com ele.

(166) PP: Por que você brigaria com ele?

(167) Ítalo Gabriel: Porque ia dar vontade.

(168) PP: Por que ia dar vontade?

(169) Ítalo Gabriel: Porque quando um novato chega, ele tem que

apanhar.

(170) PP: Vocês concordam com o que Ítalo Gabriel disse?

(171) ASRJ: Nã:::o:::.

(172) Priscila: Isso é falta de educação.

(173) Keylla: É tipo bullying.

(174) Ângelo: Professora, se o menino fizesse isso com ele, ele não iria

gostar.

(175) Ítalo Gabriel: Eu meto o pau, eu meto o pau. Tô de boa.

[...]

(178) Ângelo: […]. André ((referindo-se ao colega de turma que possui o

espectro autista)) é diferente, mas todo mundo trata normal, só pede para

que ele pare de bater palmas quando atrapalha a aula.

Ao transpormos a situação vivenciada no conto para a realidade dos sujeitos (turno 160),

observamos o surgimento de opiniões díspares. Priscila e Ítalo Gabriel admitiram que sentiriam

um certo desconforto caso se deparassem com um colega com seis dedos (turnos 161 e 162,

respectivamente). Vinícius, em sentido contrário aos colegas, proferiu uma resposta mais

positiva em relação à receptividade à diferença (turno 163).

Frente aos diferentes pontos de vista, buscamos aprofundar a discussão (turno 164).

Mantendo a uniformidade presente na quase totalidade dos seus discursos, Ítalo Gabriel afirmou

que recorreria à violência (turno 165). No entanto, dessa vez, ele não deixou de justificar o

porquê de sua resposta (turnos 167 e 169), imediatamente rechaçada por seus colegas (turno

171).

Nesse jogo discursivo, notamos que, ao pensarem na relação texto-vida, os sujeitos

ultrapassaram o campo da ficção e emitiram seus julgamentos sobre o posicionamento violento

do colega Ítalo Gabriel. Ao julgarem, Priscila, Keylla e Ângelo deixaram claro as razões de

discordarem do colega (turnos 171, 172 e 173, respectivamente). Entendemos que, ao

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mencionar a “falta de educação”, Priscila deixou subentendida a falta de respeito na atitude de

Ítalo. Keylla, por sua vez, estabeleceu uma relação entre a conduta verbalizada por Ítalo Gabriel

e o bullying, apesar de não considerar a repetitividade em tal classificação, enquanto que

Ângelo ressaltou a consciência empática que deveria ser demonstrada pelo colega.

Essas colocações revelam como a literatura pode ter um papel importante sobre a ética

do sujeito, incitando-o à reflexão moral (ZILBERMAN, 1989). Evidentemente, não temos

como mensurar até que ponto os comentários dos colegas atingiram Ítalo no sentido de provocar

mudanças em suas convicções; todavia, sabemos que é nesse processo de interação que os

sujeitos são capazes de estabelecer novas conexões mentais (VYGOTSKY, 2007), podendo

modificar o seu modo de ver e de se relacionar com o mundo à sua volta.

4.1.1.4 Raul da ferrugem azul

[...] Um ponto antes de saltar, viu que a lavadeira tinha tocado a campainha

para descer. E bem na hora em que ela ia descendo os degraus, carregando

aquela trouxa pesada, o motorista acelerou o motor, fazendo um barulhão e

reclamando porque ela estava demorando: [...]

Raul ficou uma fera. E começou a falar:

- Moço, o senhor não está vendo que ela está descendo e carregando peso?

Faça o favor de esperar.

O motorista respondeu:

- A conversa não chegou na cozinha. Cala a boca, pirralho.

Sem pensar, Raul respondeu:

- Cala a boca já morreu. Quem manda em mim sou eu.

[...]

Enquanto esperava o elevador, se olhou no espelho. [...] E teve uma

surpresa: a ferrugem do pescoço tinha desaparecido. Abriu a boca, botou a

língua para fora. Nem sinal de ferrugem na garganta. Olhou depressa para os

braços e as pernas. Lá ainda havia as manchas azuis. Mas bem mais fracas. E

agora ele não se preocupava mais com elas. Sabia que iam sumir

(MACHADO; FARIA, 2012, p. 57-59).

Raul, um belo dia, percebe que está com uma mancha azul no braço e, por mais que

pense sobre a questão, não consegue achar resposta plausível para tal ocorrência. Ele faz

diversas tentativas para remover as manchas: toma banho de sol, esfrega-as bastante, busca até

mesmo mostrá-las aos pais na esperança de ser ajudado. Contudo, percebe que apenas ele

enxerga as manchas e que, sozinho, precisará achar a solução para o problema.

É com a ajuda da pequena Estela que Raul dá importantes passos para se libertar, não

apenas das incômodas manchas mas, principalmente, da falta de iniciativa diante das injustiças

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que observa ao seu redor. Ele se tornou capaz de agir de acordo com as suas convicções: “Cala

a boca já morreu. Quem manda em mim sou eu”!

As ações da personagem principal assemelham-se ao papel desempenhado pelo tipo

espectador passivo que atribui a culpa a si mesmo pelas situações que contemplam (AVILÉS,

2011), contudo, permanecem inertes frente às cenas de bullying, dando margem também para

a reflexão sobre o espectador ativo, aquele que, direta ou indiretamente, reforça a agressão.

Para essa análise destacamos 6 episódios, que exemplificam as seguintes categorias:

motivação à leitura, estímulo à discussão e incentivo à reflexão (Unidade: Mediação

Pedagógica) relação texto-vida e da reflexão ao julgamento (Unidade: Relação texto literário

x bullying).

Conforme mencionamos no capítulo metodológico, a leitura do conto Raul da ferrugem

azul (MACHADO; FARIA, 2012) foi realizada em duas sessões. Por essa razão, as expectativas

levantadas pelos sujeitos puderam embasar-se em momentos distintos do texto.

Na primeira sessão, realizamos a motivação à leitura a partir da imagem presente na

capa e do título do conto (turno 7).

Episódio 1

(7) PP: [...]. Olhem para a imagem e o título do livro [...]. Pensando aqui

no título e na imagem sobre o que vocês acham que vai falar a história? (8) Priscila: Ele olhando num espelho azul? [...] (21) PP: [...]. Mas e Raul [...] Que relação tem Raul e a ferrugem azul?

Que relação vocês conseguem fazer? (22) Yasmin: O espelho azul que enferrujou. (23) PP: E Raul onde entra nessa história? (24) Ângelo: Uma parte dele é robô e outra é menino. (25) PP: E a parte do robô enferrujou? ((Ângelo diz que sim)) Será?

Alguém mais tem alguma ideia? [...] (42) Ester: Será que ele não tem um negócio assim, sei lá, que enferruja? [...] (83) Ângelo: Então eu acho que ele caiu e ficou machucado no braço. [...] (85) Lívia: Professora, pode ser que a parte que era de ferro, ((+)) pode

ser que ele tinha caído, aí tava enferrujada e ele se cortasse. (86) Ângelo: Ou, então, a parte de ferro dele ((+)) ele caiu e enferrujou. (87) PP: Ele caiu, se esfolou e enferrujou? Vamos ver agora [...] (88) Ângelo: Ou, então, professora, ele se guardou por tanto tempo, que

ficou criando ferrugem. (89) PP: Será? Vamos ver na história se foi isso?

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Inicialmente, Priscila foi a única a responder a questão (turno 7), demonstrando alguma

incerteza quanto ao que estava falando, vez que a sua resposta foi interrogativa (turno 8). Em

razão de sua vaga resposta em relação aos elementos apresentados – título e imagem – e ao

silêncio dos demais sujeitos, procuramos esclarecer melhor o que desejávamos que os alunos

pensassem (turno 21), reforçando a questão em seguida (turno 23) e buscando expandir o

diálogo (turno 25). Percebemos que essa nossa insistência no sentido de reformular os

questionamentos e em mediar as respostas favoreceu a assunção de posicionamentos por parte

dos sujeitos, que passaram a expressar as suas previsões (turnos 24 e 42).

De acordo com Bortoni-Ricardo, Machado e Castanheira (2010), a

sobreposição da fala do professor à do aprendiz, auxiliando-o na elaboração

de seu enunciado, de sinais de retorno, comentários, reformulações,

reelaboração e paráfrase e, principalmente, expansão do turno da fala do aluno

[...] dão a ele a oportunidade de “reconceptualizar” seu pensamento original,

seja na dimensão cognitiva, seja na dimensão formal (BORTONI-RICARDO;

MACHADO; CASTANHEIRA, 2010, p. 27-28).

Essa reelaboração e expansão do turno podem ser observadas nas respostas de Lívia

(turno 85) e de Ângelo (turnos 86 e 88), que voltaram às previsões mesmo após o pré-ensino

do vocabulário – segunda etapa planejada na pré-leitura. Isso nos mostra que a dinamicidade e

a não linearidade do trabalho desenvolvido na sala de aula apresenta um constante processo de

adiantar e retroceder, cabendo ao professor “facilitar os processos de elaboração da criança e

acompanhar o curso do seu desenvolvimento, ouvindo suas elaborações e situando-as em

termos das possibilidades lógicas da representação” (FONTANA, 2000, p. 163), conforme

buscamos realizar (turnos 87 e 89).

Almejando a ampliação dos discursos no que concerne ao conto, estimulamos os sujeitos

a discutirem e justificarem suas respostas, como podemos observar no episódio a seguir.

Episódio 2

(95) PP: [...] e aí, ele enferrujou?

(96) ASRJ: Si:::m. ((parte dos alunos)).

(97) ASRJ: Nã:::o:::. ((outra parte dos alunos)).

(98) PP: Sim ou não? Por que que você acha que sim? ((apontando para

Ângelo)) E por que você acha que não? ((apontando para Priscila)).

(99) Ester: Porque ele tava ficando azul.

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(100) Priscila: Professora, sabe por que eu acho que não, porque quando

ele olhava no espelho, o espelho tava azul, aí ele pensava que tava com a

pele azul e por isso que ninguém via e ele não tava nada de azul.

(101) Ester: Não, que quando ele olhava pro braço ((a aluna olha para o

braço)), ele via azul.

(117) Priscila: Mas como é que ele ficou com a pele azul e ninguém viu?

[...]

(124) PP: Por que será que ninguém vê?

[...]

(126) Lívia: Professora, eu acho que é porque é ((+)) ele tá, tá ficando tipo

velho e não conseguia andar direito, que naquela hora do ((+)) do balão.

(127) PP: Ele ficou parado e não conseguiu reagir, é verdade, ele não

conseguiu agir, por quê?

(128) Ângelo: É como se ele tivesse enferrujado e ficou parado. Não

conseguiu (...).

(129) Lívia: Não tava conseguindo se mover.

[...]

(143) Lívia: Professora, eu já sei, eu acho que isso é raiva, porque toda

vez que aparece manchinha nele é porque ele ficou com raiva. (144) Priscila: Raiva de bater no povo. De espancar o povo.

(145) PP: Raiva de espancar ou de não espancar?

[...]

(147) Lívia: De querer espancar e não poder.

(148) PP: Então, ele quer revidar, mas não revida e as manchas aparecem,

é assim?

(149) ((Lívia concorda)).

[...]

(152) SNI: Foi a raiva dele.

(153) PP: A raiva dele, que fez ele enferrujar? E por que vocês acham que

acontecia isso? Quando ele tinha uma raiva, ele enferrujava?

(154) Priscila: Porque ele não podia bater.

Esse diálogo realizou-se na pós-leitura da primeira sessão de leitura do conto, ou seja,

os sujeitos já tinham algum repertório sobre o enredo da história para discutir e fazer suas

inferências com relação à situação vivida por Raul.

Iniciamos a pós-leitura retomando o conflito gerado na pré-leitura sobre o fato de a

personagem ter enferrujado ou não. Nota-se que os sujeitos ainda não chegaram a um consenso

quanto à questão (turnos 96 e 97).

Levando em consideração as opiniões contrárias, questionamos, mais uma vez, os

sujeitos com o objetivo de que justificassem seus posicionamentos (turno 98). Para Ester, estava

claro o fato de Raul enferrujar, em virtude da cor azul que foi aparecendo nele ao longo da

história (turno 99). Priscila, por sua vez, discordou e afirmou que o espelho é que era azul, e

que tudo não passava de imaginação do garoto. Ela argumentou que era inconcebível Raul estar

com manchas azuis e ninguém conseguir enxergar isso (turno 100).

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É interessante observar a construção da argumentação neste episódio. Ante à colocação

de Priscila, Ester contra-argumentou, afirmando que não podia ser o espelho, uma vez que a

personagem olhou diretamente para o braço e o viu com manchas azuis (turno 101). Para

formular essa afirmação e embasar sua contra-argumentação, Ester utilizou-se do próprio texto,

mostrando, portanto, a validade de seu argumento (PERELMAN; TYTECA, 2005), de modo a

substanciar o seu discurso. Como bem justifica Koch,

[...] a argumentação é uma atividade estruturante do discurso, pois é ela que

marca as possibilidades de sua construção e lhe assegura a continuidade. É ela

a responsável pelos encadeamentos discursivos, articulando entre si

enunciados ou parágrafos, de modo a transformá-los em texto: a progressão

do discurso se faz, exatamente, através das articulações da argumentação

(KOCH, 2000, p. 159).

Buscando, portanto, a desejada progressão do discurso, e também nos aproveitando da

afirmação de Priscila (turno 117), que ainda não estava convencida de que Raul enferrujava,

estimulamos o aprofundamento da questão em torno dessa temática (turno 124). A partir desse

questionamento, os sujeitos começaram a fazer inferências com base nos indícios oferecidos

pelo texto até aquele momento.

Lívia (turno 126) argumentou que o personagem estava “tipo ficando velho” e que, por

essa razão, não conseguiu andar direito. Na verdade, ela construiu uma relação entre a atitude

de Raul e a sua experiência de mundo: com o avançar da idade, as pessoas passam a ter

limitações para se locomover.

Apoiando-nos na resposta de Lívia, elaboramos outra questão (turno 127) com o

objetivo de que os sujeitos refletissem sobre suas respostas e pudessem justificá-las de forma

mais convincente. Ângelo iniciou sua argumentação sobre o porquê de Raul não ter conseguido

reagir, relacionando o fato de a personagem ter perdido a mobilidade em virtude da ferrugem,

ou seja, também elaborou sua resposta a partir do que conhece sobre ferrugem: o fato de Raul

estar enferrujado tornava-o enrijecido; portanto, menos capaz de locomover-se (turno 128).

Seguindo esse mesmo raciocínio, Lívia complementou a fala do colega, concluindo o seu

pensamento: “Não tava conseguindo se mover” (turno 129).

Observa-se que tais respostas não estavam explicitadas no texto, o que exigiu que os

sujeitos fizessem inferências. Esse processo requer que o leitor olhe para além do que está posto

pelo autor, levando-o a um outro patamar de entendimento, que foge ao literal. A colocação de

Lívia (turno 143) exemplifica o modo como os indícios apresentados pelo texto podem ser

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utilizados pelo leitor para chegar a uma conclusão categórica: “Professora, eu já sei, eu acho

que isso é raiva, porque toda vez que aparece manchinha nele é porque ele ficou com raiva”.

Essa afirmação foi construída pela discente a partir de sua reflexão sobre as ações da

personagem diante de situações de violência.

Priscila, por sua vez, apoiando-se na fala de Lívia, relacionou a raiva ao ato de agredir

(turno 144). Questionamos, então, a colocação de Priscila (turno 145), que foi prontamente

explicada por Lívia, numa tentativa de justificar o sentimento da personagem diante das

agressões: querer revidar, mas nada fazer (turno 147).

Como forma de ratificar o pensamento desenvolvido até aquele momento, buscamos

confirmar o que estava sendo posto na discussão (turno 148). Isso levou Priscila a reavaliar seu

posicionamento anterior, de tal modo que ela passou a afirmar o contrário do que havia dito. A

nosso ver, é uma prova de que a argumentação convincente construída por Lívia (turnos 143 e

147), a partir das questões mediadas, obteve a adesão (PERELMAN; TYTECA, 2005) de

Priscila, que reestruturou o seu discurso, numa demonstração de mudança de comportamento

(turno 154).

Na segunda sessão, como estratégia para a motivação dos sujeitos à atividade,

inicialmente, buscamos incentivar a retomada dos acontecimentos relatados nos primeiros

capítulos da obra. Após essa retomada, tentamos fazer com que eles construíssem previsões

sobre o que aconteceria com a personagem principal a partir daquele momento (turno 275).

É certo que os elementos apresentados pela história e revisitados pelos sujeitos

favoreceram a construção de inferências bastante relevantes quanto ao desenrolar da narrativa

(episódio 2). Isso foi possível em função da experiência proporcionada na interação com o texto,

em particular, e com a experiência de leitura de literatura que estava sendo ampliada a cada

sessão, porque “quanto mais rica [for] a experiência humana, tanto maior será o material do que

dispõe essa imaginação” (VYGOTSKY, 2009, p 17).

Episódio 3

(275) PP: [...]. O que vocês acham que vai acontecer com as manchas dele

no decorrer da história? Vão sumir ou vão aumentar?

(276) Ítalo Gabriel: Vão aumentar, professora, vai ficar todo azul.

(277) Maria Thayná: Eu acho que aumenta até parte da história, aí ele

ajuda uma pessoa (...)

(278) PP: E o que acontece para essas manchas acabarem?

(279) Priscila: Ele não vai ter mais raiva.

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(280) Keylla: Vai ajudar os amigos.

A construção das inferências relativas ao que estava por vir na história constituiu-se,

portanto, a partir da experiência anterior (ou melhor, das experiências anteriores) dos sujeitos

com relação à narrativa, considerando-se o fato de que “o despertar da inteligência e o da

imaginação caminham juntos e consequentemente se enriquecem” (HELD, 1980, p. 48).

Diante do questionamento (turno 275), Maria Thayná formulou a hipótese de que as

manchas aumentariam somente até o momento em que Raul ajudasse uma pessoa (turno 277),

conseguindo, assim, vislumbrar a solução para o mal que o afligia, enquanto Priscila (turno

279) e Keylla (turno 280) complementaram a ideia de como Raul resolveria a sua situação e se

livraria das manchas azuis.

Diante das respostas dos sujeitos, e no intuito de incentivá-los a refletir sobre a condição

da personagem principal, ao mesmo tempo em que buscávamos fazer com que eles

desenvolvessem a relação texto-vida, elaboramos o seguinte questionamento (turno 426), que

serviu para desencadear uma reflexão bem fecunda.

Episódio 4

(426) PP: Vocês acham que vocês já enferrujaram alguma vez em alguma

situação, como aconteceu com Raul?

(427) Priscila: Não.

[...]

(430) PP: Vocês sempre ajudam o colega que está sofrendo alguma

violência? Ou já aconteceu de vocês ficarem paralisados como Raul?

(431) Carla: Não, tipo assim: se for amigo meu, eu ajudo. (432) SNI: Muita gente não ajuda, não.

(433) Ítalo Gabriel: Eu não ajudo não, ajudo batendo (...)

(434) Priscila: Se não for conhecido, eu deixo se virar, vou me intrometer

nas coisa que eu não sou chamada.

(435) PP: Mesmo se for aqui, na escola, algum colega de uma outra turma

que você não conheça?

(436) Priscila: Se for aqui, na escola, até ajudo, chamando a diretora e

pronto.

(437) PP: Vocês acham que é comum (...) vocês estão dizendo que ajudam,

mas vocês acham que a maior parte das pessoas, fora aqui da escola ((+))

é mais fácil elas ficarem de espectador, só olhando ((+)) não fazerem nada

e ficarem enferrujadas ou vocês acham que a maioria ajuda?

(438) Rian: Não fazer nada e ficar enferrujada.

(439) PP: Por quê?

[...]

(441) PP: É o quê? Por que eles preferem ver a desgraça dos outros?

[...]

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(443) Lucas: É mais fácil os outro ver uma brincadeira ((inaudível)) e

começar a botar fogo pra começar uma briga de verdade.

[...]

(457) PP: E o que vocês acham daqueles que incitam a briga? Que ficam

colocando fogo, como Lucas disse, o que vocês pensam sobre esses colegas

((+)) essas pessoas?

(458) SNI: É errado.

(459) PP: Quem falou? alguém disse que é errado, por quê? ((não

houve resposta [...]))

Como visto, focando, inicialmente, na inércia da personagem Raul, diante das agressões

observadas, elaboramos uma questão com o propósito de levar os sujeitos a refletirem sobre

suas próprias reações, caso estivessem no lugar de Raul (turno 426). Priscila enfatizou que

nunca havia “enferrujado”, o que nos fez presumir que ela sempre reagia diante de uma

violência observada (turno 427). No intento de obter maior adesão dos sujeitos, reformulamos

a pergunta de forma que ficasse mais clara (turno 430). Frente à nova questão, Carla, apesar de

não ser contrária à resposta da colega, afirmou que ajudaria somente aqueles que fossem seus

amigos e não as pessoas de modo geral (turno 431).

Um outro sujeito (SNI), tomando a resposta de Carla, fez uma ressalva afirmando que

“muitos não ajudariam” (turno 432). Prosseguindo com a discussão e, ratificando o dito pelo

colega, Ítalo Gabriel não apenas afirmou que não auxiliaria mas ainda deixou claro que ajudaria

a agredir (turno 433). Após essa colocação de Ítalo, Priscila reformulou o seu posicionamento,

fazendo a ressalva de que também ajudaria uma pessoa que fosse conhecida, caso contrário,

“deixaria se virar”, porque não se meteria onde não fosse chamada (turno 434).

Tanto a resposta de Ítalo Gabriel quanto a de Priscila despertaram-nos a atenção. No

primeiro caso (em relação à resposta de Ítalo Gabriel), pela ausência de empatia, que “[se define

como] a capacidade humana de perceber os estados emotivos de outrem e se afetar

emocionalmente por eles. [...], [diz] respeito a um ‘operador emocional’ passível de motivar

uma pessoa a preocupar-se com outrem” (LA TAILLE, 2006a, p. 12, grifo do autor), associada

à atitude violenta que assumiria (“ajudo batendo”), verbalizada por ele. Isso porque a

agressividade negativa presente em seu discurso também foi percebida no tratamento

desrespeitoso dispensado aos seus colegas durante o período de observação. Desse modo, tal

discurso, aliado à conduta observada, levou-nos a inferir que, de fato, Ítalo poderia não apenas

ocupar o lugar do espectador passivo, como afirmou, mas também poderia tornar-se um

espectador ativo ou mesmo um agressor, em uma situação real de bullying. No segundo caso

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(em relação à resposta de Priscila), pela colocação no sentido de “não querer se meter onde não

é chamada”, ainda que se trate de uma prática de violência. Esse posicionamento reflete o

comportamento do espectador passivo, que observa o comportamento inaceitável de outras

pessoas, mas não age em favor da vítima (OLWEUS, 2006), ou seja, “não se mete” tal qual

afirmou Priscila. Essa conduta vai de encontro às atitudes pró-sociais que, segundo Eisenberg

(apud LA TAILLE, 2006a), consistem em um dever positivo de ajudar a quem precisa

(DEBARBIEUX, 2002), o que não se restringe, portanto, somente aos conhecidos.

Compreendendo que o espectador pode ser um agente importante – até mesmo decisivo

– e que faz a diferença quando intervém em uma situação de conflito (ROWE, 2018),

elaboramos um novo questionamento, almejando focar na figura do espectador e na sua atuação

dentro da escola (turno 435).

Priscila afirmou que “até” ajudaria se fosse um colega desconhecido da escola,

ressaltando, porém, que seria um tipo de ajuda indireta: chamar a diretora (turno 436), por

exemplo. Acreditamos que se, de fato, os espectadores dos conflitos existentes naquela escola

agissem em prol da vítima, ainda que fosse simplesmente comunicando a algum integrante da

gestão escolar a ocorrência do ato de violência, já seria uma vitória, considerando-se os

inúmeros conflitos constatados no período de observação.

Conhecendo as respostas dos sujeitos ao se colocarem na posição de espectador,

procuramos saber o que achavam sobre o modo de agir de outras pessoas diante de uma

violência observada (turno 347). É intrigante que, ao falar “do outro”, prevaleça a ideia de que

é mais comum “não fazer nada e ficar enferrujada”, como respondeu Rian (turno 438). Em

busca de uma justificação, formulamos outra pergunta (turno 439). A resposta a esse

questionamento não ficou clara, o que nos levou a tentar confirmar o que havíamos escutado

(turno 441). Foi a vez de Lucas deixar claro que não apenas a inércia está presente na conduta

do espectador mas também o incentivo à continuidade do conflito, apontando, portanto, para a

figura do espectador ativo (turno 443).

Apesar do incentivo (turno 457) para que eles pensassem sobre o modo de agir dos

espectadores ativos, apenas um sujeito manifestou-se (turno 458). Contudo, não houve

argumentação para a resposta, mesmo diante da questão reiterada (turno 459).

Foi em outro momento da pós-leitura que a figura do espectador ativo pôde ser discutida.

É o que verificaremos no episódio a seguir.

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Episódio 5

(333) PP: E o que vocês pensam das pessoas que olham e só riem quando

veem o outro apanhando, quando veem o outro sendo humilhado pelo

colega, sendo vítima constante de violência, o que vocês pensam sobre

isso?

(334) Priscila: Eu dizia logo: Pare de frescura, se fosse com ele, ele ia

querer que a pessoa risse dele? Ia?

(335) PP: Alguém aqui já riu em alguma situação desse tipo que eu falei?

(336) ((os alunos ficam se olhando e rindo, mas permanecem calados. A

PP insiste)).

(337) PP: Já riu ou não? Sempre ajudou? Rian, já ficou rindo da situação

e não fez nada? [...]

(338) Rian: Às vezes.

(339) PP: E por que às vezes você fica só olhando e rindo?

[...]

(341) ((Rian não responde)).

(342) Ítalo Gabriel: Porque é bom, professora.

(343) SNI: É costume, é costume.

[...]

(349) Lívia: Professora, eu não ria não, sabe por quê? Porque se fosse com

a gente, a gente ia ficar com vergonha.

Ao estimularmos os sujeitos a se posicionarem quanto à atuação dos espectadores ativos

em casos de bullying (turno 333), obtivemos o ponto de vista de Priscila que, assim como fez

Ângelo em outro momento, mencionou a importância de se ter empatia antes de agir de forma

negativa, ou seja, rir do outro (turno 334).

Todavia, quando questionados diretamente em relação às suas atitudes em uma situação

real (turno 335) – estabelecendo a relação texto-vida –, a resposta inicial foi o silêncio (turno

336), levando-nos a inferir que isso estaria relacionado à vergonha moral (LA TAILLE, 2006b),

assim como se verificou no episódio 3 do conto João-trapalhão.

A reação gestual dos sujeitos (de se entreolharem) serviu de motivação para que

persistíssemos com o foco nessa discussão (turno 337), direcionando a questão a Rian – um dos

discentes que mais riram diante da pergunta (ficção x realidade). Rian afirmou que “às vezes”

se colocou na posição de um espectador ativo (turno 338), sem, contudo, explicar o porquê de

agir de tal modo (turno 341). Ítalo Gabriel, a seu turno, rompeu o silêncio para afirmar que

sentia prazer ao observar a situação vivida pela vítima (turno 342), sendo acompanhado por

outro sujeito que revelou ser essa uma prática comum na escola (turno 343).

Lívia, ao refletir sobre a interação dos colegas, alicerçou o seu discurso de “não rir do

outro” na empatia (turno 349), assim como Ângelo e Priscila haviam feito em outro momento

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da discussão. Isso demonstra o quanto a possibilidade de ouvir a opinião do outro pode ser

fundante na estruturação do pensamento.

O episódio a seguir foi considerado, por nós, um dos mais frutíferos para a

reestruturação do pensamento dos sujeitos, em virtude das diferentes opiniões que nele

emergiram.

Episódio 6

(187) PP: Pensando aqui na escola: se no intervalo estão pegando algum

objeto de um colega e vocês vão (...)

(188) Ester: Eu já tomei algum brinquedinho de André ((colega de turma

que possui o espectro autista)) que a menina tava pegando.

(189) PP: Para ajudá-lo? ((Ester afirma que sim)). Então você o defendeu.

(190) Ítalo Gabriel: Eu deixava, professora.

(191) PP: Você deixaria? E por que você não ajudaria?

(192) Priscila: Porque ele é ruim.

(193) PP: Deixem Ítalo Gabriel responder.

(194) Ítalo Gabriel: Porque eu não quero.

(195) PP: Então você preferiria ser um espectador, só assistir o que

estavam fazendo com o seu colega, sem ajudar. Será que existe a

possibilidade de, às vezes, a gente não ajudar com medo que venham

brincar com a gente, mexer com a gente também?

(196) Ítalo Gabriel: Aí ia pro pau.

(197) Priscila: Se mexer comigo, eu dou um bofete. Eu vou deixar (...)

(198) PP: Mas, vocês acham que isso pode acontecer, de eu não ajudar o

outro porque eu tô com vergonha, como Lívia falou, ou eu tô com medo

que o outro venha mexer comigo?

(199) ASRJ: Pode.

(200) Ítalo Gabriel: Só se eu quiser, professora. ((supõe-se que o aluno está

se referindo à questão sobre ajudar ou não um colega que está em apuros)).

(201) Ângelo: Nada a ver, professora. Eu ajudava porque se o outro que

tava mexendo com meu amigo viesse pra cima de mim, meu amigo ia me

proteger do mesmo jeito que eu protegi ele.

(202) Ester: Ângelo, podia ser o contrário, o outro vir para cima de você

e seu amigo ficar “briga, briga”.

(203) Ítalo Gabriel: Aí você ficava apanhando lá e o outro nem (...).

Ao contrário de Ester, que registrou o fato de ter ajudado André quando mexeram com

ele (turnos 188 e 189), Ítalo foi enfático ao afirmar que não se meteria, ou seja, deixaria o colega

ser perturbado (turno 190).

Esse modo de encarar a violência quando destinada a terceiros, tal qual fez Ítalo, foi

constatado em pesquisas reportadas por O’Connell et al. (1999):

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Craig e Pepler (1997) examinaram observações de parques infantis e

descobriram que os pares estavam envolvidos, de alguma forma, em 85% dos

episódios de bullying. [Entretanto], [a] [...] intervenção desses pares ocorreu

[apenas] em 11% dos episódios. Esta relativa falta de intervenção [...]

provavelmente reforça os intimidadores, que podem interpretar que seus

colegas são tolerantes ao bullying (O’CONNELL et al., 1999, p. 438, tradução

nossa).

Percebe-se, pela análise dos dados apresentados, que há um alto índice de espectadores

que preferem não intervir considerando “o [...] poder que os agressores desfrutam, aliado às

preocupações de autopreservação [...], [...]. [Isso porque] quando [...] intervêm, correm o risco

de tornarem-se as próximas vítimas (O’CONNELL et al., 1999, p. 439, tradução nossa). Essa

razão, porém, apesar de ter sido levantada (turno 195), não condizia com o pensamento de Ítalo

Gabriel (turno 196), que, mais uma vez, não demonstrando (ou não desejando demonstrar)

qualquer tipo de vulnerabilidade, respondeu recorrendo ao uso da violência (turno 196), tendo

o seu posicionamento sido seguido por Priscila (turno 197).

Com o propósito de ampliar a discussão, fizemos uma indagação que conduzisse os

sujeitos a pensarem em relações de natureza “macro” e não somente nas suas relações com os

colegas na escola (turno 198), o que levou alguns deles a responderem afirmativamente (turno

199).

Ítalo Gabriel, mais uma vez, entrou em cena, relativizando a sua afirmação anterior

sobre não ajudar o alvo (turno 200), sem responder, entretanto, à última pergunta que havia sido

formulada. Ângelo foi quem se ateve à questão proposta e se posicionou contrário a Ítalo,

destacando o sentimento de solidariedade e também de camaradagem, em que os amigos se

ajudam mutuamente (turno 201). Ester, porém, apresentou um contraponto à afirmação de

Ângelo, o que nos conduz a inferir ser aquela uma atitude condizente com a realidade daquela

escola (turno 202).

A conduta de proteger o outro, explicitada no contraponto feito por Ângelo, foi

desacreditada por Ítalo (turno 203), que deixou claro não crer na solidariedade enfatizada.

De todo modo, mesmo que o impacto da colocação de Ângelo sobre a ajuda mútua não

possa ser mensurado no que se refere à reflexão gerada nos demais colegas participantes da

discussão, acreditamos que a divergência de pontos de vista favorece tal reflexão. Isto é, pode

ter possibilitado a reorganização do pensamento individual dos sujeitos a partir do pensamento

exterior – o olhar do outro. Pensamos que esse conto foi importante para que os sujeitos

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tivessem a oportunidade de enxergar, com mais acuidade, o papel que o espectador (passivo ou

ativo) assume quando se trata do bullying.

4.1.1.5 As Cegonhas

Oh, cegonha, cegonhinha,

Voa para tua casinha!

Tua mulher está sozinha.

De quatro filhos taludos

Tem ela que cuidar.

Um será enforcado,

O outro trancafiado,

O terceiro queimado.

O quarto bem sei que triste fim terá... (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH,

2002, 194).

Amedrontados com a cantoria – de anunciada crueldade – dos meninos da rua, os

filhotes de cegonha sentem-se acuados, mas não por muito tempo. À medida que crescem,

passam a alimentar o desejo de vingança. A mãe-cegonha tenta, em vários momentos, amenizar

tal ânsia dos filhos, pois acredita que eles devem investir suas energias em algo muito mais

importante: aprender a voar.

Esse enredo traz uma discussão fecunda sobre o desejo (que pode ser alimentado nas

vítimas de bullying) de revidar as agressões sofridas, sendo este o nosso foco.

Para essa análise, destacamos 6 episódios que exemplificam as seguintes categorias:

motivação à leitura, estímulo à discussão e incentivo à reflexão (Unidade: Mediação

Pedagógica) e identificação com as personagens; relação texto-vida e da reflexão ao

julgamento (Unidade: Relação texto literário x bullying).

Como forma de motivar os sujeitos à atividade, solicitamos que eles elaborassem

hipóteses a partir do título da história, ao mesmo tempo em que buscamos conhecer quais os

seus conhecimentos prévios sobre as aves que dão nome ao conto. As respostas, entretanto, não

ficaram restritas às características do animal: um dos sujeitos valeu-se da imaginação, a partir

de sua experiência de mundo.

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Episódio 1

(4) PP: Então, gente, hoje eu trouxe para vocês uma história que tem o

nome bem curtinho ((a PP escreve o nome no quadro)) ((+)) Se chama: as

cegonhas. Quem já viu uma cegonha?

[...]

(7) Ester: Eu já.

(8) PP: Como é uma cegonha? Quem sabe descrever uma cegonha?

[...]

(12) PP: E como é que ela é? É um animal de que grupo?

[...]

(16) PP: Então, tem quais características?

(17) Ester: Tem asa, tem bico.

(18) Carla: Tem um nariz fininho.

(19) SNI: Tem um pescoção da bexiga.

(20) PP: Tem um pescoço grande, a cegonha? Então vamos ver aqui uma

figura que eu trouxe para vocês (...)

(21) Vinícius: É aquele bicho ((+)) que pega o bebê e leva pros pais.

[...]

(24) PP: Aquela ave que pega o bebê e leva para os pais. Quem já ouviu

essa história?

(25) Ester: Isso é uma mentira, vem do bucho.

(26) Vinícius: Nos desenho.

[...]

(28) Ester: Os desenho mente que só um (...).

(29) PP: Mas os desenhos são o quê?

(30) Ester: É mentira.

Diante das questões, alguns sujeitos apontaram características do animal (turnos 17, 18

e 19). Vinícius, entretanto, transpôs a constituição física e relacionou a imagem da cegonha ao

fato de ser ela a responsável por “entregar o bebê aos pais” (turno 21). Valendo-nos da fala

desse aluno, questionamos os demais sobre essa possibilidade (turno 24). Ester, no entanto,

recorrendo ao processo de referencialidade da vida real, desqualificou a resposta dada por

Vinícius dizendo que o bebê “vem do bucho” (turno 25). Essa referência pode estar

substanciada também na experiência de mundo de Ester, que, à época, estava prestes a ganhar

um irmão.

Vinícius, por sua vez, como forma de contra-argumentar, justificou que essa “atividade”

da cegonha estava presente nos desenhos animados (turno 26). Ester não aceitou a justificativa

baseada em um fato imaginário e continuou reafirmando que se tratava de uma mentira (turnos

28 e 30), mesmo diante da mediação no sentido de que eles pensassem sobre a finalidade que

têm os desenhos (turno 29). De todo modo, interessa-nos, nesse episódio, o fato de os sujeitos

haverem construído suas hipóteses, desenvolvendo um processo de argumentação, ainda que

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incipiente, em que cada um buscou justificar o seu posicionamento a partir da mediação

realizada. Afinal,

compete ao professor, como mediador na atividade de discussão, estimular as

crianças a expressarem seus pontos de vista, favorecendo a conexão das idéias

por elas apresentadas, de modo a garantir a troca sistemática de pensamentos

(FREITAS, 2005, p. 19).

Essa troca sistemática de pensamentos é, portanto, o ponto chave da mediação que se

constitui “na capacidade de a criança construir novas relações nas interações sociais [...] isso

significa pensar o conceito de mediação como processo, como transformação do modo de

pensar da criança” (FREITAS, 2005, p. 28). Isso porque, como afirma Vygotsky, “o

aprendizado [é] [...] um processo profundamente social, [com ênfase no] diálogo e [nas]

diversas funções da linguagem na instrução e no desenvolvimento cognitivo mediado”

(VYGOTSKY, 2007, p. 164) na escola pelo professor, a partir de experiências significativas,

que são inerentes às atividades de leitura de literatura.

Acreditando nessa potencialidade da mediação, estimulamos os sujeitos à discussão

sobre os sentimentos das personagens.

Episódio 2

(203) Ester: Eles sentem é raiva, professora.

(204) PP: Bem, como acontece na história, os filhotes ficam primeiro com

medo e depois com raiva e o que a raiva gera?

(205) ((os alunos ficam calados [...])).

(206) PP: O que as cegonhas ficam com vontade de fazer quando as

crianças insistem em cantar a musiquinha?

(207) Carla: Furar os olho com o bico.

[...]

(210) PP: E o que vocês pensam dessa vontade de vingança dos filhotes?

(211) Ester: Boa, professora.

(212) PP: Boa, por quê?

(213) ((Ester apenas sorri [...]))

(214) Maria Thayná: Não pode é ficar parado, sem fazer nada.

Aproveitando-nos da fala de Ester (turno 203), tentamos levar os sujeitos a pensarem

sobre as consequências do sentimento de raiva (turno 204), considerando que “uma pessoa

tomada pela raiva terá predisposição a ser agressiva” (CASASSUS, 2009, p. 41). Diante do

silêncio dos alunos, reformulamos a questão de modo que eles pudessem apoiar-se na história

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para responder (turno 206). Carla retomou a história para formular sua resposta (turno 207), o

que nos deu a possibilidade de continuar a mediação por meio de uma pergunta crítica (turno

210) que se classifica como um julgamento em relação ao texto, de forma que o leitor possa

ultrapassá-lo. Isso porque o leitor é convocado a olhar para a obra criticamente, indo além dela.

Nesse nível de pergunta, o leitor pode questionar as escolhas do autor, em vez de apenas aceitá-

las e reproduzi-las (CORACINI, 2010).

Notamos, entretanto, que, para responderem à questão, os sujeitos não levaram em conta

o grau de violência do ato arquitetado pelos filhotes. Consideraram apenas o fato de eles estarem

sendo vitimizados e, por isso, julgaram bem natural a decisão de revidar. Ou seja, o ato de se

vingar foi percebido como positivo, consoante afirmou Ester (turno 211), que não justificou sua

colocação apesar da pergunta posterior (turno 212). Somente Maria Thayná (turno 213) deixou

claro que o ato de “se vingar”, na verdade, estava sendo encarado como “reagir”.

Essa visão de mundo que se traduz na fala dos sujeitos revela a concepção de que se

deve agir com violência diante da agressão. Isso induz ao subentendido de que a agressividade,

voltada à violência, permeava o cotidiano daqueles sujeitos – ainda que não se tratasse de

bullying –; pelo menos é o que se percebe em suas falas.

Esse fato sinaliza a importância de incentivá-los a discutir sobre a questão, uma vez que,

reiteramos, é a partir da interação social, potencializada pela figura do professor, que há a

possibilidade de transformação no modo de pensar (FREITAS, 2005; VYGOTSKY, 2007).

Esse incentivo, a nosso ver, precisa ser constante dentro da escola, de forma a, cotidianamente,

questionar-se o modo como as crianças lidam com a violência.

Acreditando que “o lidar com a violência” requer o envolvimento dos pais, conduzimos

a discussão de forma que os sujeitos pudessem construir relações texto-vida, a partir da atitude

da mãe-cegonha.

Episódio 3

(215) PP: E o que vocês pensam da recomendação da mãe-cegonha de que os

filhos não deveriam se importar?

[...]

(224) PP: Já aconteceu o que vocês falaram (...) já aconteceu de uma

garota ou um garoto fazer alguma coisa de mal com você, falarem de você

e você chegar para a sua mãe e dizer: Mãe, fulaninho estava falando mal

de mim, e ela dizer para que você não ligue, que é só não ligar que passa?

[...]

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(226) Ester: Eu não digo não a minha mãe, não.

[...]

(228) Maria Thayná: Já aconteceu comigo, (...) foi que tavam me chamando

de palavrão aqui na escola, aí tavam fazendo bullying comigo, aí eu fui falar

com eles, aí eles falaram que a minha mãe era ‘não sei o que lá’, aí eu fui

dizer a ela, aí ela disse: “Não se importe com isso não, isso vai passar”.

(229) PP: Como é que você se sentiu quando ela falou isso?

[...]

(231) Maria Thayná: Um pouquinho com raiva, né? [...].

(232) PP: Vocês acham que a maioria dos pais age da mesma forma que

a mãe de Maria Thayná?

[...]

(235) ASRJ: Sim.

(236) PP: Por que vocês acham que eles agem assim?

(237) Ester: Acha que é besteira, professora.

(238) PP: Besteira?

(239) Ester: É, como se não fosse nada. Eu não digo pra minha mãe, não.

Eu bato.

Assim, retomando a posição adotada pela mãe-cegonha, que tenta minimizar as

agressões sofridas pelos filhotes (“– Não deveis importar-vos com isso – disse a mãe – coisas

assim, quando não se escuta, não fazem mal algum” (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH,

2002, p. 194)), intentamos conhecer como essa relação texto-vida era estabelecida entre os

sujeitos e os respectivos responsáveis (turno 224).

Diferentemente do que havia afirmado sobre recorrer aos pais caso fosse vítima de

bullying (episódio 6 de A Gata Borralheira), Ester é categórica em dizer que não relataria a

agressão à sua mãe (episódio 226), argumentando que não adiantaria falar porque, afinal, não

seria ouvida (turnos 237 e 239). Essa alegação, de fato, é uma das razões apontadas pelas

vítimas para não procurarem auxílio, pois “acreditam que nada será feito para ajudá-las

(STRASS, 2018, p. 18, tradução nossa). Assim, para Ester, a solução seria revidar.

Acreditamos que a solução dada anteriormente (episódio 6 de A Gata Borralheira) foi

diferente porque se tratava de um caso envolvendo terceiros. Em um caso pessoal, no entanto,

Ester não só não falaria para a mãe como também partiria para a agressão. Há, portanto, duas

posturas distintas presentes nas declarações de Ester e que poderiam ser assumidas, a depender

de quem estivesse envolvido na situação.

Julgamos que esse discurso pró-violência, assumido por Ester, pode estar relacionado à

identificação dela com o posicionamento descabido da mãe-cegonha, tendo em vista as suas

respostas: “[a mãe] acha que é besteira, professora”; “como se não fosse nada. Eu não digo

pra minha mãe, não. Eu bato” (turnos 237 e 239). É possível inferir que, se não há o amparo

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materno quando se denuncia algum tipo de agressão, a alternativa que resta, segundo a visão de

Ester, é, ela mesma, “resolver” a situação: “[…]. Eu bato” (turno 239).

Essa tendência a solucionar o problema por meio da violência também foi percebida em

outros momentos da sessão − tanto por parte de Ester quanto por parte de outras discentes −,

quando incentivamos os sujeitos a se colocarem no lugar das personagens, em um processo de

identificação.

Episódio 4

(240) PP: [...] se vocês estivessem numa situação semelhante à dos filhotes,

o que é que vocês fariam?

(241) Carla: Eu dava nos menino. ((+)). Eu dava ((+)) não! Do jeito que

minha mãe mandou, eu tentava voar e dava um bicudo no olho deles

(242) PP: Alguém tem mais alguma ideia do que faria se estivesse na situação

dos filhotes? Keylla? O que você faria se você fosse um dos filhotes e

fizessem isso, ficassem zombando de você?

(243) Keylla: Eu ia fazer ((+)) não ia me importar.

[...]

(245) Maria Thayná: Professora, eu fazia assim: pegava um monte de

lodo (...) professora, eu pegava um bocado de lodo e jogava neles.

(246) Ester: Professora, professora, eu pegava uma pedra paralelepípedo

e metia na cabeça deles, lá de cima.

(247) PP: E vocês acham que agindo assim iam resolver a história? Que

consequências vocês acham que poderiam ter para os filhotes se eles

agissem assim?

(248) Ester: Nenhuma, professora, que ia matar eles, aí não ia mais

perturbar.

(250) PP: E se você fizesse uma coisa assim [...] você não acha que poderia

[…] ter alguma consequência para os filhotes que tentaram se vingar

dessa forma [...]?

(251) Ester: Eu saía de lá.

(252) Keylla: Eu também tentaria sair de lá.

(253) PP: Vocês acreditam que sair de lá resolveria?

(254) Keylla: Acho que sim.

Com a proposição da questão inicial, procuramos identificar os comportamentos que os

sujeitos adotariam caso estivessem vivenciando uma situação de violência semelhante àquela

dos filhotes (turno 240). Em suas respostas, Carla e Ester optaram por atitudes violentas. A

primeira utilizou-se de uma das formas de vingança cogitada pelas próprias personagens (turno

241), enquanto que a segunda recorreu a elementos externos ao conto como alternativa para

revidar as agressões verbais (turno 246).

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Percebemos, por seus discursos, que elas sequer levaram em consideração as

consequências que seus atos poderiam desencadear. Por essa razão, formulamos uma nova

questão (turno 247), frente a qual Carla não se posicionou. Ester, por sua vez, justificou que

não haveria consequência em virtude da morte dos garotos (turno 248). Observamos, no

entanto, que, quando confrontada com a possibilidade de represália ao seu ato de violência

(turno 250), Ester assumiu uma postura contrária à sustentada até então, dizendo que se retiraria

do local (turno 251), uma das ações comuns aos alvos típicos: retirarem-se do local, quando

agredidos (OLWEUS, 2006).

Vale ressalvar o fato de que ambas as colocações de Ester partem de possibilidades

oferecidas pelo texto, adequando-se, portanto, à perspectiva interna da obra (ISER, 1996). Isso

porque, para a construção de seus pontos de vista, ela levou em consideração as ideias violentas

de vingança das personagens principais e também o modo como a mãe-cegonha relativizava o

desejo dos filhos ao longo da história.

Somando-se aos posicionamentos de Carla e Ester temos, nesse episódio, as respostas

de Keylla e Maria Thayná. Enquanto que o pensamento de Keylla igualmente convergiu para a

compreensão da mãe-cegonha de que os filhotes não deveriam se importar com as agressões

verbais sofridas ou simplesmente se afastarem de tal situação (turnos 243 e 252), Maria Thayná

construiu a sua ideia de vingança a partir da intertextualidade estabelecida com o conto João-

trapalhão: “Pegava um monte de lodo e jogava neles” (turno 245), numa comprovação de que

o contato com a literatura enriquece e ativa o repertório do leitor.

E vale acrescentar que esse contato, além de ter implicação no repertório literário do

indivíduo, repercute no seu conhecimento de mundo. No episódio que segue, por exemplo, os

sujeitos foram incentivados a refletir sobre alternativas às ações de violência (turno 294).

Episódio 5

(294) PP: [...]. Vocês deram algumas sugestões de como resolver aqui na

escola. E na história, qual seria uma forma não violenta de resolver a

questão das cegonhas, o que vocês acham que elas poderiam ter feito? ((frente ao silêncio dos alunos, a PP prossegue)). Vamos lá, vocês

consideram que a ideia dos filhotes em bicar os olhos dos meninos é uma

violência?

(295) ASRJ: É.

(296) PP: E levar o bebê morto ao menino danado é um tipo de violência?

(297) SNI: Não, é um castigo.

(298) PP: Tem alguma outra solução que vocês possam pensar?

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(299) Carla: Ao invés de dar o bebê morto, ela podia dar um bebê vivo,

mas, assim, com poucos dias de morrer.

(300) PP: É uma outra solução, mas ainda um tanto cruel, não acha?

(301) Carla: Mas, os menino não estava mexendo com eles? Então (...).

(sic).

(302) PP: [...]. Vocês acham que as cegonhas não deveriam vingar-se de

forma violenta, bicando os olhos dos meninos, mas consideram que levar

o bebê morto ou quase morto seria um castigo merecido e não uma

violência, é isso?

(303) ASRJ: Sim

Nota-se que, antes de se aterem a alternativas à violência, os sujeitos expuseram o que

consideravam violência. Enquanto que a agressão física de bicar os olhos foi vista como um ato

violento (turno 295), a vingança sugerida pela mãe-cegonha foi encarada como um castigo

(turno 297).

Considerando esse entendimento, procuramos ampliar a discussão (turno 298). Carla

revelou tão-somente o que julgava ser, para ela, uma solução mais branda (turno 299). Ao final,

ratificou aquilo que os colegas haviam dito sobre a necessidade de um castigo para os meninos

(turno 301), a despeito do questionamento que fizemos (turno 300).

Fica claro, pois, pelo que expuseram em suas falas, que, para os sujeitos, a vingança das

personagens deveria mesmo ser consumada. Além disso, mostraram-se ainda em concordância

com o modo como esta foi realizada no conto, pois a agressão praticada pelos meninos era

justificativa suficiente para o “castigo” imposto (turno 303).

Intriga-nos, no entanto, a percepção dos discentes quanto à violência. A agressão física,

por exemplo, fazia parte de seu cotidiano, sendo, portanto, algo que eles (re)conheciam, em

decorrência das próprias relações de conflito presentes na sala de aula e na escola de um modo

geral. Assim, a partir daquilo que compreendiam como agressão, os sujeitos foram capazes de

classificar como uma ação violenta o ato de “furar os olhos”. O mesmo, contudo, não pôde ser

observado quanto à sugestão da mãe-cegonha, que foi apontada como um castigo, inclusive

merecido (turno 301).

Cremos que tal classificação pode estar atrelada ao fato de não haver uma ação explícita

de agressão física na conduta arquitetada pela mãe-cegonha, o que, consequentemente,

considerando o conhecimento dos sujeitos, dificultou a construção de uma relação entre a

vingança perpetrada na história e a violência a ser praticada.

O que restou evidente foi a compreensão dos sujeitos com relação à causa e ao efeito:

“se os meninos mexeram com os filhotes, deveriam ser castigados”. Essa visão também pode

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estar vinculada às suas experiências de vida – inclusive dentro da escola – e ao próprio senso

de justiça, pois se trata de um “conteúdo preciso da moral” (LA TAILLE, 2009, p. 123). Assim

se incorreria em uma injustiça se o ato praticado pelos meninos ficasse impune.

Continuando com um discurso pautado na violência, notamos o apoio de Ester à

vingança pretendida pelos filhotes de cegonha. Em contrapartida, observamos que as reflexões,

suscitadas ao longo da discussão, propiciaram o julgamento.

Episódio 7

(256) PP: E sobre a vingança que as cegonhas quiseram fazer? O que

vocês pensam dessa vingança? Ester já disse que acha bacana o fato das

cegonhas quererem se vingar.

(257) Ester: É, professora, é para arrancar os olho.

(258) PP: E os demais, o que é que pensam sobre isso?

(259) Keylla: Eu não acho boa não, professora! Nada se resolve com

violência.

(260) PP: Por quê? Como é que você resolveria de uma forma que não

fosse com violência?

(261) Ester: Chamando a polícia.

(262) Keylla: Eu faria do jeito que a mãe ia fazer: levar as crianças para

aquele que não tinha zoado e levar uma criança morta para o que tinha

zoado.

[...]

(264) PP: Mas vocês consideram que revidar a violência sofrida é a

melhor solução?

(265) ASRJ: Sim.

(266) ASRJ: Não.

(267) PP: Alguns estão dizendo que sim, outros que não. Quem disse que não

era?

(268) ASRJ: Eu.

(269) PP: Por que que você acha isso?

(270) Vinícius: É melhor resolver com palavras.

[...]

(274) Ester: Professora, não é melhor na palavra, porque agora ninguém

fala, vai logo na pistola ((+)) vai ficar (...)

(275) PP: E você não acha que gera uma violência maior fazendo isso? O

que você acha?

(276) Ester: Não, professora, mas ninguém (...) professora, roubaram o

relógio do meu tio e ele foi com uma doze pra matar o cara, aí não achou

o cara ((Ester ri)).

[...]

(286) PP: [...]. Se a gente pensar, aqui na escola, vocês acham que revidar

uma agressão que os colegas fizeram com vocês ((+)). Por exemplo: vocês

estão no recreio e tem um menino que diariamente mexe com vocês, vocês

acham que agredi-lo vai resolver a situação?

(287) Carla: É melhor conversar.

(288) Vinícius: É melhor resolver com palavras.

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(289) Maria Thayná: É melhor chamar a diretora.

(290) Carla: Do que tá dando. [...]

(292) Carla: Do que a pessoa tá dando nele e não vai resolver nada, só vai

apanhar mais no outro dia.

Como vimos, sem titubear, Ester ratificou o seu posicionamento em prol da violência

(turno 257), sendo rebatida por Keylla (turno 259), que discordou firmemente da afirmação da

colega, instaurando-se, portanto, nessa interação, um embate de ideias contrapostas. Todavia,

não podemos deixar de sublinhar o fato de que, apesar de Keylla ter-se mostrado, a princípio,

contrária à violência apontada por Ester, considerou a sugestão de vingança da mãe-cegonha

como sendo aceitável (turno 262), ou seja, não a reconhecendo como uma ação violenta.

Na sequência, os sujeitos colocaram-se, visivelmente, em lados opostos quanto ao fato

de que “revidar” seria ou não a melhor solução (turnos 265 e 266). Vinícius destacou que revidar

com violência não resolveria o problema (turno 270). Diante da colocação do colega, Ester

retornou à discussão expondo a sua descrença no diálogo como meio eficaz de resolução (turno

274). Além disso, trouxe o relato de uma ação violenta planejada por um familiar (turnos 276),

como se esta fosse natural e fizesse parte do seu mundo circundante.

Partindo dessas colocações, formulamos uma pergunta visando analisar o contexto

escolar, pensando na realidade da escola (turno 286). Inserindo-se na discussão, Carla, Vinícius

e Maria Thayná apresentaram respostas semelhantes, e especialmente favoráveis à não-

violência (turnos 287, 288, 289 e 290). Carla, em particular, fez questão de justificar seu ponto

de vista numa tentativa de mostrar que havia a possibilidade de a vítima ser ainda mais

hostilizada caso revidasse a agressão (turno 292).

Tendo em vista as opiniões expressas por Ester no decorrer dessa sessão de leitura

(aliás, um posicionamento semelhante ao que assume na sessão em que trabalhamos o conto

Obax, como veremos posteriormente), questionamo-nos: por qual motivo Ester construiu um

discurso semeado de violência, especificamente nessas duas ocasiões? Até que ponto os relatos

de Ester fazem parte da sua experiência de vida?

Faz-se interessante registrar o fato de que a referida aluna, nos dias em que ocorreram

essas sessões, estava irritadiça e que, por isso mesmo, entrou em conflito com os colegas várias

vezes. Apesar de não sabermos especificar o motivo da perceptível irritabilidade, é provável

que aí se encontre a justificativa para o posicionamento contraditório de Ester, em relação às

outras sessões. Em adendo, vale fazer a ressalva de que os dados da entrevista inicial

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evidenciaram que essa aluna mantinha uma relação saudável com os seus familiares, não

havendo, pois, indícios de que ela vivia inserida em um contexto de violência (seja na

convivência com a mãe, com o pai ou com os demais parentes). Assim sendo, não há como

alegarmos que a agressividade assinalada no discurso de Ester era decorrente de suas vivências,

especialmente pelo fato de ter sido essa hostilidade manifesta em apenas duas sessões.

De qualquer forma, a despeito da situação específica em que se observou Ester,

entendemos que o grande proveito dessa sessão, além de a discussão ter suscitado diferentes

pontos de vista – o que é essencial para a possibilidade de se mudar o pensamento –, foi o fato

de conhecermos qual a concepção dos sujeitos sobre o que seria violência. Pensamos que essa

informação foi preciosa para a nossa prática, uma vez que nos permitiu refletir sobre a condução

das sessões de leitura. Além disso, cremos que, para a escola – que necessita trabalhar em prol

de uma convivência pacífica –, esse dado seja igualmente importante.

4.1.1.6 Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos

Mas enquanto elas falavam assim, Dois-olhinhos fez rolar de sob o barril duas

maçãs de ouro, de modo que ela rolaram até os pés do cavaleiro; pois Dois-

olhinhos estava zangada porque Um-olhinho e Três-olhinhos não disseram a

verdade.

Quando o cavaleiro viu as maçãs, admirou-se e perguntou de onde elas vieram.

Um-olhinho e Três-olhinhos responderam que tinham mais uma irmã, que,

porém, não podia se mostrar porque tinha só dois olhos como as outras

pessoas, Mas o cavaleiro exigiu vê-la e chamou:

– Dois-olhinhos, sai e aparece!

Então Dois-olhinhos apareceu bem calmamente de sob o barril. O cavaleiro

admirou-se da sua beleza e disse:

– Tu, Dois-olhinhos, decerto podes quebrar um ramo da árvore para mim.

– Sim, – disse Dois-olhinhos, – certamente posso fazer isso, porque a árvore

me pertence (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKI, 2003b, p. 107-108).

Dois-olhinhos é uma pessoa comum que, por ter dois olhos, é desprezada e maltratada

por sua mãe e por suas irmãs. Submissa aos mandos e desmandos do trio, ela se lamenta

constantemente pela forma como é tratada. Não obstante, a partir de uma ajuda externa, ela

passa a mudar de atitude – e até cria coragem de “sair e aparecer”! Esse enredo surpreende,

porque permite a discussão sobre padrões de “perfeição” e sentimentos negativos que podem

ser despertados contra aqueles que, de algum modo, se destacam positivamente em seu grupo.

É sob esse olhar que abordamos essa história.

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Nessa análise, destacamos 5 episódios, que exemplificam as seguintes categorias:

motivação à leitura, estímulo à discussão e incentivo à reflexão (Unidade: Mediação

Pedagógica) e relação texto-vida (Unidade: Relação texto literário x bullying).

Em busca da motivação à atividade, exploramos uma das ilustrações presentes no

conto, em que aparece a imagem das três irmãs. Os sujeitos, a partir das suas experiências e do

repertório que foram desenvolvendo ao longo das sessões de leitura, elaboraram algumas

hipóteses.

Episódio 1

(21) PP: [...]. Então, gente, depois de verem a imagem, o que vocês

puderam observar? De que forma vocês acham que elas estão envolvidas

na história?

[...]

(26) PP: Em que tipo de situação vocês acham que elas estarão

envolvidas? Sobre o que vocês acham que a história vai tratar?

(27) Vinícius: Elas vão sofrer bullying.

(28) PP: Elas vão sofrer bullying?

(29) Vinícius: A que tem um olho.

(30) SNI: E a que tem três olhos.

(31) PP: Por que vocês acham que elas vão sofrer bullying?

(32) Priscila: Ah, professora, por causa da diferença, né?

Nesse episódio, chamou-nos a atenção a resposta de Vinícius (turno 27), porque nos

indica que as discussões relacionadas ao bullying já passaram a compor o conhecimento de

mundo desse sujeito; tanto que, imediatamente, ele relacionou as diferenças apresentadas pelas

personagens ao fato de elas poderem vir a ser vítimas potenciais. Diante de sua resposta,

buscamos uma justificação (turno 28). Vinícius pontuou que, para ele, era evidente quem seria

a vítima no conto (turno 29). Essa certeza, demonstrada pelo aluno, justifica-se em razão dos

estereótipos sociais enredados no “tecido sociocultural [que é] impregnado de preconceitos,

discriminações e intolerância, componentes configuradores de relações sociais [...] que atuam,

em geral, de forma difusa e estão fortemente internalizadas e naturalizadas na sociedade”

(CANDAU, 2012, p.7). Desse modo, parece lógico que o bullying seja praticado com as

personagens que apresentam diferenças – Um-olhinho e Três-olhinhos – considerando o

preconceito social enraizado e, portanto, assimilado por Vinícius.

Mais uma vez vale insistir na importância de se trabalhar contos, a exemplo do que

estamos analisando, que quebrem a expectativa do leitor, desequilibrando-o, o que pode

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conduzi-lo a um novo processo de construção do conhecimento, condicionando-o a refletir

sobre as convicções socialmente estabelecidas.

Foi no intuito de ampliarmos o diálogo em busca de identificar outros olhares que

diferissem da percepção de Vinícius que fizemos um novo questionamento, expandindo-o para

toda a turma (turno 31). Contudo, confirmando o preconceito existente e naturalizado na nossa

sociedade (CANDAU, 2012), Priscila (turno 32) ratifica o pensamento de Vinícius, justificando

que a razão de Um-olhinho e Três-olhinhos serem alvos de bullying era bastante óbvia, uma

vez que as personagens eram diferentes das pessoas comuns que têm dois olhos.

Esse entendimento dos sujeitos leva-nos a pensar no quanto o trabalho sistematizado

com a literatura, a partir da mediação do professor, é capaz de ensinar. Isso porque proporciona

ao leitor a construção de experiências significativas e diferentes do habitualmente estabelecido,

uma vez que a literatura “é uma forma de expressão [...] [que] manifesta emoções e [a] visão

de mundo dos indivíduos e dos grupos; [...] ela é uma forma de conhecimento, inclusive como

incorporação difusa e inconsciente” (CANDIDO, 2004, p. 179). Equivale, ainda, “a outro

aprendizado que é o de compartilhar modos de compreender a vida, o mundo, a existência, a

identidade, a relação com o outro, não percebida ainda” (MARTINS; VERSIANI, 2005, p. 18),

o que, sem dúvida, inclui o aprendizado sobre o bullying no ambiente escolar.

Buscando evidenciar a possibilidade que tem o texto literário de surpreender o leitor

pela quebra de expectativas, estimulamos os sujeitos à discussão propondo-lhes que

retomassem a situação vivenciada pela personagem principal.

Episódio 2

(80) PP: Então, quem, na história, sofria agressão?

(81) ASRJ: Dois-olhinhos.

(82) PP: Por que vocês acham que as irmãs faziam isso com ela?

(83) Priscila: Porque ela era igual às pessoas normais.

(84) Ângelo: É por causa que ela era mais bonita e inteligente do que as

outra.

(85) PP: Como é que Dois-olhinhos se sentia quando ela era tratada

assim? [...].

(86) Ângelo: Triste.

(87) Caroline: Aflita.

(88) PP: E o que ela fazia com relação a isso? ela fazia o quê? [...].

[...]

(94) Ângelo: Ela não fazia nada.

(95) Carla: Ela não fazia nada, só chorava.

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Nesse episódio, os sujeitos destacaram a letargia da personagem quando agredida. Tal

perfil foi-se delineando “aos olhos do leitor, [...] unicamente com os recursos oferecidos pela

linguagem verbal” (BRAIT, 2017, p 34), especialmente por meio de trechos específicos da

história, como os transcritos abaixo:

Um dia Dois-olhinhos teve de sair para o campo [...], mas estava com muita

fome, porque as irmãs lhe tinham dado muito pouco para comer. Então ela

sentou-se numa beira de mato e começou a chorar tão amargamente que

dois riachinhos escorriam dos seus olhos. E quando, na sua aflição, ela

levantou os olhos, lá estava uma mulher na sua frente, e lhe perguntou:

– Dois-olhinhos, por que choras?

Dois-olhinhos respondeu:

– E não é para chorar? Só porque eu tenho dois olhos como os outros seres

humanos, as minhas irmãs e minha mãe não me suportam; elas me empurram

de um lado para o outro, jogam-me vestidos velhos e não me dão nada para

comer a não ser o que sobra delas. Hoje elas me deram tão pouco, que ainda

estou de todo faminta (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b, p. 101,

grifos nossos).

– Queres estar melhor do que nós? Esta vontade vai-te passar já e já!

E ela apanhou um facão e cravou-o no coração da cabra, que caiu morta.

Quando Dois-olhinhos viu isso, saiu cheia de tristeza, sentou-se na beira do

mato e chorou lágrimas amargas (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY,

2003b, p. 105, grifos nossos).

Realmente, uma surpresa para o leitor: somente após a leitura do texto, os sujeitos

mudaram sua ideia inicial ao constatarem que Dois-olhinhos, apesar de comum por ter dois

olhos, era a real vítima das agressões (turno 81).

Diante dessa constatação, indagamos o ponto de vista dos discentes sobre o porquê da

vitimização. Priscila amparou-se expressamente no conto para formular a sua resposta (turno

83): “Mas como Dois-olhinhos não era diferente de toda a gente comum, as irmãs e a mãe

não a suportavam” (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b, p. 100, grifo nosso). Ângelo,

apesar de também se ter apoiado no texto, elaborou a sua justificativa com base em inferências

presentes na história (turno 84). O atributo da inteligência, apontado pelo discente, por exemplo,

pôde ser percebido a partir das artimanhas de que se valeu Dois-olhinhos para tentar ludibriar

as irmãs quanto aos poderes mágicos da cabrinha e também pelo modo como ela conseguiu

chamar a atenção do cavaleiro. Já a beleza da personagem destaca-se a partir do seguinte trecho:

“Então Dois-olhinhos apareceu bem calmamente de sob o barril. O cavaleiro admirou-se da

sua beleza [...]” (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b, p. 108, grifo nosso).

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Pensar na inteligência e também na beleza como pretexto à vitimização revela-nos,

subliminarmente, o quanto o sentimento de inveja está presente na relação das outras irmãs com

Dois-olhinhos. Esse sentimento negativo ante tais atributos que deveriam ser admirados faz-

nos retornar a Simmons (2004), que constatou, em sua pesquisa, que a intimidação entre as

meninas nem sempre está vinculada a algum tipo de diferença ou atributo que fuja aos padrões

sociais de beleza estabelecidos, como ela própria justifica:

[...] eu tinha planejado organizar suas histórias [das meninas] segundo as

qualidades pelas quais eu supunha que elas eram punidas: as diferentes, as

gordas, as pobres, as desastradamente inseguras. Eu não esperava que as

meninas se zangassem umas com as outras exatamente pelo contrário

(SIMMONS, 2004, p. 129-130).

A constatação de Simmons (2004) reforça a afirmação de Olweus (2006) quanto à

questão de que os desvios de aparência não são o ponto-chave na “escolha” da vítima por parte

do agressor, especialmente no bullying entre meninas, haja vista que o fato de ser bonita e ter

“sucesso social” pode configurar-se em uma forte motivação para a violência.

Essa motivação, assim como o perfil de submissão da personagem principal, que

somente chora diante das privações infligidas, principalmente por suas irmãs, é evidenciada ao

longo do conto.

Quando indagados sobre o sentimento de Dois-olhinhos frente ao tratamento que recebia

(turno 85), os sujeitos, do mesmo modo, embasaram suas respostas na história (turnos 86 e 87),

apontando, ainda, para a fragilidade da personagem, que não reagia diante das agressões (turnos

94 e 95). Essa atitude de Dois-olhinhos remete-nos às atitudes intrínsecas à vítima típica, em

virtude da passividade demonstrada pela personagem nessas situações de abuso.

Assim, apesar da ajuda recebida da “sábia mulher” − agente da ação6 (“– Dois-olhinhos,

enxuga o rosto; eu vou te dizer uma coisa, para que tu nunca mais tenhas fome. Deves só dizer

à tua cabra: Berra, cabrinha, / Põe-te, mesinha” (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b,

p. 101)), a passividade de Dois-olhinhos, mais uma vez, manifesta-se na narrativa quando

6 Que se caracteriza como o condutor da ação: “personagem que dá o primeiro impulso à ação; é o que representa

a força temática, que nasce de um desejo, de uma necessidade ou de uma carência” (BRAIT, 2017, p. 68).

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[...] ela [a mãe] apanhou um facão e cravou-o no coração da cabra, que caiu

morta.

Quando Dois-olhinhos viu isso, saiu cheia de tristeza, sentou-se na beira do

mato e chorou lágrimas amargas.

Aí de repente surgiu de novo ao seu lado aquela mulher sábia e disse:

– Dois-olhinhos, por que choras?

– E não é para eu chorar? – respondeu ela. – A cabra que me punha aquela

linda mesinha quando eu lhe dizia a falinha que a senhora me ensinou, foi

abatida pela minha mãe. Agora terei de sofrer fome e aflição novamente

(GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b, p.105).

Tomando por base essa última passagem do conto, incentivamos os sujeitos a refletirem

sobre a atitude da mãe, que resulta novamente no desespero de Dois-olhinhos.

Episódio 3

(114) [...]. O que vocês acham dessa atitude de matar a cabrinha?

(115) Priscila: Inveja, ela tinha inveja.

(116) Caroline: Porque ela tava comendo do bom e do melhor.

Como se pode constatar, nesse episódio, a inveja foi apontada como um sentimento

marcante (turno 115) entre as personagens femininas do conto. Esse sentimento também é

contemplado nas pesquisas apresentadas por Dytham (2018), as quais revelam que “meninas

[...] consideradas populares, [bonitas] e [que têm] [...] uma enfática feminilidade podem se

tornar o assunto de abuso e intimidação” (DYTHAM, 2018, p. 214, tradução nossa), por se

“acharem o máximo” (SIMMONS, 2004).

Na ficção, Dois-olhinhos foi preterida por ocupar uma posição privilegiada, como

assinalou Caroline (turno 116), mas o fato é que situações como essa, evidenciada no conto,

podem igualmente ser observadas na vida real.

Um trabalho etnográfico tem sido chave para aclarar o bullying entre meninas

e a "mesquinhez", mostrando que essa é na verdade uma característica comum

nas relações das meninas. [...] Meninas foram mostradas usando linguagem

[...] agressiva [...] para envergonhar, atacar e humilhar outras garotas. [...] Os

grupos sociais das meninas são hierárquicos e as meninas usam manipulação,

intimidação e provocação para controlar e excluir os outros para manter essa

hierarquia e os limites de seus grupos [...]. (DYTHAM, 2018, p. 212-213, grifo

da autora, tradução nossa).

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Esses estudos, portanto, aliados aos de Simmons (2004), mostram-nos a pertinência de

trazer à baila esse conto, que possibilita aos sujeitos construírem uma relação texto-vida, como

podemos perceber no episódio seguinte.

Episódio 4

(125) PP: [...] vocês, na convivência com as suas colegas, já sentiram isso

que as irmãs de Dois-olhinhos sentiam por ela? Já ficaram com inveja da

outra ser mais bonita, mais inteligente, já aconteceu isso com vocês?

(126) ((as meninas não respondem verbalmente, mas algumas balançam

a cabeça negando)).

[...]

(138) PP: Então, vocês nunca sentiram inveja de um colega. Mas vocês

acham que é comum uma colega sentir ciúmes da outra ou sentir inveja

porque ela é mais bonita, vocês acham que esse tipo de situação é comum?

((os alunos não respondem)) Acham que é comum ou não, meninas e

meninos?

(139) ((Caroline balança a cabeça afirmativamente)).

(140) Ítalo Gabriel: É comum.

(141) PP: Vocês já viram, aqui na escola, ou em algum outro canto, esse

tipo de coisa acontecer?

(142) Lucas: Aqui na escola (...) dentro da sala acontece (...).

(143) Ângelo: Aqui na escola, sim. Dentro da sala.

(144) PP: E como é a situação? [...]

(145) Lucas: Acontece toda hora.

(146) Ângelo: Ester e Carla falando mal dela ((aponta para Lívia)) ((Ester

não estava presente nesta aula)).

(147) Carla: Ei, não fui eu, não. Ester chamou ela de r… aí ela ((Ester))

tava falando pra mim, aí eu fui a culpada.

(148) PP: Isso porque […] ?

(149) Carla: [...], quando ela ((apontando para Lívia)) chegou na escola,

ela ((Ester)) chamou ela ((Lívia)) de rapa... e não sei o quê, aí ela ((Lívia))

chegou e devolveu o r… a ela ((Ester)). Aí ela ((Lívia)) achou ruim e

começou a chorar, aí foi lá na diretora e, quando foi resolver, ela ((Lívia))

não quis assumir que ela tinha chamado ela ((Ester)) de rapa...

(150) PP: E aí, a conversa com a diretora resolveu a questão? Vocês hoje

são amigas?

(151) Carla: Não.

[...]

(154) PP: Por que não?

(155) ((Carla baixou a cabeça e não respondeu inicialmente)). (156) Carla: Eu não joguei bullying para ela.

Retomando a questão relativa ao sentimento de inveja que as irmãs e a mãe nutriam por

Dois-olhinhos e que já havia sido apontado por um dos sujeitos anteriormente, buscamos

suscitar a discussão (turno 125). Ratificando os estudos sobre bullying entre meninas que

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revelam serem os atos de agressão, em sua maioria, negados (SIMMONS, 2004; DYTHAM,

2008), as garotas da turma afirmaram – ainda que não verbalmente – que tal sentimento de

inveja não permeava suas relações (turno 126). Frente à negativa das discentes, ampliamos a

questão no intuito de levar as meninas a se sentirem mais confortáveis para participar da

discussão e de também inserir os meninos no processo discursivo (turno 138).

Dentre as meninas, somente Caroline (turno 139), timidamente, por meio de gesto,

afirmou que era comum esse tipo de sentimento entre meninas, sem, contudo, posicionar-se

verbalmente de modo a substanciar a discussão. Essa tarefa coube aos meninos, a começar por

Ítalo Gabriel que afirmou ser comum a inveja entre as meninas (turno 140). Respondendo à

pergunta se era essa uma prática comum observada na escola (turno 141), Lucas não apenas

declarou que sim mas também revelou que tal prática acontecia na sala de aula (turnos 142 e

145). Ângelo reforçou a afirmação do colega (turno 143) e relatou um caso que eles

consideravam como decorrente da inveja entre meninas (turno 146).

O caso mencionado por Ângelo, e que desencadeou a discussão, foi prontamente

rebatido por Carla, que afirmou não estar envolvida na situação (turno 147), explicando, pela

primeira vez, a sua versão dos fatos (turno 149).

Chama-nos a atenção o início da justificação da discente (“quando ela [Lívia] chegou

na escola, ela [Ester] chamou ela de rapa...”), em razão de sua semelhança com o discurso das

meninas pesquisadas por Simmons (2004). Tal similaridade permite-nos inferir que Lívia pode

ter sido vítima de violência por estar “tomando o espaço” junto aos garotos, mesmo sendo

recém-chegada à escola.

Outro fato que também nos chamou a atenção foi o registro de que, provavelmente, o

conflito entre as alunas tenha ocorrido no início do ano letivo – uma vez que Lívia era “nova”

na turma –, mas foi suficiente para que o rancor (e quem sabe o tratamento agressivo) perdurasse

por todo o ano, prejudicando qualquer tentativa de amizade entre elas (turno 151).

Por fim, ao ser questionada sobre o porquê de não serem amigas, Carla, que a princípio

não quis responder (turno 155), limitou-se a dizer que não havia “jogado bullying na colega”

(turno 156).

Levando em conta o posicionamento de Carla, procuramos ampliar a discussão

incentivando os sujeitos a refletirem e também a julgarem a relação entre meninas a partir de

uma situação mais genérica; entretanto, a própria Carla voltou a mencionar o caso, em que ela

foi apontada, envolvendo as duas colegas.

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Episódio 5

(159) PP: O que vocês acham dessa situação: você não conhece a pessoa,

a pessoa é nova na escola, e você já julga ela pela aparência, pelo rosto?

[...]

(163) PP: Por exemplo: eu chego à escola, sou uma aluna nova e alguém

começa a me julgar pela minha aparência, sem nem me conhecer ((+)) o

que é que você acha desse tipo de situação?

(164) Carla: Não, porque foi assim, tava ela ((aponta para Lívia)) e dois

menino da turma, aí Ester chegou, aí ela ((Lívia)) fez: agora ela ((Ester))

virou rapa… aí ela ((Ester)) começou a falar dela ((Lívia)), algumas coisa,

aí ela ((Lívia)) achou ruim e foi lá na diretora e falou. Aí Ester chegou e

disse que ela ((Lívia)) tinha chamado ela de rapa…, aí ela ((Lívia)) não

quis assumir.

(165) Lívia: Eu não chamei ela de rapa…

(166) PP: Lívia, como é que você se sentiu com essa situação?

(167) Lívia: Eu fiquei magoada com isso, porque eu não sou rapa… e nada

do que ela falou.

(168) PP: E por que você acha que ela te insultou ((+)) te tratou dessa

maneira?

(169) Lívia: Não sei, eu tava só conversando com os meninos.

[...]

(171) Carla: E por que você chamou os outro de rapa...?

(172) Lívia: Eu não chamei ninguém de rapa… .

[...]

(179) [...] Vocês chegaram a conversar sobre isso, depois que ocorreu essa

situação?

[...]

(182) Lívia: Não.

[...]

(208) PP: [...], vocês pensam o que sobre essa situação que ocorreu entre

as colegas? Quem está de fora pensa o que sobre isso?

(209) ((as meninas ficam se olhando e rindo, mas não respondem)).

[...]

(214) PP: Gente, o importante não é saber quem chamou ou quem não

chamou, o importante é saber como você se sente envolvida nesse tipo de

situação.

(215) Lucas: Só digo que ela se sente magoada ((apontando para Lívia)).

(216) Carla: Eu não fiz nada.

(217) PP: Tá certo. Mas se tivesse sido você, como é que você se sentiria

fazendo isso com alguém, xingando, agredindo dessa forma?

(218) Carla: Muito mal, eu não sei se ela é rapa…, aí eu vou chamar ela

de rapa…? [...]

(222) Carla: Do mesmo jeito que ela faria comigo, porque ela não sabe se

eu sou (...).

(223) PP: [...] e se você fosse o alvo, [...] e fosse chamada dessa maneira,

de forma tão ofensiva, o que você faria?

(224) Carla: Ia na diretora também, ora!

(225) PP: E vocês ((dirigindo-se aos demais alunos)) o que fariam?

(226) Ítalo Gabriel: Eu partia pra agressão, professora.

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(227) PP: Você acha que a agressão resolve?

(228) Ítalo Gabriel: Sim.

[...]

(231) Priscila: Professora, eu ficava na minha sem fazer nada, mas Lívia

não ficou sem fazer nada, ela foi lá na direção [...]

Percebe-se, pelo discurso de Carla, que ela, ao mesmo tempo em que buscou eximir-se

do fato de ter xingado Lívia, mencionou que Ester insultou Lívia, mas que o fez após ter sido

xingada de rapa... pela colega.

O conflito “explicado” por Carla remete-nos aos estudos de Simmons (2004) sobre o

tratamento das meninas entre si, justamente por mostrar a visível agressividade que existe entre

elas. Segundo essa autora, é comum uma garota ser destratada por sua beleza física, por seu

comportamento ou por estar simplesmente conversando com os garotos, como demonstra esse

diálogo entre meninas, destacado de sua pesquisa:

– Lembra – disse Megan – quando Jenny veio [da escola] onde ela era, tipo

assim, uma merda? [...] antes de fazer qualquer outra amizade, já estava com

essa atitude arrogante [...] lembra a cachorra que ela era?

– É – concordou Taylor – Ela era muito segura de si.

[...]

– Como nos sentimos a respeito de uma menina que entra numa sala, não

sabemos quem é e que é bonita? [questiona Simmons]

– Automaticamente sentimos ódio dela – respondeu Keisha de imediato.

– Ficamos ofendidas – falou Toya

– Ela é uma pessoa muito atraente... – disse Melissa.

– Ela é nova e vai atrair todas as atenções – concluiu Torie.

– Queremos que ela se sinta menos confiante para não falar com os garotos –

observou Keisha – alguém novo entra, e ameaça pelo que é. Olha só para ela

isto e aquilo. Ela vai roubar as minhas amigas, ela vai roubar o meu cara

(SIMMONS, 2004, p. 138-139).

Esse relato feito a Simmons (2004) é, em certa medida, percebido nesse episódio, a

partir da resposta de Lívia (turno 169), que afirmou não saber o porquê de ter sido maltratada

pelas colegas, vez que estava somente conversando com os meninos. Ademais, Lívia, quando

questionada (turno 166), mostrou-se magoada com a situação (turno 167) e, por duas vezes,

rebateu (turnos 165 e 172) as afirmações de Carla (turnos 164 e 171).

Observando que a discussão entre as duas alunas não avançaria, elaboramos um outro

questionamento em que desejávamos saber como a situação havia sido finalizada (turno 179).

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Lívia, contudo, disse que elas não haviam conversado a fim de tentarem solucionar o impasse

(turno 182).

Frente à resposta de Lívia, procuramos ampliar a discussão para os demais sujeitos

(turno 208). Chamou-nos a atenção o fato de as meninas apenas trocarem olhares, rirem e nada

falarem, o que nos conduz, mais uma vez, à pesquisa de Simmons (2004), que expõe o fato de

as relações entre as meninas serem, muitas vezes, veladas, assim como as agressões. Destarte,

ainda que nenhuma delas tenha-se posicionado, o fato de ficarem caladas, ao mesmo tempo em

que se entreolhavam, sinaliza no sentido de que poderia haver mais situações de conflito entre

elas do que estava sendo revelado.

Essa circunstância derivou a necessidade de esclarecermos que o foco da discussão não

era, especificamente, o caso relatado por Carla (e que envolvia Lívia), mas o modo como uma

vítima poderia sentir-se ao ser envolvida em uma situação semelhante (turno 214). Ainda assim,

mesmo após a ressalva, nenhuma das meninas quis posicionar-se. Lucas mencionou a mágoa

da colega Lívia (turno 215), enquanto Carla defendeu-se mais uma vez (turno 216).

Percebendo que a discussão não fluía, sempre voltando ao caso envolvendo as discentes,

modificamos a abordagem, buscando fazer com que os sujeitos se colocassem no papel de

agressor (turno 217). Carla afirmou que se sentiria mal e não ofenderia a colega, e que essa, do

mesmo modo, não poderia xingá-la “sem saber” (turnos 218 e 222). Essa expressão chama a

atenção porque dá indícios de que se uma garota “soubesse” tal informação de outra, poderia,

então, insultá-la sem problemas, o que recai no que Simmons (2004) revela sobre o universo

feminino, em que qualquer “motivo” pode ser usado como “desculpa” para a vitimização.

Além de solicitar que os sujeitos se colocassem na posição de agressores, também lhes

pedimos para se enxergarem como vítima (turno 223). Carla disse que tomaria uma atitude

semelhante à de Lívia (turno 224). Ítalo Gabriel, outra vez, insistiu que seguiria pelo caminho

da agressão (turnos 226 e 228), mesmo sendo questionado quanto ao fato de ser essa a melhor

solução (turno 227). Já Priscila afirmou que não faria nada se fosse vítima de uma situação

equivalente, o que pode sugerir que ela se submeteria a uma agressão advinda de uma colega

de turma.

Avaliando, em particular, a fala de Priscila, observamos que ela, ao assumir o

posicionamento de submissão, passa a comportar-se como a vítima típica, aquela que não busca

auxílio. Isso nos leva a refletir sobre a necessidade de a família e a escola estarem atentas às

relações de amizade que são construídas, especificamente entre as meninas, e à maneira como

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essas amizades são consolidadas. No encaminhamento dessa proposição, cabe, primeiramente,

desmistificar a ideia de que as meninas, por natureza, são afáveis (SIMMONS, 2004) e que, por

isso, não necessitam de tanta supervisão quanto os meninos.

A discussão suscitada, a partir da história de Dois-olhinhos e suas irmãs, revelou que os

sujeitos tinham a compreensão de que existe um sentimento de inveja que pode permear as

relações femininas. Os olhares trocados, as risadas e os gestos indiciam, entretanto, que, apesar

desse entendimento, as meninas preferiam o silêncio a terem de se expor ou expor suas colegas.

O caso real apresentado e discutido por alguns sujeitos, a partir da leitura do conto –

ainda que não se configure como bullying –, demonstra o potencial do texto literário como um

caminho viável para que o silêncio possa ser quebrado à medida que o leitor se identifica com

as situações vivenciadas pelas personagens, podendo isso se refletir nas conexões que se

estabelecem entre a narrativa e os fatos que acontecem ao seu redor.

4.1.1.7 O Patinho Feio

Num ímpeto, ele abriu as asas, que fizeram maior rumor que antes, e o

carregavam, potentes, para longe. [...] Da mata saíram três formosos cisnes

brancos, ruflando as penas, flutuando, leves e ligeiros, sobre a água.

[...].

– Vou até lá; ao encontro daquelas aves reais. Irão matar-me de bicadas porque

eu, tão feio, me atrevo a aproximar-me delas. Mas não me importo. [...]

E voou para a água, nadando em direção aos formosos cisnes, que o viram e

lhe vieram, céleres, ao encontro.

– Matai-me, se quiserdes! – disse ele.

E curvou a cabeça para baixo, para a água, à espera da morte. Mas. . . Que viu

ele na água cristalina? Era a sua própria imagem, refletida ali. Mas não era a

de um pato, de um pardo e feio pato. Era um cisne que ele via no espelho da

água (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002, p. 249-250).

Ao nascer diferente dos demais, o patinho é recebido no quintal – local onde deveria ser

o seu lar – a pontapés, sendo rejeitado por todos os animais – inclusive por seus irmãos. Diante

dessa dramática situação, ele foge. Contudo, não encontra sossego e continua a ser desprezado

por sua feiura, pela aparência que supõe possuir e da qual se lamenta com profunda tristeza, o

que incide tão negativamente na sua autoestima que chega a acreditar que é merecedor de tal

tratamento. É apenas no final da história que a personagem muda radicalmente de situação ao

descobrir-se cisne. Essa mudança concretiza-se somente no momento em que, em um ato de

coragem, o patinho decide aproximar-se daqueles animais que ele tanto admira.

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Esse enredo torna possível discutirmos as características da vítima típica (OLWEUS,

2006), especialmente no que se refere à influência que as agressões (e seus agressores) exercem

sobre a autoestima daquele que está imerso nessa situação.

Para essa análise, destacamos 4 episódios, que exemplificam as seguintes categorias:

motivação à leitura, estímulo à discussão e incentivo à reflexão (Unidade: Mediação

Pedagógica) e identificação com as personagens; relação texto-vida e da reflexão ao

julgamento (Unidade: Relação texto literário x bullying).

Como estratégia para motivar à atividade, trabalhamos, a princípio, o título da história.

Episódio 1

(12) PP: Quem conhece essa história?

(13) ((vários alunos levantam a mão)).

[...]

(23) PP: E o que é que acontece na história que vocês se lembram?

[...]

(30) Keylla: Professora, ele sofre bullying porque ele não é igual aos

outros patinhos; é diferente.

Observa-se, já no início da sessão (pré-leitura), que, assim como ocorreu na sessão de

Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos (GRIMM; GRIMM; GRABIANSKY, 2003b), foi

construída a relação entre diferença e bullying. Keylla (turno 30) prontamente relacionou seu

conhecimento de mundo – estereótipo dado à diferença e ao fato de conhecer a história – com

o conhecimento sobre bullying que estava sendo assimilado a partir das discussões mediadas

em sala de aula.

Partindo da colocação de Keylla, após a leitura do texto, buscamos reavivar na memória

dos sujeitos o modo como o patinho era tratado e os sentimentos dessa personagem diante das

agressões sofridas. Para tanto, fizemos questionamentos visando estimulá-los à atividade.

Episódio 2

(58) PP: [...] como é que ele era tratado?

(59) Keylla: Mal.

(60) PP: E o que é que eles faziam tanto com o patinho?

(61) Vinícius: A galinha coisava a cabeça dele.

[...]

(68) PP: E como é que ele se sente?

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(69) Vinícius: Triste.

(70) Richard: Muito triste.

(71) PP: E o que é que ele pensa sobre si mesmo?

(72) Vinícius: Se acha feio.

Elaboramos tais questões de forma encadeada7 (turnos 58, 60, 68 e 71) com o intuito de

promover o envolvimento dos discentes na atividade. Para elaborarem suas respostas, eles

recorreram a vários trechos da história:

“[...] o pobre patinho [...] era bicado, empurrado e escarnecido. Não só os

patos, mas também as galinhas o maltratavam a valer. [...] o patinho,

coitado, [...] triste e desesperado por ser tão feio e vítima de zombaria [...]

as galinhas o beliscavam [...]. Um cão feroz, enorme, [...] escancarou a goela

para o patinho [...] e... afastou-se [...]. Sou tão feio que nem o cachorro quis

me morder” (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002, p. 243-245,

grifos nossos).

Como é possível constatar, as respostas estavam explícitas no texto, bastando aos

leitores apenas localizá-las, o que facilitou, portanto, a participação. Esse menor esforço em

localizar as respostas, todavia, não desmerece a importância desse tipo de pergunta, uma vez

que são elas as responsáveis por aproximar o sujeito do texto, estimulando-o a retomá-lo e a

envolver-se com as situações vivenciadas pelas personagens, entendendo, inclusive, que “é na

sua leitura literal que o leitor encontrará [...] significados não literais” (KATO, 1985, p. 57).

Em busca desses significados não literais, suscitados no encontro leitor-texto, é que

incentivamos os sujeitos a refletirem sobre a situação vivenciada pela personagem principal a

partir de questões críticas. Nesse processo de pensar sobre a narrativa, evocando as suas

convicções, o leitor poderá, ao se identificar com a personagem, tornar-se empático no que

concerne à situação desta, ao mesmo tempo em que reflete sobre a sua própria condição.

Episódio 3

[...]

(106) PP: E como é que vocês se sentiriam se fossem tratados dessa

forma?

7 Uma série de perguntas mais ou menos abertas, sintática e, por vezes, semanticamente independentes, ligadas

entre si pelo texto tomado na sua linearidade (CORACINI, 2010, p. 77)

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(107) Vinícius: Me sentia mal.

(108) SNI: Professora, todo mundo ia ficar triste.

[...]

(110) PP: Iam ficar tristes, mas o que é que vocês fariam para mudar de

situação?

(111) Vinícius: Eu fazia uma cirurgia na perna para ficar lindo.

(112) PP: Você se mudaria para agradar os outros?

(113) Vinícius: É ((o aluno fica rindo)).

[...]

(117) PP: E o que você acha de alguém que faz várias cirurgias para os

outros acharem ele bonito? Você concorda?

(118) SNI: Depende dele. Eu não gastaria dinheiro pra isso.

(119) PP: Você ficaria da forma como você é? Independentemente do que

os outros falassem?

(120) SNI: Sim.

(121) Keylla: Tem gente que faz plástica.

(122) PP: Você acha que às vezes as pessoas fazem plástica porque outras

pessoas falam mal da aparência delas?

(123) Keylla: Sim.

(124) PP: Por quê?

(125) Keylla: Porque ((+)) sei não.

Partindo da revelação do tratamento hostil recebido pelo patinho da parte de todos os

animais do galinheiro, formulamos a questão no intuito de perceber se houve a identificação

dos sujeitos com a personagem principal (turno 106). Pela resposta de Vinícius (turno 107) e

de outro sujeito (turno 108), percebe-se que eles compartilhavam o sentimento de tristeza da

personagem ao afirmar que se sentiriam mal.

Em busca de entender os caminhos a que esse processo de identificação levaria os

sujeitos, elaboramos uma questão com o objetivo de saber que providências eles tomariam para

sair daquela situação (turno 110). Para Vinícius, uma atitude viável à vítima seria mudar aquilo

que provocava a vitimização, entrando em conformidade com uma representação que o outro

aprovasse (turnos 111 e 113). Tendo em vista a resposta do aluno, instigamos a discussão com

os demais sujeitos (turnos 117 e 119). Keylla pronunciou-se relacionando a mudança – cirurgia

plástica – à conformidade estética “exigida” pelos outros; todavia, não soube explicar o porquê

de sua afirmação (turnos 121, 123 e 125).

As respostas de Vinícius, reforçadas pelas colocações de Keylla, merecem destaque

porque vão de encontro à compreensão da “necessidade de empoderamento daqueles que

sofrem bullying, a fim de que abandonem as representações negativas que fazem de si,

aumentando as chances de superação da posição de alvo” (GONÇALVES, 2017, p. 56, grifos

nossos). Se a ideia do empoderamento é desestabilizar as relações de poder, para que a vítima

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243

tenha a oportunidade de reverter o quadro de agressão perpetrado, fica evidente, nesse episódio,

a visão deturpada de que a simples mudança física resultaria no término da violência. Somente

um sujeito afirmou que “não gastaria dinheiro” com cirurgia – como dito por Vinícius – e

permaneceria do jeito que era, a despeito do que os outros falassem (turnos 118 e 120).

É interessante observarmos o quanto ainda se encara com naturalidade a busca por estar

dentro de padrões sociais. Nesse momento da discussão, à exceção do SNI, que apresentou uma

visão contrária à dos colegas Vinícius e Keylla – no sentido de que permaneceria com a mesma

aparência ainda que não agradasse às demais pessoas –, nenhum outro sujeito reforçou esse

posicionamento, o que nos leva a inferir que muitos dos alunos não estavam certos sobre o que

fariam para mudar de situação, sentimento esse compartilhado por inúmeras vítimas de

bullying.

Somente quando a discussão foi alterada, saindo da questão “o que vocês fariam para

mudar de situação (ou seja, para mudar a sua situação)?” para “o que você faria para ajudar

um amigo...?” é que conseguimos a adesão de outros sujeitos à discussão, os quais conseguiram

estabelecer uma relação texto-vida e puderam, a partir da interação com os colegas, julgar a

situação da personagem.

Consideramos importante também assinalar o fato de que, neste episódio, houve a

adesão, inclusive, daqueles sujeitos que, até então, tinham apenas observado as discussões de

pós-leitura. É o caso de Richard, Ana Alice e Kesley, que, a partir da medição, mostraram-se

confortáveis em participar dessa sessão.

Episódio 4

(195) PP: O que vocês fariam para ajudar um amigo que estivesse numa

situação como a do patinho? Se fosse aqui, na escola, um menino fosse

considerado feio e todo mundo ficasse zombando dele, batendo nele e ele

fosse amigo de vocês, o que é que vocês fariam para ajudá-lo? [...]

[...]

(198) Lívia: [...] professora, eu pegava um bocado de amiga minha e ía

meter o pau nele.

(199) Yasmin: Eu ia fazer a mesma coisa.

(200) PP: Você ia brigar (...) e se fosse como na história, como é com o

patinho, que encontrou com muitos animais que agrediam ele? Se fosse

muita gente da escola, vários colegas (...)

(201) Yasmin: Se fosse muita gente da escola, eu pegava o povo da rua

tudinho.

[...]

(203) Maria Thayná: Ou tentava ajudar com palavras ou deixava quieto.

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(204) PP: E ia deixar seu amigo sofrendo agressão?

(205) Maria Thayná: Eu tentava resolver, mas se não desse (...).

(206) Vinícius: Eu ajudava a mudar.

(207) PP: Você ajudaria seu amigo a mudar o jeito de ele ser?

(208) Vinícius: Sim.

(209) PP: Se ele mudasse, você acha que os outros iriam parar de fazer isso

com ele?

(210) ((Vinícius afirma com a cabeça))

(211) PP: E como seria essa mudança?

(212) Vinícius: Mudar as roupa, o cabelo, sei lá.

(213) PP: Então, tentaria mudar a aparência para que os outros deixassem de

agredi-lo, para que ele não fosse mais agredido, é isso?

(214) Vinícius: É.

(215) PP: E se eles não parassem?

(216) Vinícius: Aí eu não sei.

(217) PP: Nenhuma outra alternativa?

[...]

(231) Pâmela: Defenderia ele.

(232) PP: De que forma?

(233) Pâmela: Não é para fazer bullying.

(234) PP: Dizendo que não era para fazer bullying com ele?

(235) ((Pâmela confirma com a cabeça)). [...]

(237) Richard: Eu ajudava, professora.

(238) PP: De que forma?

(239) Richard: Fazendo a cirurgia dele.

[...]

(242) PP: E se seu amigo não quisesse mudar? E se ele não quisesse

mudar?

(243) Vinícius: Aí eu não podia forçar ((+)) deixava ele resolver (...) aí eu

não ajudava não. Oh, não quer, não? ((Vinícius balança a mão no ar,

como se dissesse: Então, te vira)).

(244) Richard: Aí era responsabilidade dele [...].

(245) Keylla: Ele podia mudar o estilo.

[...]

(248) Emanuela: Pintar os cabelo, passar um negócio assim ((Emanuela

faz círculos com a mão em frente ao rosto)).

(249) PP: Então, vocês mudariam o estilo dele, para ele melhorar a

autoestima e parar de ser agredido pelos outros?

(250) Emanuela: Sim.

(251) Ana Alice: Eu mostraria a ele ((+)) para ele não pensar que ele era

feio [...].

[...]

(254) PP: Na história, o patinho era feio de verdade? (255) ASRJ: Não.

[...]

(257) PP: Mas ele se achava feio. Por quê? (258) Vinícius: Porque os outro diziam que ele era feio, bicavam ele.

(259) PP: Então, isso que Ana Alice está dizendo poderia ajudar ele a

aumentar a autoestima, para que ele não se enxergasse como feio?

[...]

(266) Kesley: Eu apoiava ele.

[...]

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245

(268) Kesley: Falar que é para ele não ficar para baixo, que ele é bonito,

que não é feio. Pra ele não ficar triste. [...]

(273) SNI: Eu sairia falando pra todo mundo parar de implicar com ele,

de chamar ele de feio, porque ninguém é igual.

(274) Lívia: Porque ninguém é mais bonito que ninguém, professora.

[...]

(276) SNI: Eu não fazia nada, falava para ele não ligar, ignorar.

Nesse episódio, solicitamos, inicialmente, aos sujeitos que pensassem em alternativas

possíveis para auxiliarem um amigo alvo de agressões, tal como sucede com a personagem da

história (turno 195).

Lívia respondeu que recorreria à violência (turno 198), no que foi seguida por Yasmin,

que afirmou que agiria da mesma maneira (turno 199). Diante desses posicionamentos, fizemos

um adendo, rememorando que o patinho foi agredido por vários animais (turno 200); ainda

assim, Yasmin reforçou a sua opinião (turno 201).

Contrapondo-se à visão das colegas, Maria Thayná ressaltou que tentaria ajudar a vítima

por intermédio do diálogo, mas, ao mesmo tempo, colocou-se também na posição de uma

espectadora passiva ao afirmar que poderia “deixar quieto” (turnos 203 e 205).

Vinícius aventou uma nova perspectiva (turno 206) quanto ao tipo de mudança que

sugeriria ao amigo (turno 212). Contudo, quando indagado sobre o que faria caso as agressões

persistissem (turno 215), não soube apontar outra solução (turno 216), ao que Pâmela, então,

sugere outra possibilidade (turno 231), assegurando que defenderia o amigo conversando com

os agressores do bullying (turnos 233 e 235).

Expressando uma posição bem semelhante à de Vinícius (no episódio 3), Richard

mencionou que ajudaria o amigo a mudar por meio de uma cirurgia de cunho estético (turno

239). Apoiando-nos em tal pensamento, empenhamo-nos em aprofundar a discussão (turno

242), que contou, mais uma vez, com Vinícius e Richard sustentando a opção da citada cirurgia

ou da mudança de “estilo” como se fossem as únicas formas de que disporiam para ajudar

(turnos 243 e 244). Keylla e Emanuela seguiram pelo mesmo caminho dos colegas, sugerindo

mudanças (turnos 245 e 248) com vistas a melhorar a autoestima da vítima (turno 250), mas

não de natureza cirúrgica.

Ana Alice também apresentou uma resposta orientada à autoestima, todavia sem expor

a necessidade de alterações na aparência (turno 251). Considerando a afirmação da discente,

retomamos a história para que os sujeitos pudessem construir relações entre a situação

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246

vivenciada pelo patinho e os pontos de vista concebidos a partir da discussão (turnos 254, 257

e 259).

Após a nossa intervenção, foi a vez de Kesley posicionar-se, seguindo a mesma lógica

de Ana Alice, mas sendo mais específica sobre o modo como ajudaria, na vida real, um amigo

a aumentar a sua autoestima (DEBARBIEUX, 2002), o que, a seu ver, deveria ser favorecendo

o seu empoderamento (turno 268). Outro sujeito construiu seu argumento indicando a diferença

como um fator natural (turno 273), induzindo Lívia a concordar e até complementar o seu

pensamento (turno 274).

Nesse evento, torna-se interessante a maneira como os sujeitos elaboraram seus

pensamentos. Enquanto Vinícius permaneceu com o seu ponto de vista sobre a necessidade de

a vítima mudar a sua condição física, opinião partilhada por alguns colegas, Kesley construiu a

sua reflexão voltando seu olhar para o processo de vitimização. Em sua ponderação, a aluna

admite que, certamente, se deve fazer com que a vítima mude, mas que essa seja uma mudança

em benefício próprio, que se daria de dentro para fora, ou seja, na maneira de ver-se a si mesma.

Nota-se que essa visão de Kesley foi capaz de inspirar a forma de pensar de outros sujeitos

(turnos 273 e 274). Subentendemos, por exemplo, que Lívia, a partir das colocações dos

colegas, pôde refletir e expor uma nova sugestão (turno 274), que vai além da simples agressão

que havia sugerido inicialmente (turno 198). Ao alegar que “ninguém é mais bonito que

ninguém”, deixa implícita a compreensão de que se deve respeitar o outro da maneira que ele

é, numa revelação do quanto a interação com o outro é formativa.

A literatura, igualmente formativa, apresenta enredos – como o de O patinho feio −

permeados por conflitos que possibilitam ao leitor colocar-se no lugar da(s) personagem (ns) e

refletir, a partir de seus próprios conhecimentos e convicções, sobre que alternativas são viáveis

para que a conjuntura narrada possa ser alterada, assim como fizeram Ana Alice e Kesley nesta

sessão. Percebe-se, pois, que, ao conhecer a opinião do outro, novas ideias podem ser

fomentadas, o que poderá desencadear outras formas de pensar, especialmente quando há

momento de discussão mediado pelo professor.

4.1.1.8 Obax

Obax, muito triste, correu pelas savanas e jurou nunca mais contar suas

aventuras. Mas aquilo tudo para si mesma não era bom. Então, ao tropeçar

numa pequena pedra em forma de elefante, Obax teve uma grande ideia.

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Partiria pelo mundo afora. Pois em algum lugar ela haveria de encontrar

novamente uma chuva de flores. Sabendo onde, como e quando, ela poderia

provar a todos que sua história era verdadeira (NEVES, 2010).

Mesmo triste diante das dúvidas e das risadas dos adultos e das crianças da aldeia, ao

escutarem as suas histórias, Obax decide não desistir de suas aventuras e, junto ao seu amigo

Nafisa, promete pôr fim às “chacotas” e concretizar o seu desejo de ser acreditada, o que a

princípio não acontece. É com o nascimento do baobá e com a posterior chuva de flores que

Obax ganha o seu espaço como contadora de histórias daquela comunidade e passa a ser ouvida

e respeitada.

Nesse conto, a discussão gravita em torno da importância de se permanecer fiel às

próprias convicções – independentemente do que os outros pensem ou falem – e preservar uma

autoestima positiva de si, como caminho para não se tornar vítima de bullying. Nesse sentido,

o diálogo sobre o respeito ao outro torna-se fundamental como fator de prevenção a essa prática

de violência.

Nessa análise, destacamos 5 episódios, que exemplificam as seguintes categorias:

estímulo à discussão, incentivo à reflexão (Unidade: Mediação Pedagógica) e relação texto-

vida e da reflexão ao julgamento (Unidade: Relação texto literário x bullying).

Como forma de estimular a discussão após a leitura do conto, buscamos saber as

percepções dos sujeitos sobre a narrativa.

Episódio 1

(86) PP: [...] O que vocês acharam dessa história?

[...].

(88) Vinícius: É na África ela.

(89) Priscila: Não, porque tem pessoas.

(90) PP: E na África não tem pessoas?

(91) Priscila: Não, tem animais.

(92) Keylla: Tem, sim.

[...]

(94) Priscila: Tem?

(95) ((as colegas afirmam com a cabeça)).

(96) PP: E os africanos nasceram onde?

(97) Priscila: Sei lá.

(98) Ângelo: Na África.

(99) Maria Thayná: A amiga da minha mãe mora lá.

[...]

(101) Vinícius: Lá tem o mato e a cidade.

(102) SNI: Os africanos não têm nada para comer.

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(103) PP: De fato, existem africanos que passam muita fome, mas não é

todo mundo, a África não se resume a isso. Como Vinícius falou, existe

mato, ou seja, as savanas com aldeias como na história e também cidades

onde muitas pessoas moram.

(104) Maria Thayná: A amiga da minha mãe ia morrendo mordida por

um crocodilo.

(105) Ester: Meu tio foi pra lá, chegou ontem. Ele ganhou uma bolsa de

estudo.

(106) PP: [...] então nós temos dois exemplos de que tem gente na África.

[...].

(107) Keylla: Professora, também tem turista para ver os animais.

Percebe-se que, a partir das inferências presentes na história, os sujeitos foram além do

narrado, recorrendo aos seus conhecimentos prévios e às experiências de vida sobre o

continente africano.

Foi a partir da passagem “quando o sol acorda no céu das savanas” (NEVES, 2010, p.

6) e, com o auxílio das ilustrações, que Vinícius afirmou que a história se passava na África

(turno 88). Priscila contradisse o colega, sustentando que não poderia ser na África porque no

conto havia “pessoas” (turno 89). Essa colocação de Priscila deixa evidente o seu

desconhecimento sobre aquele continente, o que nos colocou em uma posição semelhante à

encontrada por Campos (2016) em sua pesquisa, em que

[...] [a partir da palavra África, os sujeitos] se lembraram somente dos animais

[...]. Percebemos que o conhecimento prévio [...] sobre a África coincide com

representações estereotipadas. [...] a escola que silencia sobre a temática

corrobora com a perpetuação dessas representações. [Sendo necessário]

gradualmente, ir complexificando as noções sobre África [...] de modo a nos

afastarmos das noções essencialistas e homogeneizantes (CAMPOS, 2016,

p.107-108).

Campos (2016), nesse sentido, em decorrência de tais representações estereotipadas,

necessitou trabalhar a temática com os seus sujeitos para que pudesse dar continuidade à sua

intervenção. Na nossa pesquisa, entretanto, como se pode observar a partir da mediação (turno

90), os próprios sujeitos apresentaram respostas que refutavam, de modo contundente, a

colocação de Priscila (turno 89), fazendo com que a aluna demonstrasse dúvida quanto à sua

afirmação anterior (turno 94).

Com o objetivo de conduzirmos os sujeitos a construírem inferências a partir de seus

conhecimentos prévios, fizemos um outro questionamento (turno 96). Enquanto Priscila

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reafirmou a sua falta de conhecimento sobre a África (turno 97), Ângelo foi assertivo ao apontar

que são os africanos que vivem na África.

Maria Thayná (turnos 99 e 104), Ester (turno 105) e Keylla (turno 107), reforçando a

afirmação do colega, valeram-se de informações da realidade, favorecendo a compreensão dos

colegas, especialmente a de Priscila, quanto ao continente africano. Como nos esclarece

Vygotsky (2007),

[...] um aspecto essencial do aprendizado é o fato de ele criar a zona de

desenvolvimento proximal, ou seja, o aprendizado desperta vários processos

internos de desenvolvimento que são capazes de operar somente quando a

criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com

seus companheiros. Uma vez internalizados esses processos tornam-se parte

das aquisições do desenvolvimento independente da criança. (VYGOTSKY,

2007, p. 103).

É, portanto, pela interação com o outro e pela cooperação do outro que a criança se

desenvolve, alcançando, gradativamente, sua autonomia. Isso demonstra a sua posição ativa no

processo educativo, apropriando-se do conhecimento disponível no contexto sociocultural em

que vive, o que inclui o ambiente escolar.

Essa apropriação resulta da internalização, que se configura a partir de relações

interpessoais significativas e da interação com o mundo social e cultural, permitindo que cada

sujeito construa a sua própria trajetória. Desse modo, o indivíduo tem a possibilidade de

ressignificar o que apreende e de dar contribuições singulares para o processo constante de

recriação do pensamento ou mesmo de atitudes.

Pensando nesse processo de recriação do pensamento, fruto da interação com o outro, é

que, no intuito de conduzir uma discussão direcionada às situações presentes na história,

incentivamos os sujeitos a partir do seguinte questionamento:

Episódio 2

(207) PP: E o que vocês acham dessas pessoas que são alvo de zombaria e

não contam pra ninguém?

(208) SNI: Eu falava pra minha mãe.

(209) Carla: Eu chamava meu pai, porque minha mãe é muito calma.

(210) Priscila: E se meus pais não fizesse nada, eu tinha que fazer alguma

coisa.

(211) PP: E se os pais não resolvessem? Vocês contariam a quem?

(212) Priscila: Avançava pra cima da menina.

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(213) PP: E se a menina continuasse a bater em você, como é que você iria

resolver?

(214) Priscila: Batia de novo.

(215) PP: Continuaria revidando?

(216) Priscila: Sim.

(217) Maria Thayná: Professora, professora, se ele só ficasse rindo, eu

resolvia com palavras, mas se ele me batesse, e eu me machucasse,

quebrasse um braço, aí eu não ia aguentar não, eu ia denunciar mesmo.

(218) PP: Ia denunciar a quem?

(219) SNI: À polícia.

(220) PP: À polícia?

(221) Maria Thayná: Se me ameaçasse (...) eu não queria nem saber.

(222) PP: [...] como é que uma pessoa deve agir quando riem dela?

(223) Rian: Falar com alguém.

(224) Ângelo: Com alguém da escola ou com a diretora, mas eu sei que

ela não fez nada.

(225) PP: Você acha que a diretora não consegue resolver?

(226) Ângelo: Não.

(227) PP: Por quê?

(228) Ângelo: Não sei.

(229) PP: A quem você recorreria?

(230) Ângelo: Ao meu pai e a minha mãe.

[...]

Observa-se, nesse episódio, que alguns sujeitos recorreriam aos seus pais (turnos 208,

209, 210 e 230) caso fossem vítimas de zombaria, como era a personagem Obax. Ou seja, teriam

confiança para falar aos progenitores sobre a agressão sofrida. Essa atitude diverge da assumida

pelas vítimas típicas (OLWEUS, 2006), dando indícios de que os sujeitos assumiriam uma

postura ativa diante de situações de violência.

A partir dessa constatação, e tendo o conhecimento da inabilidade de muitos pais para

agir no caso de vitimização de seus filhos (BEANE, 2010), continuamos a incentivar os sujeitos

a aprofundarem suas percepções no processo de discussão (turno 211). Priscila foi a primeira a

se posicionar (turno 212) afirmando que “partiria para cima”. Mais uma vez, em busca de levá-

la a refletir sobre sua afirmação, formulamos outros dois questionamentos (turnos 213 e 215).

As respostas de Priscila (turnos 214 e 216) podem ser consideradas como reflexo da

agressividade presente não apenas nas relações entre os alunos da turma pesquisada mas

também nas relações dentro da própria instituição de ensino, como evidenciado no período de

observação.

Maria Thayná, por sua vez, direcionou sua resposta por dois caminhos (turno 217): se a

agressão fosse verbal, tentaria resolver a situação “com palavras”; se fosse física, denunciaria.

Quando perguntamos para quem seria feita a denúncia (turno 219), a aluna afirmou que se

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dirigiria à polícia. Nota-se que, até esse momento da discussão, não houve nenhuma menção de

denunciar a agressão a um professor ou a outro integrante da escola. Somente após uma nova

questão (turno 222) é que Ângelo mencionou que procuraria “alguém da escola ou a diretora”;

entretanto, nessa mesma resposta, afirmou que ela (a diretora) não faria nada (turno 224).

Percebe-se, no discurso do aluno, uma descrença no poder de decisão da escola, mais

especificamente da parte da diretora, que não agiria em prol do vítima nem buscaria solucionar

a situação.

Embasando-nos na resposta de Ângelo, elaboramos mais duas perguntas, no intuito de

levá-lo a justificar o seu posicionamento (turnos 225 e 227). Todavia, apesar de aparentar ter

convicção sobre o que falava (turno 228), Ângelo disse não saber justificar o porquê (turno 230)

de sua afirmação, e ainda acrescentou que também contaria para os seus pais. Ou seja, a despeito

de entender que poderia recorrer a alguém da escola, caso fosse alvo de zombaria, ele não

tomaria tal atitude.

Tanto a ideia de Maria Thayná em comunicar à polícia quanto a preferência de Ângelo

em noticiar o fato aos pais deixam antever que a forma inadequada – mencionada pela própria

diretora em sua entrevista –, com que muitas situações de bullying entre os alunos eram

conduzidas na escola, era percebida pelos discentes. Desse modo, eles acabam sentindo-se mais

amparados por pessoas que estão fora dos muros da escola: os próprios pais, pela relação de

confiança consolidada; ou a polícia, instituição imparcial que, em tese, reestabeleceria a ordem

e auxiliaria os agredidos.

Outro episódio da história Obax, em que buscamos explorar a relação texto-vida, é bem

revelador do fato de que nem todos os sujeitos reagiriam ao serem vítimas.

Episódio 3

(170) PP: E alguém, costumeiramente, já riu de vocês por alguma coisa

que vocês diziam e que ele não acreditava?

(171) Carla: Já, já.

[...]

(173) PP: E o que você fez?

(174) Carla: Eu fiquei calada.

(175) PP: E você se incomodou com a risada?

(176) Carla: Fiquei um pouquinho triste.

(177) PP: E mesmo assim não fez nada?

(178) Carla: Não. Passou.

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Percebemos, nesse episódio, que, ao retomar a experiência de Obax, em que as crianças

caçoavam de suas histórias (“ – Nossa, e você se molhou? – caçoaram as crianças. [...] – E

ele veio com você? – debocharam as crianças (NEVES, 2010, p. 13-24, grifos nossos)), dando

indícios de que era uma prática comum zombarem das histórias da personagem, buscamos

conhecer as vivências dos sujeitos quanto a uma possível vitimização, e também buscamos

saber de que maneira eles lidaram com a situação (turno 170). Carla afirmou que já havia sido

submetida a tal situação (turno 171). Quando questionada sobre como tinha agido diante da

agressão (turno 173), disse ter ficado calada, apesar de ter-se sentido triste com o tratamento

(turnos 174 e 176).

Considerando as respostas de Carla, fizemos um novo questionamento; ela, de modo

mais categórico, reafirmou que havia permanecido passiva frente à agressão. Esse

comportamento da aluna é comum àqueles que são vítimas de bullying; a diferença é que,

normalmente, apesar de tentar ignorar as investidas do(s) bully(ies) na intenção de superar a

tristeza que as agressões lhes causam, as vítimas não conseguem “deixar passar”, como Carla

afirmou ter feito, a não ser que sejam ajudadas por outras pessoas (OLWEUS, 2006;

DEBARBIEUX, 2002). Isso nos leva a inferir que, possivelmente, o caso relatado pela aluna

não se tratava de bullying.

Como forma de ampliar o horizonte da discussão quanto à relação texto-vida, fizemos

novo questionamento (turno 158), cujo objetivo era verificar se os sujeitos, além de se

reconhecerem ou, hipoteticamente, se colocarem na posição de vítimas, também se enxergavam

no papel de agressores de bullying, o que os induziria a refletir sobre suas próprias ações perante

os colegas.

Episódio 4

(158) PP: E vocês, já chegaram a rir do colega, de algo que ele contou,

como fizeram as outras crianças com Obax na história? Ou por ele ficar

mais isolado na sala ou no recreio?

[...]

(163) Carla: Não.

(164) Vinícius: Não, [...] senão ela tava fazendo bullying.

(165) PP: Por que ela estaria fazendo bullying?

(166) Vinícius: Porque ela taria zombando só porque ele era quieto. (167) PP: E alguém já fez isso com algum colega? (168) ASRJ: Não.

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Como relatamos, apesar de não termos observado práticas de bullying entre os discentes,

havia relações de conflito que mantinham os sujeitos agressivos uns com os outros,

cotidianamente. Contudo, quando questionados se já tinham agido como as crianças do conto e

escarnecido algum colega em razão de algo que ele havia falado ou pelo fato de ser uma criança

mais isolada, assim como aconteceu com a personagem Obax, os sujeitos negaram.

Carla, que se havia declarado como vítima, não se encarava como agressora (turno 163).

Vinícius, além de reforçar a negativa de Carla à questão, ressaltou que se a resposta da colega

tivesse sido afirmativa, ela estaria praticando bullying (turno 164), demonstrando que entendia

que tal atitude não era correta. Apoiando-nos nessa resposta, solicitamos que Vinícius

esclarecesse sua afirmação (turno 165). Ele respondeu que o fato de zombar de quem estava

quieto seria bullying. Mas não deixou evidente se tinha clareza quanto à repetitividade da

agressão, que deveria ocorrer para que se pudesse configurar a violência entre pares (turno 166).

Mesmo que essa questão já tivesse sido discutida em sessões anteriores e registrada em

atividade realizada após a discussão.

De todo modo, ao responderem a uma nova questão (turno 167), os sujeitos reforçaram

o posicionamento de que não agiriam de tal maneira, ou seja, não zombariam dos colegas. E

ainda que essa afirmação esteja somente no plano do discurso oral, podemos inferir que eles

compreendem as regras morais que permeiam as relações sociais, tendo, portanto, o

entendimento do certo e do errado (PIAGET, 1994). Contudo, merece registro o fato de que ter

essa compreensão não significa necessariamente que ela seja aplicada no dia a dia; isso porque

“as relações do pensamento com a ação estão longe de ser tão simples quanto se crê [...]”

(PIAGET, 1994, p. 140). Tanto que, nesta mesma sessão, a despeito daqueles sujeitos não se

reconhecerem como agressores, observamos que o discurso de Ester era permeado pela

violência. O referido discurso gerou, inclusive, opiniões conflituosas entre os sujeitos, o que

favoreceu o caminho da reflexão ao julgamento.

Episódio 5

(178) PP: E com você, como é que foi, Ester? Como você se sentiu?

(179) Ester: Foi minha madrasta. Eu contei uma coisa e ela ficou rindo,

dizendo que tinha sido mentira, aí eu falei: “Você sabe? Você tava

comigo?” Aí ela falou assim: “Você me respeite!” Aí eu disse: “Respeito

não, você não é a minha mãe”. Ela pegou ((+)) pegou o cabo de vassoura

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para bater em mim, aí eu peguei e falei: “Se você bater em mim, você vai

ver”. Ela bateu. Quando ela bateu em mim, eu joguei o cabo de vassoura

nela.

(180) PP: E como é que se resolveu essa situação?

(181) Ester: Eu bati nela.

(182) PP: [...] você revidou a agressão naquele momento, mas depois o que

aconteceu, como a situação foi resolvida?

(183) Ester: Depois meu pai arregaçou com ela e ela foi simbora.

[...]

(189) PP: [...] vocês acham que agredir uma pessoa que lhe agrediu vai

resolver a situação?

(190) Ester: Vai.

(191) PP: Quem acha que sim? Ítalo Gabriel acha e Ester acha. Quem

acha que não? ((alguns alunos levantam o braço)). Então, vamos pensar.

Se uma pessoa ri de vocês constantemente, zomba de tudo o que você diz,

como acontece com Obax, de que forma vocês que acham que resolveriam

uma situação assim?

(192) Priscila: Conversando.

(193) Ester: Professora, conversar não tem nem como porque ninguém

escuta, aí eu vou logo na porrada.

[...]

(195) Vinícius: Chamando outra pessoa.

(196) Maria Thayná: Nem ligava, deixava passar ou resolvia com

palavras.

(197) Priscila: Mas se fosse ficar batendo ((+)) viesse para cima de mim,

eu não ia deixar não.

(198) PP: Então vocês acham que conversando é uma opção para tentar

resolver a situação?

(199) SNI: Não.

[...]

(201) Vinícius: Depende da pessoa. Se ela quiser conversar (...).

(202) Ângelo: Muito não, por causa que tem gente que não vai querer

contar.

(203) PP: Não vai querer contar que está sendo alvo de zombaria?

(204) Ângelo: É.

(205) PP: E, nesse caso, como é que você resolveria?

(206) Ângelo: Não sei … [...].

Iniciamos esse episódio com uma pergunta direcionada a Ester (turno 178), que havia

afirmado ter sido alvo de risadas, assim como a personagem Obax. Ela, então, relatou uma

desavença com a madrasta, um acontecimento que resultou em agressões físicas, tanto da parte

dela quanto da parte da madrasta e até mesmo da parte de seu pai (turnos 179, 181 e 183).

Diante disso, formulamos uma nova pergunta com vistas a suscitar a reflexão sobre as

colocações de Ester (turno 189). Foi a própria discente a primeira a responder, reforçando sua

afirmação de que a melhor alternativa para a agressão seria revidar, igualmente, com agressão

(turno 190).

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No intuito de ampliar o debate, envolvendo outros sujeitos, dirigimos a indagação à

turma (turno 191). Priscila, então, apresentou a primeira resposta conflitante com a de Ester

(turno 192), que, prontamente, rebateu a colega, exaltando, novamente, a violência como

solução (turno 193). Após o argumento apresentado por Ester, Priscila fez um adendo à sua

resposta anterior condicionando “a conversa” aos casos em que não houvesse agressão física

(turno 197).

Antes do incremento na resposta de Priscila, Vinícius adotou um discurso direcionado

à procura por auxílio, enquanto Maria Thayná explicitou três caminhos que poderia vir a seguir

(turnos 195 e 196, respectivamente), possibilidades estas que foram de encontro às opiniões

antes emitidas por Ester.

Tendo em vista a solução apontada por Maria Thayná (“a conversa”) como uma das

alternativas de desfecho para um conflito, indagamos os sujeitos nesse sentido (turno 198). Os

discentes, entretanto, não foram unânimes (turnos 199, 201 e 202). Ângelo (turno 204) ressaltou

uma característica comum à vítima típica: em sua maioria, não pede ajuda no intuito de superar

a violência constantemente sofrida (OLWEUS, 2006). Todavia, não soube precisar como

poderia resolver a situação, caso o pedido de auxílio externo não fosse solicitado.

Como ficou evidente, apesar do discurso pró-violência sustentado por Ester, outras

opiniões em favor da não violência emergiram a partir da discussão mediada. Nesse sentido,

torna-se muito claro para nós o quanto o momento de pós-leitura é importante por permitir o

acolhimento das vozes das crianças, que, costumeiramente, são pouco ouvidas ou mesmo

silenciadas no ambiente escolar. Nessa sessão – e a cada sessão –, os sujeitos mostraram-se

mais confiantes em expressar suas opiniões e seus sentimentos, construindo, assim, relações

mais precisas entre o mundo ficcional e o mundo real.

Finalizada a intervenção, e tendo a ciência de que o alcance do trabalho com a obra

literária é por demais subjetivo, apresentamos, a seguir, os dados das entrevistas finais, a partir

dos quais tentaremos entender de que maneira a nossa intervenção foi encarada pelos sujeitos

e quais os frutos gerados por todo o processo no que concerne ao contato sistematizado com a

leitura de literatura e a reflexão sobre o bullying.

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4.1.2 Entrevistas finais

Finalizadas as sessões de leitura, iniciamos as entrevistas finais com os sujeitos com a

finalidade de nos aproximarmos das compreensões construídas sobre a literatura e o bullying a

partir de todo o processo da pesquisa. Partindo desse instrumento, buscamos alcançar o nosso

último objetivo específico: identificar, a partir da análise dos dados, que conhecimentos sobre

o bullying foram construídos pelos estudantes em decorrência da leitura de textos literários.

As perguntas semiestruturadas foram elaboradas com a finalidade de entendermos de

que modo a prática de leitura foi recebida pelos alunos; que momento da atividade foi o mais

apreciado por cada um; quais as suas opiniões com relação a etapa de pós-leitura e quais foram

os sentimentos suscitados durante a atividade. Além disso, também almejamos depreender as

percepções desenvolvidas sobre o bullying; que relações foram construídas entre os contos lidos

e essa prática de violência e de que modo o conhecimento sobre o bullying foi encarado pelos

sujeitos.

Conforme mencionado no capítulo metodológico, elaboramos categorias a partir das

duas unidades literatura e bullying, de modo a organizar a análise dos dados.

Antes de iniciarmos a análise das categorias, apresentamos o quadro abaixo com o

panorama geral construído a partir das respostas dos sujeitos.

Quadro 9 – Panorama das entrevistas finais com os sujeitos

Pontos abordados Respostas

1. Apreço pelas sessões de leitura de literatura. Todos os sujeitos (100%) gostaram da prática de leitura de

literatura.

18 sujeitos (90%) souberam apontar e justificar, dentre as

histórias lidas, qual a sua história preferida.

2 sujeitos (10%) afirmaram ter gostado de todas as

histórias, não conseguindo especificar/justificar a escolha

de uma apenas.

2. Momento da atividade de que mais gostou e de

que menos gostou

7 sujeitos (35%) destacaram o momento da leitura como

favorito.

5 sujeitos apontaram o pré-ensino de vocabulário; 3 (15%)

mencionaram o momento da discussão e 1 sujeito (5%)

pontuou a sessão em que se projetou a história no

Datashow como predileta.

4 sujeitos (20%) não souberam especificar.

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14 sujeitos (70%) afirmaram ter gostado de toda a

atividade e 6 sujeitos (30%) pontuaram o que não

gostaram.

3. Sentimento pessoal durante as sessões 12 sujeitos (60%) disseram que se sentiram bem nas

sessões de literatura.

5 sujeitos (25%) afirmaram que se sentiram “normal”.

2 sujeitos (10%) não souberam responder.

1 sujeito (5%) afirmou que se sentia “confortável” nas

sessões de leitura.

4. Desejo pela realização de outras sessões de

literatura

20 sujeitos (100%) afirmaram que gostariam de ter mais

sessões de literatura.

5. Participação nas sessões de leitura: emitindo

opiniões sobre as histórias.

14 sujeitos (70%) afirmaram que gostaram da

possibilidade de expressar seus pontos de vista. Contudo,

não souberam justificar suas respostas.

6 sujeitos (30%) afirmaram e justificaram o porquê de

terem gostado de expressar suas opiniões.

6. Participação nas sessões de leitura: ouvindo as

opiniões dos colegas sobre as histórias

12 sujeitos (60%), apesar de crerem na importância de

ouvir o outro, não conseguiram justificar o porquê.

8 sujeitos (40%) souberam justificar suas afirmações.

7. Autoavaliação quanto à participação na

atividade.

18 sujeitos (90%) avaliaram e justificaram suas

participações nas sessões de leitura.

2 sujeitos (10%) não souberam se autoavaliar.

8. Aprendizado sobre o bullying 19 sujeitos (95%) afirmaram ter aprendido sobre o

bullying a partir das sessões de leitura. Dentre esses:

12 (60%) apontaram alguns dos conhecimentos

adquiridos.

7 (35%) não souberam esclarecer o que aprenderam.

1 sujeito (5%) afirmou não ter aprendido nada sobre o

bullying.

9. Benefício de se aprender sobre o bullying

20 sujeitos (100%) afirmaram que conhecer sobre o

bullying ajudava na vida deles. Dentre esses:

18 (90%) apontaram como esse conhecimento iria ajudá-

los.

2 (10%), apesar de afirmarem que ajudaria, não souberam

explicar como.

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10. Relação: contos literários lidos x bullying 16 sujeitos (80%) estabeleceram relação entre as histórias

e o bullying.

4 sujeitos (20%) não responderam à questão.

11. Relação entre a solução das situações de

violência na ficção e a realidade

15 sujeitos (75%) afirmaram ser possível transpor as

soluções da violência nos contos para a vida real.

4 sujeitos (20%) não responderam à questão.

1 sujeito (5%) afirmou que a ajuda recebida pela

personagem não poderia ser aplicada na vida real.

12. Posicionamento assumido frente ao agressor e

à vítima de bullying

20 sujeitos (100%) souberam posicionar-se diante da

prática de bullying.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

Com base nos dados coletados, contemplamos nossa primeira categoria de análise:

avaliação das sessões de leitura. As respostas revelaram que todos os sujeitos (100%)

apreciaram as sessões de leitura. Dentre os 20 sujeitos, 18 (90%) souberam apontar qual, dentre

as obras lidas, foi a sua preferida e justificar o porquê da escolha, como exemplificam os trechos

transcritos abaixo:

(3) PP: Você gostou das aulas de literatura?

(4) Rian: Gostei.

(5) PP: De que história você mais gostou?

(6) Rian: Da gata borralheira.

(7) PP: Por quê?

(8) Rian: Porque é boa.

(9) PP: [...] e qual parte da história de que você mais gostou?

(10) Rian: A dos pássaros.

(11) PP: O que é que eles faziam mesmo?

(12) Rian: Eles ajudavam a gata borralheira.

(3) PP: Você gostou das aulas de literatura?

(4) Lívia: Sim.

(5) PP: De que história você mais gostou?

(6) Lívia: Raul da ferrugem azul.

(7) PP: Por quê?

(8) Lívia: Porque eu achei muito legal e, no começo, ele não conseguia

ajudar os outros, mas, no final, ele conseguiu ajudar. Ele criou coragem

para ajudar e não ficar só olhando.

(3) PP: Você gostou das aulas de literatura?

(4) Kesley: Sim.

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(5) PP: De que história você mais gostou?

(6) Kesley: Do Patinho feio.

(7) PP: Por quê?

(8) Kesley: Por causa que ((+)) é uma história que ((+)) gente que fica

fazendo bullying pode aprender mais. Para não falar mais que a pessoa

((+)) para não ficar mais apelidando a pessoa só porque ela é diferente.

Por causa que é muito feio [...], deixa o amigo chateado, triste.

Percebemos que os sujeitos de fato se envolveram na leitura das histórias, sabendo

apontar os acontecimentos das obras de que mais gostaram. O conto A Gata Borralheira

(GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a) foi o mais mencionado (6 sujeitos – 30%), seguido

pelo O Patinho Feio (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002), apontado por 5 sujeitos

(25%) e Raul da ferrugem azul (MACHADO; FARIA, 2012), citado por 4 sujeitos (20%).

E isso fica bem patente quando registramos as razões mencionadas pelos sujeitos para

explicar as causas de tal predileção: Lívia, por exemplo, apontou a mudança positiva de Raul

no momento em que este decide ajudar os outros em vez de se manter inerte frente à violência

observada. A conduta de ajudar o outro também ganhou destaque na resposta de Rian, que

ressaltou a ação dos passarinhos que se dispuseram a auxiliar à gata borralheira. Também

Kesley – que escolheu a história O patinho feio –, embora se distanciando um pouco do padrão

das respostas anunciadas, destacou sua preferência por esse conto em virtude dos ensinamentos

aí presentes em relação à prática do bullying. Diante de tal revelação, podemos inferir que essa

ideia da discente foi construída no momento da discussão, em que se ponderou sobre as

agressões sofridas pela personagem.

Como ficou evidente, ao esclarecer a preferência por um dos contos, a maioria dos

sujeitos apontou personagens e eventos da narrativa em que o ato de “ajudar o outro” estava

presente. Isso nos indicia que houve reflexão sobre o lido e o discutido, tendo em vista que os

discentes mostraram-se sensíveis às situações vivenciadas pelos heróis/pelas heroínas a ponto

de darem destaque àqueles que os/as ajudaram a superar a submissão e a inércia na presença da

violência. Esse olhar realiza-se “por meio da identificação, quando [um sujeito coloca-se] no

lugar da experiência do outro, sobretudo por meio da leitura dessas histórias ‘vividas’ [...]”

(PETIT, 2008, p. 84).

Outro aspecto relacionado à Avaliação das sessões de leitura diz respeito ao momento

da atividade de que os sujeitos mais gostaram.

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Nem todos os sujeitos, entretanto, entenderam a pergunta, sendo necessário que as

etapas – pré-leitura (pré-ensino), leitura e pós-leitura (discussão) – fossem esclarecidas de

antemão. A maioria (7 sujeitos – 35%) destacou o momento da leitura como sendo o favorito,

seguido pelo momento do pré-ensino de vocabulário, citado por 5 sujeitos (25%), e pelo

momento da discussão, mencionado por 3 sujeitos (15%). A sessão de leitura em que a história

foi projetada pelo Datashow foi apontada por 1 sujeito (5%), enquanto que 4 sujeitos (20%) não

souberam especificar qual a etapa preferida da atividade.

Vejamos, a seguir, algumas dessas respostas:

(9) PP: Me diga uma coisa: de que parte das aulas você mais gostou?

[...]

(12) Carla: A que a gente discutia.

(13) PP: Por quê?

(14) Carla: Porque você explicava melhor.

(15) PP: Explicava melhor o quê?

(16) Carla: As partes das história e a gente podia falar.

(9) PP: E de que parte das aulas você mais gostou?

(10) Maria Thayná: Aquela parte que você dava a folha pra gente ler.

(11) PP: A parte dos significados na pré-leitura. Por que que você gostou

mais dessa parte?

(12) Maria Thayná: Porque a gente aprende mais lendo o significado das

coisas. (13) PP: E ajudava no momento da leitura aprender os significados de

algumas palavras antes? (14) Maria Thayná: Sim.

(9) PP: Qual parte das aulas de que você mais gostou? [...].

(10) Vinícius: A de leitura.

(11) PP: Por quê?

(12) Vinícius: Por causa que a gente pode aprender bastante coisa sobre

a leitura. A gente lendo, a gente sabe.

É interessante observar a relação que os sujeitos construíram entre a prática de leitura

de literatura e o ato de “aprender”. Isso nos indica que o ato de ler histórias literárias foi

analisado positivamente pelos sujeitos, que reconheceram, em seus discursos, a literatura como

um espaço de aprendizagem, em que o prazer e o gosto pela leitura podem ser encorajados a

partir da inserção dessa atividade cotidianamente na sala de aula.

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O pré-ensino de vocabulário, a segunda preferência mais citada, revelou o interesse dos

sujeitos em aprender novas palavras. Nesse sentido, Maria Thayná ainda acrescentou que saber

os significados das palavras, antes da leitura, auxiliava na compreensão do texto.

Avaliando o fato de o pré-ensino ter ocupado uma posição de destaque na escolha dos

sujeitos, admitimos que tal preferência, muito provavelmente, deva estar relacionada à crença,

deles próprios, de que se deve adquirir conhecimentos pragmáticos em todas as atividades

escolares. Essa visão, obviamente, não é infundada; ao contrário, está enraizada na própria

dinâmica da escola (LAJOLO, 2002; LAJOLO; ZILBERMAN, 1982) e na forma de o professor

trabalhar a literatura na sala de aula, como observado nesta pesquisa. Tal perspectiva distancia-

se da aprendizagem subjetiva proporcionada pelas discussões de pós-leitura; porém, ainda

assim, o momento da discussão (pós-leitura) foi o terceiro mais citado pelos sujeitos. Carla, por

exemplo, destacou-o como sendo a melhor parte da atividade em razão dos esclarecimentos

sobre a própria história e por ser essa uma etapa em que eles, os discentes, tinham vez e voz.

Quando questionados sobre o que não gostaram nas aulas, a maioria (14 sujeitos)

afirmou ter gostado de toda a atividade (70%). Contudo, 6 discentes (30%) apontaram fatores

de desapreço. Dentre esses fatores, mencionaram o barulho feito por alguns colegas durante as

aulas; as interrupções indevidas no momento da discussão; e ainda as perguntas formuladas na

pós-leitura.

O que pretendíamos averiguar com a formulação da pergunta em tela era se alguma

estratégia metodológica utilizada nas sessões havia sido considerada desinteressante pelos

sujeitos. Entretanto, à exceção de Vinícius – que apontou o seu desapreço por uma etapa

específica da atividade: a discussão na pós-leitura –, observamos que todos os outros alunos

registraram questões relacionadas ao comportamento dos próprios sujeitos. Ou seja, o fato de

os “combinados”, previamente estabelecidos, não terem sido integralmente seguidos causou

desconforto, não sendo esse, porém, um fator relacionado ao desenvolvimento da atividade.

Isso nos leva a acreditar que o planejamento das sessões, de modo geral, foi satisfatório.

Assim, tendo em vista os discursos apresentados, seja em relação às preferências

referentes às narrativas ou às etapas da atividade, podemos afirmar que as sessões de leitura

foram recebidas de forma positiva pelos sujeitos, o que também pôde ser observado na segunda

categoria analisada: sentimentos despertados pelas leituras.

Os sujeitos foram sucintos ao responderem à questão sobre como se sentiram nas aulas

de literatura: 12 (60%) utilizaram a palavra “bem” para expressar a maneira assertiva como

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encararam a atividade; 5 (25%) fizeram uso do termo “normal”; 2 (10%) não souberam

responder e 1 sujeito (5%) afirmou que ter se sentido “confortável” nas aulas. Dentre essas

respostas, chamou-nos a atenção a “sensação de conforto” expressada por Kesley, que justificou

sua afirmação do seguinte modo:

(17) PP: Como você se sentiu nas aulas?

(18) Kesley: Confortável.

(19) PP: Por que confortável?

(20) Kesley: Porque eu me sinto como se tivesse em casa.

(21) PP: Em casa?

(22) Kesley: É, porque eu gosto de ler história em casa.

Percebemos que Kesley relacionou a prática de leitura que tinha em casa à atividade

com a literatura que passou a existir na sala de aula durante a pesquisa, demonstrando

familiaridade e apreço pelo ato de ler histórias. Tal contentamento em ler, contudo, só foi

apresentado, de forma mais contundente, pelos demais sujeitos quando indagados se gostariam

de ter mais aulas com textos literários. Isso porque a totalidade deles (100%) afirmou que sim.

Além disso, justificou o porquê do desejo de continuar a ler literatura, como se pode constatar

pelos dados apresentados no quadro abaixo.

Quadro 10 – Respostas à entrevista final: desejo pela realização de outras sessões de literatura

Questão: Você gostaria de ter mais aulas desse tipo? [...] Por quê?

Carla: [Sim,] porque você conta a história... é, você primeiro mostra o significado das palavras, depois conta a

história e depois você... conversa.

Ângelo: [Sim,] porque é legal ler um bocado de histórias.

Lívia: [Sim,] porque eu achei muito legal e eu aprendi muita coisa. De ajudar as pessoas, de não fazer bullying,

de respeitar o próximo, ajudar o próximo.

Kesley: [Sim,] porque você traz história, conversa, a gente faz atividade, é legal também.

Ester: [Sim,] porque é muito divertido, né? A gente aprende mais sobre o mundo das história, a gente é ((+))

ensina sobre o bullying para a gente ter como se defender e saber como é o bullying e pra gente evoluir também a

leitura, porque a gente lê e vai evoluindo.

Edu: [Sim,] porque eu gosto [da leitura].

Vinícius: [Sim,] para eu saber mais de coisas ((+)) como aquelas palavras estranhas que a gente viu na aula.

Pâmela: [Sim,] por causa que é legal e a gente se ((+)) se diverte muito e se desenvolve também a leitura.

Caroline: [Sim,] porque eu nunca tive, aí é uma coisa nova e eu gostei.

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Ítalo Gabriel: [Sim,] porque é muito legal o cara ficar lendo as história.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

A motivação quanto ao desejo de ter mais aulas de literatura foi diversa. O gosto pela

leitura foi o mais evidenciado, conforme podemos observar nos discursos de 7 sujeitos que

ressaltaram a possibilidade de aprender com/sobre as leituras e as atividades realizadas. Dentre

esses, 2 apontaram, adicionalmente, o aprendizado que foi construído sobre o bullying; outros

2 sujeitos demonstraram apreço por todo o processo desenvolvido nas aulas, enquanto 1 sujeito

relatou que, até então, na sua vida escolar, não havia tido a possibilidade de ter aulas de

literatura, declarando ter gostado da atividade e almejar a sua continuidade.

Não parece haver dúvidas, em se tomando as colocações dos sujeitos para ratificar,

quanto ao fato de que a prática de leitura de literatura em sala de aula é mesmo capaz de

despertar o gosto por essa atividade, quando se oportuniza o contato das crianças com os textos

mediante uma atividade planejada e com objetivos bem delineados. Isso evidencia, mais uma

vez, o papel fundamental do professor que, como mediador, deve inserir a literatura no

cotidiano escolar, rompendo, desse modo, com a ideia de que essa é uma função restrita ao “dia

da biblioteca”, como constatado na pesquisa.

Acreditamos, inclusive, que essa falta de contato mais próximo com a literatura e a

ausência de um planejamento pode ter influenciado diretamente na dificuldade de os sujeitos

se expressarem quanto às possibilidades de posicionar-se e ouvir o outro – nossa terceira

categoria.

Nas respostas que compõem essa categoria notamos que poucos sujeitos conseguiram,

de fato, justificar seus pareceres quanto à possibilidade de emitir ou de ouvir a opinião dos

colegas sobre as histórias.

Deter-nos-emos, inicialmente, na possibilidade de verbalizar o ponto de vista sobre a

leitura: 13 sujeitos (65%), apesar de responderem positivamente à questão “o que você acha de

dar sua opinião sobre a leitura feita?”, não souberam justificar o porquê de terem gostado de

poder falar o que pensavam. Apenas 7 sujeitos (35%) explicaram suas respostas.

Quadro 11 – Respostas à entrevista final: emitindo opiniões sobre as histórias.

Questão: O que você achou de dar a sua opinião sobre a leitura que é feita?

Ângelo: Bom. [...] pra gente poder sonhar com as aventuras. Aprender várias coisas.

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Lívia: Eu achei legal, eu achei bom. Eu achei que todos têm que ajudar o próximo e essas leitura ajudou muito a

várias pessoas. [...] de as pessoas aprenderem o que é bullying e pararem de mexer com os outro. De ajudar o

próximo. Não ficar xingando outras pessoas.

Ester: É muito bom. Eu acho normal dar uma opinião. Por causa ((+)) se uma você não gosta, outra pessoa pode

gostar, então você tem que falar o que você sente sobre a história.

Ana Alice: Eu achei legal, para todo mundo se sentir livre e falar o que [...] sente.

Lucas: Eu achei legal. [...] porque a gente dá uma opinião, ai se tiver errada a gente tenta outra resposta e vai

tentando até acertar.

Pâmela: Eu acho muito legal. [...] por causa que a gente pode falar da história e algumas coisa que a gente ficou

em dúvida.

Caroline: Achei bom. [...] porque as outras pessoas vai poder saber, né? [o que eu penso].

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

Observa-se que as respostas dos sujeitos gravitam em torno dos seguintes aspectos: a

importância de expor o seu ponto de vista sobre a história, mesmo havendo divergências de

opinião e o momento da discussão como um espaço aberto ao esclarecimento de dúvidas.

Dois sujeitos, todavia, a despeito de terem justificado seus posicionamentos,

direcionaram suas respostas em um sentido diverso daquele requerido na pergunta. O primeiro

mencionou a possibilidade de sonhar e aprender. O segundo relacionou a emissão de opinião

ao aprendizado sobre o bullying.

Diante de tais respostas, cremos que Ângelo (o primeiro sujeito), na verdade, baseou a

sua explicação no modo como ele enxergava o ato de ler histórias, enquanto Lívia (o segundo

sujeito) subsidiou o seu argumento nos conhecimentos gerados a partir das discussões entre os

colegas. Isto é, em ambas as justificativas, os discentes demonstraram não ter entendido, com

a devida clareza, a questão; mesmo assim, apresentaram respostas que apontavam para a

importância da atividade realizada.

Quanto à possibilidade de ouvir a opinião dos colegas, 8 sujeitos (40%) justificaram

suas respostas, enquanto que 12 (60%), apesar de igualmente receptivos quanto à importância

de ouvir o outro, não souberam fundamentar seus pareceres.

Vejamos no quadro as justificativas que julgamos mais interessantes:

Quadro 12 – Respostas à entrevista final: ouvindo as opiniões dos colegas sobre as histórias

Questão: O que você achou de ouvir a opinião dos seus colegas?

Lívia: Eu achei bem interessante [...]. [...] porque eles falavam coisas ... alguns falavam coisas que ... tipo: não ia

mais fazer isso, que falaram já o que aconteceram com eles.

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Kesley: Importante. [...] por causa que eles fala várias coisas que é verdade, que você pode aprender com o que

eles falavam.

Ester: Eu achei bom, mas tem umas que você não gosta, nem por isso você vai dizer: “Isso não é assim, isso é

assim, assim, assado”. Se ele acha que é assim, ele gostou assim ou não gostou. Ele pensou do jeito dele, né?

Caroline: Bom também, porque aí eu vou tá sabendo o que elas acham.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

Em relação a essa questão, verificamos que as respostas foram bastante diversificadas.

Caroline e Ester, por exemplo, mencionaram a importância de conhecer a opinião do outro.

Ester, em particular, ressaltou também o respeito que se deve demonstrar pelo ponto de vista

de cada sujeito. Kesley enalteceu as aprendizagens que foram possíveis a partir dos

pronunciamentos dos colegas. Nesse mesmo sentido, Lívia afirmou que todos os pareceres eram

interessantes por estarem imersos nas experiências pessoais de cada um.

Outro ponto que compôs os dados de análise da categoria possibilidades de posicionar-

se e ouvir o outro foi a questão relativa à autoavaliação dos sujeitos acerca de suas participações.

A essa pergunta, apenas 2 sujeitos (10%) não souberam responder. Dentre os demais (18

sujeitos – 90%), as justificativas pautaram-se principalmente em quatro eixos: a vergonha de

participar da atividade; o fato de não saber a resposta para a pergunta, o medo de ser alvo de

zombaria por parte dos colegas e a dificuldade de expressão. Seguem abaixo alguns exemplos:

(23) PP: No momento da discussão, você não falou muito. Por quê?

(24) Carla: Porque eu preferi escutar do que falar, né? Porque alguns vão

ficar zombando da pessoa, né? A pessoa vai fazer uma pergunta...

(inaudível)

(21) PP: E no momento das discussões, você falou pouco, [...] Por quê?

(22) Caroline: Porque eu tinha medo de falar e falar alguma coisa errada

e as pessoas rirem de mim.

(23) PP: Por que você tinha esse medo?

(24) Caroline: Porque eu tenho uma amiga também que falava e às vezes

num era certo aí os colegas ficava rindo dela. (25) PP: [...] da turma?

(26) Caroline: Sim.

(23) PP: No momento das discussões, em alguns dias, você falou mais, em

outros dias menos, por que você acha que agiu assim?

(24) Lívia: Nas que eu não sabia, eu fiquei mais quieta, para entender

mais e as que eu sabia, eu falava, né?

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(21) PP: E no momento das discussões, você não falou muito. Por quê?

[...]

(22) Lucas: É ((+)) porque eu não sabia muito as resposta e muitas ideias.

(23) PP: Você não tinha muitas ideias para falar?

(24) Lucas: É.

(31) PP: No momento das discussões, você em alguns dias, falou mais; em

outros dias, praticamente não falou. Por quê? [...]

(32) Yasmin: É ((+)) por causa que alguns dias eu não quis falar e teve

outros dias que eu não sabia o que era.

(19) PP: E no momento das discussões, você falou pouco. Por quê?

(20) Pâmela: Por causa que eu tava sem um pouco de palavra, só.

(21) PP: Tava sem ter o que dizer?

(22) Pâmela: É.

(23) PP: No momento das discussões, [...] você quase não falou. Por quê?

(24) Kesley: Ah, porque eu não gosto de falar muito, muito. Eu sou

daquelas [...] que ficam um pouco calada, não gosto de falar muito.

(27) PP: No momento das discussões, você praticamente não falou. Por

quê? (28) Edu: Vergonha.

(25) PP: E no momento das discussões, você, em alguns dias, falou mais;

em outros dias, menos. Por quê?

(26) Ester: Teve uns dia que eu tava com dificuldade em casa [...] outros

dia não tava com problema em casa, então eu ficava feliz, então pude

conversar.

(27) PP: Então, era mais o seu estado, de estar bem ou não estar bem, que

influenciava na forma de falar?

(28) Ester: Sim.

As respostas de Caroline e Carla demonstraram o receio comum entre os estudantes de

ficarem vulneráveis ao julgamento dos colegas quando procuram expressar suas ideias na sala

de aula. Caroline, inclusive, relatou o caso de uma amiga de turma que era ridicularizada sempre

que respondia equivocadamente. Esse medo de se expor, sem dúvida, atrapalha o

desenvolvimento de atividades em que as falas dos sujeitos são de suma importância, como

ocorre em nossa intervenção. Decerto foi justamente esse mesmo receio que impediu muitos

sujeitos de se manifestarem. É, pelo menos, o que parece estar implícito no discurso de 5 deles

que relacionaram seu silêncio diante das perguntas ao fato de não saberem o que responder.

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A dificuldade e a timidez em se expressar igualmente foram mencionadas por mais

alguns sujeitos que, de modo geral, muito pouco (ou quase nada) participaram das atividades,

restringindo-se a observar a dinâmica das sessões de leitura.

Ao referir-se à sua participação, Ester, por exemplo, relevou a influência de fatores

externos – problemas em casa – na frequência e no modo de ela se manifestar nas discussões.

Essa declaração reforça a nossa ideia, mencionada anteriormente, de que a agressividade

negativa demonstrada por Ester – especificamente nas sessões de leitura das obras Obax e João-

trapalhão – não constituía a realidade de seu pensamento. Desse modo, mostra-se plausível a

inferência que construímos de que Ester demonstrou propensão à prática da violência em

virtude de não estar bem consigo mesma em alguns dias, o que, de certa forma, se revelou em

seu comportamento.

Finalizadas as categorias atinentes à unidade Literatura, podemos concluir que a prática

de leitura de literatura, assim como as estratégias planejadas para esse fim, foram bem recebidas

pelos sujeitos, que apreciaram as atividades desenvolvidas desde a pré-leitura, com o pré-ensino

de vocabulário, passando pela leitura, até a atividade de discussão. Além disso, consideraram a

leitura de obras literárias como um momento de aprendizado, em que podiam “sonhar com as

aventuras” e “aprender sobre o bullying”, como pontuaram certos sujeitos.

Há de se observar, entretanto, a dificuldade da maioria em justificar o apreço – apontado

por eles mesmos – pelas interações ocorridas na pós-leitura. Reforçamos que a ausência de um

trabalho regular na sala de aula com a literatura dificulta a clareza dos sujeitos quanto à

importância e a riqueza que a troca de ideias com os colegas é capaz de proporcionar, sendo

essa uma das lacunas encontradas na prática pedagógica dessa turma e que precisa ser repensada

pelo professor.

Outra lacuna registrada nas entrevistas iniciais diz respeito ao conhecimento dos sujeitos

com relação ao bullying. Por essa razão é que, na entrevista final, buscamos averiguar os saberes

adquiridos sobre essa forma de violência após as leituras e as discussões realizadas no decurso

da pesquisa.

Considerando essa realidade, procedemos à avaliação da primeira categoria referente à

unidade bullying: entendimento sobre o bullying. Nesse processo analítico, vale lembrar, os

dados examinados foram constituídos a partir das seguintes questões: “você aprendeu alguma

coisa sobre o bullying?” e “você acredita que conhecer um pouco mais sobre o bullying te ajuda

de alguma maneira?”.

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Em resposta à primeira questão, 19 sujeitos (95%) afirmaram ter aprendido algo sobre

o bullying. Dentre esses, 12 (60%) apontaram os conhecimentos obtidos a partir das sessões de

leitura, enquanto 7 (35%), apesar de também responderem afirmativamente, não souberam

esclarecer o que, de fato, aprenderam; e apenas 1 sujeito (5%) afirmou não ter aprendido nada

sobre o bullying, conforme se registra no quadro a seguir.

Quadro 13 – Respostas à entrevista final: aprendizado sobre o bullying

Questão: Você aprendeu alguma coisa sobre bullying?

Carla: Aprendi. [...] quando a pessoa fica chamando a outra de baleia, de rapa..., de algumas coisas assim e a

pessoa fica triste, eu tô jogando bullying para a colega. Como disseram que eu fiz com Lívia e quem tinha feito

era Ester.

Ângelo: Bullying não é só xingar, é quando a pessoa fica aperreando a outra. [Formas de combate:] falar com

alguém para pedir ajuda ou mostrar a todo mundo que tem que respeitar o outro e tem que aceitar as

diferença.

Emanuela: Que não deve chamar os outros ... apelidar os outros, se ele não gostar. Um exemplo: se eu ficar

chamando um de gordo, se ele não gostar, eu não devo chamar mais.

Lívia: Eu aprendi que o bullying não se deve fazer porque isso magoa as pessoas, deixa as pessoas muito triste

e a gente não deve fazer isso, porque a gente não quer que as outras pessoas façam isso com a gente.

Kesley: Que se entrar alguma ((+)) um exemplo: se entrar alguma pessoa na escola que tiver alguma diferença,

aí tipo ((+)) vem uma pessoa aperrear ela, falar coisa com ela, não pode porque essa pessoa vai ficar

chateada, triste.

Ester: Eu aprendi que o bullying não é você chegar no outro e falar alguma coisa, porque muitas vezes você

chama a pessoa de alguma coisa e as outra acha que você tá fazendo bullying. Só que bullying não é isso,

bullying é você chegar e ficar chamando de gorda, de magra, chamar de cabelo de bucha, ficar xingando,

batendo no outro, mas você brigar com a pessoa é muito diferente de bullying.

Rian: Que não é pra ir logo na briga, sempre na conversa, porque se for na briga, pode piorar.

Vinícius: O bullying é xingar a pessoa, ficar falando mal dela e a gente não pode fazer isso, se não a pessoa

se sente muito mal.

Keylla: Não pode ficar xingando os outros, deixe eu ver. Não zombar.

Yasmin: Combater? Hum ((+)) a gente é ((+)) quando vê uma pessoa fazendo bullying com outra pessoa, a

gente tem que ajudar.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

Percebemos, pelos discursos dos sujeitos, que houve uma compreensão bem mais clara

sobre o que é o bullying. A característica da repetitividade da ação, por exemplo, pôde ser

observada na fala de alguns sujeitos a partir de certas expressões do tipo “fica chamando”, como

registrou Carla, ou “fica aperreando”, como sublinhou Ângelo, que, assim como Ester, foi até

mais específico, em se tratando da característica mencionada. Adicionalmente, Ester apresentou

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uma nítida distinção entre ações isoladas de agressão e o bullying, afirmando que esse ainda é

um ponto que causa confusão entre as pessoas.

Carla, por sua vez, relacionou a repetitividade da violência ao ato de apelidar,

evidenciando a tristeza que a prática dessa ação causa na vítima. Além disso, aproveitou mais

esse momento (da entrevista) para reforçar o fato de não ter “jogado” bullying para Lívia,

buscando esclarecer que não se classificava como agressora nesse tipo de violência. Outra

discente que associou o bullying ao apelido foi Emanuela, que condicionou a necessidade de

cessar a ação de apelidar ao fato de a vítima mostrar-se incomodada com essa atitude.

Ângelo foi além da repetitividade presente na prática de bullying, fazendo referência a

formas de combate discutidas nas atividades de pós-leitura, como a ajuda que a vítima deve

pedir no intuito de acabar com as agressões sofridas – fugindo, portanto, da condição de vítima

típica –, e a reflexão que precisa ser fomentada (especialmente na escola) sobre o respeito ao

outro e a aceitação das diferenças; aliás, uma temática que perpassou o discurso de Kesley,

quando esta chamou a atenção para o fato de que “ser diferente” não deve ser motivo para a

agressão, frisando ainda o quanto o indivíduo fica triste ao se tornar vítima, o que, como se

sabe, influencia negativamente na sua autoestima.

Vinícius e Lívia ressaltaram o sentimento daquele que é vítima, sendo essa a razão pela

qual não se pode praticar bullying. Lívia tratou ainda da questão da empatia enquanto Vinícius

resgatou, implicitamente, em seu discurso, a intencionalidade do agressor ao praticar o bullying,

o que também fica subentendido nas colocações de Kesley. Rian assinalou a importância de se

dialogar em vez de a vítima tentar revidar as agressões, ponderando sobre a possibilidade de

retaliação por parte do agressor. Keylla, por sua vez, direcionou o seu discurso de forma a

rechaçar o xingamento e a zombaria, práticas comuns entre os estudantes, e também utilizadas

pelos bullies para infligir dor à vítima; já Yasmin fez referência ao valor da intervenção

daqueles que assistem às agressões, de modo a não assumir, portanto, o papel de um espectador

passivo.

Aprofundando-nos na questão, com o objetivo de verificar se o conhecimento sobre o

bullying ajudava-os de alguma maneira, obtivemos os seguintes dados: todos os 20 sujeitos

(100%) declararam que conhecer essa violência ajudava-os. Não obstante, 2 deles (10%) não

souberam explicar de que forma isso os ajudaria.

Quadro 14 – Respostas à entrevista final: Benefício de se aprender sobre o bullying

Questão: Conhecer um pouco mais sobre bullying te ajuda de alguma maneira?

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Carla: Ajuda porque eu sabendo o que é, ajuda a eu não jogar bullying, ficar falando mal dos meus colega,

não posso ficar chamando ninguém de rapa... porque a colega fica triste.

Ângelo: A não fazer com os outro, não deixar os outro fazer com você, a ajudar um amigo, quando alguém

fizer com você ou com um amigo falar com as pessoas, não ficar calado.

Emanuela: [...] assim, eu aprendi que... eu nunca fiz isso e agora que eu aprendi, agora que eu não vou fazer

mesmo.

Maria Thayná: [...] não tentar revidar, dando murro, chute, essas coisas.

Lívia: Ajuda a saber ajudar outras pessoas [...] que quando alguma pessoa tá fazendo bullying com aquela

outra pessoa e eu ir ajudar lá e falar que não é para ele fazer isso, que ele não queria que acontecesse a

mesma coisa com ele.

Kesley: Porque desde que você entrou, agora eu aprendi que não pode chamar ((+)) não pode apelidar as

pessoa, por causa que elas pode não gostar e ficar triste, que não pode chamar a pessoa, não ficar falando

que ela é gorda, não pode ficar apelidando.

Ester: Ajuda, porque aí você vai saber mais o que é o bullying, a se defender do bullying e não ir direto para

agressão.

Vinícius: [...] A não fazer bullying.

Lucas: Como ((+)) já me ajudou um monte de vez, já [...] a não xingar os outro, não fazer bullying, esse tipo

de coisa.

Yasmin: ajuda a saber proteger uma pessoa que tá sofrendo bullying.

Caroline: A saber o que é bullying, quando a gente tá fazendo, porque às vezes você pode tá dizendo uma

coisa que machuca e que você pensa que não machuca, mas que é um bullying.

Ítalo Gabriel: Não fazendo bullying com os outro, não batendo nos outro, não xingando, essas coisa.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

Como é possível observar, 7 sujeitos apresentaram visões semelhantes, ao admitirem

que saber o bullying poderia ajudá-los a não praticá-lo com os outros. Nesse mesmo sentido,

Caroline registrou o valor de se ter conhecimento sobre o bullying, tendo em vista que, desse

modo, ela teria ciência de seus atos para não incorrer no risco de agredir os colegas. Todavia,

os discursos não se restringiram a essas justificativas.

Carla, por exemplo, ao afirmar que não praticaria bullying, mostrou-se sensível ao

sentimento do outro, mencionando a tristeza que provocaria na colega se agisse de tal maneira.

Ângelo destacou pontos essenciais, como a importância de ajudar um amigo que estivesse sendo

vítima de bullying ou até de saber ajudar a si mesmo em uma situação dessa natureza,

procurando relatá-la para outras pessoas em busca de apoio. O ato de ajudar o outro fez-se

igualmente presente nas respostas de Lívia e Yasmin, que afirmaram ter aprendido maneiras de

como intervir em prol da vítima na hipótese de serem espectadoras de ataques de bullying.

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Também Ester e Maria Thayná revelaram opiniões bem parecidas ao pontuarem que conhecer

sobre bullying as ajudaria a se defender, bem como a ter a consciência de que revidar a agressão

sofrida não seria o melhor caminho a seguir.

Por todas essas colocações, acreditamos que a lacuna observada nos sujeitos quanto ao

conhecimento sobre o bullying foi preenchida de forma satisfatória a partir das discussões em

torno dos contos lidos. Essa convicção firma-se no fato de que a maioria deles demonstrou ter

aprendido não somente conceitos mas também ter internalizado o saber sobre os malefícios

dessa prática de violência – ainda que nem todos tenham conseguido expressar em palavras

aquilo que assimilaram ou em que medida esse conhecimento poderia ser benéfico para as suas

vidas.

Quanto a este último ponto, consideramos relevante ressaltar que, de modo geral, os

sujeitos mais participativos durante as atividades foram aqueles que se expressaram de forma

mais clara na entrevista final. Entretanto, mesmo entre os discentes que preferiram somente

observar a dinâmica da prática com a literatura ou se posicionaram em raros momentos,

percebemos que a possibilidade de estarem presentes nas sessões de leitura permitiu-lhes

adquirir novos conhecimentos na interação leitor-texto, bem como no processo de discussão, a

partir dos posicionamentos divergentes protagonizados por seus colegas.

Essa interação leitor-texto conduz-nos à segunda categoria: relação da violência nas

narrativas e a realidade, em que os sujeitos puderam identificar as situações de violência

apresentadas em cada história, relacionando-as ao bullying, vislumbrando a possibilidade de

superação das personagens também na vida real.

Com vistas a compor essa categoria, as respostas a três questionamentos serviram de

dados. A primeira questão buscou desvelar que semelhanças os sujeitos estabeleceram entre o

bullying e os eventos envolvendo as personagens das histórias.

A relação entre as ações de violência presentes nas histórias e o bullying foi percebida

por 16 sujeitos (80%), ao passo que os demais (4 – 20%) afirmaram não se lembrar de detalhes

das histórias ou de cenas em que as agressões se assemelhavam à violência entre pares,

conforme se verifica no quadro seguinte.

Quadro 15 – Respostas à entrevista final: relação contos literários lidos x bullying

Questão: [...] pensando nas discussões que a gente teve após cada leitura e nas personagens das histórias, que

características que tinham nas histórias que pareciam com situações de bullying?

Carla: Na Gata borralheira. [...] quando as irmã dela ficava humilhando ela.

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Maria Thayná: As irmãs e a madrasta não gostava dela. Assim porque ((+)) Ficava maltratando ela, botando

ela para dormir nas cinzas, chamando ela de “gata borralheira” porque ela ficava no borralho, essas coisas.

Lívia: Da Gata Borralheira, [...] as irmãs ficavam falando que ela era feia e maltratavam ela porque tinham

inveja dela. Fazia ela de empregada. [Outra história é] daquela da cabrinha [...] as irmãs e a mãe dela eram

muito malvadas, porque elas tinham inveja da filha, que tinha Dois-olhinhos e a outra irmã tinha três e a outra

só um.

Ângelo: Dar resto de comida pra pessoa, como as irmã fez com Dois-olhinhos, não gostar da pessoa, dizer

que ela é diferente delas. [Parecia bullying] por causa que ela sofreu, mataram a cabra dela, fizeram várias

maldades com ela. Dava resto de comida pra ela.

Emanuela: Exemplo: porque Dois-olhinhos era igual a todos, e Três-olhinhos e Um-olhinho não gostavam

dela, então ela era tratada mal porque ela era igual os outros, e pegavam e davam as comidas que sobravam,

davam vestidos velhos para ela usar, isso ai já era um bullying. Não gostavam dela do jeito que ela era.

[Outra história,] O Patinho Feio, eles bicavam ele, beliscavam, empurravam ele [...] e maltratavam ele

porque achavam ele feio.

Ester: Do João-trapalhão, os irmão dele é ((+)) só porque ele era diferente deles, não quer dizer que ele não

pode ficar com a princesa. Todo mundo não conseguiu entrar na sala, só ele [João], por quê? Porque cada

um tem seu jeito. Eles dois pensava que era superior a ele [João], só porque um sabia o dicionário de inglês,

italiano, sei lá ((+)) de ponta a cabeça [...] e o outro sabia ((+)) era advogado, sei lá, uma coisa assim e ele não

era nada [...] mas ele foi o único que conseguiu falar com a princesa. [Outra história,] A Gata Borralheira

[...] ((+)) não é por causa que a mãe dela morreu, que o pai ficou com outra pessoa que ele tem que ignorar

a filha e deixar que as outra maltratem a filha, [deixar] fazer ela de escrava, como faziam. Isso é um tipo de

bullying. [...].

Rian: Na Gata Borralheira tratavam ela mal e escravizavam ela.

Edu: A história igual a da cinderela. [...] o que as irmãs fazia. [...] arengavam com ela o tempo todo.

Vinícius: A ação repetitiva. [...]na parte que o patinho feio chegou na casa de uma senhora que tinha o gato

e a galinha, os irmãozinhos dele, que eram os patinhos e ficavam dizendo que ele era feio.

Lucas: O de Raul da ferrugem azul [...]. Raul tinha medo de ir ajudar os outro, porque se ele fosse ajudar

os outro, então os amigo dele ia começar a mangar, a chamar ele ((+)) xingar. Isso eu acho que ele ia se

envolver num grande bullying.

Pâmela: Da Gata Borralheira e a ((+)) de Um-olhinho, Dois-olhinhos e Três-olhinhos. [...] [Dois-olhinhos]

não davam comida pra ela, davam roupas velhas, aí apareceu uma moça que ensinou uma música e apareceu

uma mesa.

Caroline: Acho que todas. [Em A Gata Borralheira] as irmãs e a madrasta dela tratavam ela como se fosse

a empregada, só que era a casa dela, o direito também era dela.

Priscila: Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos. [...] a história toda de Dois-olhinhos. [...] as irmã dela

não gostavam dela, maltratavam ela, só porque ela era igual as outras pessoas.

Fonte: Produção da Autora da Pesquisa, 2017.

Como podemos constatar, nos 13 trechos que destacamos, a maioria dos sujeitos

mencionou o conto A Gata Borralheira (GRIMM; GRIMM; TEIXEIRA, 2003a) como

exemplo de história em que a personagem principal sofria agressões que se assemelhavam ao

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bullying. Nesse mesmo quesito, o conto Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos (GRIMM;

GRIMM; GRABIANSKY, 2003b) foi o segundo mais lembrado.

As respostas dos sujeitos aproximam-se, inclusive, pelo fato de os mesmos trechos das

histórias serem enquadrados como bullying. As ações das irmãs, com a intenção de maltratarem

as personagens principais, de ambos os contos, são citadas, por exemplo, por 10 sujeitos.

Nessa análise, verificamos que Carla, apesar de não detalhar quais ações praticadas pelas

irmãs da gata borralheira assemelhavam-se ao bullying, mencionou que a personagem era

humilhada – objetivo dos bullies no intuito de subjugar as vítimas. Maria Thayná pontuou

algumas agressões às quais a Borralheira era submetida, destacando, ainda, o apelido dado à

personagem. Lívia citou as duas histórias em questão, ressaltando, em ambas, a inveja como

razão para os maus-tratos praticados pelas irmãs. Ângelo, por sua vez, afirmou que as ações

praticadas pelas irmãs de Dois-olhinhos eram bullying porque geravam sofrimento.

Outras obras citadas pelos sujeitos foram João-trabalhão (ANDERSEN; FRANÇA;

FRANÇA, 2004), O Patinho Feio (ANDERSEN; PEDERSEN; FROLICH, 2002) e Raul da

ferrugem azul (MACHADO; FARIA, 2012).

Emanuela, além de mencionar A Gata Borralheira, rememorou algumas ações presentes

no conto O Patinho Feio, em que a personagem foi, repetidas vezes, agredida fisicamente em

virtude da sua aparência. Vinícius, de igual modo, destacou as ações repetitivas de violência –

uma das características inerentes ao bullying – às quais o patinho era submetido.

Ester foi a única discente a tratar do conto João-trapalhão, detalhando as razões que

levavam os irmãos de João a menosprezá-lo. Além disso, evidenciou, em sua fala, o respeito

que se deve ter às peculiaridades de cada indivíduo, tendo em vista que cada um tem o seu

valor. Também Lucas foi o único a se referir à história Raul da ferrugem azul, indicando que a

postura omissa de Raul frente à violência observada (espectador passivo) estava atrelada ao

medo de tornar-se vítima de bullying – o que, decerto, não estava explícito no conto, mas que,

de fato, pode ser constatado na vida real (O’CONNELL et al., 1999).

Esteando-nos nessas respostas, constatamos que os sujeitos identificaram as ações de

violência apresentadas nas narrativas associando-as à prática do bullying, especialmente nos

contos em que as agressões mostravam-se mais evidentes. Alguns sujeitos – como Ester e Lucas

– foram além da mera descrição dos atos violentos e pensaram criticamente sobre a conjuntura

vivenciada pelas personagens. Aliás, podemos perceber, com certa nitidez, no discurso de Ester,

a sua identificação com a personagem ao considerar injusta a forma como João era tratado.

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As relações estabelecidas pelos sujeitos entre os contos e o bullying foram também

percebidas por meio de outras duas questões que tiveram o objetivo de desvelar a visão dos

sujeitos sobre a maneira como as personagens transpuseram a vitimização e o que eles

pensavam sobre a possibilidade de tal resolução na vida real.

Dentre os sujeitos, 15 (75%) mencionaram o modo como as personagens conseguiram

superar a violência sofrida, ressaltando que “o ato de ajudar”, presente na ficção, poderia ser

transposto para as situações de bullying na vida real; 4 sujeitos afirmaram não lembrar a

maneira como as personagens superaram as agressões sofridas e, consequentemente, não

estabeleceram relação entre a ficção e o mundo real; e 1 sujeito mencionou que a ajuda recebida

na ficção, pela personagem, não poderia ser viabilizada na realidade, como se exemplifica no

excerto abaixo.

(49) PP: De que maneira as personagens conseguiram resolver as situações

pelas quais passavam?

(50) Ester: A Gata Borralheira, ela é ((+)) teve a ajuda dos pássaros. Eles

cantaram uma música até chegar ((+)) cantou uma música para o

príncipe para dizer que não era as irmã dela, era ela. Então aí ((+)) No

João-trapalhão ele entrou na sala direto, não ligou para nada que os

irmão disse e foi falar com a princesa. Obax, ela seguiu sua aventura, seu

sonho e também não ligou para o que os outro falavam. Raul, ele foi

consultar o velho da montanha, aí encontrou Estela e descobriu o que era

aqueles negócio.

(51) PP: Você acha que, na vida real, é possível resolver a situação de

bullying da mesma forma como acontece nas histórias?

(52) Ester: Não, né? Porque no mundo real não tem príncipe.

De modo geral, assim como fez Ester no exemplo acima, os sujeitos, ao falarem sobre

as formas como as personagens conseguiram superar o mal que as afligia, exaltaram o ato de

ajudar: a ajuda dada pelos passarinhos na história A Gata Borralheira e também a ajuda

prestada pela mulher e pelo cavaleiro em Um-olhinho, Dois-olhinhos, Três-olhinhos. O ato de

ajudar, observado nas narrativas, foi apontado como possibilidade de superação do bullying na

vida real. Enfim, os sujeitos ressaltaram o fato de a assistência externa poder vir a ser um

caminho viável.

Ester, ao contrário do que afirmaram os demais colegas, sublinhou o fato de que não

seria possível transpor a resolução apresentada na ficção para a realidade porque “não havia

príncipe no mundo real”. Tal convicção, certamente, está atrelada ao fato de ela considerar

fantasiosa a ideia da figura de um príncipe desempenhando o papel de “salvador” na vida real,

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o que pode estar relacionado às suas experiências de vida e ao seu conhecimento de mundo.

Ainda assim, constatamos, por sua resposta, que Ester, bem como os demais sujeitos,

compreendeu a importância da ajuda externa como uma forma de combater o bullying.

Essa compreensão de que a ajuda deve ser dispendida àqueles que são vítimas da

violência entre pares conduz-nos à última categoria a ser analisada: postura adotada frente ao

bullying.

Para compor os dados dessa análise, os sujeitos foram colocados no lugar de

espectadores, de forma que pudessem pensar em estratégias possíveis para ajudar um amigo na

posição de vítima ou de agressor. Todos eles (100%) exprimiram a maneira como agiriam em

tal situação.

As respostas a essa proposição convergiram para três eixos principais: o conselho mais

mencionado foi o de recorrer a um adulto ou a um amigo no intuito de pedir ajuda, seguido da

possibilidade de ajudar a vítima a melhorar sua autoestima e não se incomodar com o que os

outros estivessem falando. Com relação ao conselho que daria a um amigo que fosse agressor,

basicamente, todos os sujeitos afirmaram que pediriam para ele parar. Somente 2 sujeitos

disseram que nada aconselhariam ou se afastariam do amigo agressor. Destacamos o exemplo

a seguir que representa a maioria.

(59) PP: O que você aconselharia a um amigo que fosse alvo de bullying?

Fosse vítima de bullying?

(60) Ester: Eu falaria pra ele conversar com um amigo, com o pai. Dizer

que tem colegas na escola fazendo isso com ele e aquilo, pra ele [pai] vim

conversar com a diretora.

(61) PP: E se você tivesse um amigo que fosse o autor do bullying, que fosse

o agressor? O que você aconselharia pra ele?

(62) Ester: Eu pedia pra ele parar, porque ele não ia gostar se tivesse uma

pessoa fazendo bullying com ele. Ele não ia gostar disso. Então ele se

botasse no lugar do outro e pensasse como é que ele ia ficar ((+)) ele não

ia gostar se o outro fizesse, ele também não ia gostar disso. Então, ele não

fizesse mais isso.

O fato é que, independentemente das soluções propostas, os sujeitos demonstraram, em

algum grau, que refletiram sobre a prática do bullying. Enquanto uns simplesmente expressaram

a ideia da não violência, outros, como Ester, foram além, indicando a necessidade de se ter

empatia diante do sofrimento alheio.

Reavaliando esses dados, cabe-nos assinalar, num balanço geral, o fato de que foi

extremamente produtiva a aplicação dessa entrevista final. Em primeiro lugar, porque, tendo

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sido realizada individualmente, nos apresentou uma visão mais aprofundada sobre o modo

como os sujeitos construíram seus pensamentos e seus conhecimentos em relação à literatura e

ao bullying – o que não era possível enxergarmos plenamente no momento de pós-leitura, em

virtude de alguns discentes terem preferido apenas observar a atividade. Em segundo lugar,

porque acreditamos que esse instrumento permitiu que os sujeitos se sentissem mais livres para

falar o que pensavam, uma vez que não estavam expostos aos olhares e nem tampouco aos

comentários dos colegas, um receio expressado por alguns deles, e que acreditamos estar

relacionado ao fato de não fazer parte de sua rotina a prática de discussão, especialmente no

que se refere aos textos literários.

Vale observar, por fim, que determinados sujeitos, a exemplo de Ítalo Gabriel, que

apresentou posicionamento pró-violência em praticamente todas as discussões das quais

participou, e de Ester, que também se mostrou favorável à agressão em algumas sessões de

leitura, expressaram, nesse momento individualizado, outros pontos de vista, demonstrando

apreço pela atividade de leitura de literatura e entendimento sobre o bullying. Obviamente, não

há como mensurar a consciência desenvolvida sobre essa violência entre pares em cada um dos

sujeitos, seja a partir das discussões, seja pelas entrevistas finais; todavia, há evidências, a partir

de seus discursos, de que houve um avanço significativo no que tange à reflexão sobre os

malefícios do bullying, o que, por consequência, resultou em reflexão em maior ou menor grau.

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5 POR UMA POSSIBILIDADE DE ABRIR ASAS: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em toda a trajetória deste trabalho, procuramos validar a nossa proposição de que a

leitura de textos literários, mediada pelo processo de discussão, contribui para suscitar a

reflexão de sujeitos aprendizes sobre o bullying.

É chegado, então, o momento de apresentarmos os indícios que nos conduziram à ideia

inicialmente defendida. Para tanto, consideramos importante retomar o trajeto percorrido nesta

investigação, atendo-nos aos pontos significativos revelados por cada um dos capítulos, uma

vez que acreditamos que todos os caminhos escolhidos foram fundamentais.

No capítulo Por uma escola que tenha asas: introdução, em que expusemos o objetivo

geral deste trabalho, o objeto de estudo, a tese, o estado da arte, o referencial teórico, as

motivações para esta pesquisa – em continuidade aos estudos desenvolvidos na dissertação de

mestrado –, assim como as justificativas do porquê aprofundar a pesquisa na interface literatura

e bullying, ficou evidente a relevância deste trabalho.

Em todo esse percurso, acreditamos que a possibilidade da inter-relação literatura e

bullying tenha-se mostrado importante e promissora. Alicerçando-nos nesse pensamento,

elaboramos o caminho que nos conduziu à intervenção.

O processo como um todo, propositadamente prolongado e registrado no capítulo

Roteiro do voo: caminhos traçados e trilhados, foi fundamental por nos haver proporcionado

um conhecimento mais detalhado sobre como a violência, especialmente o bullying, estava

presente e era encarada no locus da pesquisa, tanto pelos sujeitos quanto por integrantes da

equipe escolar.

Também vale mencionar o fato de que os passos dados em prol da constituição da

ecologia da escola trouxeram-nos informações preciosas que sinalizaram alguns saberes sobre

os sujeitos. Em especial, constatamos que, mesmo não tendo sido identificada a presença de

bullying entre eles, o trato violento, naquele contexto, era constante e predominantemente

marcado pela agressão verbal, deixando visível o quanto era preciso discutir a violência com

aquele grupo. Com relação ao conhecimento sobre o bullying, ficou evidente a falta de clareza

quanto às características particulares desse tipo de violência. Tanto é verdade que, para a

maioria dos sujeitos, agressões de qualquer natureza eram encaradas como bullying. No que

tange à literatura, ficou explícito o limitado contato que eles tinham com os textos literários.

Segundo a própria professora, essa atividade tinha pouco espaço na sala de aula.

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Em relação aos integrantes da escola que foram entrevistados – a diretora, a

coordenadora pedagógica e a professora da turma –, constatamos que, semelhantemente aos

sujeitos, não detinham um conhecimento esclarecido sobre o conceito de bullying. Percebemos,

inclusive, que faziam uma notável confusão ao associarem o termo “brincadeira” à prática do

bullying, demonstrando uma certa naturalização da violência.

Esse modo um tanto natural de encarar a violência foi também percebido, durante as

observações realizadas, no período do intervalo das aulas a partir da ação de outros docentes

frente à visível agressividade, materializada em agressão física, que permeava aquele momento

de interação entre os estudantes.

Foi, pois, em função dessas constatações que estruturamos o planejamento da

intervenção. Ressaltamos, entretanto, que essa estruturação foi igualmente idealizada a partir

do aporte teórico, apresentado no capítulo Encrespando as asas: fundamentação teórica, que

contribuiu com conhecimentos referentes à mediação pedagógica, à literatura e ao bullying.

Esses saberes certamente possibilitaram o olhar crítico e aprofundado sobre o objeto de estudo,

propiciando subsídios à defesa da literatura como estratégia para se discutir o bullying na sala

de aula.

Especificamente sobre a literatura, consideramos que a teoria da Estética da Recepção

(em particular, a compreensão sobre o efeito estético) foi fundamental, na medida em que

contribuiu para ampliar as nossas concepções sobre o papel primordial do leitor no encontro

com o texto. Ademais, compreendendo que a leitura somente se efetiva por meio desse encontro

e conhecendo a conceituação de Vygotsky (2007) sobre a Zona de Desenvolvimento Proximal

(ZDP), pudemos potencializar o encontro leitor-texto apoiando-nos na mediação pedagógica.

Foi partindo dessa mediação que a interface literatura-bullying pôde ser evidenciada.

Finalmente, já de posse de todos os dados construídos previamente – por meio dos

estudos teóricos e das constatações obtidas no locus –, implementamos as sessões de leitura.

A intervenção ratificou a incipiente relação dos sujeitos com a literatura. De fato, o

trabalho com textos literários nos moldes propostos nesta pesquisa não lhes era familiar,

necessitando, portanto, de um processo de adaptação em que os sujeitos precisaram aprender

como agir naquela conjuntura, uma vez que a dinâmica de ler e discutir a história, a partir das

questões mediadas pela professora-pesquisadora, não fazia parte do cotidiano da turma. Os atos

de falar e o ouvir também precisaram ser aprendidos, o que ocorreu, paulatinamente, à medida

que as sessões foram sendo desenvolvidas.

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Cumprida a trajetória da intervenção, expusemos, no capítulo 4 – O destino do voo:

resultados alcançados –, pontos convergentes às unidades e às categorias elencadas para a

análise dos dados, em que tivemos a oportunidade de enxergar, a partir das falas dos sujeitos

(tanto nas sessões quanto nas entrevistas finais), a contribuição da leitura de literatura para a

reflexão sobre o bullying, tendo em vista a tese defendida e os objetivos traçados para esta

investigação.

Nesse sentido, apresentamos os seguintes achados:

1. A mediação pedagógica, construída a partir de questionamentos que transitavam

entre o literal, o inferencial e o crítico, foi de suma importância para que os sujeitos

passassem a agir ativamente nas sessões de leitura. Assim, apoiando-se nos

andaimes que iam sendo estruturados no momento da discussão, eles puderam

retomar as histórias, voltando ao texto, e construir relações entre a forma de

violência apresentada na ficção e aquela presente no mundo ao seu redor,

especialmente o bullying no ambiente escolar.

Dessa forma, a mediação, que buscou inter-relacionar a literatura e o bullying, revelou-

-nos que o trabalho planejado e com objetivos bem delineados contribuiu de maneira positiva

para a discussão sobre o bullying. Essa discussão produziu diálogos fecundos, o que nos conduz

ao nosso segundo achado.

2. Ficou evidente a identificação dos sujeitos com as personagens e as situações

ficcionais narradas. Tal identificação propiciou o despertar de um olhar mais

acolhedor com relação a situação do outro (empatia), na medida em que eles se

incomodavam, isto é, se identificavam com as personagens que sofriam violência,

apontando como agiriam se estivessem em um contexto semelhante. A empatia

levou-os, por vezes, a julgamentos que chegaram a ultrapassar a própria ficção,

atingindo, inclusive, os posicionamentos assumidos pelos colegas, o que revela a

potencialidade do texto literário de suscitar a reflexão para além de suas páginas.

Essa identificação que conduz ao julgamento possibilitou, nesse ínterim, a reflexão

sobre o mundo circundante, levando os sujeitos a estabelecerem relações com a realidade. Todo

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esse processo, que perpassa a poíesis, a aisthesis e a katharsis, serviu de fio condutor à reflexão

sobre o bullying, permitindo que, a cada conto lido, os sujeitos tivessem a oportunidade de

perceber certos aspectos dessa violência ao se envolverem com os enredos e com as suas

personagens. Essa maneira de pensar sobre a violência entre pares pôde ser percebida de forma

ainda mais clara nas entrevistas finais, que apontaram mais um achado.

3. Entendimentos sobre o bullying foram construídos e evidenciados, desde

características que lhe são inerentes até formas de combatê-lo na vida real. Nesse

momento, a interface literatura-bullying também se fez presente nas respostas dos

sujeitos, que expuseram as relações construídas entre a violência narrada nas

histórias e o bullying.

Como a aprendizagem não é uniforme, vale considerar o fato de que determinados

sujeitos apresentaram, em seus discursos, algumas características do bullying, assimiladas a

partir das discussões mediadas. Essa afirmação pauta-se na revelação de desconhecimento

sobre essa violência verificada nas entrevistas iniciais. Enquanto uns fizeram apontamentos

relativos ao conceito, outros construíram relações entre a violência presente nos contos e o

bullying, sem desconsiderar a realidade de que existem ainda aqueles que souberam pontuar

formas de combatê-lo na vida real. Esse conhecimento também foi referido pelos estudantes

como sendo importante para que soubessem como agir diante de um caso de violência.

E vale dizer que a interface literatura-bullying foi referenciada em diversos momentos

nas entrevistas finais, o que nos revela que a prática sistematizada de leitura de textos literários

promoveu o encontro entre essas duas áreas, desencadeando a necessária reflexão. A leitura de

literatura também recebeu destaque positivo, uma vez que todos os sujeitos externaram apreço

pela realização das sessões. Esse dado reforça a importância de a literatura ser trabalhada

rotineiramente na sala de aula, não somente para se discutir o bullying mas especialmente para

ampliar os horizontes dos sujeitos por meio da ficção, ensinando-os sobre a vida.

Retomando a ideia de que o aprendizado não é uniforme, constatamos que determinados

sujeitos apresentaram maior desenvoltura para exprimir as suas percepções com relação ao

estudo desenvolvido, pelo que pensamos ser válido, a título de exemplo, retomar a trajetória de

alguns deles no decorrer da pesquisa.

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A aluna Ester, que durante o período de observação esteve envolvida em conflitos com

os colegas, foi muito participativa em todo o processo, posicionando-se, em função das

narrativas, interagindo com os textos, as vivências das personagens e as opiniões dos seus pares.

Foi ela quem, mais claramente, na entrevista final, apresentou afirmações contundentes sobre a

literatura e o bullying, assim como sobre a interface produzida com base nessas temáticas.

Ítalo Gabriel, apesar de ter sido um sujeito intencionalmente provocador durante todo o

processo, também se destacou por sua ativa participação. Na entrevista final, momento em que

estava sozinho com a professora-pesquisadora, foi possível perceber um outro viés do seu

pensamento: a compreensão sobre o malefício do bullying e o modo como ele se posicionaria

em um contexto de violência. Diante de tal entendimento, inferimos que a leitura dos contos,

associada às discussões, contribuiu, sim, para que ele refletisse, o que indicia que o seu discurso

pró-violência poderia, de fato, estar atrelado ao desejo de chamar a atenção para si. Quanto ao

contato com a literatura, Ítalo externou estima pelas sessões de leitura, mencionando o interesse

de que aqueles momentos continuassem a fazer parte da sua rotina escolar.

Carla, outro sujeito repetidamente mencionado na observação in loco, mostrou-se

interessada em não ser vista no papel de agressora, afirmando, de forma recorrente, que entendia

o efeito nocivo de tal posição. Ademais, ficou evidente que ela construiu relações pertinentes

entre a violência presente nas histórias e as agressões existentes, especialmente entre as meninas

dentro da sala de aula. A literatura também foi bem avaliada por Carla que, a despeito de não

ter interagido muito durante as sessões, enalteceu o modo como as sessões foram estruturadas,

no que tange à dinâmica das atividades.

Além dos sujeitos citados, outros também revelaram que foi possível refletir sobre o

bullying a partir da discussão dos contos trabalhados.

De todo modo, acreditamos que, não obstante alguns se terem expressado mais que

outros, tanto nas discussões mediadas quanto nas entrevistas finais, foi promovido o espaço

para a reflexão de todos. A vergonha e o medo de se expor diante dos colegas (e ser alvo de

zombaria) foram apontados, durante as entrevistas finais, como justificativa para o baixo índice

de participação, o que, em nosso entendimento, somente reforça a importância de levar a

discussão sobre a violência para a escola.

O poder falar e o saber ouvir devem ser uma prática comum no espaço educacional, de

forma que o sentimento de intimidação possa ser paulatinamente superado. A prática mediada

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de leitura de literatura, conforme propusemos, foi, portanto, relevante, o que justificou todo o

estudo realizado.

Há de se reconhecer, todavia, que a perpetuação do trabalho com a literatura – conforme

o desejo daqueles sujeitos – apresentou entraves e dificuldades. Essa afirmação respalda-se no

próprio discurso da professora titular da turma que, apesar de ter constatado os ganhos dos

discentes, a partir do contato com a literatura, permaneceu pouco otimista quanto à

possibilidade de inserção da literatura na sala de aula, conforme expôs na entrevista. Isso

deságua na permanência de uma fragilidade na experiência leitora dos sujeitos.

Todavia, não podemos desconsiderar que, mesmo em face do tempo limitado da nossa

intervenção, desenvolveu-se, nos sujeitos, a afeição pelos textos literários e houve

aprendizagem por meio da leitura de literatura, conforme sustentado por eles próprios, sendo

necessário, portanto, o reconhecimento do professor sobre a importância de os textos literários

ganharem mais espaço na sala de aula. Ademais, é preciso ter em conta que ler literatura requer

planejamento e sistematização, de modo que a metodologia seja adequada aos objetivos

traçados, quer para a discussão sobre o bullying, quer para discutir sobre outra temática

condizente à plurissignificação da obra literária escolhida. Para a efetivação desse processo, a

mediação pedagógica no encontro texto-leitor é fundamental e, assim, precisa ser compreendida

pelo professor.

Nesse sentido, acreditamos que todo o processo desencadeado nesta pesquisa pode ser

considerado como uma referência para que os professores possam enxergar as inúmeras

possibilidades que o mundo da literatura oferece – tendo um vista ser essa arte humanizadora,

formadora e emancipadora –, ao mesmo tempo em que consigam (re) conhecer o bullying como

uma violência pungente no ambiente escolar e compreenderem, para além disso, a necessidade

de estarem implicados no combate a essa prática.

Alcançado esse patamar de entendimento, novos olhares sobre como agir diante da

violência terão a oportunidade de emergir, podendo favorecer a construção de uma convivência

mais pacífica, na medida em que toda a comunidade escolar esteja comprometida em prol do

bem comum. Cremos que, dessa maneira, o espaço escolar poderá tornar-se, enfim, um

ambiente mais acolhedor.

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VINHA, T. O educador e a moralidade infantil numa perspectiva construtivista. Revista do

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YUNES, Eliana; OSWALD, Maria Luiza (Orgs.). A experiência da leitura. São Paulo:

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YUNES, Eliana. A provocação que a literatura faz ao leitor. In: AMARILHA, Marly (org.).

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1989.

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295

______. Literatura e fantasia. In: Série Gestor Escolar: a escola e a formação do leitor

(textos de apoio). São Paulo: Edições SM, 2015a. Disponível em:

< http://www.smbrasil.com.br/gestorescolar2015/temas/a-acao-mediadora-no-ensino-da-

leitura/Textos_Apoio_Regina_Zilberman.pdf>. Acesso em: 25 dez. 2018.

______. Leitura, literatura e escola. In: Série Gestor Escolar: a escola e a formação do leitor

(textos de apoio). São Paulo: Edições SM, 2015b. Disponível em:

< http://www.smbrasil.com.br/gestorescolar2015/temas/a-acao-mediadora-no-ensino-da-

leitura/Textos_Apoio_Regina_Zilberman.pdf>. Acesso em: 25 dez. 2018.

REFERÊNCIAS – Livros de literatura

ANDERSEN, Hans Christian. As Cegonhas. In: Contos de Andersen. Tradução Guttorm

Hansse. Ilustrações originais de Vilh Pedersen e Lorenz Frolich. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

2002.

______. O Patinho Feio. In: Contos de Andersen. Tradução Guttorm Hansse. Ilustrações

originais de Vilh Pedersen e Lorenz Frolich. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

______. Contos de Andersen: João-trapalhão e O Soldadinho de Chumbo. Projeto Gráfico de

Mary França e Eliardo França. 6. ed. São Paulo: Ática, 2004.

GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. A Gata Borralheira. Ilustração de Elisabeth Teixeira.

Tradução de Tatiana Belinky. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2003a.

______; ______. Os contos de Grimm. 7. ed. Ilustração de Janusz Grabianski. Tradução do

alemão de Tatiana Belinky. São Paulo: Paulus, 2003b.

MACHADO, Ana Maria. Raul da Ferrugem Azul. 3. ed. Ilustração de Rosana Faria. São

Paulo: Salamandra, 2012.

NEVES, André. Obax. São Paulo: Brinque-book, 2010.

PENSADOR, Gabriel, O. Um garoto chamado Rorbeto. Ilustração de Daniel Bueno. São

Paulo. Cosacnaify, 2005.

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296

ANEXOS – CONTOS

ANEXO A – A GATA BORRALHEIRA (IRMÃOS GRIMM)

A mulher de um homem rico ficou doente, e quando ela sentiu que seu fim se

aproximava, chamou sua única filhinha para junto do seu leito e disse: - Filha querida, sê devota

e boa; então o bom Deus sempre te valerá, e eu olharei por ti lá do céu, e estarei perto de ti.

Então ela fechou os olhos e morreu.

A moça ia todos os dias para o túmulo da mãe e chorava, e continuava devota e boa.

Quando o inverno chegou, a neve cobriu o túmulo com um lenço branco, e quando na primavera

o sol o tirou de novo, o homem casou-se com outra mulher.

A mulher trouxera consigo para casa duas filhas que eram bonitas de rosto, mas feias de

coração. E então começou uma época ruim para a pobre enteada.

– Essa bobalhona não tem que ficar na sala conosco, - diziam elas. – Quem quer comer

pão, tem que trabalhar para merecê-lo! Para fora com essa criada!

Elas lhe tomaram os bonitos vestidos, deram-lhe um avental cinzento para vestir e

tamancos de pau para calçar.

– Olhem só para a bela princesa, como está enfeitada! – exclamaram elas, e levaram a

moça para a cozinha.

Lá ela tinha que fazer serviços pesados desde a manhã até a noite, levantar-se antes do

amanhecer, carregar água, acender o fogo, cozinhar e lavar. E ainda por cima as irmãs lhe

causavam toda a sorte de desgostos, zombavam dela e esparramavam as ervilhas e as lentilhas

na cinza do borralho, para que ela tivesse de ficar a catá-las e separá-las de novo. À noite,

cansada de trabalhar, ela não tinha cama, mas tinha que deitar nas cinzas ao lado do fogão. E

porque ela, por causa disso, parecia sempre empoeirada e suja, elas a chamavam de Gata

Borralheira.

Quando certo dia o pai ia viajar para uma feira, perguntou às enteadas o que elas queriam

que ele lhes trouxesse.

– Lindos vestidos – disse uma.

– Pérolas e pedras preciosas – disse a outra.

– E tu, Gata Borralheira – disse ele –, o que queres ganhar?

– Pai, o primeiro raminho que no caminho de volta roçar no teu chapéu, quebra-o e

traze-o para mim.

Então ele comprou para as duas irmãs lindos vestidos, pérolas e pedras preciosas, e no

caminho de volta, quando atravessava um mato verde, um ramo de nogueira esbarrou nele e

arrancou-lhe o chapéu. Então ele quebrou o ramo e levou-o consigo.

Quando chegou à sua casa, deu às enteadas o que elas lhe pediram, e à Gata Borralheira

ele entregou o raminho de nogueira.

Gata Borralheira agradeceu, levou o raminho para o túmulo da sua mãe e plantou-o ali,

e chorou tanto, que suas lágrimas o molharam e regaram.

O ramo cresceu e transformou-se numa bela árvore. Gata borralheira ia lá três vezes por

dia, todos os dias, e chorava e rezava debaixo da árvore, e cada vez que vinha um passarinho

branco, pousava na árvore, e sempre que Gata Borralheira exprimia um desejo, o passarinho

lhe jogava o que ela desejara.

Certa vez aconteceu que o rei deu uma festa que devia durar três dias, e para qual todas

as moças bonitas do reino foram convidadas, para que seu filho escolhesse uma noiva dentre

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elas. Quando as duas irmãs ouviram que elas também eram convidadas, ficaram alegres e

contentes, chamaram Gata Borralheira e disseram:

– Penteia nossos cabelos, escova nossos sapatos e aperta nossos colchetes; nós vamos à

mostra de noivas no palácio real.

Gata Borralheira obedeceu, mas chorou, porque também gostaria de ir ao baile, e pediu

à madrasta que a deixasse ir.

– Oh Gata Borralheira – disse ela –, coberta de pó e sujeira queres ir à festa? Não tens

vestido nem sapatos e queres dançar?

Mas como a moça não parava de suplicar, ela disse por fim:

– Derramei uma bacia de lentilhas nas cinzas; se separares as lentilhas em duas horas,

poderás vir conosco.

A moça saiu pela porta dos fundos, correu para o jardim e chamou:

– Pombinhas mansas, rolinhas brancas, todos os passarinhos debaixo do céu, venham

ajudar-me a catar as lentilhas, as boas no pratinho, as ruins no buchinho.

Então vieram voando e entraram pela janela da cozinha duas pombinhas brancas e atrás

delas as rolinhas, e finalmente todos os passarinhos debaixo do céu entraram ruflando as asinhas

e pousaram nas cinzas do borralho. E as pombinhas baixaram as cabecinhas e começaram, pic-

pic-pic, a bicar e a pôr todas as lentilhas boas na bacia. E mal passou uma hora, eis que eles

terminaram tudo e voaram embora. Então a moça levou a bacia para a madrasta, muito contente,

pensando que agora poderia ir à festa.

Mas a madrasta falou:

– Não, Gata Borralheira, tu não tens roupa e não sabes dançar; todo mundo só vai caçoar

de ti.

E quando a moça chorou de novo, ela disse:

– Se puderes catar das cinzas e escolher duas bacias de lentilhas em uma hora, então

poderás vir – e pensou: “Isto ela nunca vai conseguir”.

Quando ela derramou as duas bacias de lentilhas nas cinzas, a moça saiu correndo pela

porta dos fundos para o jardim e chamou:

– Pombinhas mansas, rolinhas brancas, todos os passarinhos debaixo do céu, venham

ajudar-me a catar as lentilhas, as boas no pratinho, as ruins no buchinho.

Então vieram voando e entraram pela janela da cozinha duas pombinhas brancas e atrás

delas as rolinhas, e finalmente todos os passarinhos debaixo do céu entraram ruflando as asinhas

e pousaram nas cinzas do borralho. E as pombinhas baixaram as cabecinhas e começaram, pic-

pic-pic, e os outros também, pic-pic-pic, a bicar e a pôr todas as lentilhas boas na bacia. E antes

que passasse meia hora, eles terminaram tudo e voaram todos embora. Então a moça levou as

bacias para a madrasta, contentíssima, pensando que agora podia ir junto com elas para a festa.

Mas a malvada mulher falou:

– Nada disso vai te adiantar; não virás conosco, porque não tens vestido e não sabes

dançar; nós ficaríamos com vergonha de ti.

E com isso ela virou as costas à moça e saiu apressada junto com suas filhas orgulhosas.

Quando, então, não estava mais ninguém em casa, Gata Borralheira foi para o túmulo

da mãe debaixo da nogueira e falou:

– Sacode teus ramos, querida nogueira, joga ouro e prata sobre a Borralheira.

Então o passarinho jogou-lhe um vestido de outro e prata, e sapatinhos bordados de seda

e prata. Sem perda de tempo, Gata Borralheira vestiu-se e foi para a festa. As irmãs e a madrasta

não a reconheceram e pensaram que ela era uma princesa estrangeira, tão linda ela estava no

seu vestido de ouro. Elas nem pensaram na Gata Borralheira, achando que ela estava em casa,

na cozinha, catando lentilhas nas cinzas do fogão.

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O filho do rei veio ao seu encontro, tomou-a pela mão e dançou com ela. Ele não quis,

dali em diante, dançar com mais ninguém e não soltava a mão da moça, e quando vinha outro

para convidá-la, ele dizia:

– Esta dançarina é minha.

Gata Borralheira dançou até anoitecer, então ela quis ir para casa. Mas o filho do rei

falou:

– Eu vou junto para te acompanhar – pois ele queria ver onde era a casa da bela moça.

Ela, porém, escapou dele e se escondeu dentro do pombal. Então o príncipe esperou até

que chegasse o pai e lhe disse que a moça estranha pulara para dentro do pombal. O velho

pensou: “Será que não é a Gata Borralheira”? e tiveram de trazer-lhe a machadinha para ele

poder rachar o pombal; mas dentro não havia ninguém.

Quando a madrasta e suas filhas voltaram, Gata Borralheira estava deitada nas cinzas,

com suas roupas sujas, e uma pequena lâmpada de azeite ardendo tristonha sobre o fogão – pois

Gata Borralheira pulara ligeira por detrás do pombal e correra para a nogueira do cemitério. Lá

ela deixara suas lindas roupas sobre o túmulo, e o passarinho as levara embora; e ela voltara

para seu borralho, na cozinha, com o seu velho avental cinzento.

No dia seguinte, quando a festa recomeçou e os pais e as irmãs já tinham saído, Gata

Borralheira foi até a nogueira e disse:

– Sacode teus ramos, querida nogueira, joga ouro e prata sobre a Borralheira.

Então o pássaro jogou-lhe um vestido ainda mais imponente que o da véspera. E quando

a moça apareceu na festa com aquele vestido, todo o mundo se espantou com a sua beleza. O

príncipe, porém, já esperava por ela, e tomou-a logo pela mão e só dançou com ela. Quando os

outros vinham convidá-la, ele dizia:

– Esta dançarina é minha.

Quando a noite caiu, ela quis ir embora, e o príncipe a seguiu, pois queria ver a casa

onde ela entraria, mas ela lhe escapou e fugiu para o jardim atrás da casa. Ali havia uma árvore

grande e formosa, carregada de lindas peras. Gata Borralheira subiu por entre os galhos, ágil

como um esquilinho, e o príncipe não sabia onde ela fora parar.

Mas ele esperou até que chegasse o pai e lhe disse:

– A moça estranha fugiu de mim, e acho que ela pulou na pereira.

O pai pensou: “Será que não é a Gata Borralheira?” Mandou buscar a machadinha e

derrubou a árvore, mas não havia ninguém nela.

Quando as outras voltaram, Gata Borralheira estava deitada lá nas cinzas, como sempre,

porque ela pulara ao chão do outro lado da árvore, devolvera as lindas roupas ao pássaro da

nogueira, e vestira seu avental cinzento.

No terceiro dia, quando os pais e as irmãs já tinham saído, Gata Borralheira voltou para

o túmulo da mãe e disse à arvorezinha:

– Sacode teus ramos, querida nogueira, joga ouro e prata sobre a Borralheira.

Desta vez o pássaro lhe jogou um vestido que era tão suntuoso e cintilante como nenhum

dos anteriores, e os sapatinhos eram de ouro puro. Quando ela chegou à festa naquele vestido,

todo mundo ficou sem palavras, tal era o espanto. O príncipe só dançou com ela, e quando

alguém vinha convidá-la, ele dizia:

– Esta dançarina é minha.

E quando anoiteceu, Gata Borralheira quis ir embora, e o príncipe queria acompanhá-

la, mas ela lhe escapou tão ligeira que ele não conseguiu segui-la. Mas o príncipe usara de ardil,

mandando untar com piche a escadaria inteira. E então, ao fugir, o sapatinho esquerdo da moça

ficou grudado num degrau.

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– O príncipe levantou-o, e era pequenino e gracioso e todo de ouro. No dia seguinte ele

foi ao seu pai e lhe disse:

– Nenhuma outra será minha esposa a não ser aquela em cujo pé couber este sapatinho

de ouro.

Então as duas irmãs ficaram muito contentes, porque tinham pés bonitos. A mais velha

entrou no quarto e quis experimentar o sapatinho, e sua mãe ficou junto dela. Mas ela não

conseguiu fazer caber nele o dedão do pé. Então a mãe lhe entregou uma faca e disse:

– Corta fora esse dedão! Quando fores rainha, não precisarás mais andar a pé.

A moça decepou o dedo, forçou o pé para entrar no sapatinho, disfarçou a dor e saiu ao

encontro do príncipe. Então ele a pôs como noiva no seu cavalo e partiu com ela. Mas eles

tinham que passar pelo túmulo, onde as duas pombinhas estavam pousadas na nogueira, e elas

cantaram:

– Purr-purr, purr-purr, purrinho, / Sangue no sapatinho, não cabe no seu pé, / A noiva

esta não é.

Então o príncipe olhou para o pé e viu o sangue escorrendo. Ele fez o cavalo dar meia-

volta, devolveu a falsa noiva à casa e disse que ela não era a certa, e que a outra irmã provasse

o sapato. Então esta entrou no quarto, e conseguiu enfiar os dedos do pé, mas o calcanhar era

grande demais. Então a mãe lhe entregou uma faca e disse:

– Corta fora um pedaço do calcanhar! Quando fores rainha, não precisarás mais andar a

pé.

A moça decepou um pedaço do calcanhar, forçou o pé no sapato, disfarçou a dor e saiu

ao encontro do príncipe. Então ele a pôs no seu cavalo como sua noiva e partiu com ela. Mas

eles passaram pela nogueira, lá estavam as duas pombinhas, que cantaram:

– Purr-purr, purr-purr, purrinho, / Sangue no sapatinho, não cabe no seu pé, / A noiva

esta não é.

Então o príncipe olhou de novo para o seu pé e viu o sangue escapando e subindo pela

meia branca, toda vermelha. Então ele fez o cavalo voltar e devolveu a falsa noiva à sua casa.

– Esta não é a certa – disse ele –, a senhora não tem outra filha?

– Não – disse o marido –; só da minha esposa falecida temos aqui uma pequena e

insignificante Gata Borralheira; não é possível ser ela a noiva.

O príncipe disse que a mandassem subir, mas a madrasta respondeu:

– Oh, não, a moça é muito sujinha, ela não pode se mostrar a ninguém.

Mas ele queria vê-la de qualquer forma, e tiveram que chamar a Gata Borralheira. Então

ela lavou as mãos e o rosto, apareceu e curvou-se diante do filho do rei, que lhe estendeu o

sapatinho de ouro.

Ali ela sentou-se sobre o banquinho, tirou o pé do pesado tamanco de madeira e enfiou-

o no sapatinho, que se adaptou com perfeição. E quando ela se levantou, o príncipe a fitou no

rosto, reconheceu a bela moça que dançara com ele, e exclamou:

– Esta é a noiva verdadeira!

A madrasta e as duas irmãs se assustaram e empalideceram de raiva. Ele, porém, pôs a

Gata Borralheira sobre o seu cavalo e partiu com ela.

E quando eles passaram pela nogueira, as duas pombinhas brancas arrulharam:

– Purr-purr, purr-purr, purrinho, / Sem sangue no sapatinho, que coube no seu pé, / A

noiva é esta, é.

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ANEXO B – AS CEGONHAS (HANS CHRISTIAN ANDERSEN)

Na última casa de uma pequena vila, havia um ninho de cegonha. Mamãe Cegonha

ficava no ninho, com seus quatro filhotes pequenos. Estes punham a cabeça de fora, mostrando

o pequenino bico preto, que ainda não se tornara vermelho. Pouco adiante, no alto da cumeeira,

rijo e importante, perfilava-se Papai Cegonha. Encolhera a perna, e estava imóvel numa perna

só, para que seu trabalho de montar guarda ao ninho não fosse fácil demais. Mantinha-se tão

imóvel que parecia talhado em madeira.

“Devem tomar-nos por família muito distinta”, ponderava ele, “ao verem que minha

mulher tem sentinela junto ao ninho, pois ninguém pode saber que sou o marido dela.

Certamente, todos imaginam que tenho ordem de ficar de guarda. É tão imponente...” E

continuou firme, numa perna só.

Embaixo, na rua, brincava todo um bando de crianças. Quando viram as cegonhas, um

dos meninos, mais atrevido, cantou acompanhado depois por todos, os velhos versos sobre as

cegonhas. Mas cantavam-nos à moda deles:

Oh, cegonha, cegonhinha,

Voa para tua casinha!

Tua mulher está sozinha.

De quatro filhos taludos

Tem ela que cuidar.

Um será enforcado,

O outro trancafiado,

O terceiro queimado.

O quarto bem sei que triste fim terá...

– Escuta! Ouve o que cantam os meninos! – disseram os pequeninos filhotes. – Dizem

que vamos ser enforcados e queimados...

– Não deveis importar-vos com isso – disse a mãe. – Coisas assim, quando não se escuta,

não fazem mal nenhum.

Mas os meninos continuavam a cantar, e apontavam com os dedos as cegonhas. Somente

um, entre eles, chamado Pedro, disse que dava pena caçoar assim dos pobres animais, e não

quis tomar parte da brincadeira.

A mãe cegonha consolou os filhos.

– Não vos importeis com isso – disse ela – Vede como o vosso pai está quieto, de pé

numa perna só, ainda por cima.

– Estamos com muito medo – disseram os filhotes.

E enfiaram a cabeça bem no fundo do ninho.

No dia seguinte, quando as crianças de novo se reuniram para brincar, e viram as

cegonhas, recomeçaram sua cantiga:

Um será enforcado,

O outro trancafiado...

– Seremos enforcados e queimados? – perguntaram os filhotes.

– Claro que não! – disse a mãe. – Aprendereis a voar, eu os treinarei para isso. Iremos

ao prado visitar as rãs, que se inclinam na água, quando nós chegamos, e cantam: “Coá, Coá!”

Depois nós as comemos, o que é o melhor da festa.

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– E depois?

– Depois reúnem-se as cegonhas de todo o país e começam as manobras no outono. Aí

deve-se saber voar muito bem. Isso é muito importante, pois o general mata com o bico quem

não souber voar. Por isso, tratei de aprender alguma coisa quando começarem os exercícios.

– Pois então seremos de fato castigados, como disseram os meninos. Ouve, eles o dizem

de novo!

– Ouvi o que eu digo, e não o que eles dizem – censurou a mãe. – Depois da grande

manobra, voaremos para as terras quentes, muito, muito longe daqui, por sobre as montanhas e

florestas. Voaremos para o Egito, onde existem casas triangulares, de pedra, que vão até as

nuvens, e são chamadas de pirâmides. São mais velhas do que o pode imaginar qualquer

cegonha. Ali há um rio que transborda, transformando a terra em lama. Anda-se no lodo,

comendo rãs.

– Ah! – exclamaram todos os filhotes.

– Pois é! É maravilhoso! Não se faz outra coisa senão comer o dia inteiro, e enquanto

nós, ali, passamos bem, aqui na terra não há uma folha verde nas árvores. Aqui faz então tanto

frio, que as nuvens se congelam, quebra-se em pedacinhos, e caem, em pequenos fragmentos

brancos.

Ela falava na neve, não sabia explicá-lo de modo mais claro.

– E os meninos maus? Também congelam e se quebram em pedacinhos? – perguntaram

os filhotes de cegonha.

– Não, não se quebram em pedacinhos, mas pouco falta para isso! Ficam presos dentro

do quarto escuro, e não podem fazer nada, enquanto vós podeis voar para terras estranhas, onde

há flores e sol quente.

Passou-se algum tempo. Os filhotes já estavam tão grandes que podiam ficar de pé no

ninho e olhar ao redor, para longe. O papai cegonha trazia todos os dias as mais bonitas rãs,

pequenas cobras-d’água e quantas petisqueiras de cegonha conseguia encontrar. E como era

engraçado o velho fazendo artes para os filhotes! Virava a cabeça até deitá-la em cima da cauda,

matraqueava com o bico e contava histórias aos pequenos, todas elas histórias do brejo.

– Ireis agora aprender a voar! – declarou um belo dia mamãe cegonha.

Os quatro filhotes tiveram de sair para a cumeeira. Como estavam bambos! Batiam as

asas, para se equilibrar, e ainda assim quase caíam do telhado.

– Olhai bem para mim! – disse a mãe. – É assim que deveis manter a cabeça! Assim! E

as pernas se firmam assim, olhai! Um, dois! Um, dois! É isso que vos irá ajudar a ir adiante no

mundo!

Ela alçava-se num curto vôo, e os filhotes, querendo imitá-la, davam um pulinho curto,

desajeitado – e bumba! Lá iam para o chão. Eram pesados demais.

– Não quero voar! – declarou um deles, encafuando-se no ninho. – Nem me importa se

vou para as terras quentes, ou não! E pronto!

– Então queres morrer de frio aqui, quando vier o inverno, não é? Queres que os meninos

venham e te enforquem, te queimem e te assem no espeto? Vou chamar os meninos, espera aí!

– Não, não! – disse o filhote, e tornou a saltitar na cumeeira, como os outros.

No terceiro dia, já sabiam voar um pouco, e pensavam que podiam pairar no ar.

Tentaram fazê-lo – e bumba! Lá vinha um bom tombo. Tinham que bater asas de novo para

reaver o equilíbrio...

Os meninos vieram descendo a rua, cantando os versos conhecidos:

Oh cegonha, cegonhinha!

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– Vamos descer e furar-lhes os olhos a bicadas? – propuseram os filhotes.

– Nada disso! – interveio a mãe. – Ouvi o que eu digo, é muito mais importante! Um,

dois, três! Vamos voar mais alto! Um, dois, três! À esquerda, em roda na chaminé! Muito bem!

Essa última batida de asas foi certinha. Assim, já amanhã poderei levá-los ao brejo comigo. Lá

estarão várias boas famílias de cegonhas, com os seus filhos. Quero que os meus sejam mais

bonitos e saibam se portar direitinho, pois é o que causa boa impressão e torna a pessoa

respeitada.

– Mas então nunca poderemos nos vingar dos maus meninos? – perguntaram os filhotes

de cegonha.

– Deixai-os gritar o que quiserem! Voareis para as nuvens, ireis à terra das pirâmides,

enquanto eles estarão passando frio, sem ter uma folha verde nem uma doce maçã!

– Mas havemos de nos vingar! – sussurraram uns aos outros, e voltaram aos exercícios.

Entre os meninos da rua, o pior, o que mais cantava os versos zombeteiros era o menor

deles: não teria mais de seis anos. Os filhotes de cegonha, porém, acreditavam que o menino

tivesse cem anos, por ser ele maior que a mãe e o pai deles, cegonha. Que sabiam eles sobre a

idade das crianças e da de gente grande? Toda a vingança dos filhotes ia desencadear-se contra

aquele menino que começara, e que continuava, sem parar, a cantar os versinhos. Os filhotes

de cegonha estavam muito irritados e, à medida que iam crescendo, estavam cada vez menos

dispostos a tolerar aquilo. Por último, a mãe não teve outro remédio senão prometer-lhes que

iam poder vingar-se, mas não antes do derradeiro dia em que estivessem na terra.

– Primeiro veremos como vos portareis na grande manobra. Se vos sairdes mal, fazendo

com que o general meta o bico no peito, os meninos tiveram razão, de certo modo. Vamos ver!

– Pois verás! – disseram os filhotes, e se esforçaram mais ainda nos exercícios.

Treinavam todos os dias, realizando vôos tão leves e graciosos, que dava gosto de ver.

Chegou o outono. Todas as cegonhas começaram a reunir-se para voarem rumo às terras

quentes, onde costumavam permanecer, enquanto nós, aqui, temos inverno. Que grande

manobra! Tinham de voar sobre as florestas e cidades, só para ver se voavam bem, pois iam

partir para uma longa viagem. Os filhotes faziam tudo tão bem feito, que eram fartamente

recompensados com rãs e cobras. Era o melhor prêmio, e comiam a valer rãs e cobrinhas.

– Agora vamos vingar-nos – disseram.

– Como não! – disse a mãe. – Já imaginei a vingança acertada. Conheço o lago onde

ficam todas as crianças pequeninas até que a cegonha as venha buscar e levá-las aos pais. As

bonitas criancinhas dormem e sonham – sonhos tão maravilhosos como nunca mais chegarão a

ter. Todos os pais querem muito ter uma criancinha dessas e todas as crianças querem ter uma

irmã ou um irmão como elas. Vamos agora voar até o lago, vamos buscar uma criança para

cada um dos meninos que não cantaram a cantiga zombeteira, escarnecendo das cegonhas. Os

meninos maus, que cantaram, não receberão nada.

– Mas aquele que começou a cantiga, aquele menino mau, perverso? – gritaram os

filhotes de cegonha. – Que faremos com ele?

No lago há uma criancinha morta. Morreu de tanto sonhar. Vamos buscá-la e levá-la ao

menino mau, que terá de chorar por lhe termos trazido um irmãozinho morto. Mas não

esquecestes, com certeza, o menino bom, o que disse que é pena zombar dos animais. A este

levaremos um irmão e uma irmã, o como o nome dele é Peter, sereis todos chamados Peter.

E assim foi feito. Todas as cegonhas foram chamadas de Peter, nome que conservam até

hoje.

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ANEXO C – O PATINHO FEIO (HANS CHRISTIAN ANDERSEN)

É tão linda a vida lá fora, no campo. Era verão, o trigal estava amarelo, a aveia ainda

verdejava, e o feno estava empilhado em medas no vasto prado verde. Por lá a cegonha passeava

suas compridas pernas vermelhas, e falava egípcio, língua que aprendera da mãe. Ao redor dos

campos erguiam-se grandes florestas, que ocultavam lagos tranqüilos. Era deveras bonito lá

fora, no campo.

Banhada de sol, cercada de canais profundos, havia uma velha herdade. Dos seus muros

desciam até a água grandes folhas de labaça, tão altas que crianças pequenas podiam ficar de

pé, embaixo das maiores delas. Formavam densa folhagem, emaranhada como a de uma mata

de verdade. Ali a pata fizera seu ninho e estava deitada sobre os ovos. Devia chocá-los até

saírem os patinhos, mas já estava quase aborrecida daquilo, pois demorava tanto e ela raramente

recebia uma visita. As outras patas preferiam nadar pelos canais a subir até lá e ficarem

acocoradas embaixo de uma folha de labaça, para baterem um papo com ela.

Finalmente, um ovo depois do outro começou a mexer-se.

– Piu-piu! – diziam os ovos.

Todas as gemas haviam-se tornado vivas e botavam a cabeça de fora.

– Vamos, vamos! – dizia a pata, e os filhotes iam saindo o mais depressa que podiam.

Espiavam para todos os lados, sob as folhas verdes, e a mãe deixava-os olhar quanto

quisessem, pois a cor verde faz bem aos olhos.

– Como o mundo é grande! – disseram os filhotes.

Agora sim, tinham muito mais espaço do que dentro do ovo.

– E vocês pensam que isso é todo o mundo! – disse a mãe.

E explicou:

– O mundo meus caros filhos, estende-se para muito além do quintal, até o campo do

padre, onde também eu nunca estive ainda. Espero que já estejam todos fora dos ovos – e

ergueu-se para verificar. – Não, não saíram todos. O ovo maior ainda está inteiro. Como

demora, safa! Já ando cheia disso...

E tornou a deitar-se.

– Então? Como vai a coisa? – perguntou-lhe uma velha pata, que veio fazer uma visita.

– Um ovo está demorando demais... – disse a pata choca. – Não há meio de se quebrar.

Mas vais ver os outros. São os patinhos mais bonitos que já vi! Parecem-se todos com o pai, o

maganão, que nem aqui aparece, para me visitar.

– Deixa-me ver o ovo que não quer quebrar-se – disse a pata velha. – Deve ser um ovo

de peru. Já fui lograda assim uma vez. Foi uma luta, uma trabalheira que só vendo! Os filhotes

tinham medo de água, sabes? Não consegui fazê-los entrar no lago. Eu chamava, gritava, e

nada. Deixa-me ver o ovo. Sim, é ovo de peru. Larga-o aí e ensina os outros filhotes a nadar.

– Vou ficar ainda um pouquinho em cima dele – disse a outra pata. – Se já fiquei até

agora, posso ficar mais uns dias.

– Tu é que sabes! – disse a velha pata, e foi-se embora.

Afinal p ovo grande partiu-se.

– Piu-piu! – piou o filhote, saindo fora da casca.

Era taludo e feio. A pata olhou-o bem.

– Patinho enorme, este! – disse ela. – E é diferente de todos os outros. Mas isso não

pode ser pinto de peru, nunca! Enfim, é o que vamos ver. Para a água ele vai, ainda que eu

mesma tenha que forçá-lo a pontapés.

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No dia seguinte o tempo foi magnífico. O sol batia em cheio nas verdejantes folhas de

labaça. A pata apareceu no canal com toda a sua família. De um salto atirou-se à água, e pôs-se

a chamar os patinhos. Um após outro, em pulos desajeitados, os pequenos patos entraram na

água. A água cobria-lhes a cabeça, mas logo eles emergiam de novo, e boiavam que era uma

beleza. As perninhas mexiam-se por si, e todos nadavam, até o filhote pardo e feio.

– Não, não é peru! – decidiu a mãe. – Vejam como ele usa as pernas direitinho, como

ergue a cabeça. É meu filho, sim! Olhando-se bem para ele, vê-se que é até muito bonito. E

agora vamos, meus filhos! Vou mostrar o mundo a vocês e apresentá-los no quintal. Mas fiquem

bem perto de mim, para que ninguém os pise. E cuidado com o gato!

Entraram no quintal dos patos. Lá dentro havia um tremendo barulho. Duas famílias

brigavam por causa de uma cabeça de enguia, que acabou caindo na unha do gato.

– Vejam só! Assim é o mundo! – disse a mãe aos patinhos, lambendo o bico, pois

também ela teria gostado de apanhar a cabeça da enguia. – Agora usem as pernas – acrescentou.

– Tratem de andar. E inclinem a cabeça para aquela pata velha, ali do outro lado. Ela é a mais

nobre de todas nós. Tem sangue espanhol, e por isso é tão importante. Ela tem um pano

vermelho na perna, estão vendo? É o que há de mais nobre. É a distinção máxima que se pode

dar a qualquer pato: significa que não querem separar-se dela e que ela tem de ser reconhecida

pelos bichos e pela gente. E agora vamos andar, sem encolher as pernas. Um patinho bem

educado abre bem as pernas, como o pai e a mãe. Assim! Agora mexam o pescoço e digam:

“Qué-qué-qué...”

E assim fizeram os patinhos. Os outros patos ao redor, vendo o bando, criticaram em

voz alta.

– Vejam só! – diziam. – Vamos ter mais essa turma toda aqui dentro. Como se já não

fôssemos gente de sobra. E olhem como é feio aquele patinho! Esse não vamos tolerar!

Dito e feito. Uma pata voou para a ninhada e bicou a cabeça do patinho feio.

– Deixa-o em paz! – protestou a mãe. – Ele não faz mal a ninguém.

– Sim. Mas é muito grande e esquisito – disse a pata que o bicara. – E isso é quanto

basta!

– Que lindos são os meninos da mamãe! – disse a velha pata que tinha o pano na perna.

– São todos bonitos, menos aquele ali, que não saiu bem. Gostaria que a amiga desse um jeito

nele.

– Não há mais jeito a dar, madame – disse a mãe dos patinhos. – Ele não é bonito, mas

tem um bom gênio e nada tão bem como qualquer um dos outros. Se quer que o diga, nada até

um pouco melhor. Com o crescimento, creio, ele se tornará mais bonito. Pode ser também que

com o tempo ele se torne um pouco menor. Ele esteve tempo demais dentro de um ovo, e por

isso não saiu com boa estampa.

E a pata afagou-o e catou-lhe a nuca com o bico.

– Além disso – acrescentou – é um pato macho e aí não importa tanto. Creio que será

bem forte e irá adiante.

– Os outros patinhos são uma gracinha – disse a pata velha. – Enfim, estejam à vontade.

Estão em sua casa. Se acharem uma cabeça de enguia, não façam cerimônia.

Todos puseram-se à vontade.

Mas o pobre patinho feio, nascido por último, era bicado, empurrado e escarnecido. Não

só os patos, mas também as galinhas o maltratavam a valer.

– Ele é grande demais! – diziam todos.

O peru macho, que nascera com esporas, e por isso se julgava o imperador, inchou-se

todo, como um navio com velas enfunadas, e avançou para o patinho. Resmungou, e ficou com

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a cabeça toda vermelha. O patinho, coitado, não sabia para onde ir nem onde ficar, triste e

desesperado por ser tão feio e vítima das zombarias de todo o galinheiro.

Foi assim no primeiro dia, e daí por diante foi ficando cada vez pior. O pobrezinho era

perseguido por todos. Até os irmãos eram maus para ele.

– Tomara que o gato te pegue, bicho feioso! – diziam a cada instante.

– Tomara eu não te ver mais! – dizia a mãe.

Os patos o bicavam, as galinhas o beliscavam, e a moça encarregada de alimentá-los

dava-lhe pontapés.

Aflito, o patinho fugiu, correndo, e voou por cima a cerca. Lá fora, nas moitas, os

passarinhos levantaram vôo, assustados. “Deve ser porque sou tão feio” pensou o patinho, e

fechou os olhos. Continuando a fugir, chegou ao grande pântano onde moravam as marrecas

selvagens. Ali ficou a noite inteira, triste e cansado.

Pela manhã, ao levantar vôo, as marrecas viram o novo companheiro.

– Quem és tu? – perguntaram.

O patinho virou-se para todos os lados, cumprimentando humildemente.

– És um bocado feio! – disseram as marrecas. – Mas isso a nós pouco importa, desde

que não te cases com gente da nossa família.

Coitado! Estava mesmo pensando em casar! Mas que o deixassem em paz, entre os

juncos, bebendo água do brejo.

Ficou ali dois dias inteiros, quando vieram dois gansos selvagens, machos, saídos do

ovo havia pouco tempo, e por isso muito estabanados.

– Escuta aqui, camarada – disse um deles – És tão feio que até gosto de ti. Queres vir

conosco e ser ave de arribação? Em outro pântano, bem perto daqui, há umas gansas jovens e

bonitas. És capaz de ter sorte com elas, de tão feio que és!

– Pum-pum! – soou naquele momento em cima deles.

Os dois gansos selvagens caíram mortos entre os juncos e a água tingiu-se de vermelho.

– Pum-pum!

Novos tiros ecoaram, e bandos inteiros de gansos selvagens saíram voando. Era grande

a caçada. Os caçadores estavam de tocaia no pântano. Alguns estavam trepados nas árvores que

estendiam os galhos sobre a água. A fumaça azulada dos tiros elevou-se em nuvens, por entre

as árvores copadas, e pairou sobre o pântano. Os cães de caça vieram varando o lodo, o junco

e os bambus deitaram-se para todos os lados. Apavorado, o pobre patinho meteu a cabeça

embaixo da asa. Um cão enorme, terrível, parou bem perto dele, com a língua pendendo fora

da boca e um brilho feroz nos olhos. Escancarou a goela para o patinho, mostrando os dentes

agudos e... afastou-se de novo sem atacá-lo.

– Graças a Deus! – gemeu o patinho. – Sou tão feio que nem o cachorro me quis morder.

Ficou deitado, imóvel, enquanto um tiro ecoava depois do outro, e as balas zuniam por

entre os juncos.

Só muito mais tarde tudo sossegou. Mas o pobre patinho ainda assim não se arriscou a

sair do lugar. Esperou várias horas, depois olhou bem ao redor, e saiu às pressas, por fim, do

pântano, correndo o mais que podia. Atravessou campos e prados. Ventava tanto que ele quase

não conseguia sair do lugar.

A noitinha chegou ele a um humilde casebre de um camponês pobre. De tão estragado

o casebre, não sabia por onde entrar, e por isso ficava de pé. O vendaval soprava com tanta fúria

ao redor do patinho, que ele teve de sentar-se na cauda para oferecer resistência. A força do

vendo aumentava sempre. Aí ele notou que a porta da cabana se desprendera de um dos gonzos,

e pendia, tão torta, que dava passagem para ele se esgueirar até o interior dela. Foi o que ele

fez.

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Morava ali uma velha com um gato e uma galinha. O gato chamava-se Janota, sabia

arquear as costas e ronronar, sabia até faiscar os olhos, quando se lhe afagava os pelos. A

galinha tinha pernas muito pequenas e baixas, e por isso era chamada Nanica. Era boa poedeira,

e a mulher a estimava como a um filho.

Pela manhã logo deram com o patinho estranho. O gato começou a ronronar e a galinha

a cacarejar.

– O quê? – disse a mulher, olhando ao redor. Mas não enxergava bem, e pensou que

fosse uma pata gorda que estivesse perdida por ali. – Estou com sorte – acrescentou. – Vou ter

ovos de pato. Contando que não seja um macho. . . É o que vamos ver.

E o patinho foi admitido, como experiência, por três semanas. Mas nada de ovos. O gato

era o dono da casa e a galinha a dona. “Nós e o mundo”, costumavam sempre dizer, certos de

que eram a metade dele, e a melhor metade, ainda por cima. O patinho achou que também se

podia ter outra opinião, com o que a galinha não concordou.

– Sabes pôr ovos? - perguntou ela.

– Não.

– Então cala a boca!

– Sabes arquear as costas, ronronar, e faiscar os olhos? – perguntou o gato.

– Não.

– Então não podes dar opinião em conversa de gente grande.

O patinho meteu-se num canto, acabrunhado. Pensou no ar livre e no Sol. Sentiu um

estranho desejo de flutuar na água. Por fim, não mais resistiu, e teve de confiar à galinha seus

anseios.

– Sai-te com cada idéia! – retrucou a galinha. – Não tens o que fazer. Por isso vens com

essas idéias malucas. Põe ovos ou faz ronrom, que isso passa!

– Mas é tão bom boiar na água! É tão gostoso mergulhar até o fundo, e ter água acima

da cabeça!

– Deve ser um grande prazer! – disse a galinha. – Estás louco, isso sim. Pergunta ao

gato, que é o sujeito mais inteligente que conheço, se ele gostar de boiar ou de mergulhar. De

mim nem quero falar. Pergunta até à nossa patroa, a velha. Não há ninguém no mundo mais

inteligente do que ela. Achas que ela tem vontade de boiar ou de ter água por cima da cabeça?

– Vocês não me entendem! – disse o patinho.

– Se nós não te entendemos, quem irá então te entender? Não vais querer ser mais

inteligente que a patroa e o gato, para não falar de mim! Não te metas a sabido, guri! Dá graças

a Deus por todo o bem que te foi feito! Não vieste a um quarto quente, para a companhia de

gente da qual podes aprender alguma coisa? Mas és um idiota metido a besta; e nem tem graça

falar contigo! Em mim podes crer: só quero o teu próprio bem. Digo-te coisas desagradáveis e

é por elas que se conhecem os verdadeiros amigos. Trata logo de pôr ovos ou aprende a ronronar

ou a faiscar os olhos.

– Creio que vou sair pelo mundo afora – disse o patinho.

– Pois vai! – respondeu a galinha.

E o patinho feio foi-se embora. Boiou e mergulhou, mas todos os animais o desprezavam

por sua feiura.

Chegou o outono. Na mata as folhas se tingiram de amarelo e marrom. O vento pegava

nelas, fazendo-as dançar. No espaço havia indícios de frio. As nuvens pairavam, baixas e

pesadas, cheias de granizo e de neve. Empoleirado na cerca, o corvo grasnava de frio. Só de

pensar no inverno já se sentia a alma enregelada. O pobre patinho passava muito mal. Certo

dia, à hora do crepúsculo, saiu da mata todo um bando de grandes e garridas aves. O patinho

nunca vira antes aves tão lindas. Eram de um branco brilhante, com longo pescoço delgado e

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flexível. Eram cisnes. Soltaram gritos muito estranhos, abriram as longas e esplêndidas asas, e

partiram da região fria, em busca de paragens mais quentes, de grandes lagos. Foram subindo,

foram subindo, cada vez mais alto. Vendo-as, o patinho feio sentiu algo estranho. Virou-se na

água, como uma roda, esticando o pescoço, bem alto, na ânsia de vê-las melhor, e soltou um

grito tão agudo e esquisito que ele próprio se assustou. Não lhe saíam da cabeça as maravilhosas

aves, as aves felizes. Quando desapareceram ao longe, quando delas não havia mais o menor

vestígio no céu, ele mergulhou até o fundo. Quando tornou a subir à tona, estava fora de si. Não

sabia o nome daquelas aves, nem para onde voavam, mas apesar disso gostava delas como

nunca antes gostara de ninguém. Não sentiu inveja. Como poderia ter ousado desejar para si

uma tal delícia, ele que já se teria dado por muito feliz se os patos o tivessem tolerado em sua

companhia, pobre bichinho feio?

O inverno chegou, muito, muito frio. O patinho era obrigado a nadar constantemente

para evitar que a água congelasse de todo. Casa noite, porém o espaço em que ele nadava ia-se

tornando menor. O frio era tal que a crosta de gelo estalava. O patinho teve de mover

continuamente os pés, para que a água não endurecesse ao seu redor. Mas, por fim, a fadiga o

venceu e ele ficou imóvel, preso dentro do gelo.

Pela manhã bem cedo um camponês passou por ali e viu-o. Aproximou-se e quebrou o

gelo com o tamanco, libertou o patinho e levou-o para casa, dando-o de presente à sua mulher.

Dentro de casa o patinho reanimou-se.

As crianças queria brincar com ele, mas ele, pensando que lhe queriam fazer mal,

assustou-se, fugiu e foi cair direitinho no latão do leite, derramando todo o conteúdo no quarto.

A mulher gritou e bateu as mãos; e o patinho, mais assustado ainda, voou, e caiu no tacho da

manteiga, e depois na barrica de farinha de trigo, de onde tornou a sair, mas de que jeito! Ficou

com um aspecto horrível! A mulher gritou e procurou atingi-lo com o tenaz do fogão. As

crianças corriam, caíam umas em cima das outras, no afã de caçar o patinho, e riam e gritavam.

Por felicidade, a porta estava aberta, e por ela o patinho saiu e foi ocultar-se entre uns arbustos,

na neve caída à noite, e ali ficou deitado, inerte.

Seria demasiado triste contar todas as misérias e privações pelas quais o patinho teve de

passar durante o rigoroso inverno. Quando de novo o sol começou a aquecer a terra, encontrou-

o deitado no pântano, entre os juncos. As cotovias cantavam e a primavera começava, linda e

radiante.

Num ímpeto, ele abriu as asas, que fizeram maior rumor que antes, e o carregavam,

potentes, para longe. Antes que ele mesmo o soubesse, achava-se num grande pomar, onde as

macieiras estavam em flor e o fragrante lilás pendia, em longos ramos verdejantes, sobre a água

dos sinuosos canais. Ali tudo era delicioso e primaveril. Da mata saíram três formosos cisnes

brancos, ruflando as penas, flutuando, leves e ligeiros, sobre a água. O patinho reconheceu as

formosas aves e sentiu-se tomado de uma estranha melancolia.

– Vou até lá; ao encontro daquelas aves reais. Irão matar-me de bicadas porque eu, tão

feio, me atrevo a aproximar-me delas. Mas não me importo. Melhor ser morto por elas que ser

bicado pelos patos, pelas galinhas, ou tratado a pontapés pela moça que cuida do galinheiro, ou

ainda sofrer miséria no inverno!

E voou para a água, nadando em direção aos formosos cisnes, que o viram e lhe vieram,

céleres, ao encontro.

– Matai-me, se quiserdes! – disse ele.

E curvou a cabeça para baixo, para a água, à espera da morte. Mas. . . Que viu ele na

água cristalina? Era a sua própria imagem, refletida ali. Mas não era a de um pato, de um pardo

e feio pato. Era um cisne que ele via no espelho da água.

Não importa ter nascido num galinheiro, entre patos, quando se saiu de um ovo de cisne.

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Sentiu-se até satisfeito com as angústias e adversidades sofridas. Sentia agora a ventura,

as maravilhas que o aguardavam. E os grandes cisnes nadaram ao redor dele, afagando-o com

o bico.

No jardim apareceram crianças, que atiraram pão e grãos de farinha à água.

– Há um cisne novo! – gritou a menor das crianças.

– Sim, veio um novo – repetiram as outras, jubilosas.

Bateram palmas e dançaram ao redor, correram a chamar os pais. Pães e bolos foram

atirados à água.

– O novo é o mais bonito – diziam todos. – Tão jovem e belo!

Também os cisnes mais velhos inclinavam-se ante o mais novo deles.

Ele ficou embaraçado, e escondeu a cabeça nas asas, sem saber o que fazer. Sentiu-se

muito, muito feliz, mas não ficou vaidoso nem soberbo, pois um bom coração nunca se torna

soberbo. Pensou no quanto fora perseguido e escarnecido, e ouvia agora todos dizerem que ele

era o amis lindo entre todas as aves lindas. Os arbustos de lilás inclinavam os ramos sobre a

água, e o Sol brilhava, cálido amigo. Ruflando as penas e curvando o gracioso pescoço, o cisne

exultava intimamente:

– Nunca sonhei tanta felicidade quando eu era um patinho feio!

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ANEXO D – UM-OLHINHO, DOIS-OLHINHOS, TRÊS-OLHINHOS

(IRMÃOS GRIMM)

Era uma vez uma mulher que tinha três filhas. A mais velha chamava-se Um-olhinho,

porque tinha um único olho bem no meio da testa; a do meio chamava-se Dois-olhinhos, porque

tinha dois olhos como as outras pessoas; e a mais nova chamava-se Três-olhinhos, porque tinha

três olhos, e o terceiro se encontrava também no meio da testa. Mas como Dois-olhinhos não

era diferente de toda a gente comum, as irmãs e a mãe não a suportavam. Elas lhe diziam:

– Tu, com teus dois olhos, não és melhor que o povo ordinário; tu não és uma de nós.

E elas a empurravam e só lhe jogavam vestidos velhos e não lhe davam para comer nada

além do que eu sobrava delas, e lhe faziam mal sempre que podiam.

Um dia Dois-olhinhos teve de sair para o campo, para guardar a cabra, mas estava com

muita fome, porque as irmãs lhe tinham dado muito pouco para comer. Então ela sentou-se

numa beira de mato e começou a chorar tão amargamente que dois riachinhos escorriam dos

seus olhos. E quando, na sua aflição, ela levantou os olhos, lá estava uma mulher na sua frente,

e lhe perguntou:

– Dois-olhinhos, por que choras?

Dois-olhinhos respondeu:

– E não é para chorar? Só porque eu tenho dois olhos como os outros seres humanos, as

minhas irmãs e minha mãe não me suportam; elas me empurram de um lado para o outro,

jogam-me vestidos velhos e não me dão nada para comer a não ser o que sobra delas. Hoje elas

me deram tão pouco, que ainda estou de todo faminta.

Então a sábia mulher respondeu:

– Dois-olhinhos, enxuga o rosto; eu vou te dizer uma coisa, para que tu nunca mais

tenhas fome. Deves só dizer à tua cabra:

“Berra, cabrinha, / Põe-te, mesinha”,

e então aparecerá na tua frente uma mesinha bem posta, com as melhores comidas, que poderás

comer até te fartares. E quando estiveres satisfeita e não precisares mais da mesinha, dize

apenas:

“Berra, cabrinha, / Some, mesinha”,

e ela desaparecerá diante dos teus olhos.

E com isso a sábia mulher foi embora.

Dois-olhinhos, porém, pensou: “Preciso experimentar logo, se é verdade o que ela me

disse, porque estou com muita fome”, e disse:

“Berra, cabrinha, / Põe-te, mesinha”,

E nem bem ela pronunciou essas palavras, surgiu uma mesinha, coberta com alva toalha,

com um prato, faca, garfo e colher de prata, e com as mais belas iguarias fumegando ainda

quentes, como recém-trazidas da cozinha.

Então Dois-olhinhos rezou a prece mais curta que sabia: “Senhor Deus, sê nosso

comensal em todas as horas, amém”, avançou e regalou-se à vontade. E quando ficou satisfeita,

falou como lhe ensinara a sábia mulher:

“Berra, cabrinha, / Some, mesinha”.

E imediatamente a mesinha, com tudo o que estava em cima dela, sumiu de novo. “Isto

é que é um bom arranjo”, pensou Dois-olhinhos, e ficou bem contente e de bom humor.

Ao anoitecer, quando ela voltou para casa com a sua cabra, encontrou uma tigelinha de

barro com comida que as irmãs lhe deixaram, mas não tocou em nada.

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No dia seguinte, a moça saiu de novo com a cabra e deixou na tigela as poucas migalhas

que lhes deixaram. Da primeira e da segunda vez, as irmãs não repararam nisso; mas quando a

mesma coisa acontecia todas as vezes, elas o notaram e disseram:

– Alguma coisa não está certa com Dois-olhinhos, que todas as vezes deixa a comida

sem tocá-la, quando antes ela consumia tudo que lhe dávamos. Ela deve ter encontrado outros

caminhos.

Então, quando Dois-olhinhos se preparava para sair de novo, Um-olhinho chegou para

ela e disse:

– Quero ir contigo para o campo, para ver se a cabra é bem guardada e levada para um

bom pasto.

Mas Dois-olhinhos percebeu o que Um-olhinho tinha em mente, e levou a cabra para

um gramado alto, e disse:

– Vem, Um-olhinho, sentemo-nos e eu vou cantar alguma coisa para ti.

Um-olhinho sentou-se, cansada do caminho desusado e do calor do sol, e Dois-olhinhos

começou a cantar e cantava sempre:

“Um-olhinho, velas tu? / Um-olhinho, dormes tu?”

Então Um-olhinho fechou seu único olho e adormeceu. E quando Dois-olhinhos viu que

Um-olhinho dormia profundamente e não poderia descobrir nada, ela disse:

“Berra, cabrinha, / Põe-te, mesinha”,

e tudo desapareceu no mesmo instante.

Então Dois-olhinhos acordou Um-olhinho e disse:

– Um-olhinho, queres ser guardadora e pegas no sono! Nesse meio tempo a cabra podia

ter fugido pelo mundo afora; vem, vamos para casa.

E elas voltaram para casa, e Dois-olhinhos deixou novamente a sua tigela de comida

sem tocá-la. Um-olhinho não pôde revelar à mãe porque a irmã não queria comer, e disse para

se desculpar:

– Eu adormeci lá fora.

No dia seguinte a mãe falou a Três-olhinhos:

– Desta vez irás tu com ela e prestarás atenção para ver se Dois-olhinhos come lá fora e

se alguém lhe traz comida e bebida; porque é certo que ela come e bebe às escondidas.

Então Três-olhinhos disse a Dois-olhinhos;

– Eu vou contigo para ver se a cabra é bem guardada e bem alimentada.

Mas Dois-olhinhos percebeu o que Três-olhinhos tinha em mente, e tocou a cabra para

a grama alta e disse:

– Vamos sentar, Três-olhinhos. Vou te cantar alguma coisa.

Três-olhinhos sentou-se, cansada do caminho e do calor do sol, e Dois-olhinhos

recomeçou a cantiga de antes, e cantou:

“Três-olhinhos, dormes tu?”

Mas em vez de continuar com:

“Três-olhinhos, dormes tu?”

ela cantou inadvertidamente:

“Dois-olhinhos, dormes tu?”

e cantava sempre:

“Três-olhinhos, velas tu?” / Dois-olhinhos, dormes tu?”

E então fecharam-se dois dos olhos de Três-olhinhos, e dormiram, mas o terceiro olho

não adormeceu, porque a falinha não se dirigiu a ele. Mas Três-olhinhos fechou o terceiro olho,

só de esperteza, fingindo que ele também dormia; mas ele piscava e podia ver tudo muito bem.

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E quando Dois-olhinhos pensou que Três-olhinhos estava bem adormecida, ela disse a sua

falinha:

“Berra, cabrinha, / Põe-te mesinha”,

e comeu e bebeu até se fartar, e depois mandou a mesinha embora:

“Berra cabrinha, / Some, mesinha”,

e Três-olhinhos assistiu e viu tudo.

Então Dois-olhinhos foi e acordou-a e disse:

– Ei, Três-olhinhos, tu caíste no sono? És uma boa guardadora!

Vem, vamos para casa.

E quando chegaram em casa, Dois-olhinhos não quis comer nada de novo, e Três-

olhinhos disse à mãe:

– Agora eu sei porque essa coisinha orgulhosa não come; quando ela fica lá fora com a

cabra, e lhe diz:

“Berra, cabrinha, / Põe-te mesinha”,

aparece na frente dela uma mesinha posta e coberta com as melhores comida, muito melhores

que as que temos aqui; e quando ela está farta, ela diz:

“Berra cabrinha, / Some, mesinha”,

e tudo desaparece na hora. Eu assisti tudo isso direitinho. Dois dos meus olhos ela fez adormecer

com uma falinha, mas o da testa felizmente ficou acordado.

Então a mãe invejosa gritou:

– Queres estar melhor do que nós? Esta vontade vai-te passar já e já!

E ela apanhou um facão e cravou-o no coração da cabra, que caiu morta.

Quando Dois-olhinhos viu isso, saiu cheia de tristeza, sentou-se na beira do mato e

chorou lágrimas amargas.

Aí de repente surgiu de novo ao seu lado aquela mulher sábia e disse:

– Dois-olhinhos, por que choras?

– E não é para eu chorar? – respondeu ela. – A cabra que me punha aquela linda mesinha

quando eu lhe dizia a falinha que a senhora me ensinou, foi abatida pela minha mãe. Agora terei

de sofrer fome e aflição novamente.

A sábia mulher falou:

– Dois-olhinhos eu vou te dar um bom conselho. Pede às tuas irmãs que te dêem as

vísceras da cabra morta, e enterra-as no chão da frente da porta da asa; isto será a tua sorte.

Então ela sumiu, e Dois-olhinhos foi para casa e disse às irmãs:

– Queridas irmãs, dai-me alguma coisa da minha cabra: eu não peço nada de bom, dai-

me só as suas vísceras.

Então elas riram e disseram:

– Podes ficar com elas, se não queres nada mais.

E Dois-olhinhos pegou as vísceras e enterrou-as à noite, às escondidas, seguindo o

conselho da sábia mulher, na frente da porta da casa.

Quando na manhã seguinte todas elas acordaram e saíram para a porta da casa, lá estava

uma árvores suntuosa e maravilhosa, que tinha folhas de prata e frutos de ouro, como decerto

não havia nada mais belo e precioso em todo o vasto mundo. Mas elas não sabiam como aquela

árvore fora parar ali durante a noite; só Dois-olhinhos observou que ela nascera das vísceras da

cabra – pois crescia no lugar exato onde a moça as enterrara na véspera.

Então a mãe disse a Um-olhinho:

– Sobe na árvore, minha filha, e traze-nos os seus frutos!

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Um-olhinho subiu, mas toda vez que ela queria agarrar um dos pomos de ouro, o galho

escapava-lhe d mãos; e isto aconteceu todas as vezes, de modo que ela não conseguiu pegar

nem uma só maçã, por mais que se esforçasse:

Então a mãe falou:

Três-olhinhos, sobe tu, com os teus três olhos podes ver em volta melhor que Um-

olhinho.

Um-olhinho desceu da árvore e Três-olhinhos subiu. Mas Três-olhinhos não foi mais

jeitosa que a irmã, e podia olhar a vontade, que as maçãs de ouro escapavam sempre. Finalmente

a mãe perdeu a paciência e subiu ela mesmo, mas não conseguiu nada mais que Um-olhinho e

Três-olhinhos, e só agarrava o ar vazio.

Então falou Dois-olhinhos:

– Eu vou subir, quem sabe tenho mais sorte.

E embora as irmãs gritassem: “Não arranjarás nada, tu com os teus dois olhos”, Dois-

olhinhos subiu assim mesmo, e as maçãs de ouro não fugiam dela, mas entravam sozinhas na

sua mão, de modo que ela pôde colher uma após a outra, trazendo para baixo o aventalzinho

cheio delas.

A mãe tomou-as dela, mas em vez de Um-olhinho e Três-olhinhos tratarem a pobre

Dois-olhinhos melhor depois disso, elas só ficaram cheias de inveja porque Dois-olhinhos era

a única que podia colher os frutos, e trataram-na ainda mais duramente.

Certa vez, quando elas estavam todas juntas em volta da árvore, apareceu ali um jovem

cavaleiro.

– Ligeiro, Dois-olhinhos, - gritaram as duas irmãs, - desaparece, para que nós não

tenhamos de nos envergonhar de ti! E viraram com a maior pressa um barril vazio, que estava

lá ao lado da árvore, em cima da pobre Dois-olhinhos, e esconderam as maçãs de ouro que ela

tinha trazido debaixo do mesmo barril.

Quando o cavaleiro se aproximou, viram que era um belo rapaz. Ele parou, admirou a

suntuosa árvore de ouro de prata e disse às duas irmãs:

– A quem pertence esta linda árvore? Quem me der um ramo dela poderá pedir o que

bem quiser em troca.

Então Um-olhinho e Três-olhinhos responderam que a árvore lhes pertencia, e que elas

lhe dariam um ramo de bom grado. E elas bem que tentaram com grande esforço, mas não o

conseguiram, porque os ramos e os frutos recuavam sempre diante delas.

Então o cavaleiro disse:

– É muito estranho que a árvores vos pertença e vós não tenhais o poder de tirar alguma

coisa dela!

As moças insistiram que a árvore era sua propriedade. Mas enquanto elas falavam assim,

Dois-olhinhos fez rolar de sob o barril duas maçãs de ouro, de modo que ela rolaram até os pés

do cavaleiro; pois Dois-olhinhos estava zangada porque Um-olhinho e Três-olhinhos não

disseram a verdade.

Quando o cavaleiro viu as maçãs, admirou-se e perguntou de onde elas vieram. Um-

olhinho e Três-olhinhos responderam que tinham mais uma irmã, que, porém, não podia se

mostrar porque tinha só dois olhos como as outras pessoas, Mas o cavaleiro exigiu vê-la e

chamou:

– Dois-olhinhos, sai e aparece!

Então Dois-olhinhos apareceu bem calmamente de sob o barril. O cavaleiro admirou-se

da sua beleza e disse:

– Tu, Dois-olhinhos, decerto podes quebrar um ramo da árvore para mim.

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– Sim, – disse Dois-olhinhos, – certamente posso fazer isso, porque a árvore me

pertence.

E ela subiu e quebrou sem esforço um raminho com finas folhas de prata e frutos de

ouro e entregou-o ao cavaleiro.

Então o cavaleiro falou:

– Dois-olhinhos, o que devo dar-te em troca disto?

– Ai, – respondeu Dois-olhinhos, – eu sofro fome e sede, aflição e tristeza desde a manhã

até tarde da noite; se vós quisésseis levar-me e libertar-me, eu ficaria feliz.

Então o cavaleiro pôs Dois-olhinhos na garupa do seu cavalo e levou-a para casa, para

o castelo paterno. Lá ele deu-lhe lindos vestidos, comida e bebida à vontade, e porque gostava

muito dela, quis casar-se com ela, e as bodas foram celebradas com grande alegria.

Quando Dois-olhinhos foi levada pelo belo cavaleiro, as duas irmãs invejaram-na mais

ainda por sua felicidade. “Mas a árvore maravilhosa fica conosco”, pensaram elas; embora não

possamos arrancar os frutos dela, toda gente vai parar na frente dela, virá aqui e a louvará; quem

sabe o que a sorte ainda nos reserva!”

Mas na manhã seguinte a árvore tinha sumido e a esperança delas foi-se com ela. E

quando Dois-olhinhos espiou pela janela do seu quarto no castelo, viu para sua grande alegria

que a árvore estava agora debaixo da sua janela, pois a tinha seguido.

Dois-olhinhos viveu muito tempo, alegre e feliz. Certa vez vieram duas mulheres pobres

ao seu castelo, pedindo esmola. Dois-olhinhos fitou-as no rosto e reconheceu suas irmãs Um-

olhinho e Três-olhinhos que caíram em tamanha pobreza que tinham de andar de porta em porta

para procurar alimento. Dois-olhinhos, porém deu-lhes as boas-vindas e tratou-as bem e cuidou

delas, de modo que as duas se arrependeram de coração do mal que na juventude fizeram à sua

irmã.

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ANEXO E – JOÃO-TRAPALHÃO (HANS CHRISTIAN ANDERSEN)

Longe, no interior do campo, havia uma velha e grande casa, onde morava seu velho

proprietário, que tinha dois filhos; dois jovens que se imaginavam muito inteligentes. Eles

queriam sair de casa e ir namorar a filha do rei, pois esta senhorita em questão havia anunciado

a todo povo que gostaria de escolher para seu marido o jovem que melhor soubesse usar as

palavras.

Estes dois jovens se prepararam uma semana inteira para o namoro. Era o máximo de

tempo que dispunham, mas isto lhes era o bastante, porque sabiam de coisas apreciáveis. Um

deles sabia de cor todo o dicionário em latim e o texto do jornal da cidade, dos últimos três

anos. Sabia-o tão bem, realmente, que era capaz de repeti-lo de trás para frente, de frente para

trás, ou como ele escolhesse. O outro era profundo conhecedor dos artigos da lei e sabia de cor

o que todo advogado tem a obrigação de saber. Assim ele podia falar dos problemas do governo,

segundo o que acreditava. E ele sabia uma coisa a mais: sabia bordar suspensórios com rosas e

outras flores e também com arabescos, pois tinha bom gosto e dedos hábeis.

– Eu me casarei com a princesa! – gritaram os dois.

Foi então que o velho papai deu a cada um dos filhos um excelente cavalo. O que sabia

de cor o dicionário e os jornais recebeu um cavalo preto como carvão; e o que entendia das leis

e sabia bordar recebeu um cavalo branco como leite. Em seguida, besuntaram os cantos da boca

com óleo de fígado de bacalhau, para que pudessem falar com mais agilidade. Todos os criados

foram ao pátio para vê-los montar em seus cavalos. Naquele momento apareceu o terceiro

irmão, pois, na verdade, eram três filhos ao todo, mas ninguém o considerava porque ele não

tinha o preparo dos outros dois. Ele era conhecido como João-trapalhão.

– Alô!! Como vão vocês!? – perguntou João-trapalhão. – Estou vendo que colocaram

suas roupas de domingo.

– Vamos à corte do rei conquistar a princesa com nossa boa conversa. Você não sabe o

que andam anunciando por todo o país?

E contaram-lhe o fato.

– Oba! Eu irei até lá também! – gritou João-trapalhão.

Os irmãos riram-se dele e partiram a galope.

– Pai querido, me dá um cavalo! – disse João-trapalhão. – Ando com uma vontade doida

de me casar. Se a princesa quiser casar comigo, casa. Se não me quiser, eu caso com ela assim

mesmo, pois ele tem que ser minha!

– Não fale bobagens! – disse-lhe o pai. – Não lhe dou cavalo nenhum. Nem falar direito

você sabe! Você não sabe usar as palavras. Seus irmãos sim, são uns rapazes espertos.

– Bem, se não posso ter um cavalo – disse João-trapalhão -, monto no meu bode. Ele é

meu e pode me carregar muito bem.

Assim falou, assim fez. Montou no bode, meteu os calcanhares nos flancos do bicho e

galopou estrada abaixo, como um furacão.

– Upa! Upa! Upa! Lá vou eu! – gritava João-trapalhão, e ia cantando, em voz bem alta,

que ressoava longe.

Mas seus irmãos trotaram em silêncio, na frente dele. Não trocavam uma só palavra,

pois iam pensando em todas as brilhantes idéias que precisavam ter; idéias bem criativas e

amadurecidas.

– Olá! – gritou-lhes João-trapalhão. – Cá estou eu. Olhem o que encontrei na estrada!

Ele mostrou o que era, e era uma gralha morta.

– Mas Trapalhão...!!! – disseram. – O que você vai fazer com isto?

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– Com a gralha? Ora, vou dá-la de presente à princesa.

– Ótimo! Faça isso! – dissera os dois rindo e continuaram no trote.

– Olá! Cá estou eu de novo! Olhem o que achei desta vez. Isto não se acha todos os dias

na estrada.

Os irmãos viraram a cabeça para ver o que era.

– Mas Trapalhão...!!! – exclamaram. – Isto é somente um tamanco velho, faltando a

parte de cima. Também vai oferece-lo à princesa?

– Certamente que irei! – respondeu João-trapalhão.

E mais uma vez os irmãos riram e continuaram a cavalgar, tomando grande dianteira.

Mas... lá estava João-trapalhão outra vez:

– Olá! Olá! Cá estou eu! Isto está cada melhor!

– Por quê?! O que você encontro desta vez? – perguntaram os irmãos.

– Oh!... – disse João-trapalhão. – Eu não posso lhes contar. A princesa vai ficar muito

grata a mim.

– Bah!... – disseram os irmãos. – Isto é lodo. Não é nada mais que lodo tirado do pântano.

– Certamente que é! – disse João-trapalhão. – Mas é lodo da melhor qualidade; ele é tão

liso que escorre através dos dedos.

E encheu seus bolsos de lodo.

Os irmãos continuaram a todo galope e chegaram à porta da cidade, um hora antes de

João-trapalhão. Ali, à medida que iam chegando, os pretendentes recebiam números de ordem

e eram enfileirados, de seis em seis em cada fila, tão juntos uns dos outros que não podiam

mover nem os braços. Isso, aliás, foi um prudente arranjo, pois do contrário teriam rasgado os

paletós uns dos outros, só por verem alguém à sua frente.

Todos os habitantes do país formavam uma grande multidão ao redor do castelo,

aglomerando-se em frente às janelas, para verem a princesa receber seus pretendentes. Assim

que cada um deles entrava no salão, perdia o dom da palavra, assim como desaparece a chama

de um candeeiro quando é soprada.

Então a princesa dizia:

– Este não serve! Fora com ele do salão!

Por fim, veio aquele irmão que sabia o dicionário em latim de cor. Mas ele não o soube

agora. Ele tinha esquecido tudo completamente. Isto porque havia ficado na fila por longo

tempo, sobre um soalho que rangia e debaixo de um teto de espelho onde se via de cabeça para

baixo. Além disso, havia junto de cada janela três escriturários e seu chefe. Todos eles

escreviam todas as palavras que ali eram ditas, para serem impressas nos jornais e vendidas por

um níquel, nas esquinas das ruas. E o mais terrível ainda tinham colocado tanto fogo na lareira,

que a sala parecia em brasa.

– Como faz calor aqui! – observou o primeiro irmão.

– Sim! Meu pai está assando franguinhos hoje – disse a princesa.

Ele não estava preparado para responder a esta frase.

– Ba..a..! – Foi tudo o que conseguiu dizer, como se fosse uma ovelha.

– Este não serve! Fora com ele!

O rapaz se retirou e veio o segundo irmão.

– Como faz calor aqui! – disse ele.

– Sim! Estamos assando franguinhos hoje – disse a princesa.

– O quê!? Ass... o quê?! – gaguejou ele, e todos os escriturários escreveram: O quê!?

Ass... o quê?!

Este não serve! Fora com ele!

E agora veio João-trapalhão, que avançou pela sala adentro montado no bode.

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– Bem! Está abominavelmente quente aqui! – disse ele.

– Sim! É porque eu estou assando franguinhos hoje! – replicou a princesa.

– Isso é ótimo! – exclamou João-trapalhão. – Então eu suponho que você possa assar

também uma gralha para mim.

– Com grande prazer! – disse a princesa. – Mas você tem alguma coisa para assá-la? Eu

não tenho aqui nem pote nem panela.

– Certamente que eu tenho! – disse João-trapalhão. – Trago aqui uma panela com alça

de estanho.

Assim dizendo, puxou o velho tamanco e nele colocou a gralha morta.

– Bem, isto é uma ótima comida – disse a princesa.

– Mas o que nós temos para o molho?

– Oh! Eu tenho em meu bolso! – disse João-trapalhão. – Tenho tanto que dá para botar

fora.

E derramou um pouco do lodo que tinha no bolso.

– Eu gosto disso! – disse a princesa. – Você sabe dar uma resposta. Sabe usar as palavras.

Quero-o para meu marido. Mas você sabe que cada palavra que dissemos, e vamos dizer, é

anotada para sair no jornal? Olhe para lá! Você vai ver em cada janela três escriturários e o seu

chefe. O chefe é o pior de todos, pois ele não compreende nada perfeitamente.

Ela estava dizendo estas coisas para amedrontar João-trapalhão.

Os escriturários riram, gargalharam, e cada um deles deixou cair um pingo de tinta de

suas penas no soalho.

– Oh! Aqueles cavalheiros lá? – disse João-trapalhão. – Devem ser os donos da casa.

Por isso, eu darei o que tenho de melhor para o chefe deles.

E virou seus braços e atirou o lodo no rosto do escriturário-chefe.

– Isso foi bem feito – disse a princesa. – Eu não seria capaz disso. Mas ainda aprenderei.

Assim João-trapalhão tornou-se rei, recebeu uma esposa e uma coroa e sentou-se num

trono. Bem, tudo isso lemos no jornal da cidade, mas quem é que pode acreditar no que dizem

os jornais?

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ANEXO F – OBAX (ANDRÉ NEVES)

Quando o sol acorda no céu das savanas, uma luz fina se espalha sobre a vegetação

escura e rasteira. O dia aquece, enquanto os homens lavram a terra e as mulheres cuidam dos

afazeres domésticos e das crianças. Ao anoitecer, tudo volta a se encher de vazio, e o silêncio

negro se transforma num ótimo companheiro para compartilhar boas histórias.

Ali mora a pequena Obax.

Para uma criança, viver numa paisagem como aquela pode ser perigoso. Mas, Obax não

tinha medo. Corria pela planície em busca de aventuras e depois retornava com os olhos

brilhantes. As histórias era muitas.

Ela já havia caçado ovos de avestruz.

Conhecido elegantes girafas.

Apostado corrida com antílopes e enfrentado ferozes crocodilos.

Ninguém se importava. Obax vivia muito solitária tinha poucos amigos e inventar

aquelas histórias devia ser sua melhor brincadeira.

Uma vez, Obax contou ter visto cair do céu uma chuva de flores.

– Nossa, e você se molhou? – caçoaram as crianças.

– Onde foi isso? – duvidaram os mais velhos.

– Calma, gente, é por isso que ela está tão cheirosa – disse a mãe, abraçando a filha.

As histórias como contam os contadores na África são sagradas. Mas algumas invenções

de Obax eram demais. Todos riram.

Como poderiam chover flores onde pouco chove água?

Obax, muito triste, correu pelas savanas e jurou nunca mais contar suas aventuras. Mas

guardar aquilo tudo para si mesma não era bom. Então, ao tropeçar numa pequena pedra em

forma de elefante, Obax teve uma grande ideia. Partiria pelo mundo afora. Pois, em algum lugar

ela haveria de encontrar novamente uma chuva de flores. Sabendo onde, como e quando, ela

poderia provar a todos que sua história era verdadeira.

Claro, o trajeto seria lento, difícil e tortuoso se ela não tivesse pedido ajuda a seu grande

amigo, Nafisa, um elefante que havia se perdido da manada e vivia sozinho pelas savanas.

Nafisa se abaixou e Obax subiu em suas costas para uma longa aventura.

Seguiram por estradas de areia que pareciam não ter fim, subiram e desceram

montanhas, atravessaram a nado rios e mares. Conheceram também grandes aldeias e cidades.

Obax e Nafisa viram chuva de água, chuva de pedra, chuva de estrelas, chuva de folhas quando

o vento estava agitado; e nos lugares mais frios, viram chuva de flocos de algodão. Quando

perceberam, eles haviam dado a volta ao mundo e estavam novamente no ponto de partida: a

savana.

Mas não encontraram sequer uma chuva de flores.

Era madrugada quando regressaram à aldeia. Em casa, os mais velhos estavam aflitos

com o sumiço de Obax. Mas se fartaram de alegria ao vê-la entrar e contar as novidades. A

menina tagarelava sem parar.

– Você deu a volta ao mundo nas costas de um elefante? – duvidaram os mais velhos?

– E ele veio com você? – debocharam as crianças.

– Essa menina conta cada história! – brincou a mãe, ajeitando os birotes em sua cabeça.

Porém, desta vez, Obax não se entristeceu. Nem poderia, Nafisa provaria tudo.

– Vamos lá fora – disse ela.

Ao saírem da cabana, não viram nada. Nem perto, nem longe. Nem mesmo uma pegada

se espalhava pela areia. Só havia no chão uma pequena pedra em forma de elefante.

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– Você é mesmo boa de histórias – disse um menino –, nós quase acreditamos.

Obax focou furiosa e com tanta raiva, que enterrou a pedra no chão para que ninguém

mais zombasse de suas aventuras.

Na manhã seguinte, um bater de asas chamou a atenção de todos. Milhares de pássaros

riscavam o céu das savanas.

No lugar onde Obax havia enterrado a pedra, havia nascido um imenso baobá. Mas não

era um baobá como os outros, era grosso e forte como um elefante. Seu troco enrugado parecia

estar desenhado com pequenos detalhes. Sua copa estava repleta de flores coloridas e pássaros

nunca vistos por ali.

Ninguém acreditava no que os olhos viam. Quando a pequena Obax se aproximou da

árvore, os pássaros bateram asas numa agitação tão forte que as flores começaram a cair,

enchendo os olhos da menina do mais puro brilho.

Era uma chuva de flores que forrou a aldeia com um tapete de pétalas perfumadas.

Depois daquele dia, todos passaram a prestar atenção nas histórias de Obax. Ela cresceu

forte como o baobá, e na sua chuva de lembranças estava Nafisa, seu grande amigo. Hoje, quem

se encosta no tronco dessa árvore sagrada procurando repouso é capaz até de sonhar com suas

aventuras.

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ANEXO G – UM GAROTO CHAMADO RORBETO

(GABRIEL, O PENSADOR)

E o tempo passou feito o rio, correndo, fazendo o Rorbeto crescer.

Um dia ele quis ensinar o seu pai, já velhinho, a ler e a escrever.

O pai, que nunca teve escola, gostou da idéia e pegou uma caneta;

Rorbeto lembrou-se, sorrindo, do dia em que fez sua primeira letra.

Vez uma era...

Quer dizer:

Uma era vez...

Ou melhor:

Vez era uma...

Desculpem:

Era uma vez...

(Agora sim!)

Era uma vez um menino que era muito atrapalhado.

O nome dele era esquisito, porque foi escrito errado.

É que o pai também se atrapalhava sempre, sem parar,

E lhe deu um nome com uma letra

Fora do lugar.

Quando o menino nasceu,

O doutor viu que era homem

E falou para os pais dele:

– Já escolheram o nome?

Mas seu pai não tinha tido escola.

Era analfabeto.

Não sabia nem falar direito,

E falou Rorbeto.

O doutor tava com pressa

E anotou assim correndo.

O seu pai ficou olhando

Como se estivesse lendo,

Mas não entendia as letras,

Porque não sabia ler.

O doutor mostrou pro pai:

– O nome é esse?

– Pode ser.

A mãe tava tão feliz

Que nem prestou atenção

Esperou por nove meses,

Com o bebê no coração,

E ele nasceu com saúde,

Trazendo orgulho e amor.

“Bem-vindo seja Rorbeto!

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Obrigada, tchau, Doutor!”

A família do Rorbeto

Morava bem escondida,

Num lugar quase deserto,

Com chão de terra batida.

Lá não tinha nenhum carro,

Muito menos avião,

E todos os moradores

Se tratavam como irmãos.

A vila era bem pequena, na beira de um velho rio.

Os homens pescavam nele, o pai de Rorbeto e os tios.

Viviam todos como se fossem irmãos dos pais do Rorbeto.

Para todos ele era um novo sobrinho, pra alguns, um neto.

Não tinha nem luz nem gás nas casas do povoado.

O banho era de água fria e ninguém ficava esquentado.

De dia se abria a janela, pra acender a luz do Sol.

De noite acendiam-se as velas, e acabava o futebol.

Às vezes, além das velas,

Também se acendiam fogueiras.

Não dava pra jogar bola,

Mas tinha mil brincadeiras.

No céu tinha um monte de estrelas,

Formando estranhas figuras;

Nas árvores, jabuticabas,

Brilhando de tão maduras.

Na casa do bebê Rorbeto,

Morava um cão vira-lata

Que parecia até gente,

Criança de quatro patas:

Filé era inteligente,

Sabia andar sem coleira.

Pescava sozinho no rio!

Subia em jabuticabeira!

Os homens e as mulheres,

Os jovens e os velhos da vila,

Viviam, com os bichos e plantas,

Uma vida simples, tranquila.

E, principalmente as crianças,

Dormiam em paz e felizes,

Amavam e cuidavam da terra,

Como se tivessem raízes.

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Sempre acordavam cantando,

Ouvindo o canto do galo,

E já levantavam dançando,

Curtindo o maior embalo.

Pediam um leite pra vaca,

Comiam um bolo macio.

Depois escovavam os dentes

Na água corrente do rio.

O rio ia sempre passando,

Sem nunca parar um segundo,

E o tempo, imitando o rio,

Passou também, pra todo mundo.

E assim foi crescendo Rorbeto,

Ao lado dos seus bons amigos:

O tempo, o cachorro, as pessoas,

As árvores e o rio antigo.

Rorbeto ainda era pequeno,

Mas já caminhava e corria.

Também já sabia falar.

E, além de falar, ele ouvia.

Crianças aprendem a pensar,

E ele aprendeu desde cedo.

Também aprendeu a contar,

Usando a ajuda dos dedos.

Pensou nos amigos que tinha:

O pai e a mãe eram dois;

Filé, o terceiro da lista.

Não lembro que veio depois.

Contou, só na sua mão direita,

Os pais, o cachorro e mais três.

Contou do dedão ao dedinho:

Um, dois, três, quatro, cinco, SEIS!

Rorbeto contou outra vez,

Prestando bastante atenção:

Contou do dedinho ao dedão,

Seis dedos em uma só mão?

Será que na outra são quatro?

Olhou para os dedos dos pés,

Mas antes tirou os sapatos.

Rorbeto estava tão nervoso

Que nem percebeu o chulé,

Contando de um até dez,

Contou cinco dedos por pé.

Olhou para a mão novamente,

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Sentindo um grande embaraço.

Chorou um pouquinho, coitado,

Pensando na mão do outro braço.

Queria contar também nela,

Mas parou um pouco, com medo:

E se nessa mão, a esquerda,

Tivesse ainda muito mais dedos?

Podia ter sete, até oito,

Quem sabe até nove, talvez!

Ninguém tinha visto, até hoje,

Que na mão direita eram seis.

Então não seria impossível

Agora a esquerda ter mil!

Rorbeto nem queria ver,

Mas abriu os olhos e viu.

Contou cinco dedos na esquerda,

Usando um dos seis da direita,

E vendo que só tinha cinco, gritou:

Tenho uma mão perfeita!

A turma escutou o seu grito e correu pra janela.

Queriam saber do Rorbeto que gritaria era aquela.

Rorbeto escutou as perguntas,

Mas não quis dizer a resposta.

Ficou com vergonha da mão,

A direita, e botou-a nas costas.

A turma ficou curiosa,

E contou para toda a galera:

Que o Rorbeto tinha um segredo

E ninguém sabia o que era.

Ficou todo mundo de olho quando ele chegou na escola,

Andando com cara de triste, com a mão dentro de uma sacola.

Olhando a tristeza do amigo, até esqueceram o mistério,

E todos falaram para ele: “Por que você está tão sério?”.

Mas ele não teve coragem de mostrar a mão com defeito,

E disse: “Me deixem sozinho, que eu quero ficar desse jeito”.

Sentou no canto da sala, e a mão não tirou da sacola,

Até que chegou o recreio, e ele nem foi jogar bola.

Depois disse a professora:

“Hoje é um dia especial!

Eu vou ensinar uma coisa

Gostosa e fundamental:

Preparem o papel e o lápis,

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Que vai começar o dever.

Vocês, neste grande momento,

Irão aprender a escrever!”

E todos ficaram animados.

Até o Rorbeto ficou,

Tentando copiar a letra

Que a professora mandou.

Ninguém fez a letra certinho,

Que a primeira vez sai errada.

Pior foi na vez do Rorbeto,

Que não conseguiu fazer nada.

É que ele tentou com a esquerda,

Que não era a mão que ele usava,

Nem quando tirava meleca,

E nem quando desenhava.

A mão boa dele, a direita,

Era a sua mão dos seis dedos

Que agora ele pôs na sacola,

Tentando guardar o segredo.

Mas a professora, encucada,

Falou: “O que é isso, garoto?

Tentando escrever com a esquerda?

Eu sei que você não é canhoto!

Então tira a mão desse saco

E faz logo a letra na folha”.

Rorbeto obedeceu no ato,

Pois viu que não tinha outra escolha.

Pensou que se fosse ligeiro

ninguém ficaria contando

Os dedos da sua mãozinha,

pra ver que ela tinha um sobrando.

Rasgou a sacola correndo.

Escreveu mais rápido ainda.

E, mesmo nervoso e com pressa,

Ele fez a letra mais linda.

Olhou para a professora,

Que estava com cara de espanto,

Falando pros alunos todos

Chegarem mais pro canto.

Rorbeto ficou preocupado:

“Será que ela viu que são seis?”

Ouvindo-a dizer para a turma:

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Vem ver o que o Rorbeto fez!

E, mais uma vez, com vergonha,

Botou suas mãos para trás,

Enquanto a galera dizia:

“Chocante! Maneiro! Demais!”

E aí percebeu que o assunto

Não era a tal mão esquisita,

E sim o que a mão tinha feito:

A letra certinha e bonita.

Rorbeto sorriu de alegria,

Voltando a sentir-se bem.

Alguém foi com o braço esticado,

Querendo lhe dar os parabéns.

E ele, que era distraído,

Na hora desse cumprimento,

Tirou a mão de trás das costas,

De um jeito bem calmo e bem lento.

Na hora do aperto de mão,

A outra criança sorria.

E, olhando pra mão de Rorbeto,

Sentiu que ela estava fria.

Tremia, essa mão, de nervoso,

Com medo de ser descoberta,

Enquanto a galera dizia:

A mão do Rorbeto é esperta.

No dia seguinte, na aula,

ficou engraçada a escola.

Com a turma chegando na sala

com as mãos dentro de umas sacolas.

Rorbeto ficou com vergonha,

pensou que era uma gozação,

Que estavam fazendo piada

com os seis dedos da sua mão.

Mas a professora, espantada,

viu tanta sacola junta

Que perguntou logo o motivo,

e todos ouviram a pergunta.

“É pra escrever mais bonito”

– a turma respondeu em coro –

“Queremos ser como o Rorbeto,

Rorbeto da mão de ouro!”

Rorbeto gostou do elogio,

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Ficando até bem comovido,

Mas quis explicar aos amigos

Que aquilo era um mal-entendido:

“Botar a sacola na mão

Não ajuda a fazer letra boa

Fizeram a maior confusão

Com as mãos nas sacolas à toa”.

A turma ficou curiosa,

e alguém perguntou lá na frente:

“Por que está com a mão na sacola,

Rorbeto, então conta pra gente!?”

Rorbeto venceu a vergonha

e mostrou a mão bem aberta.

Disseram:

“Tem dedo sobrando!

Assim, qualquer um acerta!”

Mas a professora explicou

que aquilo era só um detalhe,

E que, para escrever como ele, certinho,

o capricho é o que vale.

Não faz diferença ter cinco,

Seis dedos, duas mãos ou dois pés:

Cada um é de um jeito e são todos perfeitos.

– “Rorbeto, eu te dou nota dez!”

E a turma correu pro Rorbeto,

querendo apertar sua mão novamente,

Querendo lhe dar parabéns pelo dez,

nem ligando pra mão diferente.

Rorbeto juntou as sacolas

E as jogou no lixo com seus companheiros

Depois ele foi jogar boa, e gritou:

– “Furem a luva, que eu vou ser goleiro!”

O tempo passou feito o rio, correndo, fazendo o Rorbeto crescer.

Um dia ele quis ensinar o seu pai, já velhinho, a ler e a escrever.

O pai, que nunca teve escola, gostou da idéia e pegou uma caneta;

Rorbeto lembrou-se, sorrindo, do dia em que fez sua primeira letra.

O pai do Rorbeto, que era era analfabeto, agora deixava de ser.

E lembrou-se, sorrindo, do dia em que sua mulher deu à luz um bebê.

E sorrindo, falou para o filho: “Eu errei o seu nome! Seria Roberto”.

Mas o filho falou: “Não errou, não senhor! O amor sempre faz tudo certo”.

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ANEXO H – RAUL DA FERRUGEM AZUL

(ANA MARIA MACHADO)

– E a gente enferruja?

Raul nem estava conseguindo dormir, de tanto pensar e repensar. Mil perguntas na

cabeça.

– Será que é bolor? Pode ser... é meio azulado. Mas não tem um jeito macio feito coisa

embolorada. Parece mais ferrugem.

Estava assim, pensando e pensando, desde a hora do recreio na escola, quando descobriu

as manchas azuis no braço. Primeiro até pensou que fosse tinta. Só que não tinha jeito de tinta.

E ele também não podia ficar o tempo todo parado no meio do pátio olhando para o braço,

reparando nas manchas, pensando no que seria. A cabeça dele ainda estava muito ocupada com

o pensamento da briga e com a raiva. Da briga que nem houve. Mas que bem devia ter havido.

Só de pensar, Raul ficava outra vez com raiva. Com muita raiva. E no escuro, deitado

na cama, esperando o sono que não vinha, lembrava de tudo, como se estivesse vendo agora.

Aquele chato do Márcio veio do quadro-negro, passou junto da carteira dele e disse:

– Careta!

Disse isso como sempre dizia. Meio baixo para o professor não ouvir, meio alto para os

colegas ouvirem. Raul já sabia o que vinha depois. As risadinhas dos outros. Os olhares

debochados. E a raiva dentro dele.

Nem ao menos podia bater no Márcio um dia. Em menino menor não se bate, é covardia.

E não havia jeito do Márcio crescer até ficar do tamanho dele. Quanto mais o Márcio crescia,

mais ele crescia também. E nunca empatavam. Claro que o Márcio não precisava crescer muito,

até ficar do tamanho do Zeca, por exemplo. Aí já era demais, era até capaz de dar uma surra em

Raul, que na certa o Márcio não ia ligar para essa de não bater em menino menor. Mas podia

pelo menos ficar da mesma altura que ele.

Uma coisa que Raul não entendia era pra que essa implicância. Sabia que o pessoal

gostava dele. Até que eram amigos. Só que ele não era de se meter em brigas e mesmo quando

não gostava de alguma coisa que os outros faziam, não dizia nada. Não chateava os outros. Não

entregava ninguém. Não desobedecia. Não dava resposta malcriada. Não gritava com ninguém.

Todo mundo sabia que ele era um menino bonzinho e comportado.

Só não sabiam é da raiva dentro dele. Nem das perguntas girando na cabeça.

Depois, lá fora, no recreio, Márcio passou correndo e arrancou os óculos do Guilherme,

de brincadeira. Foi tudo tão rápido que nem deu para ver direito. Só deu para ver logo os óculos

no chão, quebrados, e o Guilherme furioso, chorando, xingando, berrando:

– Agarra ele aí, Raul!

Raul agarrou. E ouviu:

– Dá uma surra nele.

Vontade bem que ele tinha. Mas em menino menor não se bate. Nem quando ele é

abusado, implicante, chato. Também não tem essa de ir contar ao professor. O jeito é esperar o

outro crescer. E ir ouvindo:

– Pô, seu idiotam que é que você está esperando? Enche ele de porrada...

Podia dizer que ia esperar ele crescer? Podia não. Só disse:

– Vamos, pede desculpas ao Guilherme.

– Corta essa, cara. Que desculpa coisa nenhuma.

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Aí o Guilherme já vinha chegando e enchendo o Márcio de bolacha, e num instante os

dois estavam atracados, no chão, rolando, a garotada toda em volta gritando, o inspetor levando

os dois para a secretaria.

E Raul no meio do pátio pensando:

– Ai, que vontade de descer o braço nele...

Foi bem aí que ele olhou para o braço e viu umas manchinhas azuis que nunca tinha

visto antes. Passou o dedo. Não saiu. Passou cuspe. Não saiu. Foi até a pia, lavou com sabão,

esfregou com força. Não saiu. E não era uma manchinha só. Tinha uma porção. Achou melhor

vestir o casaco.

Na hora da saída, bem que os colegas chamaram:

– Vamos tomar um sorvete?

– Não, estou com pressa, tenho que chegar cedo.

E tinha mesmo. Só pensava em passar álcool, xampu, detergente, qualquer coisa no

braço. Até saírem as manchas. Mas não saíram.

Ficou pensando: sempre as perguntas girando na cabeça:

– Que será que o pessoal lá de casa vai dizer? Será que estou doente? Sarampo azul?

Alergia? Será que pingou tinta? Será que é bolor?

Podia ser, quem sabe? Lembrava muito bem que, nos livros de Monteiro Lobato, às

vezes o Visconde de Sabugosa caía atrás da estante e embolorava. Vai ver, era isso – livro

embolora. E como ele vivia lendo... É... devia dar bolor... Era só passar a tarde ao ar livre, no

sol, que ia ficar bom.

Mas não ficou.

E de noite, deitado na cama, enquanto o sono não vinha, teve certeza de que era

ferrugem. E não conhecia nenhuma receita para tirar ferrugem, ainda mais azul.

Ainda bem que ninguém tinha reparado. No começo, Raul tinha ficado com medo de

que os colegas vissem. E os professores. E a mãe. E o pai. Depois, descobriu que ninguém via.

Bem que ele esticou o braço na frente do pai e da mãe, na hora da mesa, passando prato para lá

e para cá. Só para ver se alguém dizia alguma coisa e ajudava ele a entender o que era, sem

precisar pensar tanto. Mas, ninguém viu nem falou nada. Acabou perguntando:

– Mãe, está vendo alguma coisa diferente no meu braço?

– Estou, sim, filho. Você está cada dia mais forte. Também, comento desse jeito...

E o pai completou:

– Isso mesmo, Raul. Tá com um muque de fazer inveja...

Era isso: ninguém via as manchas azuis. Pelo menos, tinha esse consolo – eram

invisíveis. Quer dizer, para os outros. Ele bem que continuava vendo. E mesmo quando não via,

sabia que elas estavam ali.

Os dias passavam, as manchas não sumiam, também não aumentavam. E ninguém mais

via.

Raul acabou se acostumando com elas e esquecendo. Não perdia mais sono por causa

de azul nenhum.

Uma tarde, Raul estava voltando do futebol com os amigos, todos na maior animação,

comentando o jogo, quando um dos meninos mostrou a cena mais adiante, na calçada do outro

lado da rua:

– Olhem só o que aquele cara está fazendo!

O cara com um cigarro na mão, ia furando um por um os balões do moleque vendedor

que fazia ponto na esquina. Um a um iam sumindo, pou!, cadê o vermelho?, e o laranja?, pou!

e o branco enorme? – pou! Lá se foi p verde... – pou! e outro vermelho! – e o amarelo e o azul...

pou! pou!

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O moleque gritava, esperneava, chutava, mas com as mãos ocupadas com os outros

balões e mais os cataventos e bandeirolas não podia se defender direito e pedia ajuda.

Raul era bom de corrida. Se resolvesse, estava lá num instante. Era só correr e ajudar a

espernear e chutar. Bem que teve vontade. Mas como os colegas não se mexeram e ficaram

olhando de longe e dando gargalhada, ele também não saiu do lugar. Não estava achando a

menor graça e não conseguia rir. Mas também não se mexeu.

Ficou só sentindo vontade de ajudar o menino, de dar umas passadas largas, correr até

lá, espernear, chutar. Mas ficou ali como se estivesse grudado no chão. Olhando para os pés, o

tênis, as meias as pernas.

E o que era aquilo na perna? Não era lama do campo, nem suor do futebol. Parecia uma

manchinha azul igual à do braço. Seria?

Em casa, depois do banho e de um bocado de esfregação, não tinha mais dúvida. Agora

ele já conhecia a ferrugem azul. Não saía, ninguém via. Mas, pelo jeito, se espalhava. Ele tinha

que descobrir o que era. E dar um jeito naquilo.

Voltou a pensar muito em todo aquele mistério. Nas manchinhas que não queimavam,

não coçavam e não passavam. Não doíam, não ardiam e não sumiam. E ele sabia que eram

ferrugem. Que estava com os braços e as pernas enferrujando, emperrando. Um problema dele,

que só ele podia resolver.

Só ele?

No dia seguinte, de repente achou que não.

Foi no futebol. Numa boa corrida, pegou a bola quase saindo de campo, ajeitou, centrou

num passe lindo. Foi só o Zeca completar. Gol decisivo. O time deles ganhou a partida. No

final, todo mundo alegre:

– Golaço, Zeca! No canto, bem colocada. Nunca que o Lombriga defender essa. Nem

que ele fosse de borracha.

Todo mundo cumprimentava o Zeca. Também, artilheiro, forte, boa-pinta, dançando

melhor que todo mundo...

Aí foi a surpresa de ouvir Zeca dizer:

– Pô, gente, o abraço não é pra mim, não. A festa é com o Raul. Se não fosse o passo

dele, o gol não saía...

– É mesmo. Timão...

– Ninguém pode com a gente.

– Só tem cobra...

Pronto! Raul já ficou pensando outra vez. No futebol é assim: um agarra no gol, outro

dá um tranco, outro centra, outro chuta em gol. Ninguém pode jogar por onze. No campo, ele

entendia isso. Como é que fora ficava querendo dar uma de super-homem? Resolveu conversar

com o Guilherme. Mas também não conseguia abrir tudo. Se ninguém via a ferrugem azul,

como é que iam acreditar nele? Começou um papo cheio de voltas:

– Guilherme, como é que você faz quando não consegue resolver um problema sozinho?

– Sei lá, cara. Às vezes peço uma mãozinha ao meu irmão mais velho. Ele é muito bom

em matemática.

– E se o problema não for matemática?

– Ele é bom também. Como ele sabe muito matemática, ele ajuda a resolver outros

problemas também. Faz as contas certinho, explica tudo até a gente entender. Se você quer,

pega o caderno e vamos comigo até lá em casa, que ele quebra o galho.

Raul hesitou, mas Guilherme insistia:

– Pode vir. Ele é mais velho, já aprendeu tudo isso há mais tempo. Ele sabe das coisas...

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Raul ficou sem jeito de dizer que o problema não era de matemática, nem de colégio,

nem de caderno. Só disse:

– Não estou com problema nenhum, não. Só estava querendo saber.

E se despediu. Mas a ideia de um mais velho era boa. Só que ele não tinha irmão. E não

ia conversar um negócio desses com o irmão dos outros. Pai? Mãe? Professor? Se ninguém

tinha reparado nada, não valia a pena perder tempo com eles. Também, ele sempre tinha

conversado muito com gente grande. E agora também estava crescendo e descobrindo que isso

nem sempre valia a pena. Ou valia? Quem sabe? Raul nunca conseguia encontrar direito as

respostas. Quanto mais pensava, mais achava era pergunta.

Na esquina, perto de casa, a turma batia papo. Raul deu uma paradinha. Bem a tempo

de ouvir Alexandre contando o fim de uma história de tentativa de assalto, correria, perseguição,

um bando de pivetes...

– Ainda bem que consegui entrar no clube, passei pelo porteiro assobiando como quem

não quer nada, disfarcei... e fiquei vendo pela grade, lá do lado de fora, os neguinhos todos

parados, olhando. Até que cansaram de esperar, foram embora. E eu liguei pro meu pai me dar

uma carona na volta do trabalho. Vê lá se eu ia arriscar sair dali sozinho quase na hora do

jantar...

Márcio deu palpite:

– Ainda mais de noite... Preto no escuro a gente só vê quando chega pertinho...

Zeca começava também a contar sua história:

– Outro dia eu estava indo para a casa da minha avó e quando saltei do ônibus vi um

crioulinho mal-encarado, parado na esquina... Fiquei logo de olho nele...

Raul nem conseguia prestar atenção na história.

Na cabeça dele dançavam uns pedaços da conversa.

Os neguinhos todos parados... preto no escuro... um crioulinho mal-encarado... Por que

ninguém falava em branco no claro? Será que um dia ele ia ficar tão azul que as pessoas iam

ver e falar azulzinho mal-encarado? Será que o menino contava aos amigos o encontro com o

Zeca e dizia que desceu do ônibus um branquinho de cara invocada?

Mas essas era coisas que Raul só pensava e não tinha coragem de falar. Vontade, bem

que tinha. E raiva. Se tinha coisa que deixava ele furioso, essa era uma delas. Isso de achar que

a cor das pessoas faz alguém ser melhor ou pior do que os outros. Isso de racismo, de qualquer

tipo. Mas com toda a raiva, não disse nada. Medo de que rissem dele. Hábito de não falar as

coisas que iam dentro da cabeça.

Mas a raiva era forte. Para não acabar abrindo a boca e falando de qualquer jeito, engoliu

o que ia dizer, fechou as palavras na garganta. E foi para casa sem nem ao menos se despedir

de ninguém.

Na portaria do edifício tinha um espelho. Sempre que passava, Raul se olhava –

disfarçado se tivesse alguém por perto, com calma se tudo tivesse deserto. Dessa vez, com

pressa, se olhou meio de lado. E parou, num susto, todo espantando. Subindo o pescoço,

cobrindo a garganta, azulando a boca, a ferrugem era tanta...

– Essa não! Agora vem para a cara! Assim também já é demais!

Furioso, desta vez Raul achou que tinha passado dos limites.

Já vinha com a raiva daquele papo da turma, com a dor de sua covardia engolida, e ainda

ia ter que aturar essas desgraças dessas manchinhas? Até dentro da boca, na língua, na garganta?

Coisa nenhuma! Desta vez, ia dar um jeito nelas. Nem que tivesse que esfregar até arrancar a

pele. Nem que tivesse que falar mesmo com alguém. Nem que tivesse que ficar a noite inteira

pensando até descobrir o que fazer.

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Pelo menos, uma sorte: o pai e a mãe tinham ido jantar fora. Sozinho na mesa da copa,

na frente do prato, Raul podia dar toda a sua atenção ao problema. Ainda bem que não tinha

ninguém, pensava ele.

Ninguém, como? E o prato de comida? Apareceu ali por mágica? Pô que raiva, até ele

estava entrando nessa? Muito confuso, começou a bater papão com a empregada:

– Ô Tita, cadê meus pais?

– Foram a um jantar, mas não sei onde, não. Sua mãe saiu toda bonita, você devia ter

visto. Devia ser coisa importante. Ela até pediu para eu trocar minha folga e não sair hoje.

Raul olhou para Tita com mais atenção:

– Deve ser chato, né? A pessoa está toda crente que vai sair, passear, ter folga e tem que

trocar... Seu namorado ficou muito zangado?

Tita explicou:

– Não, eu saio com ele amanhã. Chato é que hoje eu ia lá no morro falar com o Preto

Velho e agora vai ter que ficar para a semana que vem. Ele me ajuda tanto...

Indo e vindo da copa para a cozinha, trazendo sobremesa, levando pratos, Tita ia falando

muito interrompido, um pouco para ela mesma, outro tanto para o menino.

Raul, ouvindo e pensando, lembrava das histórias que tinha lido e ouvido desde que era

bem pequeno, contadas por Tita e outras Titas de nomes diferentes, contadas pela mãe e pelo

pai, desenhadas em quadrinhos nas revistas ou escritas em livros com ilustrações. E ia fazendo

sua própria história. Ele sabia que não era exatamente isso que estava ouvindo. Mas o que estava

entendendo era mais ou menos assim:

– Era uma vez um velho muito velho e muito sábio que morava sozinho no alto de uma

montanha. Ninguém sabia quem ele era, nem de onde tinha vindo, mas os habitantes das aldeias

próximas diziam que no mistério de sua origem havia antigos reis e guerreiros do outro lado do

mar. E todos diziam que ele sabia os segredos da noite e tinha poderes mágicos, capazes de

resolver os problemas mais complicados. Dos reinos mais distantes, em longas jornadas cheias

de aventura e peripécias, vinham os mais diversos cavaleiros consultar o Velho da Montanha e

pedir seus conselhos cheios de experiência e sabedoria.

Era isso mesmo, pensava Raul. Esse Preto Velho só podia ser assim. Mas a história

continuava, com um novo personagem:

– Um dia, um jovem que morava na aldeia ao pé da Montanha Mágica foi atingido por

um misterioso encantamento. Ninguém sabia, mas ele era um príncipe e seu sangue azul

começou a aparecer na pele, ameaçando revelar a todos o seu segredo.

Bem sacada essa, continuou pensando Raul. Mas não convencia muito, não. Essa

história de príncipe não tem nada a ver com a gente. E sangue azul não existe. Cada vez que ele

esfolava o joelho via muito bem que era vermelho. E se queria resolver o problema da ferrugem,

era melhor olhar a situação de frente e deixar de bobagem.

– Você não está ouvindo direito, hein, Raul? – disse Tita, interrompendo seus

pensamentos.

– é que eu estou preocupado com um problema.

– Então, por que não vai falar com o Preto Velho?

É... mesmo sem ser Príncipe Encantado, podia ir bater um papo com o Velho a

Montanha. Às vezes é mais fácil conversar com gente que a gente não conhece do que com uma

pessoa que se encontra todo dia. Isso mesmo... Estava resolvido: no dia seguinte ia procurar o

Preto Velho. Pediu a Tita todas as explicações e, mais tranquilo, dormiu bem pela primeira vez

em muito tempo.

No dia seguinte, saiu de casa como se fosse para a escola, mas já com os planos feitos.

Deixou os cadernos com o jornaleiro:

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– Guarda pra mim, está bem? Quero fazer uma surpresa para minha mãe e tenho que

cuidar de tudo enquanto ela pensa que eu estou na aula.

Bem, por aí, tudo certo. Com o dinheiro da merenda, pagava a passagem do ônibus até

a boca da favela. Com as explicações de Tita, chegava lá. Na subida, era só perguntar a alguém.

Todo mundo conhecia o Preto Velho...

Enquanto o ônibus corria, Raul ia pensando – e se descobrissem que ele estava matando

aula? Nunca tinha feito isso na vida. Ainda por cima, mentindo. Mas, ora bolas, se ele pedisse,

sabia que não deixavam. E tinha que ir descobrir o mistério. Discutir o assunto. Fazer alguma

coisa. Vencer a ferrugem. Isso era o mais importante de tudo.

E se acontecesse alguma coisa? Tita sabia onde ele estava. Não sabia por que, mas sabia

que ele ia lá. E, de qualquer jeito, era um impulso muito forte, uma certeza muito grande: ele

tinha que ir.

Saltou do ônibus, andou dois quarteirões e começou a subir o morro. Primeiro olhou

para a frente, a fieira de degraus pelo meio dos barracos. Depois, olhou para baixo, para o chão,

cheirando mal, cheio de água suja, lama, lixo. Depois, olhou bem para o alto e viu uma porção

de pipas no céu azul. Foi subindo devagar e olhando – para a frente, para baixo, para o alto.

Meio cansado, parou um pouco. E ficou reparando as pipas lá em cima. Uma porção.

Coloridas e dançarinas, balançando pra lá e pra cá. Bem perto, viu a garotada na maior

animação, disputando, competindo. De repente, foi uma confusão. O menorzinho de todos,

devia ter uns seis anos, punha a boca no mundo, aos berros. E, bem atrás de Raul, uma voz de

menina começou a gritar:

– Vocês são mesmo uns covardes, aproveitam que o Beto é pequenininho para roubar a

pipa dele. Mas não vai ficar assim não, estão sabendo? Vocês vão ver só o que eu vou aprontar...

Os outros achavam graça:

– Tá zangadinha, é?

– Deixa disso, não se mete não.

– Fica de fora. Em briga de homem, mulher não se mete.

Mas a menina era enfezadinha:

– Quem escolhe as minhas brigas sou eu.

Um grandalhão ainda disse:

– Cala a boca!

E ela:

– Cala a boca já morreu. Quem manda aqui sou eu.

Raul estava começando a ficar preocupado e talvez até se metesse também na discussão,

mas os meninos resolveram ir embora, correndo atrás de outra pipa. Raul andou em direção à

menina, que consolava o garoto pequeno:

– Beto, chorar não adianta. Tem é que se defender, dar bronca, brigar.

– Mas eles são maiores, eu vou apanhar.

– Sei lá, Beto. Não precisa ser briga de bater e apanhar. Mas se a gente for ficar a vida

inteira esperando alguém do tamanho exato para brigar, não briga nunca, e todo mundo manda

na gente. Nem toda briga minha é de bater, não. Mas eu não aguento é ficar calada nem ficar

sem fazer nada quando uma coisa não está certa.

E já reparando na presença de Raul, completou:

– Desaforo para casa, eu não levo. Pelo menos assim não fico enferrujada, como muita

gente por aí.

Você pode imaginar o susto de Raul. Pela primeira vez alguém via a ferrugem dele. E

logo uma menina briguenta! Ele perdeu a fala e mal conseguiu responder quando ela perguntou:

– Ô cara, que é que você está olhando aí? Quer alguma coisa?

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Ele explicou:

– Meu nome é Raul e estou procurando a casa do Preto Velho. Ouvi o choro do Beto e

a sua discussão e parei para ver. Mas não estou querendo atrapalhar...

Com uma cara muito malandra, os olhos muito vivos, o cabelo todo trançadinho, a

menina sorriu:

– Atrapalha, nada. Até é bom bater um papo com você. Meu nome é Estela.

Raul estava louco para conversar. Foi logo perguntando:

– Que história é essa de ferrugem?

– Ferrugem? – repetiu ela.

– É... Você não estava falando de gente enferrujada que anda por aí?

– Ah, sim. Gozado você reparar nisso. É papo do Preto Velho. De vez em quando ele

fala nisso. Mas não sei bem o que é. Se você é amigo dele, pergunta.

Raul explicou que nem conhecia o Velho da Montanha. Quer dizer, não falou com essas

palavras, mas falou. E acrescentou:

– A Tita é que é amiga dele e me ensinou a vir até aqui.

– E quem é Tita?

– Uma amiga minha.

Estela olhou para ele e se ofereceu:

– Se você quiser, levo você até lá. Não é muito fácil chegar a casa dele sozinho.

Foram subindo. No caminho ele comentou:

– Você é sempre briguenta assim, é?

– Até que nem. Brigar à toa eu nunca brigo. Mas não consigo ficar quieta quando vejo

alguma coisa errada. E as pessoas vão se acostumando com isso. É até gozado: às vezes eu vou

começado a abrir a boca para soltar a língua e alguém diz: “Já sei. Lá vem Estela reclamando”.

E antes mesmo de eu reclamar, muitas vezes já estão consertando. Mas se eu não estiver por

perto, ninguém repara que está errado. Acho que fica cada um na sua e eu tenho que pensar

para todo mundo.

Enquanto conversava, subiam. Logo, chegaram. Estela apresentou Raul, que se

apresentou, falando em Tita. O Preto Velho sorriu quando ouviu falar em Tita e começou a

lembrar casos dela e da família dela. Enquanto isso, Raul olhava para ele e pensava. Meio

decepcionante. Ele não sabia muito bem o que esperava, mas era alguma coisa parecida com

um encontro misterioso com o Velho da Montanha, sábio e meio bruxo. Na sua frente, via

apenas um velhinho simpático, sorridente e falador, dizendo umas coisas meio enroladas, num

tom carinhoso. Parecia até um avô de Estela...

De repente, percebeu que o Velho falava com ele:

– Afinal, o que é que você quer, meu filho?

Raul hesitou, criou coragem, respirou fundo:

– Quero acabar com a ferrugem.

– Que ferrugem?

– A minha.

O Velho ficou muito sério e olhou firme para Raul. Depois, abanou a cabeça:

– É uma pena, meu filho, mas eu não posso fazer nada para acabar com a sua ferrugem.

Só se fosse para acabar com a minha...

Percebendo o ar de tristeza de Raul, acrescentou:

– Mas a sua é tão pouquinha, que logo passa...

Sorrindo, cantarolando, distraído, acendeu o cachimbo. Claro que o papo tinha acabado.

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Raul se despediu e saiu, pensando, pensando. Não tinha adiantado nada toda a viagem

até lá em cima. E além de tudo, agora ainda tinha mais umas coisas que não entendia. De

repente, reparou que Estela tinha falado com ele. Perguntou:

– Que foi mesmo que você disse?

– Estava querendo saber de que cor é sua ferrugem.

Raul se assustou de novo. Essa menina sabia algumas coisas que não queria dizer. Ele

não deu o braço a torcer:

– Por que você está perguntando?

– Para saber, né. Quando eu tive, a minha era amarela. Estela da ferrugem amarela.

Minha amiga contou que a dela era pretinha. Marieta da ferrugem preta. E a sua?

– Você não está vendo?

Ela riu:

– Você ainda não sabe nada dessa ferrugem, hem?

Pensa que é só sair olhando e vendo? Tanto cara aí que nem vê a dele, quanto mais a

dos outros...

– Azul – disse ele. – Raul da ferrugem azul.

Quer dizer que era assim, então, pensava ele. Tem gente que nem vê a sua. Ele via. Pelo

menos a dele, lá isso via. Toda azul. E com essa ele ia acabar, com ou sem ajuda do Preto Velho.

Com ajuda, claro. Sabia que tinha sido ajudado. Por Tita, por Estela, pelo Preto Velho.

Agora só dependia dele mesmo – era isso que todos estavam lhe dizendo. Que, mesmo com

toda a ajuda, cada um é que pode acabar com sua ferrugem. Cada um é que pode saber como

ela é, de que cor, em que lugar.

E mais: o Preto Velho tinha dito que a ferrugem de Raul era pouquinha. Na certa, do

mesmo jeito que os outros não viam a dele, ele não via a dos outros. Mas ninguém mais parecia

se preocupar a mínima com ferrugem. Pelo menos nenhum dos meninos da turma. Estela era

diferente. Estela da ferrugem amarela.

Estela se preocupava. Mas os amigos? Márcio? Guilherme? Zeca? Esses problemas não

passavam pela cabeça deles... Ou passavam? E eles nem reparavam? Por quê? E se a cabeça

deles já estivesse tão enferrujada que nem ficavam mais inventando perguntas e procurando

respostas?

Perguntou em voz alta:

– Estela, você teve ferrugem na cabeça?

– Deus me livre, Raul. Na cabeça é fogo. Dizem que é a mais comum, mas aí fica até

difícil ver as outras... Quando enferruja, né?, é difícil de usar. É capaz até de ranger...

Bem, então na cabeça ele não teve. Sorte. Por isso conseguiu ver a do braço, no dia em

que devia ter agarrado o Márcio. A da perna, no dia em que devia ter corrido para ajudar o

menino dos balões. A da garganta, no dia em que devia ter falado alto. E agora conseguia pensar.

Era bom. Porque tinha muito o que pensar. E conversar com Estela de outras vezes. Mas

agora estava ficando tarde:

– Até logo Estela. Outro dia eu volto. Agora tenho que ir para casa. Mas vou pensando

dentro do ônibus.

– Eu te levo até o ponto.

Foram conversando. No ponto de ônibus, uma mulher estava parada junto a um

embrulho imenso, de plástico. Estela cumprimentou:

– Bom dia, Dona Teresa. Está indo entregar roupa lavada?

– Pois é, minha filha. E buscar outro tanto para lavar.

Não deu para ouvir muito mais. O ônibus vinha chegando. Foi só o tempo de se despedir

e entrar. A lavadeira também entrou. E foi logo lá para a frente. Depois, em cada ponto ia

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entrando gente. Um garotão de camisa aberta no peito e corrente no pescoço. Um velhinho de

chinelos, arrastando os pés, devagar. Duas mulheres que levaram um tempão em pé no corredor,

procurando trocado no fundo da bolsa e discutindo:

– Deixe que eu pago, passa logo.

– Nada disso, deixa comigo. Faço questão.

E nenhuma passava, nenhuma pagava, nenhuma achava o dinheiro. E todo mundo atrás

reclamava. Raul se divertia. Ele sempre achava muito engraçado ir reparando nas pessoas no

ônibus. Tem hora que fica cheio de homem. Tem hora que tem mais mulher e velho. Tem hora

que é uma bagunça louca, com a garotada de colégio.

De tanto prestar atenção em tudo, nos outros, na vida de cada um, Raul se distraiu. Até

esqueceu que tinha resolvido pensar. Já estava quase chegando em casa. Um ponto antes de

saltar, viu que a lavadeira tinha tocado a campainha para descer. E bem na hora em que ela ia

descendo os degraus, carregando aquela trouxa pesada, o motorista acelerou o motor, fazendo

um barulhão e reclamando porque ela estava demorando:

– Como é, Dona Maria? Vai ficar a vida toda aí, é? Pensa que tá todo mundo à toa?

Ela começou a pedir desculpas, toda atrapalhada.

Raul ficou uma fera. E começou a falar:

– Moço, o senhor não tá vendo que ela está descendo e carregando peso? Faça o favor

de esperar.

O motorista respondeu:

– A conversa não chegou na cozinha. Cala a boca, pirralho.

Sem pensar, Raul respondeu:

– Cala a boca já morreu. Quem manda em mim sou eu.

Respondeu e lembrou de Estela.

Uma porção de gente dentro do ônibus começou a dar palpite também:

– é isso mesmo. O menino tem razão.

– Mas é perigoso discutir. Não se meta, não.

– Mas alguém tem que reclamar. Que má-criação!

– Quem, o garoto? Também achei. Respondendo aos mais velhos...

– Não, o motorista, que diabo!

– Mas também ele é um pobre coitado, trabalhando o dia inteiro junto daquele motor

quente, com uma campainha o tempo todo na cabeça dele, no meio desse tráfego.

– É... e ainda ganha uma miséria.

– Mas não precisa tratar mal os outros. Nem correr desse jeito. É um perigo!

– Ainda outro dia, eu vinha num ônibus...

Que confusão! Todo mundo conversava, contava casos, resmungava, enquanto o ônibus

andava e chegava perto de onde Raul ia saltar. Na hora de descer, passou pelo motorista, olhou

bem para ele e disse:

– Até logo.

O homem respondeu:

– Até qualquer dia, seu brigão.

Brigão ele? Nunca o tinham chamado disso. Não brigava, não discutia. Só mesmo essa

vez, porque não conseguiu ficar calado, não dava para engolir.

Passou no jornaleiro, pegou os cadernos, entrou no prédio correndo. Enquanto esperava

o elevador, se olhou no espelho. Para ver se estava com cara de quem matou aula. E teve uma

surpresa: a ferrugem do pescoço tinha desaparecido. Abriu a boca, botou a língua para fora.

Nem sinal de ferrugem na garganta. Olhou depressa para os braços e as pernas. Lá ainda havia

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as manchas azuis. Mas bem mais fracas. E agora ele não se preocupava mais com elas. Sabia

que iam sumir.

Como é que elas iam sumir era coisa que ele não sabia. Mas iam. Como as da garganta

desapareceram depois que ele reclamou no ônibus.

Com uso. Afinal, ele não era bicho, sabia falar, tinha vontade, sabia querer, sabia se

defender. E defender os outros, quando fosse o caso. Nem precisava se preocupar.

Entrou em casa alegre, cantarolando. Contou para a Tita:

– Fui ver o Preto Velho.

– Como é que foi? Ele te ajudou?

– Ajudou.

Aí ela não aguentou mais e perguntou:

– Que é que era, Raul?

E ele:

– Era uma história que eu não entendia e não sabia como continuava. Para falar a

verdade, não sabia nem como ela começava. Mas agora eu já sei. Toda a vida, você me contou

histórias. Hoje quem conta sou eu.

E enquanto ela sentava e prestava atenção, ele começou a contar essa história toda que

nós já conhecemos e que não vale a pena repetir. Só que contou à moda dele, mais divertida.

Mais ou menos assim:

– Era uma vez um menino que quando nasceu recebeu de umas fadas invisíveis uma

porção de dons especiais. Tinha voz para cantar e falar. Tinha mãos para pegar e fazer. Tinha

pernas para andar e correr. Tinha cabeça para inventar e pensar. Mas como ele morava num

lugar onde as pessoas faziam quase tudo para ele, muitas vezes não era preciso usar esses dons.

E ele foi desacostumando. E alguns deles foram enferrujando...

E Raul ia falando, e Tita ia prestando atenção, e a história ia crescendo. Do jeito que ele

inventava e contava. Tinha um pedaço que falava no sábio Velho da Montanha. E tinha outro

pedaço que dizia como o herói precisava vencer algumas provas e enfrentar algumas

dificuldades para se livrar de encantamento. Mas como você também não está enferrujado e

não quer ficar, pode muito bem ir imaginando como era o jeito de Raul contar. Ou continuar a

história de seu jeito. Ou inventar outra Que esta aqui já se acabou. E como dizia a Tita, que

aprendeu com a avó dela, que aprendeu com a avó também:

– Entrou pelo pé do pato, saiu pelo pé do pinto.

Quem quiser que conte cinco.

Mas se você contar uma, pelo menos, eu já fico satisfeito.

E você mais ainda.