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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PRANÁ PRODUÇÕES DISCURSIVAS PÓS-11 DE SETEMBRO SOBRE AS MULHERES MUÇULMANAS NA MÍDIA IMPRESSA. CURITIBA Dez/ 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PRANÁ

PRODUÇÕES DISCURSIVAS PÓS-11 DE SETEMBRO SOBRE AS

MULHERES MUÇULMANAS NA MÍDIA IMPRESSA.

CURITIBA

Dez/ 2004

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CYBELLE MARTINS DE LARA CARDOZO

PRODUÇÕES DISCURSIVAS PÓS-11 DE SETEMBRO SOBRE AS

MULHERES MUÇULMANAS NA MÍDIA IMPRESSA.

Monografia apresentada como requisito á obtenção de

nota parcial à disciplina Orientação Monográfica em

Sociologia do Departamento de Ciências Sociais do Setor

de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade

Federal do Paraná.

Orientadora: Miriam Adelman.

CURITIBA

Dez/2004

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RESUMO

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AGRADECIMENTOS

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INTRODUÇÃO

Os atentados ocorridos em 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos da América fizeram com que

algumas questões passassem o tempo todo a fazer parte de discussões que buscavam compreender os recentes

acontecimentos. Essas questões iam desde o conflito entre civilização e barbárie até discussões de gênero que

reforçaram o contraste entre o “Oriente” e o “Ocidente” fazendo ressurgir assim uma porção de idéias pré-

concebidas sobre o Islã, os árabes e sobre os países do Oriente Médio.

O Islamismo e o Cristianismo passaram a ser comparados e “estudados” numa tentativa de se

justificar os fatos. Todas essas discussões se deram em todos os veículos de comunicação, mas nos jornais

pode-se perceber uma maior repetição dos discursos abordados nos textos. É da análise do discurso feito sobre

as mulheres muçulmanas na mídia impressa que tratar-se-á esse estudo, buscando encontrar as regularidades

presentes nos textos os quais ajudam a reforçar a idéia de que o Ocidente é mais civilizado que o Oriente.

O editorial do New York Times de 16 de setembro de 2001 ilustra muito bem alguns dos discursos

que se analisa nessa pesquisa: “Os responsáveis agiram pelo ódio que nutrem contra os valores prezados no

Ocidente, tais como liberdade, tolerância, prosperidade, pluralismo religioso e voto universal”. “A partir desse

editorial podemos basear quase todas as matérias feitas sobre o islã ou mesmo sobre os povos que passaram a

fazer parte das notícias sobre “a guerra contra o terror” (Chomsky, 2002,p.33)”.

Dentre esses valores citados no editorial pretende-se enfocar com mais clareza nesse estudo a liberdade, valor

no qual pode-se encaixar a questão de gênero nas diferentes culturas. Tal questão é relevante, pois se verificou

que foi exaustivamente abordada principalmente depois de iniciada a retaliação ao Afeganistão em outubro de

2001, o que trouxe à pauta a o governo Taleban e as restrições impostas às mulheres. A partir de outubro de

2001 percebeu-se um aumento na preocupação na mídia impressa em enumerar para os leitores os maus tratos

que as mulheres afegãs eram submetidas pelo regime Taleban.

1.1 POSIÇÃO DE SUJEITO

Não deixei de problematizar um só instante minha posição como mulher-branca-Ocidental ao

realizar essa pesquisa sei que segundo Said () sou uma Orientalista por ter produzido um estudo sobre o

Oriente, mas esforcei-me ao máximo para relativizar os fatos que chegaram até mim. Para conseguir

relativizar melhor isso, fiz a leitura do Alcorão e de inúmeros livros sobre o assunto, assisti filmes e muitos

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documentários. No entanto sei que o que foi lido é uma representação de alguém sobre o Oriente e nunca a

real descrição do que aconteceu. Não se pode fugir da subjetividade o que se pode fazer é problematizar o

próprio discurso e as teorias que se utiliza para analisá-lo.

No caso desse tema, senti muita dificuldade de encontrar um material sociológico, a única socióloga lida

encontrada foi Fátima Mernissi e, mesmo assim seu livro “Sonhos de Trasgressão” é quase uma biografia.

Apesar de todos esse empecilhos, o tema nunca deixou de ser interessante e desafiador para mim.

1.2 CAPÍTULOS

No capítulo 1 busca-se fazer uma incursão nas teorias que irão balizar todo o trabalho. Michel

Foucault identificando o discurso como um lugar de disputa de poder e a teoria da Análise do Discurso que

inclui a ideologia na formação do discurso e dos sentidos, teoria necessária para se identificar na mídia o

discurso Orientalista e o discurso machista.

O discurso Orientalista surgiu em países colonizados por França, Inglaterra e mais tarde Estados

Unidos para justificar sua superioridade e exploração de outras culturas. Outra forma discursiva discutida

nesse capítulo é a masculinista. Simone de Beauvoir com sua teoria da mulher como o OUTRO iniciou uma

discussão sobre gênero, ou seja, sobre a construção social das diferenças entre homens e mulheres além de

demonstrar que a história sempre foi escrita por homens e para homens.

No capítulo 2, aborda-se livros escritos por escritoras muçulmanas. Considerou-se que ouvi-las falar

seria importante e justo já que o único contato que teríamos com experiências contadas por quem realmente as

viveu seria através dos livros. Referindo-se a conjunturas específicas como mulheres muçulmanas em países

muçulmanos de acordo com algumas correntes de pensamento, as escritoras tecem seus livros. Através dessas

leituras, tentou-se observar algumas questões que dizem respeito à maneira com que suas autoras as

abordaram e, em nenhum momento pretendeu-se julgar a veracidade dos fatos narrados. A verdade é que

desses livros emergiram novas vozes para guiar esse estudo. As leituras foram ordenadas de modo a construir

comparações em temas comuns, para nós Ocidentais, ao se tratar de mulheres muçulmanas. Temas como

castigos, o uso do véu e regras do Islã foram comparados entre os livros escolhidos. Para exemplificar a

aplicação hoje das leis islâmicas, abordou-se o caso da nigeriana Amina Lawal que foi primeiramente

condenada ao apedrejamento até a morte por ser acusada de adultério.

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A reação das feministas que divulgaram uma petição para salvar Amina Lawal é analisada a partir

dos debates feministas contemporâneos sobre a questão do diálogo intercultural. No caso do Islã, algumas

feministas muçulmanas, através de seus estudos buscaram encontrar razões para a opressão da mulher

muçulmana. Algumas respostas encontradas por essas mulheres são abordadas como a manipulação das

palavras do profeta e a apropriação do discurso feminista pelos agentes coloniais que pregam como única

solução para a opressão feminina no mundo Islâmico, a Ocidentalização dos costumes.

No capítulo 3, uma contextualização histórica e política é feita sobre o Afeganistão, país que mais

apareceu como notícia no período analisado de 2001. Sua questão territorial com o Paquistão é analisada bem

como a ligação do governo desse país, o Taleban, com os Estados Unidos.

Feito isso, as reportagens dos jornais folha de São Paulo, Gazeta do Povo e da revista Veja são

analisadas a luz da teoria da Análise do Discurso, que ajuda a identificar os padrões nas construções

discursivas de tais veículos de comunicação.

Para ser mais específico, desse trabalho excluiu-se uma boa parte dos acontecimentos relacionados a

mulheres muçulmanas depois de 11 de setembro. Depois das mulheres do Afeganistão, nunca mais se voltou a

se falar sobre as condições femininas em qualquer outro país. Mesmo com a invasão do Iraque, a questão

principal abordada pelos jornais, foi a ditadura de Saddam Hussein e da Arábia Saudita, país onde todos

sabem que os direitos das mulheres não são respeitados, nenhum jornal fala. Espera-se com esse estudo

contribuir para a Análise do Discurso da mídia nessa nova fase mundial pós 11 de setembro onde além de

uma guerra convencional, assistimos a uma guerra para poder ser Sujeito do discurso que terá o poder de

narrar os acontecimentos para a opinião pública mundial.

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CAPÍTULO 2

O DISCURSO E O “ESTAR NO VERDADEIRO”.

No dia quatro de outubro de 2001 a rede de televisão inglesa BBC1 citando a agência de notícias

Reuters do mesmo país, noticiou que o Emir do Qatar foi diretamente pressionado pelo Secretário de Estado

norte-americano Colin Powell a intervir no canal de televisão Al-Jazeera que tem sede em seu país

(CHOMSKY, 2002)

Esse não foi o único ataque que o canal sofreu por parte dos americanos, no dia 07 de agosto de

2004, os Estados Unidos forçaram o fechamento dos escritórios do canal de televisão Al-Jazeera no Iraque.2

Além disso, a Casa Branca pediu para que a imprensa não divulgasse as mensagens de Osama Bin Laden

(OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, 2001).

Mas porque esse canal de televisão do Qatar, até então desconhecido, incomodou tanto os Estados

Unidos a ponto de precisar ser fechado, como foi no Iraque?

Entre outras coisas, esse canal de televisão destoou do material divulgado e reproduzido pelos canais

alinhados a política norte-americana sobre sua concepção de luta contra o terrorismo. Desde os atentados de

11 de setembro de 2001, a imprensa norte-americana e os canais de notícia alinhados com os princípios de

política externa dos Estados Unidos optaram por cobrir os fatos relacionados ao terrorismo praticado contra os

Estados Unidos de uma forma unilateral, em que os países considerados inimigos pela Casa Branca fossem

desprovidos de qualquer traço de humanidade. Já a Al-Jazeera optou por noticiar a guerra tanto no

Afeganistão, como no Iraque a partir do olhar das vítimas civis.

1 Fundada em 1926 em Londres, a BBC possuía o monopólio da rádio britânica, hoje possui além do rádio um

canal de televisão e o site na Internet disponível para mais de quarenta e três países. 2 Os Estados Unidos iniciaram em 20 de março de 2004 um processo de desestabilização, invasão e controle

das instituições iraquianas através de tomada de posse, gerenciamento ou fechamento como instituição de

meios de notícia, como o canal de televisão Al- Jazeera, que foi bombardeado, tendo um de seus jornalistas

morrido. Sobre o fechamento do canal Al-Jazeera no Iraque, ver o filme Control Room, do diretor

NOUJAIM,Jehane.

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Ao demonstrar que a guerra é mais do que mísseis teleguiados, como se fossem videogames, o canal criou um

descompasso entre o que o governo americano buscou evidenciar das operações no Iraque e Afeganistão com

as conseqüências infligidas a essas populações em uma situação de invasão.

No caso do Afeganistão, a Al-Jazeera esteve noticiando a invasão3 a partir do lado que estava sob o

controle do Regime Taleban4, o qual é acusado pelos Estados Unidos de abrigar Osama Bin Laden

5.

Enquanto o Regime Taleban manteve alguns territórios sobre seu controle durante a invasão

americana ao Afeganistão, o canal Al-Jazeera foi o único que transmitia informações a partir desse lado do

conflito.

Já os canais ligados a Coalizão liderada pelos Estados Unidos transmitiam suas notícias do lado ocupado pela

Aliança do Norte6, principal aliado dos norte-americanos no Afeganistão.

A Al-Jazeera fiel ao viés que adotou, divulgou imagens de reféns americanos no Iraque de soldados

pertencentes a Coalizão e noticiou erros militares americanos em ambos os países como por exemplo, a

queda de helicópteros americanos derrubados no Afeganistão. O correspondente da televisão árabe Al-Jazeera

em Kandahar disse: “os talebans afirmam ter derrubado um dos helicópteros que participaram de uma

operação em Kandahar, a primeira desta natureza desde o começo da guerra contra o terrorismo no

Afeganistão” (FOLHA ONLINE, 20/10/2001). Além disso, o canal abriu espaço para os líderes dos dois lados

dos conflitos dando-lhes a oportunidade de explicitarem seus pontos de vista.

Esses são alguns dos motivos pelos quais o governo americano está preocupado com canais de

televisão que antes dos atentados de 11 de setembro, eram insignificantes para a imprensa internacional.

O fato da Al-Jazeera não estar reproduzindo o discurso que o governo dos Estado Unidos está

interessado que seja divulgado e ter sido censurado por isso, nos faz abordar num primeiro momento o

conceito de discurso, para depois explicitarmos as suas duas formas que descobrimos ser permanentes na

cobertura jornalística do pós-11 de setembro.

3 O Afeganistão foi invadido pelas tropas norte-americanas em outubro de 2001, dois meses após George W.

Bush acusar Osama Bin Laden dos atentados de 11 de setembro. 4 O Regime Taleban é formado por líderes religiosos islâmicos da etnia Pashtoon que estão no poder no

Afeganistão desde 1996.

5 Osama Bin Laden, pertence a uma família rica da Arábia Saudita e, segundo o FBI, é o principal líder da Al-

Qaeda, organização terrorista que teria planejado, entre outras coisas, os atentados de 11 de setembro.

6 A Aliança do norte é formada por membros da etnia Tadjique que faz oposição ao Taleban no Afeganistão.

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Sendo assim, passamos a compreender o discurso como “a língua fazendo sentido, enquanto trabalho

simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história.” (ORLANDI, 1999, p.15).

Ou seja, a língua usada como intenção com interesse de atingir determinado fim.

2.1 O NOVO NÃO ESTÁ NO QUE É DITO, MAS NO ACONTECIMENTO À SUA VOLTA.7

Partindo disso, a Análise do Discurso irá utilizar as Ciências Sociais e a Lingüística procurando

analisar tanto o sujeito que emite a mensagem quanto aquele que recebe principalmente como a intenção

geradora da produção discursiva. Assim, a Análise do Discurso vem para problematizar as duas disciplinas ao

refletir sobre a maneira como a linguagem se materializa na ideologia e como a ideologia se manifesta na

língua (ORLANDI, 1999).

Michel Foucault (2004), já tinha se dedicado a entender o porque do discurso e a sua produção ser

controlada rigidamente por regras que impõem limites a quem os utiliza, procurando evitar seu aparecimento

não planejado.

Alguns mecanismos controladores foram encontrados por ele: a interdição, a exclusão e a vontade de

verdade.

A interdição, ou seja, o saber do fato de não podermos falar o que quisermos quando quisermos seria como

um “ritual da circunstância”. Essa interdição, além disso, demonstra que “o discurso – como a psicanálise nos

mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do

desejo; e visto que isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz

as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos

apoderar.”(FOUCAULT, 2004, p.10)

A exclusão como mecanismo de controle poderia ser exemplificado pelo tratamento dado a loucura, a partir

do século XIX onde se produziu o processo de exclusão do direito do “louco” de ter razão. Tanto ele não tem

razão, argumenta Foucault, que precisa de uma pessoa investida de racionalidade (o psicólogo) para que possa

falar e ser ouvido.

Dentre todas as formas disciplinares do discurso, a que se pretende destacar para fins de análise

dentro dessa pesquisa, é a Oposição entre o Verdadeiro e o Falso ou “essa vontade de verdade que atravessou

e atravessa todo a produção do conhecimento”(FOUCAULT, 2004, p.?).

7 FOUCAULT, 2004, p. 26.

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As próprias “aberrações científicas”, como as teorias racistas do final do século XIX e início do

século XX, seriam um exemplo do aparecimento de “novas formas de vontade de verdade” na ciência. Nessa

área, o desejo de provar cientificamente preconceitos como os de que negros, judeus e mulheres são inferiores

fez com que surgissem, por exemplo, as teorias preconceituosas que através da medição de crânios procurou

evidenciar a existência de explicações físicas para o caráter dos criminosos ou para justificar a inferioridade

das mulheres.

A vontade de verdade possui também a característica de coagir e pressionar os outros discursos. Essa

pesquisa pretende identificar o desejo de verdade presente na mídia impressa brasileira quanto a questão das

mulheres muçulmanas e que procura reafirmar outras idéias que dizem respeito ao Islã e a Civilização

Oriental.

O conjunto dessas idéias formadoras de estereótipos foi estudado por Edward Said que o chamou de

Orientalismo. Quanto à união jornalística entre mulheres e Islã, reiteramos Foucault ao dizer que: “o novo não

está no que é dito, mas no acontecimento à sua volta” (FOUCAULT,2004, pg.26).

Pode-se confirmar isso se levarmos em conta que o Taleban está definitivamente no poder do Afeganistão

desde 1996, quando conquistou a capital Cabul. E há mais ou menos oito anos vem promovendo uma

sistemática exclusão das mulheres da vida pública o que até agosto de 2001 não teve importância política

suficiente para que os Estados Unidos pensasse em derrubar o regime Taleban. O novo está no fato desse país

ser acusado de abrigar aquele que é considerado o culpado pelos atentados de 11 de setembro e pelos

americanos não terem se preocupado com a situação dessas mulheres até precisarem de uma justificativa

moral para a guerra como aponta Christine Delphy em seu texto “Uma guerra pelas afegãs?”8.

Segundo Bakhtin (1998, p.225. apud SOARES, 2004) é necessário levar em conta o contexto social

em que o discurso é produzido para trazermos a tona, aquilo que não está escrito, que não transparece no

texto.

Para fins de análise, foram utilizadas as reportagens da mídia impressa de grande circulação no

estado do Paraná como os jornais Gazeta do Povo, a Folha de São Paulo e a revista Veja. Partiu-se da idéia de

que o discurso só “é” em função da sua relação com outros discursos. Nessa monografia utilizou-se o discurso

do Orientalismo de Edward Said e o discurso do Eterno Feminino de Simone de Beauvoir para

8 Esse argumento será desenvolvido no Capítulo II.

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compreendermos o jogo de informações subjetivas e objetivas que são lançadas tanto pelos jornalistas quanto

pelos leitores. Nesse jogo esquece-se de propósito que a linguagem é o veículo da ideologia.

2.1.1 NEOCOLONIALISMO E O CONCEITO DE ORIENTALISMO.

No século XIX e início do século XX, países industrializados como França, Reino Unido, Bélgica,

Alemanha, Estados Unidos, Rússia, Itália e Japão sentiram necessidade de buscar novos mercados

consumidores, matéria-prima, e mão de obra barata. Tal busca acarreta numa disputa entre os países

interessados que teve por conseqüência uma nova partilha do mundo.

Focaremos aqui os impérios da Inglaterra e da França já que foram eles que acabaram colonizando

em sua maior parte os países do “Oriente”. Essa colonização teria aproximado numa relação de

dominante/dominado tais povos, do Oriente e Ocidente representado pela Inglaterra, França e posteriormente

no século XX pelos Estados Unidos, o que contribuiu para a formação de um discurso (com fins colonialistas)

que Edward Said chama de “Orientalista”.

No caso da França a colonização se deu no Norte da África (Tunísia, Argélia, Marrocos e parte do

Saara); na África Ocidental (Senegal, Guiné, Costa do Marfim, Daomé, atual Benin, Gabão e República

Democrática do Congo, estes últimos denominados África Equatorial Francesa); África Central (Níger, Chade

e Sudão) e na África Oriental (Madagascar, trocada com o Reino Unido por Zanzibar, atual Tanzânia, Obok,

baía de Tadjurah, os sultanatos de Gobad e Ambado e os territórios dos Afars e Issas, atual Djibuti).

Já o Reino Unido apossou-se de territórios na África Ocidental (Gâmbia, Serra Leoa, Costa do Ouro,

atual Gana, Nigéria e as ilhas de Santa Helena e Ascensão); na África Oriental (Rodésia, atuais República

Democrática do Congo, Zimbábue, Quênia, Somália, ilha Maurício, Uganda e Zanzibar, atual Tanzânia e

Niassalândia, atual Malavi); na África Meridional (União Sul-Africana, incluindo a antiga Colônia do Cabo e

as ex-repúblicas bôeres de Natal, Orange e Transvaal na África do Sul; os protetorados de Bechuanalândia,

atual Botsuana; Basutolândia, atual Lesoto e a Suazilândia).

Além da África, a Inglaterra exerceu uma forte influência em alguns países do Oriente Médio dos

quais podemos citar o Egito, Irã e Kuwait sendo este último, o país que se tornou protetorado britânico

quando do início da Primeira Guerra e somente obteve a independência em 1961.

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A competição entre as potências da época França e Inglaterra contra a Alemanha acirrada pela briga por

territórios, mercados consumidores e mão-de-obra barata foi um dos motivos que culminou então na Primeira

Guerra Mundial.

Depois de vencer a guerra, Inglaterra e França dividiram os países do Oriente Médio de acordo com

seus interesses. A Inglaterra tomou posse da Palestina contendo os atuais países Jordânia e Israel, a

Mesopotâmia que hoje seria o Iraque e a Península arábica. Para a França ficou a Síria (que na época continha

o Líbano) e a Cilícia que atualmente faz parte da Turquia.

Tais países criaram um verdadeiro corpo de conhecimento sobre essas novas culturas que passaram a

subjugar. Para as submeter foi necessário justificar, política e religiosamente tal dominação. Foi então que,

baseada em teorias racistas, construiu-se uma distinção entre os dois mundos, o do colonizador e o do

colonizado, que ficou conhecida como o Oriente e o Ocidente, onde o Oriente seria uma idéia que tem uma

história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para

o Ocidente. As duas entidades geográficas, desse modo, apóiam e, em certa medida, refletem uma à outra.

(SAID, 2001)

O fato é que a maioria das pessoas que estudam o tema “Oriente”, em alguma escala, partem do

pressuposto de que esta distinção é natural, idéia criada e confirmada por um discurso identificado por Said

como Orientalismo que teria por papel “negociar com o Oriente – negociar com ele fazendo declarações a seu

respeito, autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o

orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente” (SAID,

1978, p.15).

Os países colonizadores, a partir de sua experiência de contato com um Outro tão diferente através da

dominação política, militar e econômica detiveram o poder e a autoridade para legitimar como verdadeiro

seus pontos de vista. Essa autoridade é visualizada através do surgimento do discurso que pode ser entendido

como uma produção cuidadosa de conceitos e julgamentos que, ao serem reproduzidos, aumenta o prestígio e

o capital intelectual daquele que fala. Pois como diz Foucault (2004), dentro da academia e da produção

acadêmica, é preciso estar “no verdadeiro” e nesse caso, desde o final da década de 1840 até os dias de hoje,

“o verdadeiro” sobre o “oriente” está invariavelmente dentro do discurso Orientalista.

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O próprio Ocidente ganhou em força e personalidade ao produzir e até ao criar de forma sistemática

a diferença entre ele e o Oriente. Pois, é questão de lógica que para existir o mais forte é preciso existir o mais

fraco. Isso vale também para a produção discursiva onde o sujeito do discurso precisa da existência do objeto

ou de um Outro do qual ele fala.

Esses lugares, no discurso ou na prática se configuram como uma relação de poder onde existem

investidas e contra investidas, opressão e resistência. Os interesses estão muito bem definidos, e os

investimentos em academias, livros, congressos, universidades e institutos de relações exteriores (SAID,

2001) feitos para reproduzir e citar determinados autores e obras não são e não foram feitos em vão. Eles

estão aí para manter e serem mantidos pelo que Said citando Gramsci chama de hegemonia9. A hegemonia ou

o seu resultado em ação confere ao orientalismo a durabilidade e a força (Said 2001).

Os países que protagonizaram historicamente essa hegemonia (França, Inglaterra e mais tarde os

Estados Unidos) ofereceram, segundo Said, nada mais do que imperialismo, racismo e etnocentrismo aos

povos colonizados. O que seria o caso da maioria de estudiosos do oriente assim como jornalistas que não

oferecem em suas pesquisas ou notícias nada além do conhecimento Orientalista sobre os países em questão.

A pré-noção geradora desses registros, jornalísticos ou não, nada mais é do que a confirmação da

idéia apontada por Said (2001) de que é fato que um homem oriental é antes um oriental para depois ser um

homem e por isso, tudo que for feito por ele servirá mais uma vez para reforçar o discurso das diferenças

irreconciliáveis entre Oriente e Ocidente.

Podemos citar como exemplo desse sistema de pensamento a reação ao fato de uma pessoa cometer um

atentado suicida como os de 11 de setembro. A primeira reação de um ocidental que já incorporou o discurso

Orientalista será falar da natureza violenta do Islã ou da essência do caráter vingativo dos árabes para explicar

o que ocorreu. É preciso antes de repetir idéias estáticas e infundadas, compreender o acontecimento sem o

estender para toda uma cultura, pois, se esse argumento fosse verdadeiro o fato de um soldado americano no

Iraque estuprar mulheres iraquianas poderia dar a nós povo do “Ocidente”, o rótulo de povo de estupradores o

que não estaria de acordo com a realidade.

9 A hegemonia para Gramsci é esse polêmico conceito, construído a partir de Marx que possui uma relação

dialética com o conceito de dominação, na medida em que a função de liderança econômica, social,

intelectual e moral daclasse(s) (ou frações de classe) hegemônica (dominantes) forma ou constitui um

consenso (a partir dos valores dessas classes), que é, na visão de Gramsci um modo de dominação mais eficaz

que a coerção (Gramsci, 1995 apud Oliveira de Castro, s.d.).

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Toda generalização utilizada para a definição de culturas prejudica os conflitos já existentes, pois

tornando simples as idéias, as soluções encontradas para os resolver tendem a ser simplificadas também

como, por exemplo, a decisão de invadir um país ou de impô-lo um sistema político diferente do habitual. A

imprensa ao adotar categorias estáticas como teimosos ou fundamentalistas para os Taleban, ajudaram na

eliminação de qualquer possibilidade de diálogo. Pois, quando o governo americano decidiu não negociar a

entrega de Bin Laden a opinião pública já estava acostumada à imagem criada do regime afegão como sendo

extremamente inflexível e, portanto passou a concordar com a decisão tomada pelos Estados Unidos. No caso

desse objeto de estudo, os jornais e o discurso sobre as mulheres muçulmanas, podemos reconhecer pelo

menos duas dessas formas de simplificação, sendo uma o discurso Orientalista e a outra o discurso machista

sobre as mulheres.

Tais formas de pensamento contribuem muito para o agravamento dos conflitos pós-11 de setembro,

pois, ao omitir a diversidade e a complexidade humana presente nas pessoas dos países de culturas diferentes,

torna-se cada vez mais fácil e indolor para o lado agressor matar o inimigo no caso dos militares ou,

simplesmente apoiar tais ações no caso dos civis que não participam diretamente das guerras.

Além do discurso Orientalista busca-se chamar a atenção para o discurso machista Ocidental que,

também tem feito parte das reportagens analisadas onde os jornalistas têm feito questão de lembrar que as

mulheres Ocidentais são privilegiadas por ter a liberdade de exercer sua feminilidade da maneira que quiser.

2.2 ALÉM DE OUTRO, MULHER INDEFESA?

Simone de Beauvoir (1949) buscou traçar um panorama do que foram algumas categorias as quais permearam

todas as áreas do conhecimento que, criaram e reproduziram estereótipos a respeito das mulheres.

A idéia que deu origem a todos os outros estereótipos utilizados até hoje vem de uma noção básica: a de que

uma “fêmea”, no sentido biológico não se torna uma mulher se não for investida de feminilidade. Essa

feminilidade seria um conjunto de características como delicadeza, fragilidade, sentimentalismo que

diferenciariam ambos os sexos. Mas, para Beauvoir (1949) não há necessidade de buscarem-se essas

“qualidades” pois para ela, a feminilidade não existe o que acontece é uma naturalização falsa de costumes

culturais.

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A construção social e manutenção dessas tradições fazem parte da categoria de gênero que, entre

outras coisas identifica e afirma que muitas diferenças “naturais” entre homens e mulheres são na verdade

frutos das desigualdades sociais construídas em cima das diferenças biológicas.

Enquanto as diferenças biológicas são imutáveis, o gênero varia de geração para geração segundo a

época e padrões sociais o que comprova a possibilidade de revisão e modificação dos estereótipos existentes.

Um dos estereótipos mais comuns é o dos homens como sujeitos neutros e as mulheres como sujeitos

negativos, pois devido a sua capacidade de gerar filhos, elas foram identificadas com o corpo e com a

sexualidade e os homens com a razão. O corpo sendo ligado as emoções desvirtuaria a capacidade racional o

que por muito tempo justificou o menosprezo à produção intelectual feminina. Fazendo com que elas fossem

excluídas da possibilidade de construir seu discurso as impedindo de ocupar posição de sujeitos como aponta

Susan Bordo em seus estudos. Diretamente definidas por sua relação com esse “Outro”, para Beauvoir (1949)

as mulheres em nossa sociedade nada mais são do que o que os homens decidem que ela seja.

Na pesquisa que fizemos, observamos muitas vezes que eram homens, jornalistas, militares ou civis

que falaram pelas mulheres muçulmanas. Muito poucas vezes lemos reportagens com as próprias personagens

do conflito e, se essas reportagens aconteceram foram direcionadas por perguntas que em sua maior parte

satisfizeram uma curiosidade estritamente ocidental–masculina, como por exemplo, a pergunta do jornalista

Kennedy Alencar da Folha de São Paulo a Sahar Saba, pertencente a ong RAWA:10

“Você já teve um

namorado?Já beijou um homem?” (ALENCAR, 30/09/2001) ao invés de focar outros pontos mais relevantes

como por exemplo a questão da participação política feminina no Afeganistão.

No caso do Afeganistão, em nenhum jornal encontramos as afegãs se expressando sobre o que seria

melhor para elas mesmas, uma das únicas exceções foi à reportagem com a participante da ong RAWA, na

Folha de São Paulo. O próprio espaço dado a essa ong também foi quase nulo no que concerne às decisões

tomadas em nome das mulheres o que contradiz o discurso dos Estados Unidos de que estaria interessado em

libertar as mulheres e proporcionar-lhes democracia.

Para entendermos essa falta de destaque dado às interessadas na sua própria liberdade, a análise de

Simone de Beauvoir nos parece oportuna já que nos lembra que o papel da mulher na sociedade sempre foi o

10

RAWA é a sigla em inglês da ong Associação das mulheres revolucionárias do Afeganistão, uma entidade

sediada no Paquistão que Sahar Saba define como “organização política feminista independente e

antifundamentalista.”(ALENCAR, 30/09/2001)

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de objeto tanto no discurso quanto nas atitudes. Mas de onde viria então essa submissão? Porque as mulheres

aceitam e protagonizam o papel que lhes é destinado? A resposta parece ser a de Beauvoir: “recusar ser o

Outro, recusar a cumplicidade com o homem seria para elas renunciar a todas as vantagens que a aliança com

a casta superior pode conferir-lhes”. (BEAUVOIR,1949 p.19)

Ou seja, há um gozo na submissão, mas esse gozo também é socialmente construído, as recompensas

são cuidadosamente pensadas para não incentivarem a transcendência nos projetos de vida. Quando as

mulheres pensam em se dedicar a projetos na vida pública, logo vem um corpo determinado de “especialistas”

como psicólogos, médicos e padres para lhes lembrar de sua missão na Terra de procriar e de ser subserviente

ao seu homem. Se esse papel não fosse aceito e cumprido, várias denominações e patologias definiriam as

mulheres “desencaixadas” como, por exemplo, a neurose histérica para denominar aquela que é nervosa e

rivaliza com os homens, como bem identifica Maria Rita Kehl. As mulheres não transcendem em seus sonhos

e projetos, eles não podem permitir, pois, se assim o fizerem elas vão deixar de querer ser cúmplices e desistir

de servir aqueles que atualmente possuem o direito “natural” de “dominarem” o mundo(BEAUVOIR, 1949).

2.2.1 HERÓIS SALVADORES? OU FRIOS COLONIZADORES?

Nessa análise percebeu-se claramente a intenção dos americanos de serem considerados os heróis

salvadores dessas mulheres. Os jornais são claros em suas notícias, dizendo que os americanos entraram no

Afeganistão e o arrasaram para salvar seu povo e além de tudo para salvarem as mulheres indefesas e

incapazes de se defender dos fundamentalistas do Taleban. O Regime Taleban realmente impôs restrições à

vida das mulheres como, por exemplo, o fechamento das escolas para meninas, mas o que percebemos no

discurso da Casa Branca é que não se reconhece, espera ou incentiva nenhuma reação das envolvidas. A elas

não cabe o papel de sujeitos construtor de seus direitos e isso transparece na falta de apoio a sua ONG

RAWA.

Pelo contrário, além de tudo a RAWA foi “esquecida” pela imprensa mesmo depois de emitir manifesto em

que alerta o mundo para o fato da “Aliança do Norte” também ser adepta do fundamentalismo e por isso não

estar nem um pouco preocupada com a liberdade das mulheres. George W. Bush disse no dia 29 de janeiro de

2002 que: “a bandeira americana flutua novamente sobre nossa embaixada em Cabul [...] Hoje, as mulheres

estão livres”. (DELPHY, 2002)

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Como seria possível libertá-las de práticas culturais que vieram antes do Regime Taleban? O Taleban

apenas tornou lei algo que já ocorria naquele país (MAKHMALBAF, 2001). Uma idéia que merece ser levada

em conta é se uma política gera uma prática cultural ou uma prática cultural gera uma política? Essa é a

pergunta relevante que Mohsen Makhmalbaf nos faz em seu livro (MAKHMALBAF, 2001). Como prova do

enraizamento desse costume na cultura afegã, pode-se citar o fato de que a Aliança do Norte “achou” melhor

as mulheres não deixarem de usar a burqah11

pelo fato de poderem sofrer novas represálias. A RAWA, através

de sua porta-voz Marina Matin declarou em entrevista ao site da globonews no dia 22/11/2001 considerar que

não há diferença entre a Aliança do Norte e o Regime Taleban já que as duas facções cometem os mesmos

crimes, pois pertencem a tribos diferentes (Tajiks e Pashtoons respectivamente) que guerreiam entre si

provocando inúmeros assassinatos. Outra preocupação da ong é o fato do governo liderado pela Aliança do

Norte ser baseado na força militar dada pelos Estados Unidos que tem omitido a perseguição às pessoas da

etnia Pashtoons da qual o Taleban faz parte.

Perguntada se o fato de algumas mulheres ter tirado a burqah era um sinal de mudança real ou temporária, ela

respondeu:

“Certamente temporária. Esta é uma boa oportunidade para a Aliança do Norte se promover para o mundo,

que está voltado para o drama vivido no Afeganistão, especialmente o das mulheres. Temo que depois que as

atenções sejam desviadas, a vida volte a ser como era antes. Em Mazar-e-Sharif (no norte do Afeganistão),

depois que a Aliança do Norte tomou a cidade, uma série de atrocidades foi cometida contra homens e

mulheres, exatamente como acontecia entre 1992 e 1996, quando a oposição controlava a cidade, até ser

expulsa pelo Taleban. Não há a menor garantia de que as mulheres voltarão à escola ou terão outros direitos

respeitados. A Aliança do Norte é formada por criminosos e assassinos e o que vemos neste momento é

ilusão. (GloboNews.com, 22/11/2001)

Christine Delphy (2001) levanta um outro aspecto importante, o de que o pretenso salvamento das

mulheres do Afeganistão seria o motivo moral que faltava para os Estados Unidos justificarem seus ataques.

A liberdade das mulheres afegãs seria o quarto motivo propagado pelos americanos depois de declararem

guerra contra “ninguém em particular e contra o mundo em geral” (DELPHY,2001)e de assumirem como

missão capturar Bin laden e derrubar o regime Taleban. Derrubado o regime Taleban os americanos passaram

então a se auto proclamarem salvadores das afegãs.

11

Tradicional vestimenta afegã que cobre as mulheres da cabeça aos pés.

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Há seis anos atrás, os americanos não consideraram motivo de intervenção o caso das mulheres do

Afeganistão mesmo sabendo que o Taleban estava no poder, pondo em prática sua versão fundamentalista12

do Islã que tolhia a liberdade delas. A explicação dada pelo governo americano para a invasão do

Afeganistão, baseia-se na idéia de que o Regime Taleban abrigava Osama Bin Laden e que fornecia espaço

para a organização “terrorista” Al-Qaeda da qual Osama Bin Laden seria o líder.

O jornal Folha de São Paulo, no dia 23 de maio de 2001, publicou uma reportagem sobre o governo

Taleban que estava impondo o uso de sinais distintivos para as minorias religiosas. O governo americano

imediatamente condenou o Regime Taleban dizendo que aquele era o último ato de repressão de uma longa

lista. Ao mesmo tempo na reportagem encontra-se a informação de que a ONU estava preocupada com o fato

do governo afegão apoiar terroristas estrangeiros como Osama Bin Laden, na época conhecido por ser o

principal suspeito dos ataques nas embaixadas do Quênia e da Tanzânia em 1998. Ou seja, Bin Laden e, o

regime Taleban por abrigá-lo, só se tornaram uma ameaça, a partir do momento em que foram acusados de

terem participação nos atentados de 11 de setembro.

Quanto aos direitos das mulheres, os Estados Unidos deram e dão provas concretas de que esse tema

não é sua preocupação principal. Pelo contrário ao fornecer armas e pessoal para os guerreiros mujahedins13

os americanos acabaram por financiar um futuro grupo de estudantes que mais tarde, com ajuda financeira e

militar do Paquistão, tornar-se-iam a “elite” do regime Taleban. Esse grupo lutou contra o regime soviético e

o depôs acabando com o sistema político que ao menos deu mais possibilidades das mulheres afegãs terem

seus direitos respeitados: “pois estes direitos foram promovidos e defendidos no Afeganistão entre 1978 e

1992: mas pelos governos marxistas ou pró-soviéticos. Desta época, de Amim, Karmak, Taraki e Najibullah,

vêm estatísticas surpreendentes sobre o grande número de mulheres advogadas, médicas, professoras”.

(DELPHY,2001)

Através desse discurso de salvamento das mulheres fica claro o ressurgimento da missão

colonizadora ocidental que, opõe discursivamente ideais civilizatórios e regimes “bárbaros” com a intenção

12

Fundamentalismo é o nome dado a um movimento cristão surgido nos Estados Unidos, que pareceu nas

primeiras décadas do século passado. O termo em inglês fundamentalism foi usada para diferenciar os

protestantes liberais dos que buscavam viver os verdadeiros fundamentos da fé. Hoje esse termo é utilizado

geralmente para se referir àqueles que acreditam num texto sagrado revelado (Bíblia, Alcorão) e que essas

escrituras não contém erros humanos. Por não conter equívocos, a interpretação dos escritos deve ser feita e

aplicada de forma literal e só assim seria válida.

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de justificar intervenções militares que tem por conseqüência assassinatos e fome e por objetivo final a

colonização de lugares rentáveis para as potências. (DELPHY, 2001)

Parece ter se tornado imprescindível mais uma vez o paradoxo do missionário lembrado por Delphy

(2001): “salvaremos suas almas mesmo que para isto seja preciso matá-los”. Pode-se utilizar esse paradoxo da

seguinte maneira: Salvaremos vocês da burqa e do taleban, mesmo que para isso seja preciso matá-las

assassinadas ou de fome.

As mulheres praticantes da religião islâmica possuem diversas práticas culturais com diferentes

maneiras de ver o mundo e apreendê-lo. Sua produção a esse respeito é vasta, porém pouco divulgada no

Brasil. O capítulo a seguir trata das experiências de algumas mulheres que vivem ou viveram no Oriente

médio bem como de estudiosas do assunto.

13

Os guerreiros “santos” mujahedins eram soldados que lutavam contra os soviéticos que estavam no país

desde 1979 que foram financiados pelos Estados Unidos e Paquistão.

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CAPÍTULO 3

LIVROS DE HISTÓRIA, HISTÓRIA NOS LIVROS.

Nesses textos, a realidade mistura-se com a ficção, mas sabemos que a essência dos acontecimentos e

os conflitos narrados de uma forma ou de outra são verdadeiros, pois foram criados baseados em alguma

experiência vivida. Azar Nafisi a respeito disso nos lembra que:

“Os fatos desta história são verdadeiros, até onde qualquer memória é confiável, mas esforcei-me ao máximo

para proteger amigos e alunos, batizando-os com outros nomes, disfarçando-os talvez até mesmo deles

próprios, mudando e alternando as facetas de suas vidas para que seus segredos permaneçam seguros”.

Através das leituras dos livros escritos por muçulmanas percebe-se alguns pontos em comum como

por exemplo, a clara intenção de desvincular a opressão feminina da idéia original do Islã. Para Azar Nafisi o

problema não é a religião, mas sim “quando esta se transforma em Estado, quando vira lei” (veja sete de julho

de 2004). Nawal El Saadawi (1982) lembra que práticas sexistas acontecem em todas as religiões e, cita para

exemplificar isso, a responsabilidade do Judaísmo e do Cristianismo na criação e reprodução de castigos

como apedrejamentos impostos às mulheres adúlteras que só depois foram seguidos pelo Islamismo. O

Alcorão prevê castigos para homens e mulheres no caso do adultério, mas a condição favorecida dos homens

faz com que eles não precisem recorrer a essa prática. Amina Lawal foi uma mulher nigeriana que esteve

perto de ser apedrejada por adultério. Sua história e a maneira etnocêntrica de algumas mulheres tentarem lhe

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ajudar serve de exemplo para se problematizar a relação das feministas Ocidentais e sua relação com as

questões das mulheres de outras culturas.

3.1 O CASO AMINA LAWAL.

Alison M. Jaaggar, em seu texto “Saving Amina”, aborda o caso de Amina Lawal que ficou

conhecida na imprensa internacional ao ser condenada em 22 de março de 2002 por adultério pelo tribunal de

apelação Islâmico do estado de Katsina na Nigéria. Esse tribunal baseou suas decisões na Shari´a14

para

condenar Amina que havia tido uma filha depois de se divorciar o que foi caracterizado pelo tribunal como

adultério por essa criança ter sido concebida sem Lawal ter se casado de novo. Nesse caso sua pena seria o

enterramento e o apedrejamento em praça pública até a morte.

Um abaixo assinado foi feito a favor de Amina Lawal contra a aplicação da pena. Essa petição correu

o mundo também por e-mail, que ficou conhecido como “The save Amina petition”.Foi quando outro e-mail

começou a ser enviado para as pessoas com o título de “Please stop the international Amina Lawal protest

letter campaign” enviado por duas mulheres, Ayesha Iman e Sindi Medar Gould, representantes de

organizações de direitos humanos da Nigéria que davam assistência a Amina Lawal em seu processo. No dia

25 de setembro de 2003, segundo a Amnistia Internacional15

, Amina Lawal teve sua sentença anulada pelo

tribunal de recurso da Katsina porque, segundo seu advogado de defesa nem sua condenação nem sua

confissão eram válidas legalmente.

14

O tribunal Shari´a de recursos se baseia no código de conduta muçulmano, nas leis, que teve origem no

Alcorão para determinar as penas e procedimentos que as pessoas devem seguir. Na Nigéria 12 dos 18 estados

aplicam a Shari´a.

15 A Amnistia Internacional nasceu em 28 de Maio de 1961. A sua criação teve origem numa notícia

publicada no jornal inglês "The Observer" em que era referida a prisão de dois estudantes portugueses por

terem gritado «Viva a Liberdade!» na via pública. O advogado britânico Peter Benenson lançou então um

apelo no sentido de se organizar uma ajuda prática às pessoas presas devido às suas convicções políticas ou

religiosas, ou em virtude de preconceitos raciais ou linguísticos. Um mês após a publicação do apelo,

Benenson já havia recebido mais de mil ofertas de ajuda para coligir informações sobre casos, divulgá-las e

entrar em contacto com governos. Dez meses passados, representantes de cinco países estabeleciam as bases

de um movimento internacional. (Amnistia Internacional. “Sobre a Amnistia Internacional, Site Amnistia

Internacional.Disponível em:<http:http://www.amnistia-internacional.pt/sobre_ai/sobreai.php> Acesso em:

07 de nov. 2004.

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3.2 PETIÇÕES SEM FRONTEIRAS.

As petições para chamar a atenção para as condições de vida das mulheres de países não Ocidentais têm sido

utilizadas por feministas do mundo todo. Esses abaixo-assinados pela falta de conhecimento ou pelos

conhecimentos equivocados, geralmente são carregados de dados incorretos e de linguagem sensacionalista.

No caso de Amina Lawal, por exemplo, as representantes das organizações de direitos humanos disseram que

seria muito difícil ela ser condenada se recorresse de sua sentença em outra instância superior à de Katsina. A

petição para salvar Amina Lawal foi escrita e divulgada baseada na idéia de que o Ocidente deve intervir nas

culturas não Ocidentais, tal pensamento faz parte do debate feminista contemporâneo e da necessidade de

construção de um diálogo intercultural.

3.3 DEBATES FEMINISTAS.

No que se trata da questão dos direitos das mulheres de outras culturas há dois debates atualmente

dentro do feminismo. Um diz respeito à defesa de um feminismo global que acredita que as mulheres são um

grupo distinto que vive subjugado por um patriarcado universal. O outro põe em evidência o colonialismo, o

pós-colonialismo e sua influência sobre a construção e manutenção da diversidade da opressão sofrida por

mulheres do mundo todo. (JAGGAR, 2004)

O feminismo pós-colonial define a idéia do feminismo global de censurar as práticas culturais não

ocidentais de “feminismo orientalista” já que sensacionaliza e exotiza as práticas não-ocidentais focando-as

nos seus aspectos sexuais. Já o feminismo chamado de radical acusa as feministas pós-coloniais de evitarem

condenar injustiças contra mulheres em países de terceiro mundo, além disso, outra conseqüência seria a

recusa de reconhecer algumas injustiças que são essencialmente praticadas no âmbito do gênero.

(JAGGAR,2004)

Três teses são identificadas por Jaggar em estudos que tem por característica reforçar a superioridade

do Ocidente: A injustiça pela cultural local, a autonomia da cultura, no qual reconhece-se que algumas

práticas injustas são semelhantes a práticas Ocidentais, mas são independentes já que ocorrem em outros

lugares, e a idéia de que as culturas não-ocidentais são mais injustas para as mulheres, a chamada tese “West

is best for women”. (JAGGAR,2004) A pobreza no entanto não é levada em conta em nenhuma dessas teses o

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que torna incompleta a análise de países pobres ou não Ocidentais. É preciso fazer uma contextualização

geopolítica e econômica dos lugares analisados para trazer a luz às condições que explicam melhor a

permanência de sistemas patriarcais nesses lugares pois a injustiça contra mulheres não é só fruto da cultura

local, mas também do processo de globalização econômica que as marginaliza deixando-as mais pobres.

(JAGGAR,2004)

Em tempos de globalização, as mulheres correspondem a 70 % da pobreza e 64% das pessoas

analfabetas do mundo, sua educação tornou-se mais precária e os empregos escassos, pois, as indústrias locais

já não conseguem competir com os grandes conglomerados fazendo com que muitas mulheres trabalhem de

forma desumana ou vejam como única solução se casarem para fugir da pobreza.

No encontro das culturas Ocidentais e Orientais as trocas mesmo sendo desiguais, contribuíram com

elementos decisivos para os dois lados como uma: “interação ou troca que se constrói seja apesar das relações

de dominação que existe, seja precisamente através delas, nas formas de resistência que geram como aponta

Miriam Adelman. Mesmo algumas práticas Orientais consideradas “extremas” tiveram origens por influência

do período imperial como é o caso do “dowry murder”16

na Índia. Além disso muitas dessas tradições, são

hoje mantidas, numa tentativa de se resistir ao imperialismo Ocidental. É o caso do Kenya, por exemplo, que

manteve a mutilação do clitóris como modo de rivalizar com os missionários e com a Inglaterra colonizadora

(JAGGAR,2004). Outra fonte de equívocos e motivos para perpetuar práticas machistas, são as palavras de

Muhamad.

3.4 MANIPULAÇÃO DAS PALAVRAS DO PROFETA.

16

O Dowry Murder (dahej ou dahaj como é conhecido no Punjab, norte da Índia) é a possibilidade do esposo

ou da família dele de matar e torturar a esposa se ela e sua família não conseguir pagar o dote desejado. Essa

prática é fruto da colonização inglesa na Índia que acabou com a possibilidade das mulheres de participaram

economicamente da sociedade modificando leis e impondo tabus sexuais, fazendo com que elas encontrem

solução apenas no casamento.

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A apropriação indevida que se fez e se faz das leis do Alcorão e dos ditos do profeta em favor dos

mais ricos e principalmente dos homens é o motivo de opressão mais levantado pelas muçulmanas (AHMED,

1992). Esse fenômeno pode ser melhor exemplificado pela manipulação dos chamados Hadiths17

.

Ao se estudar a criação das regras do Islã não se pode apagar a invenção infundada de pensamentos de

Muhamad. Al-Buckari, um historiador, que viveu 200 anos depois de Muhamad, descobriu que 7 275 Hadiths

eram genuínos contra 600.000 inventados. Fátima Mernissi, estudou a origem dos Hadiths que, teoricamente

justificariam a opressão das mulheres. Como método, ela utilizou a investigação do contexto em que esses

Hadiths apareceram. Um dos Hadiths estudados por ela é o que compara mulheres a cachorros quando se trata

de atrapalhar a oração dos homens. Segundo Fátima o autor desse Hadiths, é Abu-Hurayra um forte opositor

de Aisha18

, a esposa do profeta. Essa oposição teria surgido porque Aisha sempre o repreendia por inventar

Hadiths. A própria mulher de Muhamad o enfrentou dizendo que o profeta rezava na frente de suas esposas o

que contradizia Abu-Hurayra em sua idéia de que as mulheres atrapalhavam as orações. Tal Hadith lembra

Mernissi, foi lembrado por esse homem mais de 20 anos depois justamente num momento em que Aisha

havia saído derrotada em uma batalha19

pela sucessão de Maomé. Tendo perdido a batalha Aisha teve muito

de seus comentários e correções de Hadiths reprimidas pelos vencedores inclusive seu comentário de que

Muhamad rezava na presença de suas mulheres.

Além da manipulação das palavras de Muhamad, encontramos a cooptação do discurso feminista que

foi e é utilizado para justificar práticas colonialistas.

3.5 O discurso colonial é feminista?

A finalidade política do discurso colonial é generalizar e espetacularizar as culturas. Leila Ahmed (1992),

assim como Delphy, acredita que o discurso Ocidental sobre a inferioridade da mulher no Islã, serviu e serve

17 Os Hadiths (ditados) são as ações e ensinamentos de Muhamad que foram escritas pelos seus

seguidores. A prática de se escrever os Hadiths se deu a partir do momento que Maomé morreu e as pessoas

resolveram construir um guia para os fiéis visando, principalmente a resolução dos conflitos surgidos da

sucessão do profeta.

18

Aisha tinha nove anos quando se casou com Muhamad que morreu quando ela tinha dezoito anos. Depois

disso, ela foi intensamente consultada sobre a religião e política pelo fato de sempre ter sido muito amada

pelo profeta que também confiava em sua capacidade intelectual. Perguntado por um fiel qual era a pessoa

que ele mais amava ele respondeu: “Aisha”, perguntado qual homem ele mais amava, o profeta respondeu: “o

pai de Aisha”.

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como justificativa colonial. A utilização política desta retórica para Leila Ahmed nada mais é do que uma

justificativa moral para explicar o projeto de erradicação da cultura de povos colonizados pelo Ocidente.

(AHMED,1992)

A intenção imperialista dos países ocidentais pode ser observada através do desejo de inferiorizar a

outra cultura para justificar sua exploração que teria por discurso final, trazer a civilização para esses povos

bárbaros. (AHMED,1992). Esses ideais são facilmente desmontados, pois, como diz a autora, é só

observarmos a maneira com que o movimento e as questões feministas foram tratados pelos países

colonizadores como França, Inglaterra e principalmente Estados Unidos que, hoje na figura de George W.

Bush dá fortes demonstrações de querer acabar com conquistas importantes do movimento feminista

americano como o direito ao aborto, por exemplo.

Ao mesmo tempo em que exigiam maior liberdade para as muçulmanas dos países colonizados, o

Ocidente combatia com muito vigor o feminismo em seus próprios países. Esse é o caso de Lord Cromer que

era um reconhecido opositor do feminismo em seu país, a Inglaterra, contraditoriamente e que foi um dos

muitos homens Ocidentais que “lutaram” contra a opressão do Islã sobre a mulher (AHMED,1992).

Para as feministas que defendem a Ocidentalização da cultura muçulmana, Leila Ahmed (1992)

lembra que as mulheres Ocidentais lutaram contra os costumes da época vitoriana20

sem começar a reivindicar

o uso de costumes de outras culturas para se libertar. “Então porque algumas feministas insistem que as

muçulmanas devem adotar a cultura ocidental para serem respeitadas? (AHMED, 1992, p. 245)”.

A idéia que está atrás dos discursos é a mesma onde a Europa, ou mesmo os Estados Unidos desde a segunda

guerra até hoje procuram reforçar a concepção Orientalista de que são superiores e de que é preciso levar

modernização a culturas diferentes da deles. efeitos Essa maneira de pensar acaba internalizada até mesmo

por alguns líderes muçulmanos que acabam por diminuir sua própria cultura. Esse foi o caso, citado por

19

Aisha ao suspeitar de um golpe na sucessão do profeta, pegou em armas e foi a luta. Saiu derrotada,

perdendo 13.000 soldados e ainda tendo muito de suas colaborações ao Islã modificadas por seus inimigos. 20

“Período que compreende a segunda metade do século XIX e primeira década do século XX, em que os

movimentos sociais populares cederam lugar a um sistema social equilibrado grandemente devido à

estabilidade do Império Britânico, governado pela rainha Vitória (1819-1901). Apesar do materialismo

herdado, a época foi marcada pelo retorno de valores éticos como respeitabilidade, polidez e circunspecção,

considerados as mais elevadas virtudes sociais. O espírito vitoriano marcou a literatura com refinamento e

vigor, como nas obras de Charles Dickens, Emile Brontë, George Eliot e Thomas Hardy. No entanto,

muitos críticos sociais tem uma visão amarga desse período, que consideram uma época de preconceitos,

excessiva repressão moral e hipocrisia.” Cobra, Rubem Queiroz - NOTAS: Vultos e episódios da Época

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Ahmed (1992), do presidente da Turquia Atartuk que entre outras coisas criticou o fato de que via em alguns

lugares mulheres que abaixavam a cabeça quando viam homens passarem. O presidente ainda questionou o

que seria esse comportamento e acabou por classificá-lo como uma “postura bárbara” dizendo que esse

costume precisava acabar de uma vez por todas (AHMED,1992).

O Orientalismo de alguns intelectuais é criticado por Ahmed, pois segundo ela, enxergam como

única solução, a Ocidentalização de alguns costumes islâmicos. Esse comportamento é descrito pela escritora

como apreendido dos discursos sobre a superioridade do Ocidente que tem por conseqüência a idéia de que a

luta pela questão da mulher passa problematicamente então a ser uma luta contra a cultura não ocidental

(AHMED,1992). Algumas escritoras muçulmanas para lutar contra essa internalização da inferioridade,

preocuparam-se em escrever livros para registrar a luta e a resistência, muitas vezes velada, das mulheres de

seus países.

3.6 A experiência da egípcia, da princesa, da inglesa e da iraniana.

No livro Princesa de Jean P. Sasson, a personagem narradora é uma princesa da casa real que

descreve passagens da vida das mulheres da classe alta Saudita. Dando destaque a vida de algumas pessoas

como sua irmã, seu irmão, suas amigas e seus pais, Sultana, a princesa, narra episódios relacionados aos

costumes que considera opressores de seu país. Muitos costumes Islâmicos são descritos com detalhes e

críticas como a primeira vez que a princesa foi comprar seu véu21

, logo após ter menstruado:

“Foi uma mudança brusca. Ao entrar no mercado eu era uma moça cheia de vida, mostrando ao mundo

minhas emoções expressas no rosto. Saí de lá coberta da cabeça aos pés, um vulto negro sem rosto”

(SASSON,1992,p. 81).

Contemporânea. Site www.cobra.pages.nom.br, INTERNET, Brasília, 2003

("www.geocities.com/cobra_pages" é "Mirror Site" de www.cobra.pages.nom.br).

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Quanto a essa questão, a escritora iraniana do livro “Lendo Lolita em Teerã”, Azar Nafisi em

entrevista a revista Veja defende que a luta mais importante para as mulheres muçulmanas não é o fim do véu,

mas sim a batalha pelo direito de poder escolher usá-lo e interpretar a religião “como bem entender”. (VEJA,7

de julho de 2004). Esse direito de escolha, é algo sempre defendido pelas escritoras lidas que em suas obras

buscam descrever, momentos de transgressões das mulheres que lutaram para poder escolher seja seu marido,

a faculdade ou seu destino contradizendo assim, a idéia de que elas seriam incapazes e indefesas. Azar Nafisi

conta em seu livro sua experiência de ensinar livros de autores proibidos como Nabokov, Jane Austen e

outros, além de manter um encontro semanal com algumas de suas alunas onde se discutia qualquer assunto,

mesmo sendo proibido, desde suas vidas pessoais até a política opressora do regime na república islâmica do

Irã.

“A submissão total e irrestrita nunca fez parte da cultura das mulheres do Irã. Tanto que houve muita

resistência por parte delas. As ruas de Teerã se tornaram zonas de guerra. Mulheres enfrentaram guardas

armados para poder se expressar” (Veja sete de julho 04).

Esses enfrentamentos, em parte se deram devido à relativa liberdade que, segundo Azar Nafisi, as

iranianas gozavam antes da revolução:

"Meus anos de juventude testemunharam a chegada de duas mulheres ao ministério. Depois da revolução,

essas mesmas duas mulheres foram sentenciadas à morte, pelos pecados de antagonizar Deus e disseminar a

prostituição. Uma delas, a ministra para os assuntos das mulheres, estava no exterior na época da revolução, e

permaneceu no exílio, onde se tornou uma importante porta-voz dos direitos das mulheres e dos direitos

humanos”.Pg. 375 (Azar Nafisi)

Nawal Saadawi através de seu livro tenta resgatar a memória de algumas mulheres importantes na

luta pelos direitos femininos em diversos aspectos.Uma delas é May Ziada, uma egípcia, que estabeleceu um

centro literário no Cairo nos anos de 1915 e 1916 onde realizava debates que a alta intelectualidade

freqüentava. Outra mulher citada por Saadawi é Hoda Shaarawi que, em 1923 fundou a federação das

mulheres do Egito a qual entre outras coisas conseguiu elevar para 16 anos o limite de idade para a moça se

21

O véu ainda é uma das questões mais lembradas e discutidas quando o assunto são as muçulmanas,

recentemente o governo Francês provocou protestos ao aprovar uma lei que proíbe o uso de símbolos

religiosos nas escolas públicas o que provocou a expulsão de meninas que se recusaram a tirar o véu pra

permanecer na sala de aula. (MELLO, Kátia. “Deus fora da classe: parlamento aprova lei que proíbe uso

de véu, quipá, crucifixo e outros símbolos religiosos nas escolas públicas francesas .” Site: Istoé Online.

Disponível em: < http://www.terra.com.br/istoe/1793/internacional/1793_deus_fora_da_classe.htm>

Acesso em: 23 de nov. 2004.

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casar. Apesar dessa vitória só em 1956 sob o regime de Nasser22

as egípcias puderam votar. Todos os lugares

possuem suas heroínas, no Sudão, as mulheres constituíram uma federação poderosa tendo tido Fatima

Ibrahin como presidente e como primeira parlamentar mulher em 1965 e na Palestinas asmulheres hoje

continuam sua luta e muitas como Leila Khalid, Fátima Bernaw, Amina Dahbour, Sadis Abou Ghazala.,

oferecem suas vidas pela criação de um estado autônomo palestino.

Mesmo a Princesa é uma mulher que discute tudo o tempo todo e, em seu livro aparecem algumas

personagens que também transgridem as regras como, por exemplo, sua irmã que precisou ser drogada para

aceitar o casamento com um homem bem mais velho, logo depois tenta suicídio e com isso consegue anular a

união. Segundo Sultana, a família ainda tem o maior direito sobre a vida e a morte das mulheres sendo que o

estado deixa, às vezes, para os homens da família a execução de um castigo.

A respeito disso, um fato é narrado pela princesa. Nádia e Wafa, jovens amigas dela, cometeram um

crime. Seduziram, sem fazer sexo, um estrangeiro e foram pegas pela Comissão da Moralidade Pública que

percorria as ruas de Riad para flagrar pessoas em atos proibidos pelo Alcorão. A pena ficou a cargo dos pais:

“Ficamos estupefatas quando ele nos contou que Nadia seria afogada na piscina de sua casa, pelo seu pai, na

sexta feira, as dez da manhã”.(SASSON,1992,p. 87).

Comissões de Moralidade não são novidades em países Islâmicos com sistemas patriarcais. Essa

“polícia da moral” também foi a solução encontrada pelo governo iraniano para fiscalizar o controle do

comportamento das mulheres. Nafisi (2004), ressalta também a participação das organizações revolucionárias

que surgiram no Irã antes e durante a revolução de 197923

na aplicação das leis impostas às mulheres. Nawal

22

Gamal Abdel Nasser em 1956, foi eleito oficialmente presidente da República. No começo, Nasser seguiu

uma política de solidariedade com outras nações africanas e asiáticas do Terceiro Mundo e se converteu

no grande defensor da unidade árabe. A negativa dos países ocidentais de proporcionar-lhe armas (que

provavelmente utilizaria contra Israel) provocou uma reviravolta na política externa de Nasser, que o

aproximou dos bloco dos países do Leste. No que diz respeito à política interna, Nasser suprimiu a

oposição política, estabeleceu um regime de partido único e socializou a economia. Essa nova ordem foi

chamada de socialismo árabe. Em 1967, continuou a luta contra Israel, que desembocou na guerra dos

Seis Dias, ao final da qual Israel assumiu o controle de toda a península do Sinai. O canal de Suez

permaneceu fechado durante a guerra e posteriormente foi bloqueado. Nasser recorreu à União Soviética.

Nasser morreu em 1971 e foi sucedido pelo seu vice-presidente, Anwar al-Sadat.(SAKALL, Sérgio.

“Egito.” Site: Matéria Egito. Disponível em: <

http://www.sergiosakall.com.br/africano/materia_egito.html> Acesso em: 20 de nov. 2004.)

23

Depois da derrubada do xá Reza Pahlevi, monarca acusado de ter Ocidentalizado o Irã, o Aiatolá Ruhollah

Khomeini proclama a república Islâmica do Irã e, com o apoio de grupos revolucionários implanta uma série

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El Saadawi, ao comentar a utilização indevida da religião, como é o caso da muttawa24

da Arábia Saudita ou

das milícias existentes no Irã chamados sangue de Deus, lembra que esse mau uso da doutrina é a melhor

forma de se conter as revoltas contra o regime patriarcal (SAADAWI,1982). O fundamentalismo, nesse caso,

aplicado às mulheres, nada mais seria do que a tentativa de através do controle de seus corpos manterem-se os

valores e a identidade da comunidade. A possibilidade de surgir práticas fundamentalistas em países pobres

não pode ser desvinculada da exploração praticada por potências Ocidentais que, ao explorar economicamente

os países prejudicam principalmente as mulheres. Isso acontece em países miseráveis porque as pessoas, em

maior número as mulheres, não têm acesso à educação ficando mais difícil discutir ou ter entendimento para

desnaturalizar tradições baseadas em preconceitos.

Mulheres como Fátima Mernissi e Leila Ahmed se esforçaram para demonstrar que o Islã em sua

origem não era favorecedor dos homens, mas países como a Arábia Saudita, por exemplo, ainda invocam o

Alcorão para justificar humilhações e até a morte: “Você é minha filha. Sua mãe foi uma boa mulher. Mesmo

assim se você tivesse participado dessas atividades com Nadia e Wafa eu seguiria os mandamentos do

Alcorão e a mandaria para o túmulo”.(SASSON,J.P.,1992,p. 87)

Os castigos destinados às mulheres são denunciados pelas escritoras como sendo

desproporcionalmente piores dos que sofrem os homens se cometerem os mesmos crimes.

“Aquelas de vossas mulheres que forem suspeitas de adultério, chamai quatro testemunhas dos vossos contra

elas.Se as testemunhas testemunharem, confinai-as então em vossas casas até que a morte as leve ou até que

Deus lhes indique um caminho. (Alcorão, Sura IV,15)

Quando dois dentre vós cometerem um adultério, castigai-os. Mas se se arrependerem e se emendarem,

deixai-os em paz. Deus é perdoador e clemente.”(Alcorão, IV, 16)”.

A raiz do problema estaria na apropriação masculina das leis do Alcorão, e na desigualdade entre

homens e mulheres que é fruto da péssima educação que as meninas recebem, aprendendo apenas a serem

submissas escravas e sedutoras:

“A educação de uma garotinha na sociedade árabe constitui-se de uma série de recomendações sobre os

assuntos considerados prejudiciais, proibidos, vergonhosos ou pecaminosos pela religião... A sua educação

transforma-se num lento processo de auto-anulação, na supressão gradativa de suas vontades e personalidade,

deixando intacta apenas a aparência externa, o corpo, um monte de músculos, ossos e sangue sem vida,

movimentando-se como uma boneca a que se dá corda”.(SAADAWI, El Nawal,1982,p.26)

Por outro lado, a postura dos Islamistas também é criticada, pois baseia a questão de gênero nas

palavras e atos de Muhamad, o que é problemático, já que são ambíguas e perigosas por terem pertencido à

de medidas que visam uma volta “fundamentalista” ao Islã já que proclama leis baseadas no que acredita

serem os fundamentos do Islã, dentre essas medidas está a obrigatoriedade do uso do véu para as mulheres. 24

A muttawa é a polícia religiosa Islâmica.

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outra época histórica. O discurso essencial do Islã formou-se principalmente da aproximação dos fiéis com

sociedades diferentes que conquistaram com o tempo onde procuravam manter suas tradições se isso lhes

agradasse. O Irã e o Iraque foram uma desses lugares que tiveram suas tradições respeitadas e incorporadas

pelo Islã. Entre elas podemos citar: o uso do véu, a formação de haréns e as formas de repressão das

mulheres.Essas sociedades tiveram papel predominante na formação da noção de gênero adotada pelos

muçulmanos. Leila Ahmed demonstrou em seu livro que a misoginia25

e o androcentrismo26

presentes nessa

sociedade tiveram papéis importantes na formação institucional legal e discursiva do Islã. Foi no período

Abássida27

, quando o império Islâmico teve por sede o Iraque, que se instituiu uma hierarquia sexual onde as

questões levantadas por Muhamad como respeito aos seres humanos e justiça para homens e mulheres foram

desvinculadas da criação das leis e instituições que estavam surgindo naquele momento

(AHMED,Leila,1992,p.238). Isso só foi possível devido à classe dominante e a cultura da época ter

legitimado um discurso Islâmico que desfavorecia as mulheres através da exclusão sistemática de discursos

divergentes considerados heréticos. (AHMED,1992). Fruto da exclusão de outros discursos, o

fundamentalismo Islâmico afegão foi no ano de 2001 o mais comentado na mídia, fato que será melhor

abordado no capítulo seguinte.

25

Termo que define a aversão ou desprezo dos homens pelas mulheres. 26

O androcentrismo coloca o sexo masculino como determinante da organização social, como referência

primeira da cultura, como imperativo biológico dominante 27

A fundação do califado Abássida, marcou o fim da primeira fase da expansão muçulmana onde houve um

período de unidade e consolidação interna do qual surgiu a grande civilização Islâmica.

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CAPÍTULO 4

O Afeganistão e o Taleban.

4.1 HISTÓRIA.

Surgido de uma separação do Irã há 250 anos e situado no coração da Ásia Central, o Afeganistão é

dividido em diversas tribos: Pashtoon, Tajik, Hazareh e Uzbek, com respectivamente 40,25,20 e 6% da

população que vivem em suas tribos governados por líderes. Os líderes de todas as tribos fazem parte da

“Loya Jirga” uma espécie de assembléia de todos os líderes tribais. Um afegão, segundo MAKHMALBAF28

(2001) considera-se antes membro de uma tribo para depois considerar-se cidadão de seu país. A tribo

Pashtoon foi a que teve mais líderes na “Loya Jirga” e, até a invasão americana, o Taleban , composto por

pessoas da tribo Pashtoon, governavam 95 % do território.

Amanullah Khan governou o Afeganistão de 1919 até 1928 e, depois de fazer uma viagem ao Ocidente,

tentou implantar medidas “Ocidentalizantes” no país como, proibir a poligamia e o uso do véu. O que se

seguiu foi um conflito entre o governo e as tribos que não queriam aderir aos novos costumes passando desde

então a barrar qualquer tipo de mudança no país.

4.2 TERRITÓRIO PAQUISTANÊS?

Antes do Paquistão ficar independente da Índia (em 1947), havia uma disputa de território com o

Afeganistão, já que a tribo Pashtoon habitava os dois lados. Foi então que os ingleses traçaram a linha

Durand29

para dividir os territórios. Em 1995,segundo o tratado inglês, esse território deveria ser devolvido ao

Afeganistão. Foi nesse período que surgiu o Taleban que nada mais é do que vários afegãos pashtoons

28

Mohsen Makhmalbaf, iraniano, é o diretor do filme Caminho para Kandahar. 29

Linha criada em 1893 pelo Reino Unido que dividiu os Pashtoons nos territórios do Afeganistão e da Índia

(desde 15 de agosto de 1947 território Paquistanês), que antes era colônia inglesa. Depois de 100 anos o

território paquistanês voltaria para o Afeganistão.

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famintos que foram atraídos ao Paquistão para estudar nas escolas de teologia (as madrassas) e serem

treinados militarmente. O principal interesse do Paquistão de manter essas escolas era educar os alunos

afegãos para nunca reivindicarem seu pedaço paquistanês.

O Paquistão durante a guerra fria, desempenhou o papel de aliado Ocidental no Oriente tendo

ajudado os Estados Unidos a recrutarem entre as tribos afegãs, e outros países, mercenários para lutarem

contra a União Soviética. Terminada a guerra contra a URSS, o Afeganistão mergulhou numa crise política e

social profunda. Foi nesse contexto que os paquistaneses mandaram de volta ao Afeganistão, o Taleban com o

lema “desarmamento público e paz”, que foi rapidamente acolhido entre a população. Al[em do tema do

desarmamento, outro ponto levantado como positivo pela população afegã, foi a segurança que o Taleban

trouxe já que com o desarmamento e as penas, como corte de mãos para ladrões, os crimes diminuíram.

“Essas punições são tão duras, intoleráveis e rápidas que se 20.000 afegãos em Herat vissem um pedaço de

pão diante deles, ninguém ousaria pegá-lo” (MAKHMALBAF,2001,p.87)

4.3 AFEGANISTÃO HOJE.

Até 1992, o Afeganistão possuía uma população de 20 milhões de habitantes onde de 20 anos para

cá, morreram 2, 5 milhões de afegãos. “125.000 afegãos morreram por ano, Desde 1979?30

o que resulta em

340 pessoas por dia ou 14 pessoas por hora, sendo uma a cada cinco minutos” (MAKHMALBAF,2001,p.49).

As causas dessas mortes foram conflitos, fome ou falta de cuidados médicos além dos problemas decorrentes

dos acampamentos de refugiados precários. O número de refugiados no Irã e Paquistão chega a 6,3 milhões o

que significa que nos últimos 20 anos uma pessoa se tornou refugiada a cada minuto. “A expectativa de vida

de um afegão foi calculada em 41, 5 anos e a taxa de mortalidade para crianças abaixo de 2 anos entre 180 e

200 mortes em cada 1000 nascimentos.” (MAKHMALBAF,2001)

30

Preocupada em minimizar os efeitos da Revolução Islâmica sobre as populações de suas repúblicas centro-

asiáticas (Turcomenistão, Azerbajão, Tadjiquistão, Usbequistão, Quirguistão e Casaquistão) e conquistar uma

via de acesso a mares quentes (no caso a proximidade com o Oceano Índico), a URSS invade o Afeganistão

em 1979 para manter o governo socialista lá instalado desde 1973. No decorrer da invasão, os soviéticos se

defrontam com guerreiros mujahedeen que recebiam dinheiro (mais de 6 bilhões) e armas dos Estados Unidos

através da CIA. No dia 8 de fevereiro de 1988 sob o governo Gorbatchev, a URSS anuncia que vai retirar suas

tropas do Afeganistão deixando o país abandonado numa guerra civil.

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No que diz respeito às mulheres, até hoje, as pessoas mais adiantadas no Afeganistão acreditam que

ainda não é hora das mulheres votarem e consideram correto que 10 milhões de mulheres sejam educadas e as

vezes forçadas a utilizar a burqa. Nelofer Pazira atriz do filme, “Caminho para Kandahar31

, em entrevista,

expôs um outro fator para o uso da burqa que seria o da insegurança. Para ela, as mulheres aderem a burqa

pelo fato de estarem de alguma forma protegidas, pois já faz algum tempo que a situação no país só tende a

piorar o que faz com que os direitos básicos das mulheres sejam cada vez mais desrespeitados. Como

exemplo, Pazira cita o fato de já em 1980, antes do Taleban, 90 % das mulheres estarem sem instrução e com

a chegada do Taleban foram paralisados os últimos 10 % que restava.

Outro agravante no Afeganistão, é que além de ainda não possuir produtos que interessem ao mundo,

o país é um dos maiores produtores de ópio dividindo com outros países, dentre eles o Paquistão, o número de

90% de cultivo de ópio ilegal e 80% o de heroína arrecadando meio bilhão de dólares. A economia do país é

praticamente baseada na droga e completamente dependente do tráfico para gerar dinheiro.

Além de todas esses problemas, o Afeganistão é o país das minas. Devido a guerra civil, uma tribo pôs minas

contra a outra e ninguém mais consegue dizer onde elas se encontram.

O país foi esquecido pelo mundo até o Regime Taleban, no poder desde setembro de 1996 anunciar

que derrubaria duas estátuas milenares de Buda que estavam na cidade de Bamiyan. As estátuas de 53 metros,

datadas do século V, consideradas patrimônio cultural da humanidade pela ONU foram dinamitadas em

março de 2001 apesar dos apelos internacionais. Depois disso, o mundo só ouviu falar do Afeganistão e sua

situação quando Osama Bin Laden passou a ser o principal suspeito dos atentados de 11 de setembro nos

Estados Unidos e o Regime Taleban foi acusado, além de protegê-lo, de oferecer-lhe território para a

construção de bases para sua organização, a Al-Qaeda32

.

4.4 ULTIMATO.

No dia 20 de setembro de 2001, os Estados Unidos deram um ultimato ao Taleban para que

entregasse Osama Bin Laden e os líderes da Al-Qaeda, caso contrário o Afeganistão seria atacado. O governo

31

O filme conta a história de uma mulher que vai até o Afeganistão para encontrar sua irmã que disse que

cometeria suicídio no próximo eclipse devido a opressão que é submetida sob o Regime Taleban por ser

mulher. 32

Al-Qaeda quer dizer “A base” denominação de uma organização “terrorista” que teria surgido em 1987

tendo por fundador Osama Bin Laden. Segundo a CIA, o Al-Qaeda , treinou 5 mil militantes no Sudão e no

Afeganistão durante uma década. Depois, espalhou esses “terroristas” por cerca de cinqüenta países.

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afegão diante disso reafirmou que só entregaria Osama Bin Laden se ele fosse extraditado para ser julgado em

um país neutro, podendo ser o Paquistão ou a Arábia Saudita. Depois da resposta negativa dos Estado Unidos

que queriam julgar Bin Laden em seu país, o Taleban afirmou que não o entregaria nem mesmo com provas

que demonstrassem que ele foi o principal responsável pelos atentados de 11 de setembro. Essas declarações

tiveram um fim no dia 7 de outubro de 2001 quando houve o início da invasão norte-americana no

Afeganistão.

4.5 ELES JÁ SABIAM.

No que se trata das mulheres afegãs, 1 em cada 20 sabe ler e escrever. No entanto, o Regime Taleban

que diminuiu ainda mais esse número foi elogiado no passado pelo governo norte- americano:

“O presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan os comparou com o “equivalente moral dos pais

fundadores dos Estados Unidos” (Jaggar, ANO?pg.17)

Pelo menos cinco anos antes do Taleban ganhar fama por ser suspeito de esconder Osama Bin Laden, os

Estados Unidos já tinham sido alertados para a catástrofe humanitária em que se encontrava o Afeganistão.

Michael Moore em seu filme Fahrenheit 11/9 mostra um protesto contra a política machista do Taleban. Foi

num encontro em dezembro de 1997 entre um líder do Taleban e o então governador do Texas George W.

Bush para discutir a construção de um gasoduto que passaria pelo Turcomenistão, Afeganistão e Paquistão e

que teria por parceira a empresa americana Unocal. Uma ativista vestindo a burka chega a questiona o líder

Taleban sobre os direitos das afegãs: “Vocês aprisionam suas mulheres e isso é horrível” ao que ele responde

“Lamento pelo seu marido ele deve sofrer muito com você”. Depois desse protesto, George W. Bush

continuou normalmente sua conversa com o representante do Taleban e manteve contato com esse governo

até outubro de 2001, quando atacou o Afeganistão destituindo o Taleban do poder.

4.6 OS DADOS.

O objetivo de analisar as notícias foi cumprido, utilizando como guia, a análise do discurso

procurando identificar nelas, o discurso Orientalista e Masculinista para orientar a interpretação dos textos do

escolhidos.

O jornal possui, aos olhos do leitor, a credibilidade que é construía e baseada no esquecimento, que

faz com que acreditemos que o que se falou só poderia ter sido dito daquele jeito e não de outro. Essa ilusão

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aliada a idéia de que o que se mostra é o que acontece, acaba por apagar o lado subjetivo da produção

jornalística.

4.7 O MANUAL É A VACINA CONTRA A SUBJETIVIDADE.

No manual de redação do jornal Estado de São Paulo, seguido pelo jornal Gazeta do Povo, pode-se

identificar o incentivo dado ao jornalista para que internalize a idéia de que relata um fato ao invés de

interpretá-lo, eliminando assim todas as pistas conscientes de que há a influência da ideologia e das pré

noções em todo o uso da língua.

“Tenha sempre presente: o espaço hoje é precioso; o tempo do leitor, também. Despreze as longas descrições

e relate (grifo meu) o fato no menor número possível de palavras (item oito)”.

“Faça textos imparciais e objetivos. Não exponha opiniões, mas fatos, para que o leitor tire deles as próprias

conclusões” (item 20).

Outra maneira de alterar o discurso em um jornal é através da transcrição de uma entrevista onde o

jornalista é lembrado pelo jornal de que deve torná-la compreensível pelo leitor:

“Nunca se esqueça de que o jornalista funciona como

intermediário entre o fato ou fonte de informação e

o leitor. Você não deve limitar-se a transpor para o

papel as declarações do entrevistado, por exemplo;

faça-o de modo que qualquer leitor possa apreender o

significado das declarações.(item 11)”

Sabe-se também que a notícia não segue o caminho: Fato – Jornalista - Leitor mas sim que ela passa

por inúmeros profissionais que a modelam para que passe a fazer parte do estilo do jornal.

“Por isso, compete ao redator e ao repórter selecionar com o máximo critério as informações disponíveis, para

incluir as essenciais e abrir mão das supérfluas”. Ou seja, quem pode descartar informações, possui o poder de

modelar o discurso que chegará ao leitor.

O contexto que é a moldura dos textos jornalísticos analisados,nesse caso, é a invasão americana no

Afeganistão.

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4.8 OS DADOS

Pretende-se analisar as reportagens de três veículos de comunicação da mídia impressa. A revista Veja, o

jornal Folha de São Paulo e o jornal Gazeta do Povo tendo como corpus33

, os meses de setembro de 2001 a

partir do dia 11, outubro, novembro e dezembro. Optou-se por escolher tais veículos de comunicação devido a

sua importância na imprensa brasileira.

A revista Veja foi escolhida por ser a revista de maior circulação nacional (1,1 milhão de exemplares) com

grande influência na opinião pública sendo citada em conversas de empresários até trabalhos escolares. A

revista pertence ao grupo Abril que hoje é um dos maiores conglomerados de comunicação da América Latina

e se define como aquela que: “traz os fatos mais importantes da atualidade, com a qualidade e a abrangência

que só a melhor revista de informação do país pode oferecer”.

A revista caracteriza-se por ter sua maior parte dedicada à política nacional e internacional. A postura

adotada pela sua redação, segundo a análise feita, pode ser chamada de conservadora e alinhada com os

interesses norte-americanos no combate ao terrorismo. A revista não enviou nenhum correspondente para o

Afeganistão limitando-se a confeccionar textos a partir de leituras de notícias enviadas das agências

internacionais.

Outro veículo de comunicação escolhido para esse estudo, foi o jornal, os quais escolhemos a Gazeta do Povo

por ser paranaense e a Folha de São Paulo devido a sua grande aceitação no meio acadêmico.

A Folha se define como um “Jornal a serviço do Brasil” sendo, a partir da década de 80, o mais

vendido do Brasil com 350 mil exemplares em dias úteis e 430 mil exemplares aos domingos. O crescimento

nas vendas é explicado, pelo próprio jornal, devido aos: “princípios editoriais do Projeto Folha: pluralismo,

apartidarismo, jornalismo crítico e independência”.

O jornalista José Arbex Jr., que trabalhou na Folha de São Paulo, através de seu livro

“Shownarlismo”, contesta os princípios do jornal ao defender a tese de que a notícia passou a ser produzida

como um espetáculo radicalizando a tendência americana de tratá-la como entretenimento desde o século XIX

33

Construção de montagens discursivas que obedeçam critérios que decorrem de princípios teóricos da

análise, e que permitam chegar à sua compreensão.Esses objetivos, em consonância com o método e os

procedimentos, não visa a demonstração mas a mostrar como um discurso funciona produzindo (efeitos de)

sentidos.(ORLANDI,2003,p.63)

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e que a Folha não seria exceção. Aliada a essa espetacularização, o que estaria ocorrendo no Brasil, é uma

despolitização desde 1979, quando houve a greve de jornalistas. Como uma violenta reação dos patrões a esse

movimento tentou-se despolitizar as redações o que segundo Arbex teve a Folha de São Paulo como carro-

chefe. Apesar da despolitização, a Folha ainda guia muitas aulas na Universidade e muitas discussões

acadêmicas sendo sempre citada como fonte de informação segura e confiável.

A Folha de São Paulo mandou um repórter especial, Kennedy Alencar, ao Paquistão que enviava

comentários de como estava a situação no Afeganistão.

Já o jornal Gazeta do Povo foi selecionado devido a sua circulação relevante no estado do Paraná. O jornal se

define como “há mais de 80 anos, preocupando-se em fazer um jornal que defenda os valores do Paraná”,

alertando também para o fato do leitor encontrar informações de qualidade, notícias analisadas sob diferentes

perspectivas. O dono

da Gazeta Francisco Cunha Pereira, é também o dono da Rede Paranaense de Comunicação que faz parte da

emissora Rede Globo. A Gazeta do Povo em seu caderno “Mundo” repete o material de agências

internacionais como a Reuters e do canal de notícias americano CNN, contribuindo muito pouco com

matérias próprias sobre a guerra no Afeganistão. A exceção foi o repórter Renan de Oliveira Martins que foi

detido na fronteira do Irã com o Afeganistão no dia 26 de outubro de 2001. O repórter havia feito uma série

de reportagens com refugiados afegãos, e ao ser preso quando tentava entrar no país, teve seu material

confiscado. Depois de 31 dias detidos o repórter foi libertado e voltou ao Brasil.

A Gazeta, A Folha e a Veja, serão analisadas no dito e no não dito também sempre lembrando que a

linguagem só faz sentido porque se inscreve na história sendo o veículo da ideologia. Não há verdades por

trás do texto, o que há, são diversas formas de interpretá-lo buscando compreender não o que está escrito, mas

o porque e o como está escrito tentando chegar a alguma pista da intenção que motivou aquela construção

textual.

Algumas perguntas foram formuladas para que se estruture um dispositivo analítico para orientar a

interpretação dos textos do corpus que optamos por analisar desvendando sua historicidade e, por

conseqüência o trabalho do sentido em articulação com a subjetividade de quem escreve e de quem lê a

notícia:

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“Como diz Vignaux (1979), o discurso não tem como função constituir a

representação de uma realidade. No entanto, ele funciona de modo a assegurar a

permanência de uma certa representação.Para isso, diríamos, há na base de todo

discurso um projeto totalizante do sujeito, projeto que o converte em autor.O

autor é o lugar em que se realiza esse projeto totalizante, o lugar em que se

constrói a unidade do sujeito. Como o lugar da unanimidade é o texto, o sujeito se

constitui como autor ao constituir o texto em sua unidade, com sua coerência e

completude. Coerência e completude imaginárias.” (ORLANDI,2003,p.73)

Nessa pesquisa trabalhamos com a noção de “agenda setting” que seria: “um tipo de efeito social da

mídia que compreende a seleção, disposição e incidência de notícias sobre os temas que o público falará e

discutirá” (BRUM,Julian de., ANO?). Significa aceitar a idéia de que: “em decorrência do noticiário dos

jornais, da televisão ou de outro meio de informação, o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura,

realça ou negligencia

elementos específicos dos cenários públicos (olhar)

A principal característica observada nos três veículos de comunicação, foi a insistência em ressaltar

as proibições feitas pelo regime Taleban. Outro aspecto ressaltado, é a crueldade do Taleban que foi vencida

graças a invasão norte- americana.

A possibilidade das mulheres terem seus direitos respeitados pela Aliança do Norte também é

destacada mas nenhuma notícia foi feita explicando os pontos principais de reivindicações das afegãs. Sempre

se falou por elas e para elas mas nunca as escutaram.

As comparações feitas geralmente tem a ver com a idade média e com a barbárie, mas o apoio dado

pelos americanos a tal regime por, pelo menos 6 anos nunca é lembrado.

O país é descrito como atrasado na maioria das vezes como se fosse culpa do Afeganistão, o fato de

não possuir meio para se desenvolver. Anos de guerra civil incentivados pela URSS e pelos americanos foram

apagados das notícias que , a partir de então deram a impressão de que o fenômeno Taleban é algo desligado

das pressões internacionais. Mesmo queando Taleban quis derrubar as estátuas de Bammiyan, o mundo não

deu a entender que se preocupava com aquele país já que a maioria dos países não reconheciam o regime

Taleban e nem ao menos mantinham embaixadas abertas naquele país.

A situação das mulheres é passada pelos jornais como se fosse fruto da cultura do Taleban, algo que

cairia junto com a regime. Não foi isso que aconteceu, notícias tem dado conta de que a Aliança do Norte

alegando, medo de prepresálias,pediu as mulheres para que utilizem a burqah ainda. Os observadores

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internacionais desde a guerra no Iraque, não tem tido mais destaque na imprensa, e a real situação das

mulheres afegãs, hoje é desconhecida.

O discurso machista também é evidente nas notícias já que ressalta uma incapacidade das mulheres de

resistirem aos avanços contra seus direitos. Idéias como, o casamento ainda é pago e elas não podem mostrar

o corpo são constantemente repetidas nos jornais. Sente-se falta sobre esses aspectos de uma explicação mais

apurada e menos etnocêntrica do que são esses costumes e quais os motivos para tais tradições ainda se

perpetuarem no Afeganistão.

CONCLUSÃO

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Conclui-se com essa pesquisa que os jornais estão repetindo o discurso Orientalista e Masculinista

para se referrirem às mulheres muçulmanas. A mídia impressa tem seus leitores e, são esses que possuem a

ilusão de estarem melhor se informando ao lerem jornais ou revistas. Uma aura de imparcialidade paira nas

redações enquanto jornalistas, furiosos pelos ataques proferidos contra o que chamam de civilização, falam a

favor das guerras contra o terrorismo como se essa fosse a única atitude sensata a se tomar.

As justificativas da guerra estão cada vez mais abstratas, até hoje não se encontrou Osama Bin Laden

(no caso do Afeganistão), e também não se achou armas de destruição em massa no Iraque. Saddam Hussein

foi preso, será julgado mas até agora não houveram provas contra ele de que em seu governo, houve a

produção de armas nucleares.

George W. Bush ganhou a reeleição nos Estados Unidos tendo feito dessa, uma eleição por valores.

Os americanos não votaram a favor da guerra só, eles votaram contra o aborta e contra o casamento de

homossexuais.

A discussão sobre mulheres no mundo muçulmano amenizou-se depois do ataque ao Iraque e as

notícias, mais uma vez, foram pautadas de acordo com os interesses dominantes e colonialistas dos Estados

Unidos.

Uma boa parte da opinião pública têm se manifestado contra essa guerra ao terrorismo, mas aqueles

que a fazem, acreditam piamente no seu objetivo. Nos Estados Unidos prova desse compromisso com o

conflito foi dada pelo presidente Gorge W. Bush ao nomear para o lugar de Colin Powell, a ministra

Condolezza Rica conhecida por sua postura conservadora e por ser especialista em URSS.

O debate sobre mulheres muçulmanas, está aberto, espera-se que esse trabalho contribua para a

discussão da necessidade de um diálogo intercultural no movimento feminista. A Ocidentalização não é a

solução para essas mulheres, elas são soberanas e possuem o direito de construírem de acordo com sua

cultura, os instrumentos de luta para avançarem no respeito aos seus direitos.

Por fim gostaria de agradecer a todos aqueles que na sua dificuldade contribuíram com suas obras

para que esse “outro mundo” fosse conhecido nas suas especificidade e na sua resistência. A todas as

mulheres Ocidentais e Orientais que, de forma sutil ou não contribuíram com sua luta, e algumas com suas

vidas para que esse fosse um mundo melhor.

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Tomar partido, ser feminista,é uma questão de lucidez num mundo em que já identificamos a

permanência de maneiras Masculinistas nas práticas e discursos sobre e para a mulher. É desse lugar que falo

acreditando que, infelizmente, a preocupação com as mulheres muçulmanas foi jornalística já que os próprios

protestos, na sua maioria basearam-se nas notícias analisadas. Sabe-se que o Taleban oprimiu por muito

tempo as mulheres, mas sabe-se também que os Estados Unidos apoiaram e dialogaram durante muito tempo

com esse governo sem se preocupar com essas questões. Ainda hoje os americanos mantém o diálogo com a

Arábia Saudita, país esse que entre os países muçulmanos, tem sido o mais cruel com mulheres. A aplicação

das leis Islâmicas é considerada a mais fundamentalista mas nem por isso esse país foi invadido. A pergunta

que fica é porque não se lutou antes pelas mulheres?

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VEJA