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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GARNDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM LITERATURA COMPARADA Inês Macedo Florence “Mariana”, “Pai contra mãe” e “O caso da vara”: escravidão e chão histórico em Machado de Assis Natal 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GARNDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

LITERATURA COMPARADA

Inês Macedo Florence

“Mariana”, “Pai contra mãe” e “O caso da vara”: escravidão e chão histórico em Machado de Assis

Natal 2007

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Inês Macedo Florence

“Mariana”, “Pai contra mãe” e “O caso da vara”: escravidão e chão histórico em Machado de Assis Dissertação apresentada a fim de obter o título de mestre em Literatura Comparada, pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Orientador: Prof. Dr. Afonso Henrique Fávero. Natal 2007

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Inês Macedo Florence

“Mariana”, “Pai contra mãe” e “O caso da vara”: escravidão e chão histórico em Machado de Assis

Banca: (1° Membro) (2° Membro) (3° Membro)

Natal 2007

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Dedico este trabalho à memória de meu pai e à minha grande mãe e amiga.

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AGRADECIMENTOS Antes de mais nada, gostaria de dedicar este trabalho à memória de

meu pai, João Ramão Garcia Florence. Ele foi meu grande companheiro nas

minhas conquistas acadêmicas, desde o ingresso na graduação e todo o seu

apoio na minha escolha do curso, ao ingresso no mestrado. Infelizmente, ele não

pôde estar presente em outro momento importante da minha vida, mas tenho a

certeza de que, lá da estrela mais brilhante onde ele se encontra, está orgulhoso

disso tudo. Sim, a estrela é a mais brilhante, pois ele levou consigo as borbulhas

de cerveja e o céu agora está bem mais alegre. Obrigada por todo o carinho.

Obrigada por ter sido o pai maravilhoso que foi.

Gostaria também de agradecer à mulher que foi sua companheira

durante 44 anos, Lenira Florence, e minha grande e melhor amiga: mãe, eu te

amo. Segui teus passos e foi nisso que deu... Tu és muito especial. Obrigada por

me apresentar o mundo maravilhoso das Letras. E pelas revisões do meu texto

também (o crédito é todo dela).

Mano, Maninho, Gilce, Angélica, Gabi, Duda, Aninha, Lelinho e

Larissa. Apesar de tudo (parecemos uma família italiana!), vocês são uma família

maravilhosa. Obrigada por tudo! Jório, você também faz parte desta família e não

poderia ficar de fora!

Todos os meus mestres foram importantes, mas há algumas pessoas

em especial que eu gostaria de citar: meu orientador, Afonso Henrique Fávero, por

sempre me estimular e nunca me deixar desistir. Ele foi um grande incentivador e

um grande amigo também. Sempre entendendo minhas angústias e dando força,

com palavras de carinho. Sem ele e Roberto Schwarz, nada seria possível. À

professora Ilza Matias, que foi a primeira pessoa a acreditar em mim e a dar a

idéia de tentar a seleção do mestrado. E viva Hilda Hilst, a culpada por me fazer

amar tanto isso tudo. Professora Francisca Aurinete Girão, do Departamento de

História, que me ajudou muito com a revisão da ABNT. Finalmente, professor

Raimundo Arrais, também do Departamento de História, sempre tão prestativo e

cordial. Obrigada.

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Agradecimentos especiais a Armando, Fabiano Moura e Yuma

Ferreira – amigos que puderam colaborar com a consultoria em História. Wilton

“Joselito”, você que agüentou tantas vezes meu mau humor e minhas

reclamações também merece um carinho especial. Ao Daniel “Ceasa”, obrigada

pelos “galhos” que quebrou!

Pessoal de “Satélite City” (Maíra, Gilson, Kruell, Breno, Mariana)

vocês são muito importantes, nunca se esqueçam disso.

E a todos que não foram citados, mas sabem que, de alguma forma,

têm sua parcela de culpa também!

Finalmente, agradeço “ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver”.

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“Os autores mais espirituosos provocam o sorriso mais imperceptível.”

(NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2005)

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SUMÁRIO RESUMO 08ABSTRACT 09 INTRODUÇÃO 10 1 MARIANA 261.1 Os personagens de “Mariana”: algumas considerações 281.2 Relação de dependência e política de favores 341.3 Pobreza x riqueza: amor impossível? 451.4 “Idéias que a razão pode condenar, mas que nossos costumes aceitam perfeitamente” 541.5 Escarvidão: banalidade 60 2 PAI CONTRA MÃE 642.1 Escravidão, instrumentos de tortura e decadência de sistema representado no conto 652.2 Cândido Neves: um personagem longe da candura 742.3 Arminda: “nem todos os filhos vingam” 78 3 O CASO DA VARA 853.1 Alguns aspectos do conto 863.2 Autoritarismo e servilismo 92 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 97 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 101OBRAS CONSULTADAS 101SOBRE MACHADO DE ASSIS 102GERAL 103

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RESUMO Machado de Assis captou seu tempo e projetou nos textos que escreveu sua percepção sobre a sociedade brasileira do século XIX e seus múltiplos aspectos – economia, política, cultura, dentre outros. Nas tensões vividas em seus contos e romances, Machado retrata a realidade da sociedade brasileira e as mudanças por que o Brasil vinha passando. “Mariana” e “Pai contra mãe” retratam a crise do sistema escravocrata, a relação de dependência, o tratamento dado aos cativos e a incoerência de um país que procurava adotar o Liberalismo como ideologia, mas que vivia às sombras da escravidão e suas conseqüências. Um país cujas prioridades eram dadas aos grandes senhores de terras e de escravos, protegendo-se apenas seus interesses de classe. “O caso da vara” aponta como eram tratadas as “crias da casa” – menininhas negras agregadas que aprendiam bordados de bilro. Como e quais eram os castigos aplicados em caso de desobediência, como deveria se portar uma criança que estava à margem da sociedade. Dessa forma, este trabalho procura fazer um jogo de espelhos entre História e ficção. Mas não simplesmente jogar, mas analisar de que forma Machado lida com os reflexos da História do Brasil oitocentista em seus contos.

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ABSTRACT Machado de Assis understood his time and brought his perception of Brazilian society in the 19th century, with its multiple aspects – economy, politics, culture, amongst others - to the texts he wrote. Through the tensions lived in his novels and short stories, Machado displays Brazilian social reality and the changes it had been undergoing. “Mariana” and “Pai contra mãe” show the crisis of the slavery system, the relation of dependency, the treatment given to the captives and the lack of coherence of a country that intended to adopt Liberalism as an ideology, but which kept on living under the shadow of slavery and its consequences. A country where the priorities were given to the landlords, owners of slaves, in protection of their interests. “O caso da vara” tells about how the “crias da casa” – little black girls who lived in the household and learned how to make spool embroidery – were treated. What were the punishments for desobedience and how they were levelled out, how should be the behaviour of a child who lived as a social outcast. Thus, this paper aims at playing a game of mirrors between History and fiction. Not only to play it, but to analyze how Machado deals with the reflections of 19th century Brazil on his short stories.

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INTRODUÇÃO

A expressão da epígrafe, “sorriso mais imperceptível”, serve como

uma metáfora da sutileza e ironia machadianas, traços tão marcantes nas

narrativas do escritor.

A proposta de Machado de Assis era a de incorporar nas artes –

literatura e teatro, por exemplo – temas diretamente ligados à nacionalidade,

assuntos que fizessem parte do cotidiano do país. A intenção do escritor era

aguçar nos brasileiros o gosto por uma arte nacional na sua essência.

Os três contos analisados no presente estudo possuem forte ligação:

eles tratam de um assunto importante, relacionado à realidade do país no recorte

temporal em que Machado de Assis os compôs – a escravidão. Além disso, todos

eles são contos urbanos, sendo seu cenário a cidade do Rio de Janeiro, então

capital do Império. O gênero “conto” foi escolhido para esta dissertação porque é

uma parte da Literatura não tanto abordada. Têm-se muitos estudos sobre os

romances machadianos, mas não acontece o mesmo com seus contos. Segundo

Julio Cortázar, no ensaio Alguns aspectos do conto, “enquanto os críticos

continuam acumulando teorias e mantendo exasperadas polêmicas acerca do

romance, quase ninguém se interessa pela problemática do conto” (CORTÁZAR,

1974, p. 149).

Em Visões da liberdade, de Sidney Chalhoub, há uma passagem em

que o autor fala de sua experiência na pesquisa com documentos sobre a

escravidão, no arquivo do Primeiro Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro:

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Com efeito, um pouco de intimidade com os arquivos da escravidão revela de chofre ao pesquisador que ele está lidando com uma realidade social extremamente violenta: são encontros cotidianos com negros espancados e supliciados, com mães que têm seus filhos vendidos a outros senhores, com cativos que são ludibriados em seus constantes esforços para a obtenção da liberdade, com escravos que tentam a fuga na esperança de conseguirem retornar à sua terra natal (CHALHOUB, p. 35).

Nesse sentido, dois dos contos analisados nesta dissertação têm o

objetivo de abordar esta violência sofrida pelos escravos – são eles “Pai contra

mãe” e “O caso da vara”. Nestes textos é explícito o tratamento cruel por que

passavam os cativos, e, em “Pai contra mãe”, Machado de Assis revela com

detalhes os castigos mais comuns aplicados aos escravos.

O objetivo maior desta dissertação, no entanto, é demonstrar como

Machado de Assis representou em sua obra um assunto tão delicado para a

época, o sistema escravista. Através de personagens como Mariana e Coutinho

(“Mariana), Cândido Neves e Arminda (“Pai contra mãe”) e Lucrécia e Sinhá Rita

(“O caso da vara”), é possível traçar um panorama de como se davam certas

relações dentro desse sistema, o cotidiano dessas pessoas e a maneira como elas

“encaravam” a situação do país naquela época. Machado descreve cenários e

episódios, cria diálogos e situações em que são abertas as cortinas e vem à tona

um pedaço da História do Brasil, tornando-se, assim, a sua obra documento

histórico que ajuda a compreender o que acontecia no país do século XIX. “Da

observação de cada detalhe, no plano das experiências, desdobra-se a

verossimilhança geral, com fundos de alicerce na realidade”, como afirma Alcides

Villaça (2006, p. 18).

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Além disso, o que se pretende é reafirmar a consciência de Machado

acerca dos problemas relacionados à política e à sociedade fluminenses. Ou seja,

os contos de Machado não são só textos que distraem e atendem ao gosto do

leitor requintado, dado à arte da Literatura, mas também são a representação de

uma sociedade e neles estão sutilmente presentes dados que podem auxiliar os

estudos sobre o Rio de Janeiro do século XIX.

Este trabalho pretende, ainda, mostrar a importância da Literatura

para a História e do contexto histórico para o processo de criação literária. A

Literatura pode servir como instrumento que auxilia a História e, da mesma forma,

na Literatura estão presentes as tensões por que passam a sociedade no

momento em que uma obra é escrita, e o contexto histórico e refletido na criação

de um texto.

A pesquisa tem como base a leitura de textos de importantes

estudiosos de Machado de Assis, como Roberto Schwarz, John Gledson e Sidney

Chalhoub e obras sobre o Rio de Janeiro e o Brasil oitocentistas dão suporte à

pesquisa sobre História.

Machado de Assis foi a escolha para o trabalho tendo em vista que

mescla a Literatura com a História, assunto que sempre encantou a autora desta

dissertação. Além de tratar da sociedade fluminense em sua obra, Machado

geralmente apresenta como protagonistas membros da elite e os representantes

de estratos sociais marginalizados são constantes, possuindo um papel

secundário. Em “Mariana”, por exemplo, o protagonista é um rapaz rico e a

escrava que dá título ao conto aparece apenas como o pivô de uma tragédia –

numa primeira leitura despretensiosa.

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Em “O caso da vara” ocorre algo semelhante: à primeira vista, o

enredo gira em torno de Damião e Sinhá Rita, mas, assim como em “Mariana”, em

que o personagem da escrava cresce durante o enredo, Lucrécia, a escrava que

recebe castigos de Sinhá Rita, também ganha importância no conto, pois ela é a

causa do dilema de entregar a vara ou não à viúva. A exceção para esses casos

em que geralmente pessoas ligadas à elite são protagonistas é para “Pai contra

mãe”, pois o personagem principal é um fracassado pai de família que busca

ganhar dinheiro para o sustento do filho.

A introdução deste trabalho percorre um pouco das Histórias do

Brasil – meados do século XIX – e da Literatura Brasileira, começando pelo

Romantismo: “Romances Históricos” e representação do cenário histórico do

Brasil pela ficção.

Como se sabe, o Romantismo é uma fase muito importante na

Literatura Brasileira pela grande consciência que os românticos possuíam no

papel de retratar a Nação. Com ele, surge a ficção como uma manifestação da

realidade social e do contexto histórico e, dentro desse espírito, os escritores

desse período eram possuidores de um exacerbado espírito nacionalista

procurando mostrar a realidade do país, o contexto histórico e social, os tipos

humanos, a geografia local; por isso davam grande importância à riqueza de

detalhes, às coisas locais, descrição de cenas, aos costumes. Sobre o

Romantismo, afirma Antonio Candido:

Ora, os estudos das sucessões históricas e dos grupos sociais, da rica diversificação estrutural de uma sociedade em crise, não

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cabia de modo algum na tragédia ou no poema: foi a seara própria do romance, que dele se alimentou, alimentando ao mesmo tempo o espírito histórico do século (CANDIDO, 2000, p.98).

Os romances surgidos no século XIX mostram aquilo que a poesia

até então não havia enfocado: retratar os detalhes de um país feito de uma

infinidade de tipos humanos, de uma grande extensão territorial, de uma

diversidade cultural enorme. Antonio Candido equivale o romance oitocentista à

epopéia, mas “em vez de arrancar os homens à contingência para levá-los ao

plano do milagre, procura encontrar o miraculoso nos refolhos do quotidiano”

(CANDIDO, 2000, p. 98). Segundo Alfredo Bosi, algumas obras do Romantismo,

como “a poesia social de Castro Alves e Sousândrade, o romance nordestino de

Franklin Távora, a última ficção citadina de Alencar” (BOSI, 1994, p. 163) já

retratam um Brasil em crise.

Machado de Assis passa por essa escola. Seus primeiros textos,

apesar de já estarem matizados de traços realistas, foram essencialmente

românticos. É o caso de “Mariana”, um dos contos que serão analisados nesta

dissertação, datado do ano de 1871, que, ao relatar a frustração de uma escrava

apaixonada pelo seu senhor e ter como desfecho o suicídio, acaba opinando

sobre um assunto delicado para a época. Segundo John Gledson, Machado

aborda a escravidão, como é o caso de “Mariana”:

Já em princípios da década de 1870, já casado e com emprego mais seguro, tendo se afirmado como escritor a ponto de se

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aventurar no primeiro romance, Machado podia ser mais direto e ousado. “Mariana”, publicado no ano da Lei do Ventre Livre (1871), ocupa-se outra vez da escravidão, e de modo muito mais realista, ainda que a história se passe agora em circunstâncias domésticas. O conto nunca foi republicado, talvez pelo perigoso do tema; mas na própria história algumas das dinâmicas da escravidão ficam bem evidenciadas, até nos apartes “cômicos”, como os do tio do narrador, que saberá exatamente que maneira “perdoar” a fugitiva quando esta for capturada (GLEDSON, 1998, p.24).

É interessante perceber que Machado publica este texto num

folhetim no ano da Lei do Ventre Livre, quando o abolicionismo estava a se

consolidar e pressionava cada vez mais os senhores escravocratas. Sendo assim,

o escritor utilizava-se do veículo que tinha poder – a imprensa – a fim de chamar

atenção para os problemas da nação brasileira.

Dadas as mudanças pelas quais o país passava – abolicionismo e

ideais republicanos, por exemplo –, o Romantismo dá lugar ao Realismo, os

autores abandonam a escrita de tendências ufanistas e patrióticas, além do tema

do amor idealizado, e passam a dar lugar a uma maior objetividade e

impessoalidade. “Assim, do Romantismo ao Realismo, houve uma passagem do

vago ao típico, do idealizante ao factual” (BOSI, 1994, p. 173). Há necessidade de

menos floreio e mais coerência na narração dos fatos, e “uma sede de

objetividade que responde aos métodos científicos cada vez mais exatos nas

últimas décadas do século” (BOSI, 1994, p. 167). É no Realismo que Machado se

consagra como escritor.

Durante muito tempo, Machado de Assis foi visto como alheio aos

problemas nacionais. Alguns críticos acusavam-no de não “denunciar” o que

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acontecia na época em que escreveu. Lúcia Miguel Pereira, por exemplo, afirma,

em seu Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, que o escritor foi rotulado

como um “‘absenteísta’ que nunca quis se preocupar com política, que viu a

Abolição e a República como quem assiste a espetáculos sem maior interesse”

(PEREIRA, 1988, p. 20).

Em sua juventude, todavia, Machado de Assis escreveu várias

crônicas para jornais, principalmente para O Diário do Rio de Janeiro, onde o

escritor ataca a política do Brasil dos primeiros anos de 1860 (início de sua

carreira), anos estes que “tinham sido fecundos como preparação de uma ruptura

mental com o regime escravocrata e as instituições políticas que o sustentavam”

(BOSI, 1994, p. 163).

Nesse sentido, não há dúvida, para Brito Broca, de que

Machado de Assis sempre acompanhou os acontecimentos políticos com interesse, formulando sobre eles juízos definidos. Mas o que se deu foi o seguinte. No começo da carreira, nos primeiros tempos de jornalismo, como bom romântico, formou na ala dos liberais e, colaborando em jornais dessa corrente, não hesitou em criticar os fatos políticos do ponto de vista de um liberal. Mais tarde, absorvido pela arte, absteve-se gradativamente do ardor primitivo até recair na ironia dissolvente que lhe caracteriza a maior parte da obra. Na mocidade, combatia; na maturidade passou a sorrir com descrença (In BOSI, 1982, p. 365).

Embora “o Machado que se indignara, quando jovem cronista liberal,

ante os males de uma política obsoleta” tenha mudado “nos anos de maturidade o

sentido do combate” (BOSI, 1994, p. 176), ele continuou a escrever sobre um país

que se encontrava em crise, pois foi contemporâneo de várias mudanças no Brasil

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do século XIX; a maior delas foi a crise do regime escravocrata. Podem-se notar

em seus textos alfinetadas contra tal regime; os contos “Mariana”, “Pai contra

mãe” e “O caso da vara” são exemplos disso. Neles, o escritor retrata as relações

existentes entre senhores e escravos, o trabalho dos “capitães do mato” e como

se davam as relações entre pessoas brancas e os negros.

Segundo Sérgio Buarque de Holanda,

mesmo depois de inaugurado o regime republicano, nunca, talvez,

fomos envolvidos, em tão breve período, por uma febre tão intensa de reformas como a que se registrou precisamente nos meados do século passado1 e especialmente nos anos de 51 a 55 (1995, p.84).

Essas mudanças ocorreram nos mais variados campos: na área dos

transportes, com a construção de estradas de ferro; com o incentivo ao mercado

de capitais, através da criação de bancos, como o Banco Rural e Hipotecário; com

as agitações relativas à abolição, pois o governo era duramente pressionado pela

Inglaterra. Um exemplo dessa pressão foi o fechamento dos portos, o que

dificultou, senão encerrou, temporariamente, as relações entre os dois países.

O Brasil se transformava num país cujas idéias estavam “fora do

lugar”2: pregava ideais de igualdade, com a República acompanhada da

democracia, mas ainda vivia à sombra da escravidão, elemento que traçou o

desenvolvimento de sua economia, uma vez que os escravos eram a mão-de-obra

utilizada. 1 Século XIX. 2 Utilizando a expressão de Roberto Schwarz.

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Os liberalistas brasileiros adotaram o modelo europeu do liberalismo,

“importaram princípios e fórmulas políticas, mas ajustaram às suas próprias

necessidades” (COSTA, 1999, p. 132). Enquanto a burguesia européia lutava

contra “os abusos da autoridade real, os privilégios do clero e da nobreza, os

monopólios que inibiam a produção, a circulação, o comércio e o trabalho livre”

(COSTA, 1999, p. 133), o Brasil procurava uma nova política que protegesse os

grandes proprietários de terras e de escravos.

Segundo Emília Viotti da Costa, o liberalismo no Brasil pode ser

assim resumido:

As estruturas sociais e econômicas que as elites brasileiras desejavam conservar significavam a sobrevivência de um sistema de clientela e patronagem e de valores que representavam a verdadeira essência do que os europeus pretendiam destruir. Encontrar uma maneira de lidar com essa contradição (entre liberalismo, de um lado, e escravidão e patronagem, do outro) foi o maior desafio que os liberais brasileiros tiveram de enfrentar. No decorrer do século XIX, os discurso e a prática liberais revelaram constantemente essa tensão (COSTA, 1999, p. 134).

Embora as idéias de Abolição já existissem há bastante tempo – em

meados do século XVII, sacerdotes residentes no Brasil já protestavam contra o

tratamento dado aos escravos e as críticas à escravidão eram formalmente feitas

– o processo se deu a passos lentos: a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, a Lei do

Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885 precederam ao ato

assinado pela Princesa Izabel em 1888, que regulamenta a abolição da

escravatura no Brasil. Todas estas leis tinham o intuito de tornar a abolição um

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processo lento e gradual pois, de um lado, havia a aristocracia agrária brasileira,

que defendia a escravidão, já que era a mão-de-obra necessária para sua

produção. De outro, o governo brasileiro, que estava sendo pressionada a abolir a

escravidão no país.

Para Silva Lisboa apud Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do

Brasil – escritos publicados a partir de 1819, o que acontecia era o menosprezo

pelo trabalho físico, braçal (que era realizado principalmente por escravos) e a

supervalorização do trabalho mental como “inteligência”. Mas este pensamento

começava a mudar, mudança essa que vinha acompanhando as outras

transformações pelas quais o país passava. Para Sérgio Buarque de Holanda,

pode-se mesmo dizer que o caminho aberto por semelhantes transformações só poderia levar logicamente a uma liquidação mais ou menos rápida de nossa velha herança rural e colonial, ou seja, da riqueza que se funda no emprego do braço escravo e na exploração extensiva e perdulária das terras de lavoura (1995, p.74).

Segundo Salete de Almeida Cara, no ensaio “Machado de Assis nos

anos 1870: a preparação do romance realista”, em citação de crônica do próprio

Machado, 70% da população da época não era alfabetizada:

E por falar neste animal, publicou-se há dias o recenseamento do Império, do qual se colige que 70% da nossa população não sabem ler. Gosto dos algarismos porque não são meia dúzia de medidas nem de metáforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para as frases; o

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algarismo não tem frases, nem retórica (CARA in COELHO; OLIVEIRA, 2004, p.46).

Ora, se os 30% restantes são alfabetizados, este é o público leitor

em potencial de Machado de Assis. E se, nesta população alfabetizada, a maioria

das pessoas faz parte da elite ou burguesia brasileira, qual a intenção de Machado

em abordar temas como a política e a sociedade em seus textos? Era para esta

classe que passava por tais mudanças, visto que eram eles os leitores – a

população alfabetizada – a quem Machado escrevia e procurava mostrar a

situação do país.

Utilizando a expressão de John Gledson, a ficção de Machado é

“realismo enganoso”. É necessário que se leia nas entrelinhas para entender de

fato suas reais intenções. Para Nicolau Sevcenko, “todo o fundamental, essa é a

grande arte do escritor, está nas entrelinhas e nas referências citadas”

(SEVCENKO, 2003, p. 304).

Por trás de relações amorosas fracassadas, que parecem banais, o

autor mostra as disparidades sociais. E descreve geralmente a sociedade da elite

fluminense – esta parcela da sociedade que possivelmente era sua leitora. O que

não deve ser apenas coincidência; existe aqui a intenção de retratar, por assim

dizer, o que se passava na alta sociedade brasileira, quais suas idéias e opiniões

acerca de determinados conceitos e situações.

A História, por sua vez, tentando firmar-se enquanto ciência,

distancia-se de forma sistemática da Literatura, deixando-a em segundo plano.

Contudo, no presente trabalho será mostrado o quanto a Literatura pode ser uma

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fonte de conhecimento inesgotável e por mais que não tenha preocupação e até

mesmo obrigação com a “verdade” narrada, sua importância consiste

principalmente em entender e analisar a historicidade, uma vez que, assim como

os fatos e acontecimentos históricos, é fruto de uma produção humana constituída

de discursos e práticas sociais presentes em um determinado contexto histórico,

não podendo assim abstrair-se dele e nem tampouco deixar de sofrer suas

influências.

Por muito tempo, ambas as disciplinas estiveram afastadas devido

ao fato de que o Positivismo – como corrente historiográfica – defendia a História

como uma ciência a mais exata possível. Deveria haver um distanciamento entre a

ficção e a “realidade”, e a análise de fatos históricos dava-se exclusivamente

através de documentos autênticos. Essa concepção começou a mudar no início

dos anos 703, quando a Literatura voltou a servir como uma espécie de “espelho”

da História, refletindo os contextos social, econômico e político. Assim, a História

do Brasil e as tensões da sociedade do século XIX são uma constante nos textos

de Machado; História e Literatura andam de mãos dadas. Atualmente,

historiadores têm encontrado em autores da ficção fontes para suas pesquisas,

como é justamente o caso de Machado de Assis. De acordo com Maria Izabel

Oliveira, “a linguagem utilizada pelo autor, além de ter significado, tem o efeito de

ações positivas: o texto traz consigo a intenção do autor em intervir, em advertir

sobre algo que está acontecendo ou que, em seu entender, está prestes a

acontecer” (OLIVEIRA, 2003, p. 61).

Para Josué Montello, 3 Século XX.

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O texto literário, na urdidura do romance, converte-se em testemunho histórico, dando-nos a impressão nítida de que o narrador está a guardar ali, não a urdidura romanesca, e sim o testemunho do país que se transformava. O memorialista fixou flagrantes que ficaram para trás e em que o narrador tornou perene o que anotou com o gosto da vida fielmente testemunhada. (MONTELLO, 1998, p. 15)

No caso de Machado de Assis, o autor advertia sobre os fatos e, em

sua obra, encontram-se relatos sobre o que estava acontecendo dentro do país.

Sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas, assim afirma Flávio Loureiro Chaves:

Já não se poderá distinguir esquematicamente, no romance psicológico, o que é psicológico e o que é social. Ou melhor dizendo, seus grandes temas (apenas três ou quatro a se repetirem sempre) podem estar na inteira dependência das crises individuais das personagens, mas não estão aí senão como metáforas da realidade, iluminando o mundo circundante que se degradou em danação e absurdo (CHAVES, 1988, p. 31).

Assim, será traçado um panorama de como Machado via o país e

como o retratava em sua obra a partir da análise dos personagens – seus

comportamentos e suas crises individuais – encontrados nos contos abordados

neste trabalho.

Machado representa, nos três contos analisados nesta dissertação,

as tensões pelas quais passavam os escravos e as pessoas com quem se

relacionavam – senhores e sua família.

No posfácio de Literatura como Missão, por exemplo, Nicolau

Sevcenko analisa o conto “Evolução”, de Machado, que trata de um encontro

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causal entre dois homens numa viagem do Rio para Vassouras, os quais,

“encetando conversação para aliviar o tédio da viagem, acabam se tornando

amigos, passando a se encontrar com freqüência daí em diante” (SEVCENKO,

2003, p. 304). Chamam-se Inácio e Benedito – o primeiro representa uma nova

mentalidade da sociedade com idéias inovadoras, ideais republicanos; o segundo,

fazendeiro de café, representa as oligarquias do Brasil do Segundo Reinado. O

que Sevcenko constata é que Machado mostra uma sociedade fundada em

princípios tradicionais que já estava se apropriando das idéias de uma nova

mentalidade em formação no país, uma vez que esta oligarquia havia se

“desgastado com o Império” e “resolve apoiar a onda republicana ascendente”

(SEVCENKO, 2003, p. 305). Quanto ao “advertir” sobre o que estaria para

acontecer, o ensaísta faz importante observação: “note-se que Machado escreveu

a história em 1884, quatro anos antes da Abolição e cinco antes da República”

(SEVCENKO, 2003, p. 305).

Sobre o binômio História x ficção, observe-se o que afirma Harlan:

(...) após uma ausência de cem anos, a literatura volta à história, montando seu circo de metáfora e alegoria, interpretação e aporia, traço e signo, exigindo que os historiadores aceitem sua presença zombeteira bem no coração daquilo que, insistiam eles, consistia sua disciplina própria, autônoma e verdadeiramente científica. (Apud OILIVEIRA, 2003, p. 60)

Convém ressaltar que o autor abordado nesta dissertação utiliza-se

grandiosamente da metáfora e da alegoria para representar o espaço político,

econômico e social chamado Brasil, sendo aqui analisados “a densidade da prosa,

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a sua potência intelectual, a quantidade e sutileza das observações de realidade,

a malícia dos arranjos formais, o alcance estratégico do ângulo narrativo, a feição

caracteristicamente nacional”4 dos contos de Machado.

Um trecho de Roberto Schwarz, em Um mestre da periferia do

capitalismo, pode servir para exemplificar as preocupações deste trabalho:

Ainda assim, questões de eficácia literária à parte, a charada histórica é uma presença importante na obra machadiana, como os estudos de Gledson vêm demonstrando, e é imprescindível levá-la em conta, sob pena de desconhecer a razão de grande número de pormenores. Com certeza, indica o intuito de comentar a história nacional em chave inconformista, ainda que prudentemente cifrada e reservada ao pequeno número dos leitores atentos ou iniciados (SCHWARZ, 2000, p. 76).

Ao ser inquirido sobre a consciência de Machado acerca do que

revela em sua obra, na entrevista “Tira-dúvidas”, in Scriptoria II, Roberto Schwarz

responde:

A ligação entre a intenção do autor e a qualidade das obras, e mesmo o sentido delas, é uma questão aberta, a examinar caso a caso. Quando se fala de pessoas, a consciência clara é um valor, sem dúvida nenhuma. Em relação às obras, que não são juízos, mas configurações, o caso é outro. Você pode escrever grandes obras tendo consciência limitada a respeito, e pode escrever obras ruins tendo um grau considerável de clareza. Dito isso, a lucidez em arte é um tipo de superioridade, que o Machado tinha em alto grau, o que com certeza caracteriza a grandeza dele. Basta pensar na inteligência com que ele desqualifica uma figura tão ideal e acima de qualquer suspeita como o Bentinho. Ainda assim, a intenção do autor não é um dado absoluto (p. 21).

4 Resposta de Roberto Schwarz na entrevista “Um mestre na periferia do Capitalismo”, contida no livro Seqüências Brasileiras.

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A citação acima faz-se para ressaltar que a obra de Machado

configura dado contexto histórico – como a maior parte da Literatura, uma vez que

toda ela está repleta de historicidade e não há como separá-las, o que não faz do

autor um panfletário; sua obra vai além disso. Ela está dentro dos cânones do

Realismo, que objetiva descrever a realidade “como ela é”.

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1 MARIANA

“Mariana”, conto publicado em 1871 n’O Jornal das Famílias,

apresenta a saga de uma escrava que se apaixona pelo filho de sua senhora.

Sabendo que o amor é “impossível”, dada a situação da jovem, ela foge, é

apanhada duas vezes, confessa seu amor e, com um trágico desfecho, suicida-se

com veneno, trazendo muita dor e remorso ao protagonista do conto. O ambiente

onde se passa o conto é a casa de Coutinho, de família rica e influente no Rio de

Janeiro, envolta por uma aura fortemente paternalista, em que há uma rígida

separação entre senhores e escravos, embora Mariana seja considerada “quase

senhora” por seus proprietários. No desenrolar da trama, percebe-se o quanto

Mariana era “quase”, pois é no momento em que tenta se libertar – através de

duas fugas – que se sente ainda mais aprisionada pelo fato de seus proprietários

irem ao seu encalço.

Além de atender ao público leitor de suas publicações em folhetins –

geralmente as damas da elite carioca –, Machado ali deixava suas críticas sobre a

situação do país. Atendia ao público por escrever histórias que o divertisse,

prendesse e o deixasse ansioso pela próxima publicação, ao mesmo tempo em

que o criticava por abordar assuntos relativos à sociedade carioca.

O conto é da fase romântica do escritor, já possuindo traços do

Realismo, escola que consagrou Machado. Segundo Bosi, “Machado nunca foi, a

rigor, um romântico (o Romantismo está às suas costas)”, mas sua obra possui

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“gosto sapiencial da fábula que traz, na coda ou nas entrelinhas, uma lição a tirar”

(BOSI, 2003, p. 79).

A escolha pelo conto “Mariana” não foi aleatória, pois a narrativa é o

“espelho” de uma época em que o regime escravocrata está em declínio, pondo

abaixo todo um sistema socioeconômico que modificaria a mentalidade que

persistia desde o período colonial. Apesar de ter sido publicado em 1871, o texto

remete a meados de 1850, período marcado pela outorgação da lei que extinguia

o tráfico de negros vindos da África e por pressão para que o regime escravocrata

fosse abolido.

O conto é dividido em três partes. A primeira consta do reencontro

de Macedo com velhos amigos. A voz narrativa é tomada por Coutinho, que conta

todo o incidente ocorrido em sua mocidade, dando início à segunda parte do

conto. Por fim, Macedo apresenta o desfecho da história, quando os ex-rapazes –

que no início do conto já se encontram “quarentões” – saem pelas ruas da capital

do Império a reparar nas moças que ali passavam. Assim, o texto pode ser

inserido dentro de dois recortes temporais: a legitimidade do regime escravista e o

de colapso desse mesmo sistema. Percebe-se isso quando Macedo, vindo de uma

ausência de quinze anos passados na Europa, ouve as confidências de seu velho

amigo Coutinho, que lhe relata o caso da escrava ocorrido no passado; aí

constata-se, então, o tempo transcorrido e se tem idéia aproximada da cronologia

e da data dos acontecimentos.

“Mariana” é um conto que ilustra os costumes e a mentalidade de

uma época: enfoca o sistema escravista, a relação de dependência entre escravos

e senhores, o preconceito, a busca do prazer sexual fácil originado da “obrigação”

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das escravas, a banalização da complexidade que era tal sistema. Assim,

utilizando-se da narrativa, existe aqui a tentativa de ilustrar, por meio da Literatura,

“denúncias”5 (ou mesmo a descrição crítica, sob a ótica de quem assistia de perto

ao que aconteceu) de um indivíduo que vivia aquele momento e sofreu influências

em sua escrita, além de reflexos de uma sociedade que passava por crise, que

estava mudando. O gênero literário utilizado não serve só como ilustração, mas

como um documento que é escrito de acordo com um contexto nas perspectivas

de um homem culto e politizado, ciente do que acontecia ao seu redor.

As relações de dependência e paternalismo, o pensamento

construído por mais de dois séculos que não pode ser tão facilmente derrubado,

leis que não conseguem aplicação, são temas discutidos no decorrer do capítulo.

São mais de dois séculos de violência e crimes sem punição,

facilmente esquecidos, sob a ótica de Macedo, após duas horas de conversa entre

amigos.

1.1 Os personagens de “Mariana”: algumas considerações

Os protagonistas do conto são, claramente, Mariana e Coutinho. Mas os

personagens secundários também possuem papel importante e decisivo para o

5 Não há a intenção de reduzir o autor a um simples panfletário que utiliza a Literatura para campanhas de abolição ou de qualquer outra espécie.

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enredo, para o quadro social e econômico e para o ambiente em que se passa a

trama.

Macedo é um viajante com ares de bon vivant, despreocupado com as

desilusões e cansaço que a vida pode causar aos homens:

Eu, entretanto, vinha tão moço como fora, não no rosto e nos cabelos, que começavam a embranquecer, mas na alma e no coração que estavam em flor. Foi essa a vantagem que tirei das minhas constantes viagens. Não há decepções possíveis para um viajante, que apenas vê de passagem o lado belo da natureza humana e não ganha tempo de conhecer-lhe o lado feio (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 152).

Ele descreve aos amigos as viagens que fez, dando um ar afetado e

casual à experiência que era atravessar toda a Europa até o Oriente Médio –

enfatizando, assim, sua condição de homem abastado:

Contei-lhes o que tinha visto desde o Tejo até o Danúbio, desde Paris até Jerusalém. Fi-los assistir na imaginação às corridas de Chantilly e às jornadas das caravanas no deserto; falei do céu nevoento de Londres e do céu azul da Itália. Nada me escapou; tudo lhes referi (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 152).

Pelo fato de ser Macedo um homem viajado – passou quinze anos na

Europa –, deduz-se que o personagem fazia parte da elite carioca da época. Além

disso, seu círculo social confirma a hipótese, pois quando ele dá informações

sobre que rumo tomaram as vidas de seus amigos, percebe-se que também eles

eram homens bem-sucedidos: “Alguns amigos tinham morrido, outros estavam

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casados, outros viúvos. Quatro ou cinco tinham se feito homens públicos, e um

deles acabava de ser ministro de Estado” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 151).6

Após grande surpresa ao reencontrar o amigo Coutinho, Macedo o

convida para almoçar no hotel em que estava hospedado, “com a condição porém

que iria buscar mais dois amigos” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 152). Macedo

faz rápidas considerações sobre a situação social e financeira dos outros amigos –

que não têm seus nomes citados –, afirmando que eram “dois excelentes

companheiros de outro tempo. Um deles estava a frente de uma grande casa

comercial; o outro, depois de algumas vicissitudes, fizera-se escrivão de uma vara

cível” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 152). O único dos companheiros que não

possuía posição de prestígio era este último – o escrivão. Os demais amigos de

Macedo foram feitos homens de sorte e de posição prestigiada na sociedade.

Enquanto o amigo “que estava a frente de uma grande casa comercial”

contava o quão difícil foi chegar aonde chegou, o escrivão preferia abster-se de

comentários:

Cada qual fez suas confissões. O negociante não hesitou em dizer tudo quanto sofrera antes de alcançar sua posição atual. Deu-me notícia de que estava casado, e tinha uma filha de dez anos no colégio. O escrivão achou-se um tanto envergonhado quando lhe tocou a vez de dizer a sua vida; todos nós tivemos a delicadeza de não insistir nesse ponto (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 152).

6 Grifos meus.

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O narrador parece fazer questão de mostrar o quanto era vergonhoso

para o amigo escrivão não possuir a mesma posição e não ter alcançado o

mesmo sucesso financeiro que os demais amigos.

Coutinho era moço rico, filho de uma família abastada e grande

proprietária de escravos do Rio de Janeiro. Quando Macedo pergunta como

estava sua vida, Coutinho “não hesitou em dizer que era mais ou menos o que era

outrora a respeito da ociosidade” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 152-3), ou seja,

o mesmo filho de família rica não disposto a trabalhar e produzir. Rapidamente um

de seus amigos responde que Coutinho continua o mesmo de quinze anos atrás:

– Não te casaste? perguntei eu. – Com a prima Amélia? disse ele; não. – Por quê? – Porque não foi possível. – Mas continuaste a vida solta que levavas? – Que pergunta! exclamou o negociante. É a mesma coisa que era há quinze anos. Não mudou nada. – Não digas isso; mudei. – Para pior? perguntei eu rindo. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 153)

Ou seja, mesmo tendo se passado uma década e meia, Coutinho

continuava o mesmo: o filho burguês de uma família abastada. Contudo, o

personagem é dono de caráter e escrúpulos, pois em momento algum procura tirar

proveito do amor de Mariana. Passam-lhe pela cabeça desejos de possuir a moça,

mas ele mesmo logo os condena.

Mariana era a típica “escrava de casa”: possuía certas “regalias” – como

aprender a ler e escrever, além de Língua Francesa, costura e bordado – que os

escravos de fora da casa-grande não tinham. Era mais bem tratada que os demais

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e seus donos tinham-lhe um apreço diferenciado. Na noite de Natal, por exemplo,

a mãe de Coutinho, seguindo costume deixado por sua mãe, dava festas às

escravas. “As festas consistiam em dinheiro ou algum objeto de pouco valor7.

Mariana recebia as duas coisas por especial graça” (MACHADO DE ASSIS, 1998,

p. 165). Segundo o próprio Coutinho, “não se sentava à mesa, nem vinha à sala

em ocasião de visitas, eis a diferença; no mais, era tratada como se fosse pessoa

livre8, e até minhas irmãs tinham certa afeição fraternal” (MACHADO DE ASSIS,

1998, p. 154).

Era inteligente e aprendia muito rápido tudo aquilo que lhe era ensinado;

entretanto, tinha ciência de seu lugar. Sabia que o tratamento que lhe era dado

resultava de sua obediência e por isso era muito grata a seus senhores.

Mas a moça passa de obediente a insolente quando descobrem sua

fuga. Mesmo sem saber os motivos de Mariana, Coutinho e sua família indignam-

se com o fato, e atribuem a isso desobediência e ingratidão.

A figura do pai de Coutinho não é citada no conto. Sua mãe deve ser

viúva e ocupa o lugar do marido no comando da casa. A ausência da figura

paterna nesta família parece indicar uma certa crise no patriarcalismo, visto que é

a mãe quem assume a chefia da casa. É uma mulher de pulso firme, mas dotada

de muita compaixão. Sua compaixão é tanta que Mariana é absolvida de qualquer

castigo ao ser resgatada. Quando toma ciência do casamento de Coutinho com a

prima Amélia, os olhos de Mariana ficam marejados de lágrimas e a bondade da 7 Observe-se aqui que até mesmo para “agradar”, Machado chama atenção para o valor do que é dado aos escravos. “Objetos de pouco valor” são oferecidos como presentes e significam grande bondade por parte da mãe do protagonista e representam a inferioridade das crias, embora a “sinhá” lhes fizesse agrados. 8 Grifos meus. Note-se sempre o distanciamento, apesar de Coutinho e sua família possuírem verdadeiro apreço pela moça.

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mãe do protagonista para com seus escravos parece evidente: achando que

Mariana havia cometido alguma falta e tivesse recorrido a ele para protegê-la junto

de sua mãe, comenta: “a falta devia ser grande, porque minha mãe era a bondade

em pessoa, e tudo perdoava às suas amadas crias” (MACHADO DE ASSIS, 1998,

p. 157).

Mas o conceito de senhor “justo” ou “cruel” só legitima o sistema

escravista:

A noção de um “cativeiro justo” ou do “bom senhor” em primeira análise está reconhecendo a própria legitimidade da instituição escravista. Trata-se de discutir as condições de seu funcionamento e não o direito de propriedade sobre seres humanos. Apenas, essas noções assumem tal papel se são construídas com base no reconhecimento da primazia do senhor. A universalização de um padrão de comportamento senhorial pressuporia o reconhecimento de direitos (também universais) aos escravos, o que, em si, é incompatível com a dominação escravista. (CASTRO, 1997, p. 356)

Assim, o conto machadiano demonstra que, mesmo sendo a mãe de

Coutinho uma senhora de escravos justa e boa, o que está em jogo é a

legitimidade da escravidão, instituição que está em seu auge no recorte temporal

em que se dá o acontecimento do conto (meados de 1850), conforme já referido.

Mesmo com toda a bondade para com a escrava Mariana, Machado mostra que a

família de Coutinho não deixa de fazer parte das estatísticas da época – uma

família de elite, proprietária de escravos, cujas atividades domésticas tinham como

base o trabalho forçado e não-remunerado.

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Josefa é uma das irmãs de Coutinho e quem primeiro desconfia da

paixão de Mariana. É com ela que o irmão conversa sobre o que se passa com a

escrava e é com ela também que ele trama as soluções para o caso de “exaltação

de sentidos” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 160) da jovem.

Há, ainda, a figura de João Luís, tio de Coutinho, que sempre utiliza

gracejos ao mencionar Mariana, além de sentir certos desejos pela moça. E

Amélia, sua filha e noiva do sobrinho Coutinho, uma moça geniosa e ciumenta que

critica o tratamento dado aos escravos de sua tia.

1.2 Relação de dependência e política de favores

Mudar uma mentalidade que já havia se concretizado na sociedade

brasileira por dois séculos – desde a implantação do escravismo até a composição

de Mariana – foi muito difícil. Como tratar um escravo como se fosse uma pessoa

branca se ainda havia o sentimento de posse? Por isso a dificuldade de se

aplicarem e se aceitarem leis que estavam sendo criadas para se promover a

abolição de fato. Muitas delas não chegavam nem a ser aplicadas; a Lei Euzébio

de Queirós (1850), que proibia o tráfico negreiro, por exemplo, não impediu a

comercialização de escravos dentro do país.

Em “Mariana” isso é muito claro. A moça era tratada como “escrava,

é verdade, mas escrava quase senhora”. Contudo, a partir do momento em que

ela tenta se livrar do “amor impossível” fugindo, demonstrando certa autonomia,

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característica exclusiva dos senhores, passa de “quase senhora” a “insolente” e

ingrata pelo fato de não lembrar os benefícios que recebera sendo tratada “como

filha da casa”; ou seja, Mariana era “quase senhora”, mas não poderia esquecer

que isso se dera pelo fato de sua senhora o permitir.

O “mérito” dos favores recebidos pelos escravos estava presente em

várias ocasiões: desde o tratamento diferenciado na casa até a distribuição de

alforrias em testamentos. Apesar de atípicos, alguns senhores que não tinham

herdeiros deixavam em seu testamento a alforria de escravos:

Sem dúvida, esses senhores eram atípicos, no que se refere à freqüência de doações de alforria e propriedade a escravos. Suas práticas, contudo, tornam visível uma política de domínio largamente baseada na distribuição de prêmios por “mérito” entre “dependentes”, difundida no escravismo da época (SLENES, 1997, p. 267).

A relação que se dava entre Mariana e a família de Coutinho

baseava-se nessa política de favores: em troca de ser tratada como uma moça

branca e filha da casa, Mariana deveria ser obediente e prestativa. E vice-versa –

mantendo o bom comportamento, as “regalias” seriam mantidas para a escrava.

Com o fim do tráfico intercontinental, o tráfico interno de escravos

intensificou-se. E, com os escravos urbanos, surgiu esta negociação entre cativos

e senhores; devido ao abolicionismo, a possibilidade de fuga dos escravos era

muito maior, pois havia muitos abolicionistas dispostos a acobertar fugas. Assim,

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escravos de “maus cativeiros” julgavam-se no direito de não dever obediência aos

seus senhores:

É verdade que eles [os escravos] leram as “concessões senhoriais” e as práticas costumeiramente sancionadas como “direitos pessoais” que os faziam – de seu ponto de vista – um pouco menos escravos que os outros. A originalidade da argumentação dos cativos negociados no tráfico interno, nas últimas décadas da escravidão, está no sentido genérico que atribuíam ao “mau cativeiro”, sem o qual o senhor não merecia obediência (MATTOS, 1997, p. 359).

Escravos dos “bons cativeiros” estavam sujeitos aos cortes de

privilégios devido à política de favores, e Machado de Assis mostra Mariana como

a representação desta política. Ela é filha de um “bom cativeiro”, e a relação da

escrava com os seus senhores, apesar das regalias que possuía, é a da

obediência, pelo fato de ser propriedade da família de Coutinho.

O fato de uma escrava se apaixonar por um senhor mostra que a

então sociedade brasileira se firmava nos alicerces patriarcais. Um senhor de

escravos representava a autoridade máxima dentro de sua propriedade. A ele,

suas crias deviam respeito e obediência. Coutinho parece ser um proprietário

justo, fato que rende encantos à moça Mariana. Até mesmo os amigos de

Coutinho, na ocasião do reencontro com Macedo, espantam-se quando ouvem

sua declaração de que “antes e depois amei e fui amado muitas vezes; mas nem

depois nem antes, e por nenhuma mulher fui amado como jamais fui...”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 154). Quando perguntado por Macedo se foi sua

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prima Amélia quem o amou dessa maneira, Coutinho responde: “Não, por uma

cria da casa” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 154).

A surpresa vem logo em seguida:

Olhamos todos espantados um para outro. Ignorávamos esta circunstância, e estávamos a cem léguas de semelhante conclusão. Coutinho não parece atender ao nosso espanto; sacudia distraidamente a cinza do charuto e parecia absorto na recordação que o seu espírito evocava (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 154).

Coutinho tratava a moça como uma pessoa próxima, mas quando se

vê pivô de um “amor impossível”, trata logo de colocá-la em seu devido lugar: o de

escrava. No momento em que o rapaz encontra Mariana na primeira fuga,

esbraveja: “Ver-me? mas por que saíste de casa, onde eras tão bem tratada, e de

onde não tinhas o direito de sair, porque és cativa? (MACHADO DE ASSIS, 1998,

p. 162) (...) Sofrias muito! Tratavam-te mal? Bem sei o que é; são os resultados da

educação que minha mãe te deu. Já te supões senhora e livre. Pois enganas-te;

hás de voltar já, e já, para casa. Sofrerás as conseqüências da tua ingratidão.

Vamos...” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 163). Mariana se nega a ir; o rapaz a

acusa de “abusar da afeição que todos” na casa têm por ela (MACHADO DE

ASSIS, 1998, p. 163) e, utilizando-se de sua autoridade como proprietário,

ameaça a moça de ser carregada para casa por dois soldados, à força. Pergunta

ainda à escrava se alguém a seduziu para fugir; é nesse momento que ela

confessa seu amor.

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“Resultados da educação que minha mãe te deu” (MACHADO DE

ASSIS, 1998, p. 163), segundo Coutinho, significam aqui a alfabetização da moça,

além das aulas de francês e de costura. Amélia, a noiva de Coutinho, fica

enciumada com a atenção dada a Mariana e, depois da captura da moça, em

visita à família do noivo, critica o tratamento dado às escravas e afirma ser mau

exemplo ensinar-lhes alguma coisa. Diz que as escravas devem ser tratadas com

severidade. Embora todos ali estivessem desapontados com Mariana, a mãe de

Coutinho e suas irmãs criticam com aspereza a atitude de Amélia: “Minha mãe

admirou-se muito desta linguagem da boca de Amélia e redargüiu com aspereza o

que lhe dava direito a sua vontade. Amélia insistiu; minhas irmãs combateram as

suas opiniões” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 164). Ou seja, os escravos da

família de Coutinho, como propriedade que eram, teriam o tratamento que seus

proprietários melhor decidissem e achassem justo. Coutinho diz ainda à noiva que

sua atitude era de “humilhar-se diante de uma escrava” (MACHADO DE ASSIS,

1998, p. 165). Amélia não entendeu que a humilhação sofrida se deu pelo fato de

demonstrar a todos da família que estava com ciúmes da escrava. Ciúmes sem

fundamento, pois, embora muito bem tratada, Mariana não passava de uma “peça”

que fazia parte da “decoração” da casa.

Ainda segundo Coutinho, sobre a educação de Mariana:

(...) a sua educação não fora tão completa como a de minhas irmãs; contudo, Mariana sabia mais do que outras mulheres em igual caso. Além dos trabalhos de agulha que lhe foram ensinados com extremo zelo, aprendera a ler e a escrever. Quando chegou aos quinze anos teve desejo de saber francês, e minha irmã mais moça lho ensinou com tanta paciência e felicidade, que Mariana em pouco

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tempo ficou sabendo tanto como ela (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 154-5).

Apesar do uso de eufemismos para indicar o lugar de Mariana como

escrava – por exemplo, a expressão outras mulheres em igual caso –, em todos

os momentos em que alude à escrava, fica muito clara a situação de inferioridade

da moça, que podia até ter direito à educação, mas nunca seria igual à das

senhorinhas brancas.

Para Chalhoub,

os senhores mostram estima pelos dependentes, mas ao fazê-lo produzem apenas sofrimento e humilhação; os dependentes – escravos e livres, Mariana ou Helena – são sinceramente agradecidos aos senhores, mas sabem que não há perspectivas e que serão sempre lembrados de sua situação de inferioridade social (CHALHOUB, 2003, p. 134).

Em História da vida privada no Brasil, sobre este estreitamento de

laços, encontra-se o seguinte:

Da análise dessas vivências9 emerge o retrato de uma classe senhorial prepotente e freqüentemente arbitrária, mas sobretudo ardilosa: uma classe que branda a força e o favor para prender o cativo na armadilha de seus próprios anseios. Dentro de certos limites10, os senhores estimulam a formação de laços de parentesco entre seus escravos e instituem, junto com a ameaça e a coação,

9 O autor relata o ocorrido em 1869, no município de Campinas, em São Paulo, em que, tornando-se maior de idade, um rapaz chamado Isidoro Gurgel Mascarenhas alforria a escrava Ana, sua mãe, que fazia parte da herança deixada por seu pai. 10 Grifo meu.

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um sistema diferencial de incentivos – no intuito de tornar os cativos dependentes e reféns de suas próprias solidariedades e projetos domésticos (SLENES, 1997, p. 236).

O mesmo acontece com Mariana: tratando-a como filha da casa,

estreitando laços entre senhores e cativa, a família de Coutinho pode usar os

argumentos de que ela era tratada como pessoa branca para justificar sua

indignação diante da fuga da moça. Devido a esta relação, a família poderia

achar-se no direito de tachar a escrava como insolente e ingrata.

Quando encontra pela primeira vez a escrava fugida, o rapaz faz

questão de lembrar-lhe de que é cativa, que não pode se supor “senhora e livre”.

Mariana, ciente do seu “erro”, volta para o cativeiro com Coutinho.

Sobre a relação de dependência e hierarquia social presentes na

narrativa, Sidney Chalhoub tece o seguinte comentário:

A aproximação entre escravidão e liberdade, para enfatizar a precariedade e os limites de qualquer experiência de liberdade numa sociedade paternalista, organizada em torno da reprodução dos laços de dependência pessoal, politiza eficazmente o drama do processo de emancipação dos escravos, então em evidência. Escravidão e paternalismo, cativeiro e dependência pessoal, pareciam faces da mesma moeda. “Mariana” transforma-se então em documento sobre um impasse histórico, visão ou interpretação de uma crise que mobilizava a sociedade inteira (CHALHOUB, 2003, p. 135).

Apesar de os senhores demonstrarem estima por seus escravos,

estes devem sempre ficar em seus devidos lugares: os de cativos. Apesar da

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gratidão, os escravos sentem-se humilhados e sabem que não há perspectivas,

pois não havia ascensão social. A única opção era a de serem gratos e realizarem

seus afazeres com dedicação e obediência para, assim, não sofrerem os castigos

aplicados ao escravos “insolentes”. Mariana, ao fugir, passa de “boa moça” a

“insolente” e ingrata.

Até mesmo quando Mariana adoece de amor, deve obedecer ao seu

dono, que, com pena da escrava, vai ter com ela para pedir-lhe que viva. É

interessante o jogo de palavras que Machado faz nesta passagem:

Foi nestas circunstâncias que eu resolvi fazer um ato de caridade. Fui ter com Mariana e pedir-lhe que vivesse. – Manda-me viver? – Sim. Foi eficaz a lembrança; Mariana estabeleceu-se em pouco tempo. Quinze dias depois estava completamente de pé (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 161)11.

Obviamente, Mariana ficou curada pela esperança de haver neste

ato de Coutinho uma reciprocidade de sentimentos. Sobre o jogo de palavras,

note-se que Coutinho diz pedir e Mariana lhe pergunta se ele a manda viver. A

palavra mandar possui uma conotação de superioridade que pedir não tem;

senhores mandam e escravos obedecem.

Uma observação bastante interessante se faz na passagem em que

Mariana é interrogada por Josefa, que quer saber o motivo da tristeza da moça e

por quem a escrava está enamorada:

11 Grifos meus.

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Mariana recusou-se a dizer coisa nenhuma a minha irmã. Debalde, empregou esta todos os meios de sedução possíveis entre uma senhora e uma escrava. Mariana respondia invariavelmente que nada havia de confessar. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 159)

Embora a escrava tivesse sido criada como membro da família e

considerada por todos da mesma forma, é claro o distanciamento que se faz entre

as duas personagens.

Inclusive, quando há a primeira fuga da escrava, Coutinho dá seu

parecer de resolução para a irmã, Josefa: “– Creio que devemos fazer esforços

para capturá-la, e uma vez restituída à casa, colocá-la na situação verdadeira de

cativeiro” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 162). Então, achavam Coutinho e sua

família que, por tratarem bem a escrava, dar-lhe “mimos de senhora”, não era ela

cativa e sua casa estava longe de ser um cativeiro?

A segunda fuga da escrava, no dia do Natal, causou ainda mais

irritação na família; na primeira fuga, “houve alguma mágoa e saudade de mistura

com a indignação. Desta vez, indignação apenas. Que sentimento devia inspirar a

todos a insistência dessa rapariga em fugir de uma casa onde era tratada como

filha?” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 165). Machado de Assis mais uma vez

chama a atenção para a postura da família diante do tratamento dado à escrava e

a indignação causada pela ingratidão da moça, evidenciada por duas fugas. É no

amor que aparecem as limitações sociais; é quando se vê apaixonada por seu

dono que Mariana percebe de fato o distanciamento que havia entre aquela família

da elite e o seu lugar de escrava.

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Na primeira fuga, Coutinho diz que a escrava deve ser capturada e

colocada em seu devido lugar, mas diz isso apenas por sentir dor em ver o

desespero de sua mãe. Mas na segunda fuga foi bastante diferente: “ficou

assentado que se procuraria a fugitiva e se lhe daria o castigo competente. Deixei

que esse movimento de cólera se consumasse, e levantei-me para ir procurar

Mariana” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 166). Coutinho foi tocado e movido por

seus sentimentos de proprietário. Ao encontrar Mariana, Coutinho a vê jogando-se

em seus braços e toma verdadeira atitude de um senhor de escravos, repelindo

“aquela demonstração com toda a brandura que a situação exigia” (MACHADO

DE ASSIS, 1998, p. 167). E ainda diz para a escrava: “não vim aqui para receber-

te abraços, (...); venho pela segunda vez buscar-te para casa, donde pela

segunda vez fugiste” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 167).

Coutinho já não se sente tão penalizado e a sua intenção é a de

levar Mariana embora e colocá-la no lugar de onde nunca deveria ter saído. Cogita

que deveria ter sido mais delicado, não utilizando a palavra “fugiste”, mas conciliar

os próprios sentimentos com os deveres de senhor, “e não fazer com que a

mulher não se esquecesse de que era escrava” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.

168). A partir desse momento até as páginas finais do conto, a posição assumida

por Coutinho é a de um proprietário de escravos zangado com a fuga de uma de

suas crias.

Sobre a política de favores, assim diz Robert Slenes:

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Mesmo quando formada ao largo da casa-grande, tais relações [de favor e de compadrio] contribuíam para tornar o escravo mais refém ainda dos próprios projetos. Quem conseguia avançar no caminho do favor ficava cada vez mais vulnerável, pois tinha mais a perder (SLENES, 1997, p. 276).

Mariana não possuía projetos de ser alforriada, mas com todas as

regalias que possuía, ela estava vulnerável e prestes a perdê-las, resultado de sua

fuga; é, todavia, uma personagem construída em moldes românticos por essência,

que parece não se preocupar com tais perdas. Por outro lado, a família de

Coutinho fica indignada com a fuga da moça, sentindo-se prejudicada não

somente por perder uma de suas “peças”, mas também por sentir-se enganada

em ter “investido” tanto numa escrava que acaba fugindo.

Machado de Assis, ao descrever a situação da escrava Mariana

dentro e fora da casa, utiliza-se de um paradoxo: para ser livre, Mariana deveria

estar exatamente no lugar de sua “prisão”, a casa de seus senhores; uma vez

longe da privacidade do lar, num local que por excelência é de liberdade, é onde

está mais presa à sua condição de cativa. A antiga situação de “escrava quase

senhora” vem ao chão, pois fora dela a situação de posse torna-se mais evidente,

o que demonstra, de forma sucinta, a mentalidade de uma sociedade patriarcal,

fortemente hierarquizada, já que na primeira oportunidade lhe é lembrado o estado

de inferioridade social e de dependente.

No período em que se passa a primeira parte da narrativa, não eram

muitos os casos de escravos alforriados e um hábito que se tornou comum entre

os escravos era o suicídio, uma alternativa para aqueles que queriam ser livres.

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Assim aconteceu com Mariana: tomando veneno, libertou-se do “amor impossível”

e da situação de cativa.

1.3 Pobreza x riqueza: amor impossível?

Após saber do casamento de Coutinho com Amélia, Mariana chora

diante dele. Coutinho pergunta o que havia acontecido e não obtém resposta. Mas

como estava de saída, retira-se e logo esquece o incidente. Acaba lembrando-se

do acontecido após o jantar e pergunta à sua irmã Josefa o que se passava com a

moça Mariana. Josefa diz que pode ser algum namoro. Irônico e desdenhando da

escrava, o moço diz em tom de galhofa: “e quem seria o namorado da senhora

Mariana (...) O copeiro ou o cocheiro?” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 157).

Percebe-se aqui, mais uma vez, o distanciamento que há entre os dois não só

pela diferença de classes, mas pelo próprio preconceito e desdém com que

Coutinho enxerga a moça.

Curioso pelo que se passava com a escrava, Coutinho decide

investigar as causas de sua tristeza e, na primeira ocasião, lhe indaga: “Que tens,

Mariana? (...) andas triste e misteriosa. É algum namorico? Anda, fala; se gostas

de alguém, poderás ser feliz com ele porque ninguém te oporá obstáculos a teus

desejos” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 158).

E assim continua o diálogo:

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– Ninguém? Perguntou ela com singular expressão de incredulidade. – Quem teria interesse nisso? – Não falemos nisso, nhonhô. Não se trata de amores, que eu não posso ter amores. Sou uma simples escrava. – Escrava, é verdade. Mas escrava quase senhora. És tratada aqui como filha da casa, esquece esses benefícios? – Não os esqueço, mas tenho grande pena em havê-los recebido. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 158).

A conversação segue com a acusação que Coutinho faz a Mariana,

chamando-a de insolente. Mariana pede perdão, ajoelha-se, “voltando à sua

humildade natural” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 158). Coutinho comove-se:

“alguma grande preocupação teria feito com que Mariana esquecesse por

instantes a sua condição e o respeito que nos devia a todos” (MACHADO DE

ASSIS, 1998, p. 159). Ele a desculpa, mas pede que não torne a repetir coisas

que o obrigassem a contar à sua mãe.

Sendo assim, o que se pode observar neste pequeno diálogo entre

os dois personagens é que, em primeiro lugar, Coutinho foi movido apenas pela

curiosidade de saber o que seria o namoro de uma escrava, mas finda por

compadecer-se e se questiona depois, cogitando inclusive em pedir a alforria da

moça:

Que seria uma paixão daquela pobre escrava educada com mimos de senhora? Refleti longamente nisto tudo, e concebi um projeto romântico: obter a confissão franca de Mariana e, no caso em que se tratasse de um amor que a pudesse tornar feliz, pedir a minha mãe a liberdade da escrava (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 159).

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Segundo: em momento algum passa pela cabeça do moço ser ele

mesmo o motivo da tristeza de Mariana; para ele, o merecedor do afeto da

escrava seria uma pessoa como o copeiro ou o cocheiro, já que estavam eles

nivelados socialmente. Eis aqui a mentalidade de um proprietário de escravos. E,

em terceiro lugar, tendo ciência de sua posição na escala social, Mariana prefere

calar-se a assumir sua paixão e tornar-se motivo de chacotas ou xingamentos. Por

isso a moça preferia não ter tido os benefícios que recebeu na casa; assim não

teria se apaixonado e não passaria pelo sofrimento e pela humilhação de estar

amando seu senhor, sofrimento por ter abafado seus sentimentos, humilhação por

saber que sua situação – a de escrava – jamais mudaria; e, mesmo que mudasse,

ainda assim não teria seu amor correspondido.

O narrador sempre faz questão de salientar que não corresponde

aos sentimentos da moça – visto que, para aquela sociedade e para a sua família,

seria uma vergonha um homem branco da alta classe enamorado de uma escrava

– mas sente remorso de ser a causa de uma tragédia. Na segunda fuga de

Mariana, Coutinho encontra-se bastante preocupado com a escrava e refere: “não

porque eu correspondesse aos seus sentimentos por mim, mas porque eu sentia

sérios remorsos de ser causa de um crime. (...) Minha vaidade não era tamanha

que me abafasse os sentimentos de piedade cristã” (MACHADO DE ASSIS, 1998,

p. 166).

Roberto Schwarz, no capítulo “A sorte dos pobres”, sobre as

Memórias Póstumas de Brás Cubas, faz a seguinte colocação: “do que depende o

desfecho? da simpatia do moço ou de uma família de posses. Noutras palavras,

depende de um capricho da classe dominante” (SCHWARZ, 2000, p. 87).

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Trazendo o comentário para “Mariana”, pode-se afirmar que, embora

Coutinho desejasse a mulata e pensasse em vir a ter com ela algum tipo de

relação, isso apenas dependeria dele. Mas, uma vez que a família, da alta

sociedade carioca, não veria tal relação com bons olhos, o relacionamento não

dependia apenas da simpatia do rapaz pela moça. A questão vai bem além de

simpatias ou antipatias. Deveria colocar-se em seu lugar – até porque, quando

não o fizesse por própria conta, os ricos o fariam – uma vez que se vivia numa

sociedade escravocrata onde os menos favorecidos não tinham voz. Com Mariana

e Coutinho não é diferente, já que a moça é “quase senhora”, mas escrava,

desistindo do amor que sente pelo seu “dono”.

Segundo Schwarz,

todas as situações de nossa amostra12 vêm escudadas no sofrimento familiar. (...) Ao lado da norma liberal e com presença tão sistematizada quanto a dela, há aqui uma ideologia familista, calcada na parentela de tipo brasileiro, com seu sistema de obrigações filiais e paternais abarcando escravos, dependentes, compadres, afilhados e aliados, além dos parentes. Esta ideologia empresta familiaridade e decoro patriarcal ao conúbio difícil de relações escravistas, clientelistas e burguesas. À condenação liberal da sociedade brasileira, estridente e inócua, soma-se a sua justificação pela piedade do vínculo familiar, cuja hipocrisia é outra especialidade machadiana (SCHWARZ, 2000, p. 70).

Por este motivo, Coutinho vê-se na obrigação de “salvar” Mariana.

Pelo mesmo motivo, sente-se tão culpado pelo suicídio da escrava. A hipocrisia

12 Schwarz refere-se às relações de dependência e clientelismo criadas com base na “norma burguesa oitocentista”.

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está aqui presente pelo fato de o narrador mostrar que o “ex-moço”, agora um

quarentão, preocupava-se mais com a sua imagem moral (a de um moço bem-

nascido que se tornou o motivo da morte de uma jovem escrava) do que com o

suicídio cometido por Mariana. Na realidade, o que importava não era a morte da

moça que o amava incondicionalmente, mas sim as manchas que esse episódio

poderia trazer à sua reputação de “bom moço”. Diz o rapaz, depois da captura da

escrava fugida: “a situação da pobre rapariga interessara-me bastante, o que era

natural, sendo eu a causa indireta daquela dor profunda” (MACHADO DE ASSIS,

1998, p. 164). Coutinho era a causa direta da dor da escrava, mas sempre

encontrava uma maneira de ser absolvido ou possuir menor parcela de culpa.

Este amor torna-se impossível apenas pelo fato de serem os

protagonistas membros de diferentes estratos sociais – Mariana, uma escrava,

não poderia casar-se com um senhor até mesmo pelo fato de as normas da

sociedade assim não o permitirem. Ainda em Schwarz, tem-se o seguinte:

O efeito crítico está na frustração do desejo romanesco do leitor (já que Eugênia, conhecendo o quadro, abafa o sentimento e sai de cena em silêncio). Dada a assimetria destas relações, em que, pela razão exposta, a parte pobre não é ninguém, tudo se resume na decisão da parte proprietária (...) (SCHWARZ, 2000, p. 90-1)13.

Da mesma forma que Eugênia conhece o quadro e retira-se em

silêncio, Mariana também o faz, silenciando-se pelo suicídio por envenenamento,

13 Eugênia é a moça coxa por quem Brás Cubas sente-se atraído, mas com quem acaba não tendo envolvimento.

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o que gera a frustração do leitor de “Mariana”, já que o desfecho se faz de forma

extremamente trágica, apesar de em nada afetar o pivô do incidente, Coutinho.

Uma vez tendo desabafado para seus amigos, narrando o acontecido, o

personagem se sente redimido e sem culpa alguma.

A escrava poderia ser acusada de querer ascender socialmente

através de um casamento com o seu senhor. Teria sua alforria, conquistando,

assim, sua liberdade. Mas isso não ocorre, pois, durante o regime escravocrata,

era muito raro que um senhor concedesse alforria a uma escrava que lhe

“prestasse favores”:

(...) os senhores se opunham a conceder ao escravo no código escrito o direito de redimir-se do cativeiro mediante a apresentação de seu valor no mercado. Na ótica escravista, qualquer direito desse tipo minaria a base do sistema de domínio, ao restringir a vontade senhorial. Era necessário que a alforria pudesse ser representada pelo senhor sempre como concessão ou dádiva, mesmo quando a “graça” cruzava com dinheiro na outra mão. Pelas mesmas razões recusara-se o direito à liberdade à escrava amancebada com o senhor ou ao parente cativo do mesmo14 (SLENES, 1997, p 260).

Da mesma forma que a escrava poderia ser acusada de querer

ascender (ou ter sua alforria), há em Helena a acusação de que a protagonista

poderia almejar a ascensão social casando-se com um rico herdeiro. “Machado

14 Grifo meu.

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atribui a Helena um ideal de nobreza íntima”, afirma Alfredo Bosi (2003, p. 47)

sobre Helena15.

O desfecho de Helena atinge a fronteira que separa o possível do improvável. Dizer que é um final romântico será meia verdade. A questão de fundo é saber o que significaria, no universo da ficção machadiana, uma personagem que morre em razão de uma crise moral. Uma resposta viável é a que concede ao narrador certa margem de liberdade na sua invenção; liberdade que a grade do bom senso convencional lhe vedaria: a faculdade de conceber personagens que não se reduzam à mediania estatística dos homens e mulheres representantes de um certo tipo – por exemplo, o da moça pobre que se agrega a uma família rica (BOSI, 2003, p. 45-6).

No caso de “Mariana”, o desfecho é tipicamente romântico,

combinando os elementos “amor inatingível” e “suicídio”. Mas já neste conto, que

faz parte da fase romântica do autor, Machado apresenta traços que o diferenciam

dos demais escritores da fase romântica da Literatura Brasileira.

Assim como a morte de Helena é resultado de uma crise moral, a

morte de Mariana pode ser entendida da mesma forma. A moça jamais poderia ter

se apaixonado por um rapaz que estava tão acima de seu nível social, o que

pesava em sua consciência. Mariana sabia que jamais daria certo e, aos olhos de

seus senhores, poderia até mesmo ser uma afronta de sua parte almejar qualquer

tipo de relação que não fosse a de escravo-senhor com Coutinho. E para

Coutinho, era realmente um atrevimento da parte de Mariana ter se apaixonado

15 Romance da fase romântica de Machado, em que uma moça é adotada e só descoberta a adoção após a morte do pai adotivo. A família a reconhece como membro da família; ela se apaixona pelo “irmão” – também apaixonado pela moça –, que depois descobre que não eram parentes consangüíneos. Envergonhada, Helena morre após essa descoberta por parte da família.

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por ele. Desconfiada dos motivos da tristeza da escrava, a irmã do rapaz lhe dá

seu parecer. Coutinho se assusta e dá margem ao seguinte relato aos amigos:

– Que seja eu o querido de Mariana? perguntei-lhe com um riso de mofa e incredulidade. Estás louca, Josefa. Pois ela atrever-se-ia!... – Parece que se atreveu. – A descoberta é galante; e realmente não sei o que pense disto (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 160).

Ao confessar seu amor pelo moço, a escrava justifica-se pela fuga e

sabe que deve arcar com o que fez:

– Se alguém me seduziu? perguntou ela; não, ninguém; fugi porque eu o amo, e não posso ser amada, eu sou uma infeliz escrava. Aqui está por que fugi. Podemos ir; já disse tudo. Estou pronta a carregar com as conseqüências disto (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 163).

Ainda em Bosi, sobre a obra de Machado de Assis:

Em Machado a percepção do social médio leva, em geral, a nivelar por baixo o comportamento das suas criaturas, e nisto guarda sempre algum ar de família com a visão “realista” do ser humano, que é a do seu tempo, em que o evolucionismo se enraíza em um radical pessimismo em relação aos móveis da própria evolução. O que se poderá inferir do romance é que este social médio trazia em si germes de violência que poderiam, no limite, levar à morte o indivíduo que não se conformasse integralmente com o seu padrão (BOSI, 2003, p. 48).

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A fuga de Mariana parece, aqui, estar nesses parâmetros de “nivelar

por baixo o comportamento de suas criaturas”, uma vez que a atitude de fugir

alude a um ato de covardia.

Embora Mariana não se enquadre no perfil “médio social” (encontra-

se na base da pirâmide socioeconômica), também ela não suportava sua condição

de escrava pelo fato do distanciamento que havia entre os dois (ela e Coutinho),

por não poder realizar seus desejos mais íntimos. O que acaba por levá-la à morte

passa a deixar de ser o simples fato resultante de um amor não-correspondido.

Talvez se não houvesse esse sentimento de superioridade que havia

em Coutinho – e aceitável para os valores da época –, ambos poderiam ter-se

entregue à paixão; ou poderia Coutinho, vendo em Mariana uma boa e prendada

moça, ter correspondido aos sentimentos da menina. Há, ainda, uma terceira

hipótese: a aceitação de Coutinho dos seus instintos viris e a conseqüente

consumação de uma abordagem carnal com a escrava – fato comum entre os

senhores e escravas e que não acontece pelo enfoque romântico do conto.

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1.4 “Idéias que a razão pode condenar, mas que nossos costumes aceitam perfeitamente”

Gilberto Freyre, em Casa-grande & Senzala16, refuta os argumentos

de alguns estudiosos que dizem ser do negro a “culpa” da depravação sexual no

Brasil. Ele contra-argumenta, afirmando:

É absurdo responsabilizar-se o negro pelo que não foi obra sua nem do índio mas do sistema social em que funcionaram passiva e mecanicamente. Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias. Joaquim Nabuco colheu em um manifesto escravocrata de fazendeiros as seguintes palavras, tão ricas de significado: “a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador” (FREYRE, 2004, p. 399).

Ou seja, o sistema escravocrata favoreceu e fortaleceu a

mentalidade de que a escrava, como propriedade que era, deveria servir aos seus

senhores sempre que estes o desejassem. Além do mais, ter filhos bastardos

gerados nos ventres das escravas era mesmo rentável, pois um bebê nascido

dentro na propriedade do seu senhor acabava por virar escravo sem sequer se

desembolsar dinheiro para sua compra. Afinal, “o que se queria era que o ventre

das escravas gerassem. Que as negras produzissem moleques” (FREYRE, 2004,

p. 399).

16 Embora a obra citada trate do Nordeste, o assunto em pauta pode se estender também ao Rio de Janeiro, já que a escravidão fez parte como mão-de-obra para serviços braçais em todo o território nacional.

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As meninas escravas eram muito cedo entregues aos moços

brancos, quando ainda virgens:

Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram de lues17 as negras das senzalas. Negras tantas vezes entregues virgens, ainda molecas de doze e treze anos, a rapazes brancos já podres de sífilis das cidades (FREYRE, 2004, p.399-40)18.

Muitos meninos brancos, por exemplo, tinham suas mães mortas no

parto e acabavam sendo criados pelas amas, ficando a cargo delas, muitas vezes,

a iniciação sexual dos sinhozinhos:

Ficava então o menino para as mucamas criarem. Muito menino brasileiro do tempo da escravidão foi criado inteiramente pelas mucamas. Raro o que não foi amamentado por negra. Que não aprendeu a falar mais com a escrava do que com o pai e a mãe. Que não cresceu entre moleques. Brincando com moleques. Aprendendo safadeza com eles e com as negras da copa. E cedo perdendo a virgindade. Virgindade do corpo. Virgindade do espírito (FREYRE, 2004, p. 433)19.

Mesmo sendo Coutinho um rapaz de muito escrúpulo ao castrar os

seus desejos de possuir Mariana, esta passagem de Gilberto Freyre justifica o

surgimento em seus pensamentos da “idéia que a razão pode condenar, mas que

nossos costumes aceitam perfeitamente” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 161). O

17 Sífilis. 18 Não há aqui a intenção de falar sobre as epidemias de doenças sexualmente transmissíveis ocorridas no Brasil, mas sim de se destacar a iniciação sexual das meninas escravas por seus senhores. Curiosamente, Gilberto Freyre afirma existir, nessa época, a superstição de que a cura para a sífilis estava em desvirginar uma negrinha. 19 Grifos meus.

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convívio dos meninos brancos com as escravas, unido aos valores de propriedade

e de superioridade de raça, justificavam a relação sexual – muitas vezes forçada –

entre escravas e rapazes brancos. Era da cultura do regime escravocrata e da

sociedade brasileira, desde a implantação deste sistema, a iniciação de um

“nhonhô” com uma escrava.

O que sempre se apreciou foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas. Raparigueiro, como ainda hoje se diz. Femeeiro. Deflorador de mocinhas. E que não tardasse a emprenhar negras, aumentando o rebanho e o capital paternos (FREYRE, 2004, p. 456).

Apesar de se desconhecer se a iniciação de Coutinho fora conforme

Freyre – tudo leva a crer que não, pois ele já possuía idade entre 20 e 25 anos,

idade em que um rapaz teoricamente já teria sido iniciado há muito –, esta

mentalidade de o homem branco possuir a escrava negra está bastante presente

nos comentários do tio João Luís.

Segundo Coutinho, “Mariana era apreciada por todos quantos iam a

nossa casa. Meu tio, João Luís, dizia-me muitas vezes: – ‘Por que diabos está tua

mãe guardando aqui em casa esta flor peregrina? A rapariga precisa de tomar ar’”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 155). Observe-se a ironia do termo “tomar ar”:

dito com segundas intenções, significava expor a escrava para o deleite

masculino, pois se tratava de uma moça bonita e educada.

O comentário do tio de Coutinho acaba por demonstrar uma

preocupação fútil, pois Mariana era muito bem tratada e, aos olhos de seus

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senhores, não precisava sair de lá “para tomar ar”. Afirma o próprio Coutinho:

“esta preocupação do tio nunca me passou pela cabeça; acostumado a ver

Mariana bem tratada parecia-me ver nela uma pessoa da família” (MACHADO DE

ASSIS, 1998, p. 155).

Dando continuidade ao relato feito aos amigos, Coutinho diz que,

após a fuga e captura de Mariana, foi à casa do tio João Luís, a fim de visitar a

noiva. Ocorre, novamente, uma alusão maliciosa a respeito da escrava:

Falei muito nesse episódio em casa de minha prima. O tio João Luís disse-me em particular que eu fora um asno e um ingrato. – Por quê? perguntei-lhe. – Porque devia ter posto Mariana debaixo da minha proteção, a fim de livrá-la do mau tratamento que vai ter. – Ah! não, minha mãe já lhe perdoou. – Nunca lhe perdoará como eu (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 164).

Ora, João Luís deveria perdoá-la pelo quê, se a escrava nem lhe

pertencia? Mais uma vez a ironia presente no texto. E, sabendo da bondade da

mãe de Coutinho para com suas crias, por que haveria ele de livrar a moça de

castigos? Ainda: falar em particular de uma situação sobre a qual todos já

estavam a saber. Machado, aqui, sutilmente mostra o interesse que João Luís

tinha em Mariana e deixa nas entrelinhas o “tratamento” que daria à menina. Para

John Gledson, em “Os contos de Machado de Assis”, presente no início de

Contos: uma antologia, “na própria história [do conto Mariana] algumas das

dinâmicas da escravidão ficam bem evidenciadas, até nos apartes ‘cômicos’,

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como os do tio do narrador, que saberá exatamente de que maneira ‘perdoar’ a

fugitiva quando esta for capturada” (GLEDSON, 2004, p. 24).

Conforme Coutinho, a citação que segue reflete claramente a

mentalidade construída acerca da escravidão: a escrava servindo de objeto

sexual.

Confesso, entretanto, que, apesar de não competir de modo nenhum dos sentimentos de Mariana, entrei a olhar pra ela com outros olhos. A rapariga tornara-se interessante para mim, e qualquer que seja a condição de uma mulher, há sempre dentro de nós um fundo de vaidade que se lisonjeia com a afeição que ela nos vote. Além disto, surgiu em meu espírito uma idéia que a razão pode condenar, mas que nossos costumes aceitam perfeitamente (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 161).

Coutinho começa a sentir-se atraído por Mariana. Em uma parte da

conversa com Macedo e os outros companheiros, ele relata:

Mariana aos dezoito anos era o tipo mais completo da sua raça. Sentia-se-lhe o fogo através da tez morena do rosto, fogo inquieto e vivaz que lhe rompia dos olhos negros e rasgados. Tinha os cabelos naturalmente encaracolados e curtos. Talhe esbelto e elegante, colo voluptuoso, pé pequeno e mãos de senhora (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 155).

“Tais sentimentos [o do “amor impossível” vivido por Mariana]

contrastavam com a fatalidade da sua condição social. Que seria uma paixão

daquela pobre escrava educada com mimos de senhora?” (MACHADO DE ASSIS,

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1998, p. 159). Apaixonada pelo senhor, o fato não poderia ser aceito jamais. Mas,

para prestar o “serviço” que Coutinho desejava, Mariana poderia estar disponível.

Conforme já referido – de acordo com Gilberto Freyre – ter na

escrava objeto de satisfação sexual foi um costume que perdurou durante todo o

regime da escravidão no Brasil; era do direito do senhor usufruir suas

propriedades como bem entendesse ou desejasse. Coutinho, apesar de seu

discurso humanitário, analisa o corpo da mulatinha, ressalta a sua beleza,

demonstrando que não seria nem um pouco desagradável “deliciar-se” em tal

formosura.

O que, para Joaquim Nabuco, era um imenso crime. Em suas

palavras, o que poderia ser

mais criminoso, anuir a que suas filhas formem o serralho do senhor, ou

deflorar pobres mulheres, que não têm guarda nem proteção? O que revolta mais, entrar para a família como uma fera desapiedada e sensual ou não consentir que a família seja outra coisa? O que é mais cínico, viver na promiscuidade ou organizar a promiscuidade no interesse da reprodução? (NABUCO, 1999, p. 19)

Embora sua visão acerca da escravidão e da abolição seja deveras

romântica, Nabuco foi utilizado nesta dissertação pelo fato de ter sido um

importante abolicionista, por ter visto de perto e em seu tempo o crime do sistema

escravocrata, além de ter sido grande amigo pessoal e correspondente de

Machado de Assis. Com os relatos feitos por Nabuco e sua visão acerca da

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escravatura, é possível se ter um panorama de quem vivenciou este recorte da

História do Brasil.

1.5 Escravidão: banalidade

Para Joaquim Nabuco, a escravidão violava as leis morais da

humanidade. Além disso, segundo ele, o sistema já estava, por sua natureza,

condenado à morte porque ia de encontro a essas mesmas leis. Existe aqui a

conscientização da evolução da humanidade, ou seja, os valores estavam

mudando. Já não se admitia mais que pessoas comercializassem como peças e

escravizassem outras pessoas como animais. Para este autor e abolicionista,

Da moral, a escravidão fez duas morais; uma para cada classe (...) Do trabalho, o mais nobre dos esforços, fez ela a mais rebaixada das ocupações; a atividade que trazia em seu próprio arbítrio o caráter da liberdade tornou-se, na sociedade, servil, como se a sociedade fosse outra coisa mais que o meio do desenvolvimento das atividades livres. (...) A virtude perde-se ao contato dessa instituição: ela é escola do crime, envenena o coração do senhor e do escravo, muda a caridade em palavra vã, desnatura a lei do mérito: é a sentina de todos os vícios (NABUCO, 1999, p. 03-4).

Ou seja, a escravidão trouxe o progresso e o desenvolvimento para

o país às custas de muitos sacrifícios:

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Toda a nossa existência social é alimentada por esse crime: crescemos sobre ele, é a base de nossa sociedade. Nossa fortuna donde vem? De nossa produção escrava. Suprimi hoje a escravidão, tereis suprimido o país. Eis como a lei moral reage. Nossa liberdade fez-nos escolher o caminho do crime, seguimo-lo: hoje que queremos dele sair estamos a ele pregados. Está esboçado o quadro geral das afinidades de cada elo de nossa sociedade com a escravidão: ela tudo corrompeu, a começar pelo povo a que roubou as virtudes dos povos que trabalham: a diligência, a economia, a caridade, o patriotismo, o desprezo da morte, o amor da liberdade (NABUCO, 1999, p. 06).

O sistema escravocrata corrompeu pessoas, humilhou famílias,

distorceu valores. Arrependido somente pelo que havia acontecido a uma moça,

dentre tantas outras que passaram por igual ou semelhante situação, ao relatar

seu passado naquele reencontro com amigos, Coutinho realiza mera catarse do

que lhe ia no íntimo por tantos anos. Ao confessar “uma coisa, que nunca saiu de

mim” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 154), parece ter se livrado de um peso que

carregara por anos, mas que agora, já “confesso o crime”, passou a ter relevância

nenhuma.

Após Coutinho narrar o fato que marcou sua mocidade, os “ex-

rapazes” saem pela Rua do Ouvidor tecendo comentários sobre “os pés das

damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou

menos engraçadas e oportunas” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 170), mostrando

que o que havia se passado naquele tempo nada representava diante dos pés das

damas cariocas e dos acontecimentos que então os rodeavam. O desfecho do

conto se dá de maneira banal, ou seja, após o dramalhão, os amigos passeiam e

riem como se nada houvesse acontecido. Citação que bem ilustra esta afirmação

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está em Machado de Assis: Historiador: “o crime da escravidão produzira cinco

minutos de ‘remorsos’ aos quarentões bem-pensantes que, remoçados, voltam

logo ao papel de predadores sociais e sexuais” (CHALHOUB, 2003, p.136).

Por fim, há um parágrafo em Nabuco – “A escravidão degrada a

alma do escravo e do senhor” – carregado de questionamentos do abolicionista e

que merece sua transcrição na íntegra:

A escravidão é como um desses venenos que se infiltram pelo perfume: ela se infiltra pelo egoísmo. Depois de se haver introduzido na sociedade e de ter alimentado uma raça à custa da outra ela corrompe a ambas. Duas palavras únicas temos a dizer a respeito: que vícios não deve ter uma alma que obedece, que está sempre curva e humilhada, que rasteja diante de um homem? Que às vezes é a encarnação de todos os crimes? Que vícios por outro lado não deve ter aquela que está habituada a mandar e a não ser mandada, a castigar a homens como a animais, a contemplar a máxima degradação da nossa natureza, a satisfazer brutalmente a todos os seus caprichos? Nada há mais parecido com a alma de um senhor como a de um escravo. Quereis ver o paralelo? Considerando sempre perante o ideal da justiça, o que é mais degradante – a baixeza deste ou a altivez daquele? O que fica deprimido num, cresce no outro: são duas molas, uma desce quando a outra sobe; a um vício corresponde outro, os extremos tocam-se. O que afronta mais a justiça, a obedecer um ou mandar o outro? O que é mais degradante, o servilismo ou o despotismo, a covardia do medo ou a covardia da força, açoitar ou ser açoitado? O que é mais criminoso, anuir a que suas filhas formem o serralho do senhor, ou deflorar pobres mulheres, que não têm guarda nem proteção? O que revolta mais, entrar para a família como uma fera desapiedada e sensual ou não consentir que a família seja outra coisa? O que é mais cínico, viver na promiscuidade ou organizar a promiscuidade no interesse da reprodução? (NABUCO, 1999, p. 18-9)

Para Joaquim Nabuco, a sociedade deveria ser entendida como um

lugar em que os seres humanos, mesmo sendo escravos, mereciam respeito.

Naquele contexto social, entretanto, o que prevalecia era a mentalidade dos

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senhores brancos. Para o abolicionista pernambucano, a marginalização do negro

e o vício do branco em se aproveitar da inferioridade imposta à raça negra eram

fatos indignos do ser humano.

Assim acontece com Mariana: bem tratada dentro de casa, é

açoitada com palavras após suas fugas, é a cativa que vê a situação de escrava

intensificada fora do cativeiro. É a filha da marginalização e da inferioridade da

raça negra, além de vítima do sistema escravocrata. Embora Mariana não tenha

sido vítima de castigos e açoites, a violência contra ela era a violência de um amor

marcado pela desigualdade de classe.

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2 PAI CONTRA MÃE

Publicado em 1882, o conto “Pai contra mãe” tem como enredo a

história de Cândido Neves, que, depois de muito tentar se encontrar em algum

ofício, escolhe ser capturador de escravos fugidos. No início, a atividade era

rentável e Cândido sempre voltava com algum dinheiro para casa. O autor reporta-

se à data do acontecimento, que se dera “há meio século”, quando “os escravos

fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 483). O personagem conhece Clara, com quem

posteriormente se casa. Os dois amavam-se muito – só mesmo dessa forma para

o amor sobreviver a uma grave crise de finanças da família. Para piorar a

situação, Clara informa aos parentes que está grávida, o que, segundo sua tia

Mônica, era terrível, pois o aumento da família só traria mais dificuldades, já que

era mais uma boca a ser alimentada. A tia, então, sugere que eles deixem a

criança na roda dos enjeitados, uma vez que não teriam condições de sustentar a

criança. Tal sugestão soou como afronta aos ouvidos de Candinho que, no fundo,

sabia que uma criança não sobreviveria às dificuldades por que passavam.

Quando a criança nasceu, os pais foram tomados de imensa alegria,

mas não muito duradoura, pois eles deveriam acatar a sugestão da tia e entregar

o bebê à roda. Mas, no caminho em direção à roda, Cândido depara-se com uma

escrava fugida, cuja recompensa era de cem mil réis. Aquele dinheiro seria a

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salvação para a família e significava não entregar o filho à roda. Foi então que

Cândido saiu no encalço da fugitiva.

Ao ser capturada, a negra pedia por todos os santos que ele a

soltasse, pois estava grávida e, com o castigo que receberia, certamente perderia

a criança. Mas Candinho não deu ouvidos às suas lamentações, visto que só

pensava na hipótese de perder seu filho também.

A fugitiva é entregue ao seu dono, perde o bebê na porta de casa e

Candinho volta à farmácia onde havia deixado seu filho, aos cuidados do

farmacêutico. Com a recompensa, o bebê não precisava mais ser entregue à roda

dos enjeitados.

2.1 O ofício de caçar escravos, instrumentos de tortura e decadência do sistema representados no conto

Quando Machado de Assis diz que “a escravidão levou consigo

ofícios e aparelhos” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 483), refere-se não só aos

instrumentos de tortura, mas também a ofícios como o de feitor, homem

responsável pela disciplina e organização dos escravos, e o de caçador de cativos

fugitivos.

Neste conto, Machado retrata com precisão como era feita a captura

dos escravos: descreve instrumentos de tortura utilizados em escravos fujões ou

viciados em bebiba alcoólica: “o ferro ao pescoço, outro ferro ao pé” e a “máscara

de flandres” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 483). Machado refere-se ao “ferro

ao pescoço”, também conhecido como “gargalheira, gorilha ou golinha”, que é

assim descrito pelo narrador:

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O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até o alto da cabeça e fechada atrás com chave. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 483).

Jean-Baptiste Debret, em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil,

também relata os castigos sofridos pelos escravos, além de retratá-los através de

suas ilustrações:

O colar de ferro tem vários braços em forma de ganchos, não somente no intuito de torná-lo ostensivo, mas ainda para ser agarrado mais facilmente em caso de resistência, pois apoiando-se vigorosamente sobre gancho a pressão inversa se produz do outro lado do colar, levantando com força o maxilar preso; a dor é horrível e faz cessar qualquer resistência principalmente quando a pressão é renovada com sacudidelas (DEBRET, 1965, p. 255).

FIG 1 – O colar de ferro (Jean-Baptiste Debret, 1965).

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Segundo Emília Viotti da Costa, era por meio destes sinais de castigo

e tortura que um comprador poderia saber a índole da peça a ser comprada, e

durante muito tempo estas marcas não traziam boa recomendação ao escravo.

Após os movimentos abolicionistas, estas marcas, entretanto, provavam a má

índole e o abuso de poder por parte do senhor, o que trazia, por outro lado, má

recomendação do dono do escravo. A autora descreve também como

funcionavam estes aparelhos de tortura, que serviam para a disciplina do escravo.

Havia também a “máscara de flandres”, assim descrita por Machado

no conto: “A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes

tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada

atrás da cabeça por um cadeado” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 483).

Para que se mantivesse a disciplina entre os escravos, os senhores

recorriam aos mais variados tipos de castigo e brutalidade. Em “Pai contra mãe”,

pode-se ter idéia do que se passava. Além dos instrumentos de tortura já

mencionados, o autor ainda mostra como eram os resgates e como era o trabalho

de um caçador de escravos. O ofício de capturar escravos não era dos mais

nobres, pois, segundo Machado, “a necessidade de uma achega, a inaptidão para

outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por

outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem

à desordem” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 484).

A violência aparece mais uma vez, durante a busca dos fugitivos,

que geralmente reagiam diante da captura. Cândido às vezes também saía

machucado, mas eram os escravos quem saíam com mais ferimentos: “Nem

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sempre [Cândido] saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam,

mas geralmente ele os vencia sem arranhão” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.

488).

A nobreza deste ofício se dava de outra maneira: colocando “ordem

à desordem” e utilizando-se da força para manter a lei e a propriedade, o caçador

de negros fugidos estava servindo à sociedade. Sobre a nobreza do ofício, diz

Machado: “não seria nobre, mas por ser instrumento de força com que se mantêm

a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações

reivindicadoras” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 484).

O alarde feito pelos escravos capturados também era muito comum

e, além disso, não causava o mínimo espanto aos que assistiam ao espetáculo,

uma vez que era algo que fazia parte do cotidiano dessas pessoas: “Quem

passava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 493). A expressão “naturalmente” demonstra a

normalidade do ato de violência do sistema em questão e do ofício de Cândido

Neves. Além do mais, as pessoas não perderiam seu tempo acudindo um escravo,

já que, mesmo que conseguissem acudir, ele voltaria aos açoites caso fosse

recuperado novamente. E, ainda, para a maioria, o escravo fazia parte da

propriedade de alguém e seria injusto violar este direito.

Cândido Neves não era dado aos trabalhos que exigiam paciência

para o aprendizado do ofício, por isso recorreu à captura de escravos fujões, pois,

para pegá-los, não era obrigado “a estar longas horas sentado. Só exigia força,

olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os

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anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas” (MACHADO DE

ASSIS, 1998, p. 487).

Os escravos fugidos passaram a ser alvo de outros homens, visto

que os que estavam desempregados entregavam-se cada vez mais ao mesmo

ofício. Cândido Neves passou, então, a sofrer pressão da concorrência no

trabalho. As dívidas começaram a crescer, e Clara trabalhava ainda mais. As

atrapalhadas de Cândido, ainda que raras, aconteciam e só serviam para que tia

Mônica lhe mostrasse cada vez mais que se fazia necessário outro emprego:

Certa vez [Cândido] capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem. – É o que lhe faltava! exclamou tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir o equívoco e suas conseqüências. Deixe disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 488).

Acerca dos anúncios, Machado também relata como se davam a

publicação, a descrição feita do escravo e como era anunciada a gratificação que

seduziria e despertaria o interesse dos que eram dados ao ofício:

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncio nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. (...) Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 484).

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Há de se notar que Machado faz questão de mostrar a “vinheta” que

acompanhava o anúncio. Uma figura caricata, mal vestida, correndo assustada,

provavelmente com medo das chibatadas a que se submeteria caso fosse

apanhado. Essa caricatura era muito comum no imaginário do Brasil escravista do

século XIX, demonstrando, também, a inferioridade imposta ao negro naquela

sociedade. Um escravo não deveria aparecer bem vestido e elegante nessas

vinhetas, pois esta era característica exclusiva dos brancos.

Um exemplo destes anúncios é transcrito por Emília Viotti e valida o

relato de Machado nesta citação:

Escravo fugido. Acha-se acoutado nesta cidade o escravo pardo de nome Adão de 29 anos de idade, pertencente ao fazendeiro abaixo assinado. É alto, magro, tem bons dentes e alguns sinais de castigos nas costas, com a marca S.P. nas nádegas. É muito falador e tem por costume gabar muito a Província da Bahia de onde é filho. Quem o levar à casa de correção será gratificado com a quantia de 200$000. São Paulo, 17 de dezembro de 1884. Saturnino Pedroso (COSTA, 1998, p. 343).

E, ainda, em História da vida privada no Brasil, há um breve

comentário sobre estes anúncios, que traz consigo uma observação sobre “Pai

contra mãe”:

Anúncios de escravos fugidos eram publicados diariamente nos jornais e criavam um clima de insegurança nas cidades. Em “Pai contra mãe”, um dos textos mais dramáticos de Machado de Assis, um paupérrimo caçador de escravos, atrás da recompensa para alimentar seu filho, captura nas ruas do Rio de Janeiro uma escrava

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grávida em fuga. Espancada, a escrava acaba abortando (SLENES, 1997, nota da figura na página 244).

Ainda sobre os castigos aplicados aos cativos e os anúncios de

escravos fujões, Robert Slenes tece o seguinte comentário:

Retirando-se da análise os anúncios mais lacônicos, que registram pouco mais do que os dados pessoais básicos da pessoa, a proporção de fugitivos com sinais explícitos de punições sobe para aproximadamente um em cinco (SLENES, 1997, p. 278).

Os anúncios de escravos fugidos servem também para mostrar os

castigos e a violência sofridos por eles, assunto abordado no conto de Machado.

Entre as ruas do Rio de Janeiro antigo, após um longo período sem

trabalho e cheio de dívidas (foi despejado da casa onde devia o aluguel), Cândido

encontra a presa que lhe renderia cem mil-réis: a escrava Arminda.

O tempo da narrativa é dado no seguinte trecho:

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 483).

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A “pancada” mais comum era o açoite, assim retratado e descrito por

Debret como “pena aplicável a todo escravo negro culpado de falta grave”

(DEBRET, 1965, p. 264):

FIG 2 - Aplicação do castigo do açoite (Jean-Baptiste Debret., 1965).

Já nesta passagem, o autor utiliza a ironia para se referir à situação

dos escravos, quando diz que “’nem’20 todos gostavam da escravidão”. Ora, se a

escravidão foi um marco de sangue e tortura na História do Brasil, qual escravo

haveria de gostar?

Como já visto em “Mariana”, apesar de toda violência sofrida pelos

cativos, em “Pai contra mãe” reaparece o caso dos escravos que pertenciam a

“bons cativeiros”: “grande parte [dos escravos] era apenas repreendida; havia

alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 483). Mas, neste caso, Machado mostra que

20 Grifo meu.

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havia outro motivo para que não se castigassem um cativo até a morte ou tanto

que ele ficasse incapaz de trabalhar por muito tempo: não era apenas bondade –

queria-se também evitar prejuízos. Um escravo a menos ou debilitado devido aos

castigos significava menos braços para trabalhar. Assim relata Machado: “além

disso [da bondade de certos senhores], o sentimento da propriedade moderava a

ação, porque dinheiro também dói” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 484).

Machado também relata casos de escravo de ganho, que, segundo

Alencastro, era “dono de um pecúlio tirado da renda obtida para seu senhor no

serviço de terceiros” (ALENCASTRO, 1997, p. 79). Quando havia fuga de

escravos contrabandeados, por exemplo, ocorriam casos de o cativo negociar com

o senhor: “dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao

senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando” (MACHADO

DE ASSIS, 1998, p. 483).

Nas cidades já não era possível manter o escravo tão preso ao

cativeiro tanto quanto no campo, como já referido no capítulo “Mariana”. Muitas

vezes a negociação se fazia necessária para que o escravo fujão continuasse a

trabalhar sem dar prejuízos ao senhor.

Joaquim Nabuco faz observações sobre o sistema de leis21 que

legitimava a aplicação de penas aos escravos desobedientes ou criminosos. Diz o

abolicionista que estas leis serviram apenas para garantir a segurança da

sociedade e a força que exercia uma raça superior (os brancos) sobre outra

inferior (os negros). Segundo Nabuco,

21 O abolicionista refere-se ao Art. 60 do Código Criminal e à lei de 10 de junho de 1835.

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(...) Essa lei de segurança, para se mostrar que uma lei imoral, basta dizer-se que ela importa uma desigualdade e uma opressão, que é a lei da força. Fulminada contra os fracos, deixa de ter o caráter principal das leis que governam as sociedades: o caráter da soberania. De uma origem exclusiva ela só pode abranger a sociedade que a faz, não a sociedade que a sofre; e ainda que esse mesmo fato vicie a instituição-mãe, a escravidão, ainda que isso mesmo se deva alegar contra esta, todavia daí não se segue que o que é justo contra a causa seja injusto contra o efeito. Ao contrário, parece-nos que nós que viciamos a escravidão por ser ela a opressão de uma raça sobre outra, o domínio da força, um ato e não uma instituição, temos o dever de impugnar o código negro, por ter a mesma origem, por ser uma lei arbitrária de segurança e de defesa imposta por uma sociedade a outra completamente diferente (NABUCO, 1999, p. 36).

Dessa maneira, o sistema que legitimava a caça aos escravos fujões

e os castigos que lhes seriam dados protege apenas os interesses dos

proprietários, sendo indiferente ao que pode vir a acontecer àquela que era vista

como “raça inferior”. É o caso de Arminda e seu dono: a escrava que é capturada

aborta na sala do seu proprietário, mas ele está, ainda assim, satisfeito pelo

prejuízo desfeito, que era a perda de uma de suas peças.

2.2 Cândido Neves: um personagem longe da candura

A ironia continua no nome do personagem principal, “Cândido”, que

remete à pureza, à doçura e à ingenuidade; ironia ao nomeá-lo desta forma, pois

representa a crueldade e a dor, já que o ofício de Cândido Neves nada tem de

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inocência ou doçura. Ao contrário, Cândido representa um sistema cruel, que

torturou pessoas e condenou milhares à morte devido ao exagero nos castigos

adotados. Cândido Neves é descrito, no início do conto, como um homem forte,

robusto, embora não muito dado a aprender ofícios e a trabalhar. No decorrer da

narrativa, o protagonista transforma-se em um caçador de escravos derrotado

que, apenas por um golpe de sorte, consegue capturar uma fugitiva. Cândido, um

homem fisicamente forte, mas derrotado pelas circunstâncias, representa,

também, a força e a decadência do sistema escravocrata.

Em artigo publicado na revista Nossa História, Jefferson Cano

aponta um paralelo entre a História e os personagens Pedro e Paulo, os gêmeos

de Esaú e Jacó, romance publicado em 1904:

Um dos motivos do conflito entre eles era a divergência de opinião política, porém o monarquismo de Pedro e o republicanismo de Paulo não apenas caracterizavam estes personagens, mas serviam para caracterizar os dois regimes. (...) passado e presente, como aqueles personagens, opunham-se em tudo, porém eram gêmeos (CANO, 2005, p. 79).

O mesmo paralelo acontece com a família Neves: Cândido há muito

não se ocupava de um emprego, passando a família, assim, por grave crise

financeira. Força e decadência conviviam num cabo de força. De um lado, os

senhores tentando manter o regime escravocrata, de outro, abolicionistas e

simpatizantes da causa lutando pela liberdade dos cativos.

A indisposição de Cândido para o trabalho era tão visível que até

mesmo as amigas de Clara, com um quê de inveja, foram contra o casamento:

“Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo

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que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem

ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 485).

Clara trabalhava cada vez mais, fazendo costuras com sua tia, para

arcar com as despesas domésticas. Foi ela, junto com sua tia, quem sustentou a

família por muito tempo, pois nem sempre Cândido conseguia levar dinheiro para

casa: “não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço.

Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha

emprego certo” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 486).

Observa-se aqui, como em “Mariana”, a mulher ganhando mais

espaço e assumindo cada vez mais o lugar masculino quanto ao provimento do

lar. Em “Mariana”, a mãe tem o lugar de senhora da casa: é ela quem administra o

lar, inclusive a parte que toca à disciplina dos escravos; em “Pai contra mãe”, é

Clara quem trabalha para garantir o sustento da família. Candinho, como era

conhecido em família, possui papel de coadjuvante diante do orçamento

doméstico.

Com a notícia de que a família aumentaria, Clara passou a trabalhar

ainda mais que antes. Além de precisar do dinheiro das costuras para a

sobrevivência da família, a futura mãe cosia roupas para o bebê que esperava: “a

esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que,

além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança“

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 486).

Dívidas de aluguel os despejaram da casa onde moravam. A família

Neves − assim como Pedro e Paulo, que representam Monarquia e República,

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como exemplifica Jefferson Cano − simboliza a decadência de um sistema já

ultrapassado. Com todas as idéias de abolicionismo e pressão por parte dos que

as defendiam, começava a ficar difícil manter a escravidão e não ceder aos apelos

daqueles que queriam ver livres os escravos no Brasil.

Dessa forma, pode-se observar o enfraquecimento da escravidão

quando Tia Mônica diz para Cândido que ele deveria encontrar um ofício que lhe

rendesse dinheiro certo: “Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o

tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado;

não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu, é vaga. Você passa

semanas sem vintém” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 487). Machado ironiza

usando na fala da tia de Clara os ofícios que Candinho já havia tentado exercer

sem sucesso por causa de seu “caiporismo”. Cândido só arrecadava dinheiro

quando havia fuga de escravo e, ainda assim, se o recuperasse. Seu ofício estava

próximo do fim, assim como o sistema escravocrata. Ora, se havia cada vez

menos escravos no Brasil, havia menos ainda possibilidade de escravos fugirem.

Sobre Dom Casmurro, afirma Luiz Roncari, no ensaio Dom Casmurro

e o retrato do país:

O Dom Casmurro também parece não retratar outra coisa: um primeiro ensaio desastroso de mudança no plano do microcosmo familiar, equivalente ao que se passou no macrocosmo da vida política e institucional (RONCARI, 2004, p. 85).

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No caso da família Neves, o plano do microcosmo familiar representa

o cenário nacional, onde a escravidão já apresentava traços de perda de força.

2.3 Arminda: “nem todos os filhos vingam”

Joaquim Nabuco afirma que a escravidão viola os princípios da

propriedade pelo fato de fazer com que o escravo não seja propriedade de si

mesmo – um direito básico do ser humano. Através de alguns argumentos feitos

em A Escravidão, retrata a forma como eram tratados os escravos e como eram

privados das necessidades básicas de um ser humano. Observando-se as

privações por que passa a escrava Arminda, há de se notar a perfeita aplicação

destas observações feitas pelo abolicionista:

Quereis mais saber em que a escravidão viola os santos princípios da propriedade? Roubando-a ao escravo que nem se domina a si, nem possui na terra seu descanso, seu sono, seu corpo, sua vida, seu sangue, sua alma, sua honra. Não possui seu descanso porque ele é um arbítrio de feitor, que às vezes o faz trabalhar sem fôlego. Não possui seu sono porque ele é regrado pelo chicote sem atenção às dores do dia. Não possui seu corpo porque os senhores podem tirá-lo impunemente cansando-os, martirizando-os, deixando-os sem socorro nas doenças, sem alimento de todos os modos, enfim, porque se tem o visto. Não possui seu sangue porque ele corre sob o azorrague. Não possui sua alma porque não pode ter as luzes da ciência, do bem e de Deus. Não possui enfim sua honra porque nasceu infamado e ao passo que suas mulheres estão entregues à promiscuidade das senzalas suas filhas moças são a partilha da luxúria dos senhores (NABUCO, 1999, p. 8-9).

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A escravidão foi responsável por grande desestruturação familiar. No

caso de Arminda, seu direito à maternidade é violado no momento em que é

capturada e, ao ser entregue ao seu dono, aborta o filho na porta de casa. Nas

palavras de Joaquim Nabuco,

a família, como o direito à família, não é violada nela [na escravidão]; como a mesma família não é ultrajada e vilipendiada, a escravidão ataca-a porque não a permite, porque a relaxa, porque a dissolve: ataca a família na dignidade da mãe porque a açoita, na honra da mãe porque a viola, no amor da mãe porque apaga-o, na vida da mãe porque a rouba (...) (NABUCO, 1999, p. 04).

Os escravos não eram donos de suas vontades, por isso a violação

no direito à propriedade. Ainda em Nabuco, tem-se a seguinte passagem:

A escolha da vontade era seguida do ato: a liberdade reconhecia-se na sua obra. Com os escravos deu-se o oposto: nos menores atos a atividade ficou reprimida, não podendo o ato exterior conformar-se com a escolha. Querer para eles não é poder: assim habituaram-se a não considerarem livres na vontade porque não o eram na ação: a atividade resumida a determinações sem realização possível, abafada pelo temor, pelo despotismo, suicidou-se ou antes morreu à míngua (NABUCO, 1999, p. 22).

Sobre maternidade e escravidão, assim afirma Nabuco:

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Antes de o escravo nascer, sofre na mãe. Desde as vísceras da mãe está ele condenado à sua morte. (...) As entranhas, que o geraram, figuram nos apontamentos do senhor comum, como uma máquina produtora: ele mesmo é intercalado entre os lucros prováveis até o dia em que o batismo recebe um nome, que é um número de galé. O partus sequitur ventrem, máxima do direito romano, é o incentivo à luxúria dos brancos. Pouco se importam estes em engrossar o patrimônio dos amigos com filhos seus, que jamais reconhecerão. Assim considerada pela força produtiva de seu ventre, a negra é tratada como a árvore seca ou como a árvore carregada. No primeiro caso é um objeto ruim, destinado a perecer; no segundo é um valor econômico que se perpetuará na descendência (NABUCO, 1999, p. 27-8).

Dessa maneira, após a reflexão feita pelo abolicionista, percebe-se

que Machado trata da indiferença que havia a respeito da maternidade das

escravas. Para o senhor de Arminda, o feto morto deixado na porta de sua sala

não passava de mais um dos que não sobreviveu às barbáries impostas pelo

sistema escravocrata. A mãe também não passava de mais uma, que dali a

alguns dias poderia estar grávida novamente – lucro fácil para um proprietário que

teria mais um escravo sem precisar desembolsar nada para sua compra.

Ao mencionar a sugestão da tia de Clara de levar o filho para a

Roda, o narrador explica que ela já o havia insinuado, “mas era primeira vez que

fazia com tal calor, – crueldade, se preferes” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.

489). Sendo assim, o ato de tia Mônica equivale ao de Candinho, uma vez que ele

pensava mais na recompensa, para, de alguma forma, estabilizar a situação da

família, mesmo que por tempo limitado, do que na mãe que desejava tanto quanto

ele a vinda de um filho. O que pesava na atitude de tia Mônica era a possibilidade

do abalo que o filho de Clara e Cândido faria à fraca estrutura familiar.

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Machado costura o texto de uma forma a equivalerem-se os

comportamentos de Cândido e Mônica – comportamento abominado pelo

protaganista, mas tão vivenciado por ele mesmo. A situação seria praticamente a

mesma, não fosse a escrava fugida a pessoa em que Cândido deveria se colocar

no lugar. A cogitação sobre o destino incerto do filho de Cândido foi a certeza do

filho de Arminda: “seria maior miséria, podendo suceder que o filho [de Cândido]

achasse a morte sem recurso” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 492).

Cândido Neves nem pensa no filho que a mulata carregava em seu

ventre, pois só pensava no próprio filho, que havia deixado na farmácia para poder

correr atrás da fugitiva. A mulher ainda tenta, em vão, suplicar pelo amor que seu

algoz tivesse por um filho: “Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa

Senhoria tem algum filho, peço-lhe pelo amor dele que me solte; eu serei sua

escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor” (MACHADO

DE ASSIS, 1998, p. 493).

Mas Cândido não precisava de uma escrava e sim da quantia pela

recompensa do resgate; ele ainda insulta a escrava: “Você é que tem culpa. Quem

lhe manda fazer filhos e fugir depois?” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 493).

Ele só não havia se dado conta de que o ato de entregar seu bebê à

Roda era uma espécie de fuga também. Cândido fugia da responsabilidade,

mesmo que inconscientemente e a contragosto. Se fosse um homem centrado,

dado a aprender algum ofício e investir num emprego certo, não precisaria passar

por situação tão extrema.

Cândido então entregou a escrava ao seu dono, na Rua da

Alfândega, que lhe passou a recompensa: duas notas de cinqüenta mil-réis.

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Preocupado com o filho que o esperava, ele saiu às pressas em direção à

farmácia, “sem querer conhecer as conseqüências do desastre” (MACHADO DE

ASSIS, 1998, p. 494).

Chegando em casa com o filho, ele recebeu algumas palavras duras

de tia Mônica; não pelo filho que trazia de volta, mas pela escrava: “[Tia Mônica]

disse, é verdade, algumas palavras duras contra22 a escrava, por causa do aborto,

além da fuga” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 494).

No pensamento da tia, era um erro uma escrava fugir e abortar, mas

nesse momento ela não se lembrou de que havia sugerido o abandono do bebê

dos sobrinhos. E Cândido, sem pensar na vida que havia impossibilitado de

nascer, beija seu filho, agradecendo, ainda, à fuga que lhe tinha rendido a

recompensa e o direito de ter o bebê consigo: “Cândido Neves, beijando o filho

entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava ao aborto”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 494).

A violência sofrida pelos escravos foi notada e relatada na literatura

feita por estrangeiros que passavam pelo Brasil. Com a abertura dos portos, a

passagem pela cidade do Rio de Janeiro – espaço em que se passa “Pai contra

mãe” e os outros contos nesta dissertação analisados – era necessária e, na

chegada, os visitantes deparavam-se com cenas estranhas aos seus olhos.

Segundo Eneida Maria Mercadante Sela, “é patente que a escravidão foi um tema

que perpassou a grande maioria dos registros que compõem o heterogêneo da

literatura de viagem sobre o Brasil oitocentista” (SELA, 2006, p. 194).

22 Grifo meu.

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Sela cita, dentre os que formam a literatura de viagem sobre o Brasil,

nomes como Jean-Baptiste Debret, Auguste de Saint-Hilaire e Gilbert Mathison,

em que se encontravam,

condensadas, várias das tópicas mais comuns no conjunto dos relatos oitocentistas sobre a cidade: o susto com a multidão negra e seus emblemas – rostos feios, marcas corporais, seminudez, uma língua estranha e incômoda, canções incompreensíveis e, por fim, o acinte dos castigos físicos (SELA, 2006, p. 195).

Em trecho de Mathison citado por Sela, nota-se a importante

observação do estrangeiro sobre a situação dos escravos que circulavam pela

cidade, no que diz respeito aos castigos: “Quando um viajante pisa no Rio, sua

atenção será naturalmente atraída pela aparência dos negros. (...) o ranger das

correntes, e as coleiras de ferro usadas por criminosos ou fugitivos nas ruas”

(MATHISON apud SELA, 2006, p. 194).

Sendo assim, é notória a validade e a precisão com que Machado

relata a vida destes negros que viviam na cidade do Rio de Janeiro; negros como

Arminda, por exemplo.

Assim como em “Mariana”, “Pai contra mãe” retrata o desdém com

que as pessoas livres em sua maioria tratavam os cativos ou o juízo de valor que

faziam deles. Mesmo estando em situação semelhante à de Arminda – a luta pela

sobrevivência de um filho –, Cândido não se comove e pouco se importa com o

filho morto da fugitiva.

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Além disso, a fragilidade pela qual a escravidão passava naquele

momento é representada na figura de Arminda. De um lado, o pai que luta para

não ter de abandonar o filho e deixá-lo na roda dos enjeitados; do outro, a mãe

que tenta garantir seu direito à maternidade. Nesta disputa, somente um poderá

sair vencedor: “nem todos os filhos vingam”.

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3 O CASO DA VARA

Damião, um rapaz recém chegado a um seminário, foge de lá, “às

onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. (...) ...antes de 1850”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 378), procurando abrigo na casa de Sinhá Rita,

uma viúva de “quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era

apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 380). Alcides Villaça observa que o conto foi

publicado em 1899 e que a situação é “datada, não arbitrariamente, de ‘antes de

1850’” (VILLAÇA, 2006, p. 19).

Sem vocação para ser padre, Damião pede asilo e ajuda de Sinhá

Rita – que inicialmente se nega – para não voltar ao seminário. Mas a viúva

propõe-se a ajudar, conversa com o padrinho do rapaz, o Senhor João Carneiro, a

fim de que vá ter com o pai do seminarista.

Sinhá Rita possui uma “escola” em sua casa, onde recebe meninas

que aprendem a fazer renda de bilro, além de ensinar também as suas crias.

Dentre estas crias, está Lucrécia, “uma negrinha magricela, um frangalho de nada,

com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze

anos. (...) tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a

conversação” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 381).

A menina, ao final do conto, é castigada pela vara de Sinhá Rita pelo

fato de ter rido durante uma conversação com as amigas da viúva, em que o rapaz

conta anedotas, “uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos”, em que a negrinha

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“esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço” (MACHADO DE ASSIS, 1998,

p. 381).

O rapaz resolve apadrinhá-la e protegê-la, mas, como estava sob o

jugo da ama de Lucrécia, desiste de impedir o castigo contra a menina, uma vez

que Sinhá Rita poderia mudar de idéia sobre sua volta para o seminário, por isso

entrega a vara com que castigaria a negrinha.

A data em que se passa a narrativa não é definida, mas coincide com

a data do conto “Pai contra mãe” – por volta de 1850: “Não sei bem o ano; foi

antes de 1850” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 378).

3.1 Servilismo e autoritarismo

De acordo com Sidney Chalhoub, “a ideologia dos senhores e as

relações de dependência provocam situações de violência e humilhação” (2003, p.

134). Este parece ser o caso do conto. “O caso da vara” descreve como eram

tratadas as crias de Sinhá Rita, mais especificamente o caso de Lucrécia, a

negrinha de cicatriz na testa e mão esquerda queimada, ameaçada pela vara e

pelos castigos de sua ama. Assim como em “Pai contra mãe”, existe a temática do

castigo para as crias desobedientes. Os castigos não são tão cruéis quanto a

máscara de flandres, o ferro ao pescoço ou a gorilha – como descritas em Pai

contra mãe. Sinhá Rita utiliza uma vara – “Lucrécia, olha a vara!” (MACHADO DE

ASSIS, 1998, p. 381) – e há, ainda, indícios de que a menina tenha sofrido

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castigos mais violentos, uma vez que apresenta cicatriz no rosto e queimadura na

mão. Pelo tom e ênfase que o narrador dá a este detalhe, as marcas parecem ser

resultado de alguma desobediência.

Na casa, imperam a autoridade de Sinhá Rita e o medo de suas

criadas. Para Joaquim Nabuco, “os costumes, pelo fato da transição necessária

das raças que coabitam em um mesmo lar, tornam-se uma mescla de selvageria e

de educação, dominada pelo medo e pelo servilismo” (NABUCO, 1999, p. 05). A

“selvageria” a que Nabuco se refere é o tratamento dado aos escravos, pois os

castigos que recebem são da mais pura crueldade a que pode chegar um ser

humano. O medo, em “O caso da vara”, paira no ambiente como uma sombra

cinza e densa. A negrinha Lucrécia está sempre encolhida e seu comportamento é

como o de um animal acuado, sempre amedrontado pelo castigo que está por vir.

Além de autoritária, Sinhá Ritá é uma mulher vaidosa, o que se

confirma em duas passagens do texto. A primeira é quando sente-se lisonjeada

por Damião ter lhe escolhido como sua protetora. Ela ainda tenta “chamá-lo a

outros sentimentos”, afirmando que “a vida de padre era santa e bonita”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 380), o que é em vão. Na segunda passagem,

Sinhá Rita sente seus brios feridos, pois Damião diz que não adiantaria conversar

com João Carneiro – ele duvidava que o padrinho lhe atendesse. Sinhá Rita

esbraveja: “Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe

mostro se atende ou não”. E ordenou que um moleque fosse à casa de João

avisar-lhe que ela precisava conversar com ele: “e se não estivesse em casa,

perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava

muito de lhe falar imediatamente” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 380). A viúva,

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para alimentar seus brios, aceita a empreitada de ajudar o moço fugido: “Sinha

Rita, que sempre pôde, passa a querer, animada não pela solidariedade e

compaixão, mas pela vaidade e pelo capricho” (VILLAÇA, 2006, p. 25).

A relação de dependência é clara neste texto. Sinhá Rita é uma

mulher influente nas redondezas onde mora e todos lhe têm muito respeito. João

Carneiro foi chamado por um moleque a comparecer à casa da viúva, que lhe dá a

ordem de conversar com o pai de Damião. O padrinho do rapaz é relutante em ter

com seu compadre, pois, como afirma o narrador, ele “era um moleirão sem

vontade, que por si só não faria coisa útil” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 378).

Porém, Sinhá Rita foi taxativa, e, assustado, João fica sem saber como agir:

(...) lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: “digo-lhe que ele não volta”. Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 382).

A autoridade de Sinhá Rita e o temor de João Carneiro eram

tamanhos que o homem pensa que “um decreto do papa dissolvendo a igreja, ou,

pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem” (MACHADO

DE ASSIS, 1998, p. 382); ou que a morte do afilhado “era uma solução, – cruel, é

certo, mas definitiva” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 382). Sua autoridade, neste

momento, estava acima do maior representante da igreja. Além da viúva, havia

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também a possibilidade de seu compadre irritar-se com a idéia de tirar o filho do

seminário. Assim, Carneiro encontrava-se numa situação um tanto delicada.

Damião também é regido por certa dependência a Sinhá Rita;

mesmo compadecido com a negrinha Lucrécia, ele se vê obrigado a entregar a

vara a Sinhá Rita, porque estava nas mãos dela a ajuda para não voltar ao

seminário. Além disso, o rapaz também sofria a repressão paterna; ao pedir ajuda

à viúva, Damião recebe como resposta a recusa, embora a senhora volte atrás em

sua decisão posteriormente: “Não, replicou ela abanando a cabeça; não me meto

em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é

zangado!” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 379).

A submissão do rapaz diante de ordens de Sinhá Rita aparece não

só na ocasião em que deve entregar a vara, mas também quando a senhora pede

que ele conte a anedota que fez rir a escrava Lucrécia para as cinco amigas que a

visitavam todas as tardes, para o café da tarde. “Damião não teve remédio senão

obedecer” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 383). Embora satisfeito com as

risadas que arrancou das moças, “não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver

se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar com a

tarefa” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 383).

Mesmo sabendo que Sinhá Rita havia mandado João Carneiro falar

com seu pai, Damião temia uma resolução muito severa: “com certeza, o pai fê-lo

[João Carneiro] calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um pedestre,

e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.

384). O afilhado não confiava no padrinho para resolver o caso. A protetora do

seminarista fugido assume para si aquela causa, pedindo-lhe “que sossegasse,

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que aquele negócio agora era dela” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 384). Havia

se tornado uma questão de honra e, possuidora de um gênio forte, Sinhá Rita

afirma: “Hão de ver para o quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!”

(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 384).

Na descrição da entrada do moço fugido na casa de Sinhá Rita, já se

pode observar o ambiente e se notar que a senhora era uma proprietária de

escravos:

Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 379).

Lucrécia parece ser o que se chamava de “escravo de ganho”23, e

Sinhá Rita, um exemplo de senhora que acaba tirando proveito dos filhos de seus

escravos, ensinando-lhes algum “ofício” e disso fazer lucro. O próprio nome da

escrava remete a “lucro”, como afirma Alcides Villaça: “Lucrécia (etimológica e

ironicamente: a que lucra)” (VILLAÇA, 2006, p. 26).

Assim como em “Mariana” e “Pai contra mãe”, “O caso da vara”

descreve o tratamento dado aos escravos e os castigos a que eram submetidos

no caso de desobediência, o que aparece em três ocasiões distintas. Numa delas,

quando a viúva chama um moleque para levar um recado a João Carneiro, o

23 Ver página 60, do capítulo “Pai contra mãe”, nesta dissertação.

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narrador utiliza a expressão “bradou-lhe”, o que dá a impressão de que Sinhá Rita

fala em tom de voz mais alto que o normal: “bradou-lhe que fosse à casa do Sr.

João Carneiro chamá-lo já e já” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 380).

A segunda ocasião se dá no momento em que Lucrécia ri da anedota

contada por Damião e esquece o trabalho. A negrinha ouve o grito de sua senhora

e prepara-se para receber o açoite: “A pequena abaixou a cabeça, aparando o

golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não

estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo de costume” (MACHADO DE

ASSIS, 1998, p. 381). A expressão “castigo de costume” marca a freqüência com

que Sinhá Rita castigava suas crias para manter a disciplina e a eficiência no

trabalho. A escravinha acaba não terminando o trabalho junto com as demais crias

e aí segue a última passagem, que demonstra uma senhora cruel, prepotente e

autoritária:

Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha. – Ah, malandra! – Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu. – Malandra! Nossa Senhora não protege vadias! Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a. – Anda cá! – Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha. – Não perdôo, não. Onde está a vara? E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que havia de castigar (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 385).

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Sendo assim, “O caso da vara” mostra a relação entre um senhor e

suas crias; mostra também que estas relações podem ir além, pois, neste conto, é

clara a extensão do poder de um senhor de escravos influente. Sinhá Rita não

comandava apenas as escravas que estavam sob seu jugo; as pessoas que

estavam à sua volta e que dependiam dela de alguma forma também curvavam-se

diante de sua vaidade e de seu autoritarismo. É o caso de Damião, que dependia

dela para não voltar ao seminário, e de João Carneiro, que temia a senhora

decerto pela influência que ela exercia.

3.2. Alguns aspcetos do conto

Para o escritor Julio Cortázar, no ensaio “Alguns aspectos do conto”,

este gênero literário é

um gênero de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário (CORTÁZAR, 1974, p. 149).

Cortázar compara o conto com a fotografia, afirmando que, assim

como a fotografia, o conto recorta

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um fragmento da realidade, fixando-lhe limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmara (CORTÁZAR, 1974, p. 150).

O conto possui um “limite físico”, distinto do romance, que pode se

alongar por muitas páginas mais. Por isso o autor faz comparações entre conto e

fotografia e entre romance e cinema: cada um fazendo representações dentro de

seus limites e elementos combinados. Esta combinação de elementos é, no conto,

a significação (assunto ou tema), a intensidade (somente o necessário a se narrar)

e a tensão (clima de envolvimento).

“O caso da vara” possui apenas oito páginas24; mas é um texto muito

intenso, em que o narrador se limita a contar os fatos mais importantes e a

angústia por que passam seus personagens – Damião, Lucrécia e João Carneiro.

A angústia de Damião se dá pelo fato de estar fugido do seminário, dependendo

de Sinhá Rita para que não retorne. O personagem se vê diante de uma situação

sem solução: sente pena da escrava que leva uma surra, mas não pode fazer

nada, pois está obrigado a entregar a vara a Sinhá Rita porque estava em suas

mãos a ajuda para não voltar ao seminário – ele não poderia contrariá-la, já que

correria o risco de perder o valioso auxílio. Lucrécia sofre com os castigos de sua

senhora. E João Carneiro se vê pressionado pelo autoritarismo de Sinhá Rita para

ir à casa do pai de Damião, além de temer a reação que o compadre teria.

24 Segundo a edição utilizada neste trabalho.

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Um conto deve chamar a atenção desde suas primeiras páginas,

dado o condensamento de seu limite físico. Para Cortázar, concordando com um

escritor argentino amante do boxe, “nesse combate que se trava entre um texto

apaixonante e o leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o conto

deve ganhar por knock-out” (CORTÁZAR, 1974, p. 152). Além disso, a

significação de um conto está na ocasião em que ele “quebra seus próprios limites

com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai

muito além da pequena e às vezes miserável história que conta” (CORTÁZAR,

1974, p. 153).

“O caso da vara” já começa numa situação tensa, com a fuga de

Damião do seminário. Os adjetivos utilizados para demonstrar o pavor do rapaz

diante da possibilidade de ser padre são contundentes: vagando desnorteado

pelas ruas do Rio de Janeiro, o rapaz encontrava-se “vexado”, “espantado”,

“medroso”, “fugitivo”. O conto continua muito intenso, até o seu desfecho. Damião

passa por momentos de angústia, como, por exemplo, quando seu padrinho é

mandado por Sinhá Rita à casa de seu pai para avisar que ele não voltaria mais

para o seminário. Lucrécia, a cria castigada, também passa por estes momentos

durante a trama. É ameaçada e castigada com a varinha por sua senhora.

Muitas vezes, não é o tema que imprime a um conto significação,

mas o tratamento literário que lhe é dado, “a técnica empregada para desenvolvê-

lo” (CORTÁZAR, 1974, p. 153). Eis a diferença entre o bom e o mau contista:

Machado, muitas vezes, aborda temas corriqueiros, mas se utiliza de linguagem e

tratamento literário que fazem de seus contos verdadeiras obras de arte e

representações de um cotidiano presente em determinado recorte temporal. O

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bom contista combina a vivência humana e a capacidade de escrever, o que é o

caso de Machado de Assis.

Cortázar então questiona as razões de um contista para a escolha

do tema. Eis a resposta:

Parece-me que o tema do qual sairá um bom conto é sempre excepcional, mas não quero dizer com isto que um tema deva ser extraordinário, fora do comum, misterioso ou insólito. Muito pelo contrário, pode tratar-se de uma história perfeitamente trivial e cotidiana. (...) um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo das palavras, nos revela sua existência (CORTÁZAR, 1974, p. 154).

Machado encontra-se nesses “mandamentos do bom contista”, visto

que os temas de sua escolha prendem o leitor não pela importância do que é

abordado, mas sim pela engenharia das palavras e da combinação dos elementos

literários que utiliza.

“O caso da vara” é um exemplo desses aspectos que Cortázar

aborda em seu ensaio. Este conto possui um tema corriqueiro – o servilismo, uma

escravinha castigada por sua senhora, um rapaz que recorre a uma senhora

influente para resolver um problema e culmina com certa inversão de papéis dos

personagens: Damião havia chegado desesperado em busca de auxílio e passou

a se ver diante de uma escrava ameaçada por sua senhora e a vara, rogando por

ajuda:

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A última cena repõe elementos dramáticos bastante familiares ao leitor do conto. Ele por certo se lembrará do estado em que Damião chegou à casa da viúva e das súplicas, ainda sem argumento, que lhe dirigiu. Agora, tanto o apelo de “me acuda, seu sinhô moço”, que Lucrécia lança ao aturdido rapaz, quanto ao de “nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu!”, que a menina dirige à furiosa senhora, expressam a aflição da desvalida e ressoam algo da condição inicial do seminarista desesperado, que “falou com paixão”. A simetria entra aqui, porém, para acentuar as diferenças de condição entre o astuto rapazinho de família, que desperta para o engenho ativo das ações necessárias, e a subjugada menina escrava, que ou tosse ou ri “para dentro”, presa do domínio absoluto, ou grita por piedade, em inúteis clamores (VILLAÇA, 2006, p. 28).

Mas, diante da figura que estava com seu destino nas mãos, “por

interesse ou por necessidade (como distinguir entre ambos?), Damião deixa de

cumprir seu voto secreto de compromisso com Lucrécia – que tanto precisou de

seu amparo. Fica evidente o abismo que há entre a intenção e o gesto, entre a

formulação abstrata do intento virtuoso e sua transformação no ato que inclui o

preço do sacrifício” (VILLAÇA, 2006, p. 29). Encontra-se, então, impotente e o que

lhe resta é entregar a vara a Sinhá Rita.

Assim, o conto revela que, diante dessas diversas relações que

Machado apresenta, envolvidas nesse sistema de servilismo e obediência, não

são somente os escravos que sofrem as conseqüências do autoritarismo de seus

senhores, mas também as pessoas que se encontram penalizadas diante de seu

sofrimento, que acabam por não poder agir, estando também fazendo parte dessa

“política de favores” tão comum durante o regime.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A economia brasileira, durante o século XIX, foi sustentada pela força

do trabalho escravo. Negros trazidos da África vieram para o Brasil com o objetivo

de trabalhar em lavouras e, mais tarde, passaram a exercer diversas funções

dentro das propriedades das famílias da elite brasileira.

Esse trabalho forçado resultou em grande violência sobre os negros.

A relação que havia entre senhores e peças de sua propriedade era, na maioria

das vezes, brutal; os negros sofriam com castigos desumanos e, além disso,

surgiam ofícios que sustentavam esse tratamento – como é o caso dos feitores e

caçadores de escravos fugidos –, já que a prática era oficializada pelo governo.

Os contos nesta dissertação analisados relatam como se davam

essas relações, o tratamento dado ao escravo e como a sociedade percebia o

sistema escravocrata.

Em “Mariana”, Machado de Assis relata o caso da escrava que se

apaixona pelo seu dono, não podendo viver este sentimento. O escritor mostra

como se dava a relação de dependência e como devia ser o comportamento de

uma “peça” pertencente à propriedade de um senhor. O conto mostra, ainda, que,

mesmo se sentindo culpado por uma desgraça que ocorre em sua propriedade – o

suicídio da escrava, no caso –, a questão passa a ser secundária, pois o que

importa mesmo é o bem-estar do sinhozinho branco diante do acontecido. Não há

mais peso na consciência, conseqüentemente, não há com o que se preocupar,

pois a morte de um escravo era algo absolutamente comum e normal.

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“Pai contra mãe” trata da violência sofrida pelos negros. Castigos e

modus operandi do caçador de escravos fujões são descritos com detalhes, além

de o texto mostrar também o início da decadência do escravismo no Brasil. Existe

um paralelo entre o personagem e o sistema, o primeiro representando o segundo.

O mesmo acontece com “O caso da vara”: os castigos e a maneira

como “se deve” tratar um escravo desobediente ou pouco produtivo são

presenciados por um rapaz que foge de um seminário, assim como a autoridade

exercida sobre as crias de uma senhora prepotente e vaidosa.

Os contos aqui abordados remetem ao mesmo recorte temporal: a

década de 1850, quando a mão-de-obra utilizada nas mais diversas atividades era

escrava. Há de se notar a importância do tema abordado pelo escritor, visto que o

Brasil já passava por pressões externas (a Inglaterra, por exemplo) e internas (os

movimentos abolicionistas) para que se extinguisse a escravidão. O contexto em

que Machado de Assis escreve estes três contos parece influenciar na escolha do

tema e revela um autor não somente preocupado em escrever sobre a alma

humana, mas também sobre o quadro social que influencia na formação – e

desvio – do caráter das pessoas que viviam aquele momento.

Machado de Assis mostra, nestes três contos, as duas faces de uma

mesma moeda: assim como havia sujeitos visando apenas ao seu sustento e

utilizando a escravidão para isso – como é o caso de Cândido Neves – havia

aqueles que penalizavam-se diante do descaso e da violência sofridos pelos

cativos – como Damião. E, ainda, um terceiro caso: aqueles que possuíam

escravos, sentiam dó e arrependimento em algumas ocasiões, mas que nada

faziam a respeito disso. O que sentiam durava apenas algumas horas, mas logo

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passava quando havia distração que desviasse sua atenção do assunto. Para este

caso, o exemplo maior é Coutinho.

Através da linguagem, ironia e sutileza com que o autor descreve certas

cenas para as quais muitos na época fechavam os olhos, pôde-se traçar um

panorama de como a sociedade sustentava certas relações e como, sob a ótica de

Machado de Assis, a escravidão aconteceu no Brasil.

Assim, os contos de Machado enfocados neste estudo passam a ser

uma espécie de documento histórico que descreve as situações do cotidiano da

elite brasileira oitocentista e de suas crias. O contexto histórico vivido por

Machado de Assis reflete na sua produção e o tema da escravidão e algumas de

suas conseqüências é precisamente descrito. A intenção desta dissertação não é

a de considerar Machado de Assis um escritor que tomou partido ou que

panfletava contra a escravidão e a favor do abolicionismo, mas um autor que, em

sua grandeza, retratou as marcas da sociedade durante esse regime.

Dentre as obras citadas neste estudo, Joaquim Nabuco é o autor

mais explícito na defesa do escravo como ser humano. Nesse sentido, seria

interessante apresentar mais uma vez, nestas considerações finais, a figura do

abolicionista. Mesmo havendo um Joaquim Nabuco a enfocar com alma e

sentimento o trato desumano dado à figura do escravo, não foi levada em conta,

na elaboração do presente estudo, a possibilidade do lugar-comum em

contraponto à escolha dos três contos de Machado. Utilizando as palavras de

Alcides Villaça, “não haveria novidade, ao fim do século XIX, em apontar as

barbáries do escravismo, contrastando-as com os privilégios dos proprietários,

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nem Machado aceitaria esse esquema, dócil às retóricas e presa fácil das

ideologias de fachada” (VILLAÇA, 2006, p. 28).

Ambos, Nabuco e Machado, cada um a seu modo, souberam trazer a

público a questão do negro no Brasil. Nabuco, inflamado, pura afetividade.

Machado, irônico, retratista da alma humana face ao escravo e, sem ser

panfletário, sensível – nas entrelinhas – à causa do escravo como ser humano.

Apesar de enfocados à exaustão em seus diversos aspectos literário

e histórico, espera-se que a escolha destes três contos de Machado acrescente

uma nova visão àqueles que se dedicam à apreciação da obra machadiana: o

Bruxo do Cosme Velho soube denunciar nas entrelinhas de “Mariana”, “Pai contra

mãe” e “O caso da vara” algo que a sociedade carrega até hoje como um fardo

incômodo: as conseqüências da escravidão.

Assim, diante da pesquisa realizada acerca do tema e a leitura e

análise dos contos, pôde-se perceber que Machado, ao contrário do que muitos

críticos afirmaram, não foi um absenteísta do momento histórico em que viveu e,

sim, um homem que tentava despertar sutilmente a consciência dos brasileiros

para o que estava acontecendo.

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