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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIA HUMANAS, LETRAS E ARTES SCHLA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DECISO FERNANDO LAJUS O FLUXO INTERNACIONAL DE ESTUDANTES NO ENSINO SUPERIOR: INTERNACIONALIZAÇÃO E INTERCAMBISTAS CONGOLESES NA UFPR (2011- 2017) Orientação: Profº Drº Márcio de Oliveira CURITIBA 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIA HUMANAS, LETRAS E ARTES – SCHLA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – DECISO

FERNANDO LAJUS

O FLUXO INTERNACIONAL DE ESTUDANTES NO ENSINO SUPERIOR:

INTERNACIONALIZAÇÃO E INTERCAMBISTAS CONGOLESES NA UFPR (2011-

2017)

Orientação: Profº Drº Márcio de Oliveira

CURITIBA

2017

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FERNANDO LAJUS

O FLUXO INTERNACIONAL DE ESTUDANTES NO ENSINO SUPERIOR:

INTERNACIONALIZAÇÃO E INTERCAMBISTAS CONGOLESES NA UFPR (2011-

2017)

Monografia apresentada como requisito para

obtenção do diploma de bacharel em ciências sociais,

com ênfase em Sociologia, pelo curso de Ciências

Sociais da Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Profº Drº Márcio de Oliveira

CURITIBA

2017

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AGRADECIMENTOS

Primeiro, preciso agradecer a todos aqueles dentro da universidade que se colocaram

à disposição para ajudar na construção deste trabalho. Existe dentro do texto toda uma série de

materiais importantes que possibilitaram a sua escrita. Muitos destes materiais foram

conseguidos graças aos trabalhos de outras pessoas, que gentilmente se dispuseram a

compartilha-lo comigo. Agradeço ao Projeto Refúgio e Hospitalidade, do curso de Direito, da

UFPR, coordenado pelo professor José Antônio Gediel e pela professora Tatyana Scheila

Friedrich; o Projeto Migrações e Processos de Subjetivação, do curso de Psicologia, coordenado

pela professora Elaine Schimitt; ao pessoal do CELIN, que aceitou a minha participação em

alguns dos seus eventos de boas-vindas ao novos alunos intercambistas na universidade, e, em

especial, ao professor e orientador Márcio de Oliveira, que esteve presente de diversas formas

e em diversos momentos durante todo o processo de pesquisa.

Para além do pessoal da universidade o agradecimento vai para todos aqueles,

familiares ou amigos, que me escutaram quando eu precisava falar e que falaram quando eu

precisava escutar. Agradeço, em especial, a Camila Feiler por ter revisado junto comigo a

versão da final desse texto.

Também sou grato por aqueles que me ajudaram nessa pesquisa e que suscitaram em

mim a iniciativa de estudar esse tema. Os estudantes entrevistados aqui, que mais do que

informantes impessoais foram colaboradores, de fato, na construção do que está escrito nestas

páginas.

Ainda é preciso fazer um agradecimento especial aos meus pais, que desde que me

mudei para Curitiba sempre estiveram ao meu lado nas minhas escolhas, e que, ao invés de

demonstrar aversão por elas, sempre foram grandes apoiadores em momentos que, muitas

vezes, nem mesmo eu sabia ao certo o que fazia.

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Resumo em português: O presente trabalho trata da questão dos processos de

internacionalização que acontecem no ensino superior no brasileiro. Para abordar tal tema, num

primeiro momento traçamos uma breve história elucidando aqueles acontecimentos chaves da

internacionalização em âmbito nacional, demonstrando quais mudanças marcaram os diferentes

períodos deste processo. Apresentamos também, como elemento complementar de tal análise,

o processo de internacionalização da UFPR. Neste trecho do trabalho discutimos, apresentando

os dados quantitativos encontrados, alguns dos programas de intercâmbio em atividades. Por

fim, fazemos um estudo de caso específico, qual seja, o da existência de um grupo de

intercambistas da República Democrática do Congo na UFPR, onde iremos atentar para as

formas como a internacionalização acontece na prática, e o que a mobilidade estudantil pode

significar para estes estudantes.

Palavras-chaves em português: Internacionalização; Mobilidade estudantil;

República Democrática do Congo; Migração.

Abstract: This research deals with the ongoing process of internationalization

perceived in the Brazilian higher education system. Firstly, we will expose a brief historical

overview to highlight some key moments of this specific internationalization in the national

context, elucidating what changes marked each instant of that process. As a way of

complementing that analysis we present those junctures that marked the internationalization

happened inside the Federal University of Parana. Through this context, we will discuss,

presenting the quantitative data found, some of the programs which are still active. Finally, a

specific study on the existence of a group of international students from the Democratic

Republic of the Congo complements this research, in which we pay attention to the ways the

internationalization factually happens, and what could the student mobility mean to those

foreign students.

Palavras-chaves em inglês: Internationalization; Students mobility; Democratic

Republic of the Congo; Migration.

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LISTA DE ABREVIAÇÕES

ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados

ARI – Agência UFPR Internacional (anteriormente Agência de Relações

Internacionais)

AUF – Agence Universitaire de la Francophonie

AUGM – Associação de Universidade Grupo Montevidéu

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CELIN – Centro de Línguas e Interculturalidade

CEU – Fundação Casa do Estudante Universitário do Paraná

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CONAHEC – Consortium for North American Higher Education Collaboration

CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados

ERE – Escritório de Relações Externas

MERCOSUL – Mercado Comum do Sul

MRE – Ministério de Relações Exteriores

PEC-G – Programa Estudante Convênio de Graduação

PEC-PG – Programa Estudante Convênio de Pós-Graduação

PROMISAES – Projeto Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior

PROVAR – Programa de Ocupação de Vagas Remanescentes

RDC – República Democrática do Congo

UFPR – Universidade Federal do Paraná

UNHCR – United Nations High Comissionner for Refugees

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. País de origem: África? ......................................................................................p. 54

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LISTA DE GRÁFICOS E TABELAS

Gráfico 1: AUGM: Alunos estrangeiros recebidos na UFPR ..........................................p .35

Gráfcio 2: AUGM: Alunos UFPR enviados e países de destino ......................................p. 36

Tabela 3: Universidades brasileiras com estudantes da RDC ..........................................p .37

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ANEXOS

Lista de entrevistados .........................................................................................................p. 66

Roteiro para entrevista ......................................................................................................p.67

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................8

2. NOTAS SOBRE A INTERNACIONALIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR

...................................................................................................................................................12

2.1 Apontamentos sobre a história da internacionalização do ensino superior no

Brasil ........................................................................................................................................12

2.2 Para uma análise dos sujeitos em deslocamento espacial ..................................19

2.3 O caso da mobilidade de estudantes estrangeiros no ensino superior no Brasil.29

3. ALGUNS PROGRAMAS DE INTERCÂMBIO NA UFPR .......................36

3.1 Uma breve história da internacionalização da UFPR ..........................................36

3.2 Associación de Universidade Grupo Montevidéu (AUGM) ..............................39

3.3 Programa Estudante Convênio de Graduação (PEC-G) ...................................42

3.4 Programa de Ocupação de Vagas Remanescentes (PROVAR) ........................47

3.5 Consortium for North American Higher Education Collaboration (CONAHEC)

...................................................................................................................................................51

4 UM ESTUDO DE CASO: O PROGRAMA PEC-G NA UFPR .................53

4.1 Motivos da vinda ao Brasil ...............................................................................54

4.2 Socialização no Brasil ......................................................................................56

4.3 Experiências educacionais no Brasil ................................................................59

4.3 Preconceito .......................................................................................................61

4.4 Perspectivas futuras ..........................................................................................64

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................67

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................68

7 ANEXOS ..........................................................................................................72

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1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata da questão da internacionalização do ensino no Brasil,

atentando, através de um estudo de caso com estudantes da RDC1, para o caso de um programa

de intercâmbio do qual a Universidade Federal do Paraná (doravante UFPR) participa. Um dos

imperativos de uma internacionalização é que a universidade mande e também receba

estudantes. Além disso, tal processo de internacionalização tem como condição sine qua non o

deslocamento espacial de seus participantes. Este deslocamento é o primeiro passo para o

estabelecimento de laços (sejam eles emocionais, intelectuais, profissionais, etc), mas não é

suficiente para construir uma internacionalização do ensino superior. Quer dizer, uma coisa são

os programas institucionais de intercâmbio e mobilidade acadêmica - que tornam possível esta

internacionalização – outra é o engajamento dos sujeitos em deslocamento nos contextos em

que se inserem. Para entender como isso ocorre concretamente é necessário descermos ao nível

do sujeito, deixando para trás a amplitude da estrutura e adentrando nas sutilezas das ações

daqueles que a estruturam. Quem são as pessoas que participam dos programas de intercâmbio

da UFPR e quais os tipos de vínculo que elas estabelecem em seus deslocamentos? Se existe

uma internacionalização do ensino superior esta não ocorre somente através da existência de

programas institucionais de incentivo ao intercâmbio de estudantes – por mais que estes sejam

indispensáveis para tanto -, mas, sobretudo, quando estes estudantes se engajam em diferentes

espaços e interações, estabelecendo os mais diversos tipos de laços com a universidade e com

a nação na qual se encontram.

Mas talvez seja preciso, antes de utilizar o vocabulário impessoal das atividades

acadêmicas, explicitar brevemente relações que são bastante pessoais para mim. Refiro-me ao

trajeto que me levou à escolha do meu tema de pesquisa: os processos de internacionalização

do ensino superior e os estudantes que dele fazem parte.

Travei contato com alguns dos estudantes estrangeiros na UFPR pela primeira vez

quando me mudei para Curitiba, indo morar na Casa do Estudante Universitário do Paraná

(doravante CEU). Esta instituição é ocupada por um grande número de estudantes estrangeiros,

dado que o custo para se manter nela é mais baixo que aquele para alugar um apartamento no

centro da cidade. Foi a partir dos encontros no dia a dia e dos eventos especiais que acontecem

de tempos em tempos (como os cafés da manhã, a Copa do Mundo de 2014, o campeonato

africano de nações e o futebol de todos os sábados na quadra da CEU) que estabeleci um

1 Possibilitando tal pesquisa contei com o apoio do programa de iniciação científica (bolsa do CNPq),

onde também trabalho com o caso dos estudantes do Haiti que entraram pelo PROVAR na universidade.

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primeiro contato com algumas das pessoas que despertaram o meu interesse por esta área de

estudos.

De início estas conversas não tinham, para mim, nenhuma conotação sociológica. Eu

havia acabado de entrar no curso de Ciências Sociais e, portanto, não estava, ainda, enviesado

pelas predisposições mentais que são propriamente sociológicas, ou, como coloca Whight Mills

(1969), eu ainda não praticava, consciente ou inconscientemente, a ciência social como um

ofício; um “métier”. Com o tempo passei a perceber as potencialidades daquelas conversas

informais e abertas, orientadas por um senso de confiança e mesmo amizade, o que foi

originando algumas instigantes questões para pesquisas. Estas questões ficaram um pouco mais

claras após um exercício realizado na matéria de Métodos e Técnicas de Pesquisa em Sociologia

II, ministrada pela professora Ana Luisa Fayet Sallas, quando então realizei uma entrevista com

um intercambista da RDC, que atualmente está cursando arquitetura. A entrevista trouxe alguns

dados interessantes como, por exemplo, o processo pelo qual ele passou no momento de escolha

do intercâmbio para o Brasil (as predisposições necessárias para tanto, a divulgação do

programa PEC-G em seus países, etc), passando pela sua seleção para a cidade de Curitiba2, até

a sua chegada ao Brasil e sua atual estadia em terras brasileiras.

Alguns dos objetivos da pesquisa são os seguintes: primeiro, já que se trata de analisar

a internacionalização do ensino superior – ainda que de forma a pensar como os estudantes se

estabelecem na comunidade que os recebe – será feita uma revisão bibliográfica do assunto.

Primeiramente, farei alguns apontamentos sobre o caso da internacionalização do ensino

superior no Brasil e, num segundo momento, uma revisão das bases teóricas do trabalho, as

quais serão utilizadas no decorrer do texto. Destaco a centralidade da discussão sobre a teoria

da agência neste trecho e a sua consequente utilização no decorrer do trabalho. Ainda neste

capítulo destinado à análise bibliográfica que concerne ao tema, discutirei o caso dos

intercambistas africanos que atualmente estudam no Brasil. Ainda que esparsa, é possível

perceber a emergência do assunto em trabalhos acadêmicos.

Após este trabalho de revisão, serão apresentados os programas institucionais de

intercâmbio dos quais a UFPR participa. Irei descrever os objetivos dos programas, bem como

apresentar alguns dados quantitativos dos próprios, quando estes estiverem disponíveis.

2 Neste ponto é interessante notar na entrevista o papel que o embaixador brasileiro no Congo teve na explicação

sobre como era a cidade e seus benefícios. Além disso vale destacar que a cidade de Curitiba, e a UFPR, não foram

os primeiros locais de escolha para o entrevistado. Na verdade, o seu desejo primeiro era o de estudar em algum

país francófono europeu, como a França, a Bélgica ou a Suíça, por conta da proximidade linguística entre os países.

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Para além dos programas institucionais que atuam na UFPR, são analisadas entrevistas

qualitativas feitas em parceria com alguns dos estudantes participantes. Será através delas que

mapeio algumas das constantes nas falas destes sujeitos, atentando para a existência ou não de

vínculos mantidos com a comunidade da qual passaram a fazer parte e o modo como os

estudantes percebem a existência destes programas estimulados pelo governo brasileiro. Esta

comunidade é entendida tanto como a da universidade (alunos, professores, pessoal técnico,

etc) como para além desta. Tais entrevistas nos possibilitam analisar alguns dos termos

utilizados na sociologia da imigração, como por exemplo o de “integração” (BRITO, 2010).

Na primeira parte da revisão bibliográfica são discutidos os momentos de maior

importância para a história da internacionalização do ensino superior no Brasil. Falo sobre a

emergência das agências reguladoras responsáveis pelo pagamento das bolsas e suas políticas

de concessão. Ainda nesta seção discuto o papel do Brasil no âmbito da América Latina e os

projetos ativos de intercâmbio de estudantes, bem como as suas consequências para o ensino

superior no país e na região. Damos destaque às desigualdades inerentes aos processos de

internacionalização e quais são algumas de suas consequências, como é o caso do “brain

drain”, o qual é definido, na área de estudo sobre os fluxos internacionais de estudantes, como

o processo de leva uma pessoa de um país a migrar definitivamente para o país no qual foi

estudar. Isto ocorre por diversos motivos, desde melhores condições salariais até por interesses

de pesquisa específicos que não poderiam ser realizados no país de origem. Como fenômeno

social, o brain drain, ou fuga de cérebros, é uma questão importante para aqueles países em

desenvolvimento que necessitam de mão de obra especializada, e que para isso, necessita que

seus estudantes façam sua educação em nível superior em outro lugar.

Na segunda parte do capítulo mobiliza-se uma bibliografia referente aos marcos

teóricos propostos para se pensar o estudo de caso discutido no último capítulo. Para tanto,

inicio a discussão com um clássico da sociologia da imigração que ainda guarda uma

importância particular para os estudos de deslocamento espacial. Em seguida a discussão

problematiza algumas questões referentes a uma teoria da ação, ou melhor, dos modos pelos

quais é possível compreender a agência de sujeitos inseridos em sistemas culturais complexos.

É através de tal marco teórico que a internacionalização do ensino superior, para o caso dos

estudantes da RDC no Brasil, será analisada.

Por fim levanta-se uma bibliografia produzida no Brasil que dialoga fortemente com

o tema que me proponho a estudar. Os textos tratam do caso da mobilidade acadêmica dos

estudantes do continente africano para o Brasil. Neste levantamento bibliográfico questões de

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identidade cultural, questão racial e as condições sociais que circundam a experiência daqueles

sujeitos em deslocamento espacial são discutidas.

No capitulo três me propus analisar alguns programas de intercâmbio específicos.

Estes programas foram escolhidos pela sua relevância no contexto da UFPR. Os programas

serão abordados da seguinte forma. Primeiramente será feita uma descrição dos seus propósitos

e, em seguida, iremos demonstrar alguns dos dados quantitativos que os representam. Os

programas analisados serão: PEC-G e PEC-PG; AUGM; CONAHEC e o PROVAR, este último

destinado aquelas pessoas que migraram para o Paraná e que querem voltar a cursar o ensino

superior.

Por fim, o último capítulo é trabalhado em cima de um estudo de caso específico. Com

isso pretendo compreender, na prática, como algumas das questões recorrentes na bibliografia

levantada tomam forma, se é que elas são relevantes para o grupo analisado. Para este último

trecho foram realizadas entrevistas semiestruturadas com alguns dos estudantes da RDC que

fazem parte do programa PEC-G e que se encontram na cidade de Curitiba. O material

levantado nas entrevistas é indispensável para se entender concretamente os impactos da

internacionalização naqueles que fazem parte de tal processo. Para além das entrevistas conto

ainda com toda a convivência cotidiana que tive com estes estudantes, as conversas informais,

os eventos sociais nos quais estive com eles e as relações de amizade que mantenho com alguns.

Por conta disso é possível que em alguns momentos algumas afirmações sejam feitas sem

referências a entrevistas ou outros aportes do gênero.

Para aqueles que quiserem ter acesso aos materiais de pesquisa disponibilizo uma pasta

aberta no Google drive. Lá estarão tanto as tabelas com os dados referentes ao envio e

recebimento de alunos por programas de intercâmbio, quanto as entrevistas realizadas com os

estudantes e as transcrições deste material. Para acesso deste material segue o link:

https://drive.google.com/open?id=0B1NAQ-0B-75ac0FVSUVNYk9zbWM

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2. NOTAS SOBRE A INTERNACIONALIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR

2.1- Apontamentos sobre a história da internacionalização do ensino superior no Brasil

Uma vez que o presente trabalho se propõe a estudar os modos pelos quais a

internacionalização do ensino superior ocorre no caso brasileiro através de um estudo de caso

específico, faz-se necessário uma breve discussão sobre a constituição histórica de tal processo.

Quais foram os períodos que levaram até os dias atuais que são marcados, com suas devidas

deficiências, é claro, por políticas públicas sistemáticas na área de intercâmbio estudantil e

profissional. A bibliografia pesquisada trata sobretudo daquele tipo de intercâmbio que se

centraliza no deslocamento de estudantes, sejam eles graduandos ou pós-graduandos para

outros países.

Se o fluxo de pesquisadores e estudantes sempre foi algo constante, pelo menos para

aqueles em posição de destaque em suas respectivas áreas de atuação, ou para aqueles que

podiam, independentemente do financiamento por parte do Estado ou outras instituições, arcar

com suas próprias viagens, vemos que tal preocupação, no caso do Estado brasileiro, só irá se

iniciar em meados do século XX. Para aqueles que desejavam fazer pesquisa fora do Brasil, tal

empreitada dependia muito de sua capacidade de se fazer conhecido fora do país. Assim era

possível que, através da participação em grupos de pesquisa e estudos de outras localidades3, o

pesquisador conseguisse fundos com agências internacionais para o financiamento de sua

viagem, estadia e pesquisa (Schwartzman, 2001). Toda esta dinâmica ainda se dava nos

institutos e faculdades que se aglomeravam no Brasil. Eram poucos os interessados na

construção de universidades tais como as conhecemos hoje. Ao invés do modelo atual, onde os

diversos cursos se articulam e no qual os diversos alunos possuem um espaço no qual podem

estabelecer vínculos, o modelo de escolas e faculdades para determinada área do conhecimento

foi predominante. Algumas das universidades pioneiras nestas mudanças foram a USP, em

1934, e a UNB, de 1962. Essa última foi muito elogiada por Aluísio Pimenta (1984) por conta

de seu projeto universitário.

Tal dinâmica, no que toca ao financiamento de pesquisas, acarretava muitas vezes

numa desigualdade de demandas de pesquisa, uma vez que a agenda para tanto era definida

pelos interesses de outras nações e grupos com realidades bastante divergentes da brasileira.

3 No caso dos profissionais brasileiros, esses grupos se localizavam com especial importância na França,

por diversos motivos, entre eles a língua, que foi durante muito tempo a língua estrangeira ensinada nas escolas

do país.

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Além disso, para aquele pesquisador que desejasse fazer pesquisa de ponta na sua área de

conhecimento, só restava a escolha de participar de laboratórios internacionais que já se

engajavam num tipo específico de trabalho. Tal modelo de intercâmbio se baseava na

importância de figuras chaves, que aglutinavam em torno de si recursos e pessoal4.Segundo

Laus (2004), esse modelo vigorou a partir da década de 30 e se estendeu até meados dos anos

50, quando então são criadas a CAPES5 e o CNPq (FERREIRA e MOREIRA, 2002).

Até o momento de criação de ambas estas agências, no ano de 1951, o Estado não

contribuía com o pagamento de bolsas de pesquisa para fora do país. Com a criação da CAPES

e do CNPq, estes órgãos ficaram responsáveis pela escolha dos pesquisadores que receberiam

as bolsas; pelo pagamento das bolsas; pela supervisão das atividades realizadas e pelo

estabelecimento das diretrizes a serem seguidas nas concessões de bolsas. A criação destas duas

instituições é um marco num modelo de pesquisa e universidade brasileira, qual seja, aquele

em que o Estado é o maior financiador para o desenvolvimento de pesquisa e ensino no nível

da educação superior.

Outra contribuição que a criação destas agências proporcionou para a pesquisa e o

fluxo de pesquisadores brasileiros para outros países foi a relativa autonomia brasileira no

cenário internacional. Uma vez que os fundos para pesquisa eram disponibilizados por uma

agência nacional – que priorizava as demandas nacionais na escolha de projetos de pesquisa e

estudos – os pesquisadores brasileiros não se viam mais restritos às demandas impostas por

instituições de financiamento internacionais (LAUS, 2004). Tal autonomia fez com que os

pesquisadores brasileiros, em parceria com governo e agências, pudessem trabalhar em áreas

específicas para o desenvolvimento nacional, em especial naquelas áreas ligadas as chamadas

hard sciences6.

Como consequência da criação destas agências financiadoras e dos seus projetos de

concessão de bolsas, foi necessária a criação dos grupos de pesquisa. Nestes grupos os

pesquisadores passaram a trabalhar em torno de certo tema de pesquisa, gerando assim um

esforço maior numa determinada área do conhecimento. Visto que os grupos conseguem

conjugar mais pesquisadores num determinado conjunto de problemas, estas agências de

fomento de pesquisa passaram a privilegiar aqueles trabalhos que tinham seus autores ligados

4 Isso pode parecer uma descrição dos tempos atuais, mas existiam algumas diferenças importantes.

Uma delas é a existência - que será discutida adiante -, de agências que regulamentam e supervisionam a concessão

de bolsas, como é o caso da CAPES e do CNPq. Através destas agências critérios de produção começam a ser

utilizados para a concessão de bolsas de pesquisa e estudos para brasileiros no exterior. 5 Criada no dia 11 de julho de 1951, pelo decreto de lei nº29.741 6 Termo de uso corrente, onde as ciências hard estão ligadas as áreas das ciências naturais, e as soft as

de ciências sociais e humanas.

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a algum grupo específico em detrimento daqueles em que os autores não se vinculavam a

nenhum. Como a autora irá dizer, essa mudança foi:

“[...] essencial para que as instituições passassem a colher os frutos mais

duradouros das relações acadêmicas internacionais. Isto porque, nos primeiros

anos, quase todo intercâmbio na área de pós-graduação tinha como base a

concessão de bolsas de pesquisa que tinham seus projetos individuais

aprovados.

Com a nova prioridade dada à cooperação centrada em tema de pesquisa,

cresceu o retorno institucional, já que os projetos vinculam grupos

qualificados aos temas de interesse comum, contribuindo para a formação de

pesquisadores e a qualificação dos docentes, sobretudo os doutores que já tem

vínculos estabelecidos com uma instituição”

(LAUS, 2004, p. 5)

Continuando com a descrição de alguns dos momentos importantes para a história da

internacionalização do ensino no Brasil, vemos que por mais que durante a década de 60 o país

estivesse inserido no contexto político da ditadura militar, este foi um momento decisivo para

a formação de diversos programas de pós-graduação no país (FERREIRA e MOREIRA, 2002).

Com a constituição destes diversos programas, em grande medida impulsionados pela formação

de professores mais capacitados por conta de seus deslocamentos para centros de pesquisa de

ponta em suas áreas, o número de doutorandos passa a aumentar.

Este processo de concessão de bolsas iniciado pelo CAPES e pelo CNPq em âmbito

nacional, pode ser considerado pioneiro no espaço de países da América Latina (NIELSEN et

al, 2005). Após cerca de 10 anos de criação, no ano de 1951, ambas as instituições já haviam

traçado as suas prioridades e podiam, então, colocar em prática grande parte de suas agendas

de desenvolvimento na área educacional. Ao contrário de outros países da região, o Brasil

destinou esforços específicos na formulação de políticas públicas sistematizadas para a

formação de seus pesquisadores no âmbito internacional. Como decorrência deste trabalho, é

possível ver que o número de profissionais com doutorado dando aula em universidades é

consideravelmente maior do que nos outros países da América Latina. Segundo dados

disponibilizados pelo Banco Mundial no ano de 20027, o Brasil tinha, do total dos seus

professores do ensino superior, 30% deles com diploma de doutores. O segundo país da

América Latina com maior porcentagem de doutores em suas instituições de ensino era o Chile,

com um total de 13%. Quando posta em perspectiva com a média da América Latina como um

todo (7%), a porcentagem de doutores no Brasil salta aos olhos. As agências reguladoras no

campo educacional aparecem como atores fundamentais em tal projeto.

7In:http://siteresources.worldbank.org/EXTLACREGTOPEDUCATION/Resources/Higher_Ed_in_L

AC_Intnal_Dimension.pdf . P.49

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Entrando, na década de 1990, como um país de destaque na América Latina, o Brasil

ocupa papel decisivo na formulação de planos para o desenvolvimento de diversos aspectos da

região. O acordo do Mercado Comum do Sul (doravante MERCOSUL)8, por exemplo, além de

estabelecer uma zona de livre comércio entre os países signatários, também facilita o fluxo de

estudantes entre os países (LAUS e MOROSINI, 2005). Um exemplo de projeto de intercâmbio

que se beneficia das facilidades possibilitadas pelo MERCOSUL é aquele realizado entre as

universidades parceiras do Grupo Montevidéu. A UFPR é uma dessas universidades. Após uma

análise dos dados, vemos que dentre os alunos da UFPR os países de destino foram, entre os

anos de 2001 a 20169, por ordem de importância quantitativa: Argentina (92 alunos enviados);

Paraguai (10 alunos enviados); Chile (8 alunos enviados) e Bolívia (2 alunos enviados). Uma

das facilidades possibilitadas por acordos como o do MERCOSUL é de que os residentes dos

países signatários não necessitam de passaporte para viajar de um lugar a outro em que o acordo

esteja em vigor.

Para além deste programa de intercâmbio - que é discutido com mais detalhes adiante

- existem ainda uma série de outros programas para intercâmbio de estudantes. Alguns destes

mandam os alunos para países em condições de maior desenvolvimento econômico, como é o

caso do AUF (Agence universitaire de la francophonie) - programa sobre o qual não

conseguimos encontrar dados na ARI - além de uma série de outros acordos firmados entre a

universidade e outras instituições de diversos locais do mundo10.

Uma consequência destes processos de deslocamento de estudantes brasileiros para

universidades estrangeiras, em especial aquelas situadas em países de maior desenvolvimento

econômico, é o chamado “brain drain”. Países como o Brasil, ainda em condição de

desvantagem econômica quando comparado com os chamados países do primeiro mundo, pode

parecer interessante como um local de destino para estudantes de países em piores condições

educacionais. O caso dos estudantes vinculados ao Programa Estudantes Convênio de

Graduação (PEC-G), que em sua maioria vieram do continente africano é um bom exemplo.

Neste caso, muitas vezes a vinda ao Brasil está vinculada a um plano mais amplo de vida. Este

plano de vida pode ter diversas dimensões e pode estar vinculado a uma manutenção no Brasil,

quer dizer, os estudantes podem pretender se estabelecer no país, ou – o que é uma das formas

8 Acordo oficializado em 26 de março de 1991, entre Argentina, Paraguai, Brasil e Uruguai 9 Exceto os anos de 2010, 11, 12 e 13, por falta de dados disponibilizados pela ARI (Assistência de

relações internacionais). 10 Para aqueles alunos do curso de letras alemão, é notável a importância destes acordos, uma vez que

existe um número considerável de bolsas disponibilizadas pela Alemanha para estudantes deste idioma. Isso foi

me contato durante conversa com duas alunas participantes de convênios que ligavam a UFPR e universidades

alemãs.

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possíveis de se utilizar de uma vantagem educacional – o sujeito pode se direcionar para outro

lugar, levando consigo aquele conhecimento que adquiriu no país. Se os estudantes de outros

países empregam essa lógica na escolha do país de destino, os brasileiros também. Quer dizer,

se os processos de internacionalização se dão numa arena global marcada por processos

desiguais de poder e desenvolvimento, os fluxos de estudantes também parecem obedecer a

estes imperativos econômicos e culturais. O “brain drain” se torna um problema uma vez que

estes estudantes que são enviados para países em melhores condições de pesquisa – e muitas

vezes de qualidade de vida mesmo – podem não voltar para seus países de origem. Esta

desigualdade entre estudantes enviados e estudantes recebidos é percebida por Nielsen et al:

“Latin American countries are sending students abroad in great numbers.

However, they have been less successful in attracting skilled foreigners to the

region. Governments in Australia, the United Kingdon, and a number of

smaller OECD11 countries have developed active international recruitment

strategies and provied the necessary resources to cater to foreign students.

These countries now have above 10 foreing students per 100 national students.

For Uruguay, Chile, Argentina, and Mexico, foreign students constitute less

than 1 percent of enrollees in higher education.”12

(NIELSEN et al, 2005, p.63)

Como destacado no depoimento dado por Suzana Gonçalves, diretora executiva da

CAPES entre os anos de 1964 a 1974, este problema já era percebido pelos técnicos e

funcionários da instituição. Como forma de amenizar esta fuga de pesquisadores, foi criada uma

cláusula que obrigava os estudantes a retornarem por pelo menos dois anos para a sua instituição

de origem (FERREIRA e MORREIRA, 2002, p.52).

Tal fenômeno nos indica ainda algumas das consequências dos processos de

internacionalização do ensino superior no mundo contemporâneo. É interessante notar de quais

países provém a maioria dos estudantes estrangeiros no Brasil. Como é o caso dos alunos do

programa PEC-G, a grande maioria provém de países em situações mais agudas de pobreza,

seguido então por um ensino de menor qualidade. Para o caso dos estudantes da RDC, essa

deficiência no sistema de ensino do país poder ser observada nos indicadores elaborados pelo

11 Organization for Economic Co-operation and Devolopmente. In: http://www.oecd.org/about/

12 “Países da América Latina estão enviando para outros lugares do mundo em grande número.

Entretanto, estes países têm tido menos sucesso em atrair estrangeiros capacitados para a região. Governos da

Austrália, Grã-Bretanha e alguns países menores da OCDE tem desenvolvido estratégias para recrutamento

internacional, provendo os recursos necessários para atrair estudantes internacionais. Estes países agora possuem

mais de 10 estudantes internacionais para cada 100 estudantes nacionais. Para países como Uruguai, Chile,

Argentina e México, estudantes internacionais constituem menos que 1% dos matriculados no ensino superior.”

Tradução livre.

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World Bank (2005). Em um estudo de 2005 sobre o sistema de ensino do país, desde o nível

primário até a educação superior, o trabalho destaca alguns dos problemas estruturais do país.

Um dos fatores problemáticos para a educação no país foi, por exemplo, a guerra civil de 1997-

1998, quando então houve uma baixa acentuada no número de estudantes matriculados. Mas os

indicadores que demonstram as deficiências do ensino não são exclusivos dos momentos

excepcionais, como aqueles de guerra. Se pegarmos a taxa de estudantes que deixam o ensino

primário no último ano de formação, ou seja, antes de receber o diploma que lhes torna aptos a

entrar no ensino secundário, teremos uma alta taxa de desistência, de um total de 20% (World

Bank. 2005, p.36).13

Se temos estudantes de países em desenvolvimento escolhendo o Brasil como destino

de estudos, para onde está indo a maioria de nossos estudantes? Essas colocações são

pertinentes para entender os motivos da escolha do local de destino dos intercambistas. Estes

momentos de escolha e de definição de uma carreira (e consequentemente de autoafirmação

intelectual) ocorrem muito na medida de qual será o peso que o diploma de alguém terá dado o

seu local de formação. Por esta ótica podemos entender melhor os sentidos dos fluxos de

estudantes na globalização.

Com isso não quero dizer que o Brasil só receba estudantes e pesquisadores de regiões

com piores estruturas educacionais. Qualquer um de nós pode andar pelos campus da

universidade e encontrar pessoas que provém de países europeus. Afora aqueles que vêm para

o Brasil fazer trabalhos de pesquisa que levam em conta a situação ou a existência de

comunidades ou condições especificas no Brasil14, não temos nenhum programa de intercâmbio

que envie alunos europeus para fazer toda a sua graduação no Brasil. Ao contrário, temos

diversos estudantes que vieram de países em situação de subdesenvolvimento mais agudas que

a do Brasil, seja pela situação política vivida em seu país de origem15 ou pelas condições de

ensino, para fazer toda a sua formação em nosso país.

Como coloca Fernando A. F. de Barros (2005) se, por um lado, a produção de

conhecimento científico aumentou em escala global - apoiada pelos fluxos de estudantes - por

outro ela ainda segue as flutuações econômicas e as desigualdades entre diferentes países. Como

uma das observações pertinentes de seu livro, o autor demonstra como a internacionalização do

13 Optamos por esta referência do ano de 2005 do World Bank por conta da inexistência de documentos

mais recentes sobre o assunto. 14 Esse é o caso por exemplo de uma mestranda em antropologia belga que estava na UFPR para fazer

uma parte de sua pós-graduação aqui e que queria fazer seu trabalho de campo na Amazônia. 15 Este é o caso relatado por diversos estudantes provenientes da República Democrática do Congo.

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ensino e da produção de conhecimento respeitam uma lógica geopolítica mais ampla de

desigualdades.

Como uma possibilidade de escape a estas dinâmicas desiguais, vemos um esforço dos

países em desenvolvimento em elaborar estratégias regionais de desenvolvimento. Como

demonstra Barros (2005), os exemplos de países como Índia e China são centrais. Assim como

no Brasil, a Índia investiu consideravelmente no desenvolvimento de pessoal qualificado na

área de educação. Além disso, outro ponto de contato entre os três países é a centralidade do

Estado como grande órgão de desenvolvimento. Este modelo de gestão, que prioriza a atuação

dos órgãos estatais ao invés de empresas privadas, como é o caso nos EUA, foi utilizado nos

três países.

Nesta dinâmica global de fluxo de pesquisadores, parcerias de grupos de pesquisa e

estabelecimento de programas de intercâmbios, é possível falar em uma internacionalização

horizontal entre os diversos países? E se existe, de fato, uma igualdade no fluxo de estudantes

e pesquisadores, algo pouco provável (BARROS,2005; NIELSEN et al, 2005; BRUM, 2009,

2010, 2011, 2014), quais são os parâmetros para a escolha do local de estudo? Sobre o caso da

autonomia brasileira, vale a pena mais algumas observações.

A autonomia brasileira para o estabelecimento de parâmetros de escolha de projetos e

pesquisadores para concessão de bolsas é apontada por diversos autores na sua descrição do

processo de internacionalização da ciência no Brasil (LAUS, 2004. FERREIRA e MOREIRA,

2002 e SCHWARTZMAN, 2001). Mas, é necessário também atentar para uma produção

bibliográfica que, quando questiona os processos de deslocamentos de estudantes brasileiros,

aponta para um cenário de desigualdade. Os trabalhos de Ceres Karan Brum (2009, 2010, 2011

e 2014) sobre a Maison du Brésil em Paris, fazem uma série de questionamentos sobre a posição

do estudante brasileiro neste território francês. Para Brum (2013) – e ela chega a tal

interpretação após uma série de entrevistas com os residentes da casa – aqueles estudantes que

habitam a Maison são constantemente relembrados da sua condição de brasileiros, o que, no

contexto da casa, serve como forma de manutenção da autoridade da direção francesa. Partindo

do discurso da diretora da Maison e dos relatos dos estudantes, Brum demonstra como na

relação entre a representação de diferentes nações, a brasilidade é entendida através da sua

relação com a nacionalidade francesa, esta última sendo o modelo a ser seguido. É na interação

entre estas duas nacionalidades, e nas constantes recordações postas em cartazes nos corredores

da instituição, que as desigualdades – e a situação de subdesenvolvimento brasileira como

característica geral do país – são objetificadas e reificadas.

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A partir dessas ideias desenvolvidas por Brum torna-se necessário pensar também em

outra dimensão envolvida no processo de internacionalização. Se temos, por um lado, a

existência de programas e regimentos que definem as possibilidades de intercâmbio e, para

além disso, asseguram ao estudante brasileiro sua autonomia no país de destino, não é tão claro

qual será a sua recepção e integração na sociedade que o recebe. O caso dos estudantes

brasileiros na Maison é bastante elucidativo disso. Por mais que as bolsas sejam dadas conforme

a relevância que os órgãos nacionais depositam nos trabalhos, aquele que se desloca se vê em

frente a uma realidade até então desconhecida. Torna-se então necessário que para além da

análise dos aspectos formais e dos programas que regem o fluxo de estudantes, ocorra ainda

uma pesquisa das realidades nas quais estes estudantes estão inseridos. O capítulo a seguir

buscará dar um panorama teórico da análise destes sujeitos postos em situações inesperadas e

divergentes daquelas de seus países de origem. É, sobretudo, uma bibliografia centrada nas

consequências dos processos de deslocamento espacial pelo qual as pessoas passam, sejam elas

intercambistas ou imigrantes em geral16.

2.2: Para uma análise dos sujeitos em deslocamento espacial

Partindo da definição de migração dada pelo “Cambrigde dictionary of sociology”,

definida como: “A change in permanent residence, often of a year or more in duration,

migration involves a geographical move that crosses a policial boudary”(P.384)17, me utilizo

de alguns conceitos da sociologia da migração que guardam alguma relevância para o trabalho

aqui realizado. Visto que os estudantes que vêm para o Brasil ficam por aqui ao menos durante

as suas graduações, irei utilizar algumas das ideias deste campo de estudo para o trabalho aqui

apresentado.

O tema dos deslocamentos espaciais de sujeitos de um contexto para outro é uma

constante nas ciências sociais. Estes deslocamentos podem se dar dentro de um mesmo território

nacional ou perpassar esta realidade nacional, em direção a outros países. Por vezes tais

movimentos são denominados de migrações (um emigrante sai de seu país de origem e se torna

16 Há, obviamente, uma diferença entre as pessoas postas em cada uma destas categorias. Os primeiros,

os intercambistas (que possuem o visto temporário IV da Polícia Federal), se vêm inseridos dentro de uma

jurisdição específica, e estão sempre por um período limitado de tempo no país que os recebe. Caso queiram

continuar no país precisam pedir autorização. Já os segundos, os imigrantes, em suas diversas ramificações

(refugiados, profissionais etc) não estão necessariamente com seus dias contados no país no qual chegaram. Ainda

assim, acredito ser possível traçar paralelos bastante pertinentes da situação de cada um deles através do estudo do

caso dos sujeitos que recaem nestas duas categorias. 17 Cf. Turner, p. 384-386 para uma definição completa do termo migração.

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imigrante no país ao qual chega), e comportam diversas modalidades. Estas migrações podem

ser feitas por sujeitos à procura de refúgio18, de trabalho, ou, no que nos interessa mais

especificamente nesta pesquisa, em busca de uma boa educação. Isso não exclui a possibilidade

de tais interesses coexistirem. Cada um destes tipos de migração comporta diferentes

motivações e diferentes representações.

Em seu estudo clássico sobre os motivos que levaram a uma grande migração argelina

em direção à França, Sayad (1998) denuncia uma perspectiva que leva em conta somente os

elementos de imigração para a explicação do fenômeno migratório como um todo. Por esta

ótica, critica o autor, a migração é vista através de uma via de mão única. Nesta perspectiva de

mão única leva-se somente em consideração os impactos – na maioria das vezes negativados –

que os imigrantes causam aonde chegam. Os motivos que levaram a pessoa a se tornar, em

primeiro lugar, um emigrante, são invisiblizados. Diversos problemas surgem de tal visão, o

mais óbvio sendo a perspectiva fundamentalmente a-histórica que ela comporta. No caso de

Sayad, essa falta de sensibilidade histórica é sentida na medida em que os franceses não aceitam

as consequências dos seus processos coloniais, que tem como uma de suas frentes a chegada de

argelinos ao país.

Em seu livro “A imigração ou os paradoxos da alteridade”, o autor levantou algumas

questões que se mostram pertinentes para todos os tipos de migração. Uma dessas questões é

relativa aos fatores de expulsão. Partindo das condições da Argélia e dos discursos construídos

em torno desta realidade pelos sujeitos que de lá partiram, Sayad demonstra “[...] o itinerário

do emigrante (emigrante de lá...) e do imigrante (imigrante aqui...) ”. Tratava-se, em seu tempo,

de se desfazer de uma retórica que partindo de um pressuposto etnocêntrico, qual seja, o de que

a migração se torna um problema somente no momento em que a pessoa se torna um imigrante,

escondia ou invisibilizava os motivos pelos quais ela se torna, antes de tudo, um emigrante.

No caso argelino descrito pelo autor, diversos fatores entram em jogo, inclusive uma

narrativa dissimulada de bonanças encontradas na França quando na realidade era essa a terra

da Elghorba19. Outro fator é também a história colonial. A Argélia foi uma colônia francesa, o

que gerou uma série de desigualdades econômicas entre os dois países e, como decorrência

destas desigualdades e das posições dos franceses dentro da sociedade argelina, uma

18 O caso atual deste tipo de migração mais divulgado é aquele dos refugiados que chegam à Europa em

busca de condições melhores de vida. Grupos de algumas nacionalidades se destacam neste tipo de migração,

notadamente os haitianos em direção ao Brasil e os Sírios, que se deslocam para diversos lugares do mundo, mas

que formam hoje uma grande comunidade na Alemanha. 19 Sayad. 1998. P.288. “ Elghorba: o exílio; de ghorb: o poente - o exílio sempre vai para o poente e ele

mesmo é um “poente” (trevas, escuridão, declínio, morte etc) ”

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desigualdade nas representações de cada país20. Tal contexto acaba por criar uma vida na aldeia

que, segundo Sayad, tem a França em mente durante todo o tempo. Como um de seus

entrevistados coloca:

“Em nossa aldeia, temos mais gente na França do que na aldeia. Por mais que

eu conte [...] sempre encontro mais homens na França do que em minha aldeia.

Quando eu estava lá na aldeia, havia momentos em que nós [os poucos homens

da aldeia] éramos tomados pela ‘solidão selvagem’ [o terror]. Eu estava a

ponto de partir[...]. Não temos muita gente na terra. E ainda, quem está na

aldeia? Somente os ‘quebrados’ e os ‘tortos’, os que não servem para nada”

(SAYAD, 1998, p.30)

O que nos parece importante em tal análise é a consideração dada a estes dois

momentos, o de emigração e a sua consequente imigração, que traz à tona aqueles fatores de

expulsão relevantes para os estudantes congoleses no Brasil. Sabemos que não se trata de

transpor conclusões feitas num período e num espaço diferente para a realidade brasileira

analisada. Além do mais, não se tratam aqui de pessoas que estão numa migração para trabalho.

Tratam-se de estudantes que escolherem o Brasil como destino de estudo. Mas, ainda que estes

sujeitos não estejam, necessariamente – como iremos ver no último capítulo -, à procura de

trabalho e de uma estabilidade no Brasil, é preciso, para se entender como eles se tornaram

intercambistas no Brasil, primeiramente atentar para os motivos dados por eles para a sua saída

da RDC.

Assim como qualquer outro movimento de deslocamento espacial é possível visualizar

alguns fatores de expulsão na RDC, como é o caso da insegurança política e, em algumas

regiões do país, as dinâmicas de conflito entre diferentes milícias e entre milícias e forças do

governo (STEARNS e VOGEL, 2015), principalmente em Sud-Kivu e Nord-Kivu, que fazem

divisa com a Ruanda e o Burundi. Foi nessa região que, entre os anos de 1997-1998, a guerra

que tirou do poder Mobutu Sese Seko e colocou em seu lugar Laurent Kabila - pai do atual

presidente, Joseph Kabila -, teve início. Como consequência desta série de conflitos, o país vive

uma instabilidade política que perdura até os dias atuais. Tal instabilidade pode ser percebida

através da recusa do atual presidente em chamar eleições diretas no país, apesar da insatisfação

de boa parte da população21.

20 Estas realidades coloniais originam uma série de questões para as ex-colônias. Ver, por exemplo, o

importante livro de Stuart Hall, “Da Diáspora”, onde o autor trata das diversas questões emergentes nos estudos

pós-coloniais. 21 Como pode ser visto no relatório do Congo Research Group, do Center on International Cooperation,

encontrado em http://cic.nyu.edu/publications/impasse-congo-what-do-people-think. Acessado em 29/03/2017.

Dentre outras coisas, o relatório aponta para uma insatisfação com os dirigentes políticos atuais e a sua manutenção

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Ainda como um fator forte de expulsão, que denota o constante deslocamento da

população, há alguns relatórios sobre a situação de refúgio no país. No mais recente a RDC

surge como um dos países que mais recebe e que mais cria refugiados no continente africano,

o que mais uma vez demonstra a familiaridade com os constantes processos de mobilidade de

sua população, seja por conta de perseguição política ou pela violência acentuada que afeta

algumas regiões do país22. Além da instabilidade, existem outros indicadores que expressam

bem o motivo da expressiva saída de estudantes do país, como é o caso da alta taxa de

desemprego no país, que no ano de 2013 - o último em que tal taxa foi medida - estava em

46,1%23. Para além disso, veremos mais à frente, no último capítulo deste trabalho, alguns dos

motivos dados pelos próprios estudantes para a sua vinda ao Brasil.

Mas o que é que existe de semelhante entre, por um lado, a migração descrita por

Sayad referente aos grupos de trabalhadores argelinos na França e o caso dos estudantes

inseridos nos fluxos internacionais, ambos sujeitos a processos de mobilidade? Como ambos

são estrangeiros em outros países vemos que algumas consequências destes processos de

deslocamento são recorrentes.

Brito (2010. P.435) destaca o que chama de “familiaridade com os processos de

mobilidade espacial”. Seriam estas familiaridades que, em conjunto com outras variáveis de

fatores, facilitariam os deslocamentos. Aqueles que já passaram por uma experiência prévia de

mobilidade, seja no ensino médio, seja em cursos de língua, estariam mais aptos – isso é o que

suas entrevistas qualitativas sugerem – a participar de tais processos no ensino superior. Outro

fator de destaque é a proximidade que o sujeito encontra dentro de seu núcleo familiar em

relação a viagens para estudos no exterior. Como a autora demonstra, muitos dos que hoje

fazem intercâmbio fora do país já possuíram familiares que fizeram a mesma coisa.

Antecipando parte do trabalho desenvolvido na análise das entrevistas junto aos estudantes da

RDC, tal tendência também é encontrada no caso estudado. Como vemos nas entrevistas, todos

indefinida no poder. Os atuais dirigentes se mantêm no governo à revelia da duração de seus mandatos e também

de acordos travados no passado. 22 Sobre o fluxo de refugiados no país ver o site da UNHCR, em especial o relatório de 2012, In:

http://www.unhcr.org/protection/operations/524d82059/democratic-republic-congo-fact-sheet.html. Acessado em

24/04/2017. Sobre o fluxo de refugiados da RDC em direção ao Brasil, ver relatório resultante de uma parceria

entre ACNUR e CONARE que, entre outras coisas, aponta para um número total de 2,167 solicitantes de refúgio

congoleses (as) no país, In:

http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php?file=fileadmin/Documentos/portugues/Estatisticas/Sistema_de_

Refugio_brasileiro_-_Refugio_em_numeros_-_05_05_2016

. 23 Sobre isso e outros dados do país. https://tradingeconomics.com/congo/unemployment-rate

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os estudantes (excetuando um, que não veio para o Brasil via PEC-G) possuem parentes que

moram fora da RDC, um deles tendo inclusive um primo no Brasil.

Mas afora estas semelhanças que possibilitam a migração, podemos ver uma série de

continuidades entre as diferentes classes de migrantes (executivos, exilados, à trabalho,

estudantes, etc). Como decorrência mais uma vez da importância de se pensar tanto a emigração

quanto a imigração (SAYAD, 1998), a existência destes sujeitos é marcada por um malabarismo

entre diferentes sistemas de referência, um proveniente de sua terra de origem e outro do país

ao qual chegam. Aquele que vem para o Brasil para estudar é constantemente lembrado de sua

condição de estrangeiro por conta de suas predisposições culturais. Isso também pode ser dito

em relação aquele que vem à trabalho ou a procura de refúgio.

Uma segunda semelhança é a criação de um “envelope protetor” (BRITO, 2010, p.445)

que circunda estas pessoas. Tal envelope é responsável pela primeira socialização daqueles que

chegam. Este é geralmente composto por conterrâneos que já se encontram no país e que

conhecem as leis de funcionamento do lugar. Isso pode ser visto por qualquer um que frequente,

por exemplo, os restaurantes universitários da universidade, onde os estrangeiros estão, na

grande maioria das vezes, sentados em seus grupos. Isso também pode ser visto na chegada dos

novos estudantes na cidade, que são recepcionados por seus conterrâneos poucos dias depois

do desembarque.

A autora ainda discute a utilização instrumental das vantagens do deslocamento para

outros países. Para ela, quanto mais as pessoas estão familiarizadas com os processos de

deslocamento, mais elas passam a ter um certo conhecimento sobre como se portar nessas

condições. Além disso, existe, naqueles que participam destes processos, uma série de

vantagens em relação aqueles que não participam. É a esta familiaridade aprendida e

internalizada que a autora chamara de “habitus de migrante”.

Não me proponho tanto a utilizar um desdobramento da teoria de Pierre Bourdieu

sobre a forma como estes habitus são criados e perpetuados. O que tal conceito indica pode ser

trabalhado por outra perspectiva. Tal intuição em relação a existência de um “habitus de

migrante” mobiliza observações importantes para uma teoria da ação, uma vez que destaca a

emergência de um sujeito que aprende a agir no mundo. O que tal noção possibilita é a

emergência da ideia de que aqueles que chegam a outro lugar não estão fadados a um destino

de imposições, ainda que, obviamente, estejam inseridos em relação de poder e de desigualdade.

Os atores que participam destes processos de deslocamento também o fazem de uma forma

orientada por seus conhecimentos passados. Isso é possível porque existe, no deslocamento, o

aprendizado de uma série de elementos inerentes a este processo que eram até então

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desconhecidos. O conhecimento de tais elementos é utilizado – de forma racional ou pré-

reflexiva - de maneira a angariar uma série de vantagens, seja em seu país de origem, seja para

seus deslocamentos futuros ou seja ainda nos seus países de destino. A noção mesmo de

integração - muito utilizada na sociologia da imigração - é aqui questionada, uma vez que não

se trata mais de impor ao sujeito uma necessidade de integração para o seu “bem-estar” ou a

para a sua “plena socialização”. Não se trata mais, nesta perspectiva, de uma socialização que

ocorre de cima para baixo. Não se opera mais, aqui, a partir da ideia de que aqueles que chegam

precisam assimilar a cultura do país que os recebe em detrimento de sua cultura “original”.

Segundo Brito (2010), em relação à migração na França:

“A observação mostra [...] que as diversas comunidades se integram à França

em ritmos diferentes, inventando suas próprias maneiras de se integrar, por

vezes contra os modelos preconizados e os desejos das populações autóctones:

[...]. Os habitantes de cada um desses países se integram segundo sua própria

conveniência, segundo estratégias fundadas sobre as diferentes trajetórias dos

indivíduos (Zèroulou, 1998) que compõem a migração. Eles se integram ou

se tornam franceses sem deixar de preservar sua identidade cultural – que ‘não

é a preservação do idêntico’ (Marie, 1999, p.104) porque a identidade de

origem [se é que ela existe] se transforma, em contato com a sociedade de

recepção. Ao desenraizamento se sucede um enraizamento no seio da estrutura

francesa, numa dupla dinâmica que não exclui nem a valorização de certos

aspectos da cultura de origem, nem certos aspectos da cultura do país de

recepção (Zehraoui, 1996)”

(BRITO, 2010, p.442)

Para o caso de estudantes em mobilidade acadêmica, esta crítica à ideia de integração

é ainda mais importante, uma vez que irão passar um tempo determinado de antemão no Brasil.

Mais do que integração, o que eles buscam aqui são uma série de vantagens que somente uma

educação internacional pode lhes proporcionar. Estas vantagens são, no mais das vezes,

pensadas através de uma integração aos seus países de origem. Vêm-se ao Brasil para ter uma

vida melhor no país do qual saíram.

Tal argumento nos traz um questionamento sobre a ação dos sujeitos. No caso

estudado, a vinda para o Brasil se insere num projeto de vida maior. Existe aqui uma

sobreposição de interesses. A estada no Brasil é orientada por aqueles ideais construídos nos

seus países de origem. Por conta disso é necessário que ao falarmos em sujeitos engajados em

uma multiplicidade de relações sociais também precisamos discutir, num plano teórico, as

motivações, ou os modos pelos quais podemos compreender as motivações daqueles que aqui

se encontram. Neste sentido, a utilização de uma teoria que considere os sujeitos e suas ações

– uma teoria da agência propriamente dita – é valiosa.

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25

Ao falar em agência, Ortner (2006) estabelece alguns parâmetros pertinentes para tal

discussão. Primeiramente a discussão proposta pela autora procura entender como a cultura

constrói tipos específicos de atores sociais que atuam cotidianamente, e como, através das suas

atitudes e de seus modos de vida estes atores reproduzem e transformam – geralmente ao

mesmo tempo – a cultura que os cerca. Neste sentido, a teoria da agência tem como questão

norteadora a forma como as sociedades e suas culturas se transformam, não tanto de forma

antagônica – como por exemplo na teoria marxista -, mas também pela ação de sujeitos com

interesses variados.

Esta perspectiva que leva em consideração a ação dos agentes não tem como

pressuposto uma suposta liberdade destes em relação às estruturas que os cercam. Sobre isso,

Ortner (2006) destaca dois pontos. Primeiro que os agentes não estão sempre em uma dinâmica

de oposição em relação ao que os cerca, ou àquilo que se dá o nome de “determinações sociais”,

e segundo que, uma vez que estas ações individuais são atos demarcados socialmente, elas

também se inserem em relações de desigualdade e poder, indo tanto contra isso quanto na

mesma direção.

Parte das críticas feitas à noção de agência recae em alguns dos pontos levantados

acima, notadamente naquilo que toca a ideia de liberdade individual. Algumas destas críticas

são: a relação agente/estrutura e os diversos modos de tencionar tal dinâmica, e as imbricações

existentes entre questões de agência e de poder. Segundo os Comaroff (1992, APUD ORTNER,

2006, p. 48) tal ideia de que sujeitos conseguem triunfar sobre seus contextos através de sua

própria força traz, a reboque, um etnocentrismo, uma vez que a noção de agência partilha do

pressuposto ocidental de que é possível triunfar sobre o contexto em que se está inserido. A

segunda crítica feita por estes autores é a de que à medida em que se utiliza tal conceito de

agência, deixa-se de dar a devida atenção à dimensão histórica dos fatos sociais. A tal

movimento, os Comaroff dão o nome de “simplificações grosseiras dos processos históricos”,

o que levaria a uma compreensão muito inadequada do que realmente está acontecendo. Como

uma decorrência lógica da perda da dimensão histórica das ações individuais dos sujeitos, surge

um novo problema. Para estes autores o que pode acontecer é que, uma vez em que os

pesquisadores se propõem a entender as ações individuais, eles se esquecem de que mesmo

estas ações não são, na maioria das vezes, dotadas de uma racionalidade no momento em que

ocorrem. Tal aspecto racional só é aplicado depois. Por fim, eles questionam a ideia de que os

atores são movidos por motivações e desejos conhecidos. Para os Comaroff (1992) tais

motivações são decorrência de processos históricos de longo prazo que não podem ser

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subtraídos a ações individuais e que, para além disso, não são no mais das vezes racionalizados

por aqueles que os realizam.

A defesa de Ortner (2006) vai no sentido de reconhecer tais críticas e amenizar suas

consequências. Ela acredita que tais questionamentos podem e devem ser feitos, mas também

mantém um distanciamento em relação as suas aplicações. Primeiro porque acredita que a

utilização da noção de agência não inviabiliza uma abordagem que leve em consideração o

poder do inconsciente dos agentes, tal como Giddens (1979) propõe em seu livro Central

Problems in Social Theory. Ela trata tal problemática do inconsciente adicionando motivações

emocionais em sua teoria da agência. Segundo porque, para a autora, a noção de agência, se

usada corretamente, não esconde os complexos processos históricos, do contrário. Como ela

diz, aqueles leitores de seus trabalhos:

“[...] will recognize [...] the framework of practice theory within which neither

‘individuals’ nor ‘social forces’ have ‘precedence’, but in which nonetheless

there is a dynamic, powerful, and sometimes transformative relationship

between the practices of real people and the structures of society, culture and

history.”24

(ORTNER, 2006, p.133)

Visto as críticas que recaem sobre a noção de agência, a autora irá definir os três

elementos que a compõem. Antes de mais nada a noção de agência, em Ortner (2006), é

marcada por um traço de intencionalidade, seja esta de uma ordem racional ou emocional.

Enquanto existe um consenso em relação à ideia de intencionalidade na definição de agência, a

autora aponta para a oposição entre as versões soft e hard dessas definições. Nas versões softs,

como a de Giddens, a medida de racionalidade nos atos com vista a algum fim é atenuada, de

forma a primeiro não possibilitar a existência de ações tomadas por agentes conscientes de seus

fins, e, segundo, dando espaço teórico para a ideia de um inconsciente ativo.

Para esta autora, tal visão gera problemas na medida em que não se consegue fazer a

distinção entre práticas cotidianas, realizadas todos os dias e com um baixo grau de

reflexividade, e aquelas que podem ser vistas como ações conscientes do sujeito. Neste sentido,

a autora se mantém mais próxima das teorias que definem a agência de modo hard, quer dizer,

aquelas em que a intencionalidade é enfatizada. Neste caso, a noção de agência supõe a

possibilidade de atos conscientes de sujeitos engajados em contextos sociais complexos com

24 “[...] irão reconhecer [...] a linha de trabalho da teoria da prática na qual nem os ‘indivíduos’ nem as

‘forças sociais’ tem ‘precedência’, mas na qual, contudo, existe uma relação dinâmica, poderosa e as vezes

transformadora entre as práticas de pessoas reais e as estruturas da sociedade, da cultura e da história”. Tradução

livre

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vista a um fim determinado. O que a autora sugere é que dentro destas intenções podem existir

vínculos emocionais que desempenham um papel importante.

O segundo elemento relevante da agência é a sua universalidade. Tal traço da noção

parece ser de concordância dentre todos os teóricos que ela discute. Neste sentido, a agência

existe enquanto um potencial latente em todas as pessoas e, por conta disso, está sempre inserida

em um contexto cultural e histórico específico. São estes contextos os responsáveis por

“plasmar” as capacidades individuais. Como a linguagem, que possui suas próprias leis de

funcionamento (a gramática por exemplo) e que pressupõe o aprendizado destas leis, mas que

tem também uma certa maleabilidade para aqueles que a utilizam, a agência também varia

conforme a localização de sujeitos em determinados espaços e tempos.

Por fim a autora destaca a importância das relações de poder para se entender o que

significa agência. Ortner destaca a conotação corrente de que agência tem a ver com

“resistência”, como uma prática de oposição a uma dada conjuntura. O que ela sugere é que

este é somente um tipo de agência. Além disso, é preciso destacar que os próprios atos são

compostos de poder, uma vez que transformam o mundo ao redor. Nota-se então a imbricação

destacada anteriormente entre agência e estrutura, reforçando a indissociabilidade entre estas

duas categorias. Neste sentido, é impossível separar agência daquelas questões “maiores”, tais

como colonização, gênero, raça, classe, ou seja, dinâmicas de desigualdade como um todo. É a

inserção ou não de sujeitos nestas múltiplas categorias que irão definir o seu potencial de

agência, ou pelo menos os meios pelos quais estes irão levar a cabo seus planos.

Como forma de entender a ação, Ortner irá citar dois tipos de agência. A primeira delas

é definida pelos termos da parte dominante, e se encena no binômio dominação/resistência. A

este tipo de agência a autora dá o nome de agência de poder. Essa agência pode ser tanto a

manutenção de um poder, quanto de resistência. Ambas as relações lidam com a utilização de

um poder, seja de cima para baixo, como na manutenção de um poder, quanto de baixo para

cima, contra uma certa força dominante.

O segundo tipo de agência é aquela definida pelas ambições e projetos específicos dos

atores. Existem aqui também determinações culturais sobre estas intenções, mas o foco dos

agentes não recai tão fortemente sobre aquelas questões de manutenção ou resistência a um

poder. A autora destaca que “a distinção entre agência de poder e agência de projetos é, em

grande medida, heurística” (ORTNER. 2010, p.68).

Mas, me parece que aqui é possível adicionar um outro tipo de agência, essa menos

combativa que aquele de poder, e menos óbvia que a agência de projetos. Homi K. Bhabha

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(2013), em um dos ensaios do seu livro “O local da cultura”25, se propõe a entender a maneira

em que a identidade é constituída naquelas pessoas que passaram pelos processos de imposição

colonial, como foi, por exemplo, o caso da inserção da bíblia na Índia por parte do governo

inglês. Neste trabalho específico, o autor sugere a ideia de “hibridismo” (p.185) para se entender

essa identidade decorrente do encontro entre duas culturas inseridas em condições desiguais de

poder – a metrópole e a colônia. Bhabha (2013) sugere que a emergência de sujeitos híbridos e

de suas contra-narrativas ocorre por conta da ambivalência da cultura. É por conta das

desigualdades inerentes aos processos coloniais que o autor lança mão do conceito de

ambivalência. Para ele é este um dos caminhos que possibilitam com que a novidade tenha lugar

em contextos de desigualdade. Como ele diz:

“O hibridismo é o nome desse deslocamento de valor do símbolo ao signo que

leva o discurso dominante a dividir-se ao longo do eixo de seu poder de se

mostrar representativo, autorizado. O hibridismo representa aquele ‘desvio’

ambivalente26 do sujeito discriminado em direção ao objeto aterrorizante,

exorbitante, da classificação paranoica – um questionamento perturbador das

imagens e presenças da autoridade”

(BHABHA, 2013, p. 188)

A ideia de ambivalência me parece interessante aqui por dois motivos. Primeiro porque

ela conjuga o aspecto racional/irracional da noção de agência e segundo porque, ao considerar

a ambivalência dentro dos processos de hibridização como algo inerente aos modos pelos quais

a cultura é consumida, ela nos possibilita questionar a existência de um terceiro tipo de agência.

Esta seria uma agência por ambivalência. Aqueles sujeitos inseridos em relações desiguais de

poder conseguem, nas suas ações dentro da cultura na qual se inseriram ou foram inseridos,

reconstruir seus lugares. Aqui mais uma vez é preciso ressaltar que tal ideia só faz sentido se

aceitarmos o pressuposto de que isso se dá tanto através da sua consciência quanto aos seus

poderes de transformação, quanto naqueles que não se preocupando com tal potência ainda sim

guardam tal capacidade em seus atos. Mas antes de tomar como encerrada a discussão acerca

das capacidades de um sujeito em se inserir e conviver num espaço outro daquele que ele veio,

é preciso fazer uma consideração.

Ao se falar em agência precisamos agir com cautela para não recair sobre um

individualismo, como foi ressaltado anteriormente. Quer dizer, se os estudantes que aqui

chegam reinventam suas identidades e os modos pelos quais se entendem e são entendidos pela

25 Me refiro ao ensaio com o nome “Signos tidos como milagres: questões de ambivalência e autoridade

sob uma árvore nas proximidades de Delhi, em maio de 1817”. 26Grifo de minha autoria

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comunidade da qual passam a fazer parte, eles não agem sozinhos para o prosseguimento de

seus atos. Como os próprios estudantes destacam em suas falas, suas famílias desempenham

um papel importante em sua estada no Brasil. O planejamento de vir para o Brasil como forma

de cursar o ensino superior é feito em parceria com sua família, que está presente tanto na vinda

quanto no dia a dia daqueles que aqui estão. Aqui está então um motivo que impossibilita uma

utilização individualista da noção de agência, uma vez que a própria utilização do termo

pressupõe um sujeito precedido por relações sociais.

Claro que, na medida em que o contato com o seu país continua (tecnologias para tanto

não faltam), é possível a existência de uma reconstrução conjunta destes planejamentos. Assim

sendo, os sujeitos no Brasil podem discutir com seus familiares planos de, por exemplo, se

manterem no país para estudos de pós-graduação27. Mas existe algo que ultrapassa suas

famílias, e isso diz respeito às relações que eles estabelecem aqui. Como experiência de

deslocamento, o intercâmbio também coloca o estudante como protagonista (agora mais do

nunca em sua trajetória) de sua própria vida.

Esperamos demonstrar no decorrer do trabalho como tais questões de agência (a sua

intencionalidade, universalidade e as relações de poder que as cercam) são relevantes para a

compreensão do caso dos estudantes que vieram para o Brasil, e que neste contato com outra

nação precisam reinventar os modos como são vistos e como se percebem.

2.3: O caso da mobilidade de estudantes estrangeiros no ensino superior no Brasil.

Discutimos então algumas das constantes nos trabalhos produzidos sobre um grupo

mais ou menos específico de estudantes na universidade brasileira: estudantes provenientes do

continente africano que estão no Brasil. Não pretendemos com isso assinalar uma

homogeneidade de qualquer tipo ao falarmos em “estudantes africanos”28. A escolha foi feita

por alguns motivos de ordem mais prática.

O fluxo internacional de estudantes tem sido um tema de debate constante nas ciências

sociais. Algumas questões nesta área de estudos se tornaram centrais, como o fenômeno da fuga

de cérebros ou ainda a importância dessas mobilidades acadêmicas para a formação intelectual

das elites nacionais (ALMEIDA et al, 2004). Há, por isso mesmo, uma vasta bibliografia sobre

27 Como me foi contato por um entrevistado 28 A escolha do termo também é em parte uma constatação de que, seja por motivos de reconhecimento,

seja por motivos de imposição (o que parece andar mais ou menos lado a lado no caso da formação das

representações que perpassam este grupo de estudante) os próprios estudantes africanos – berço de uma infinidade

de culturas – se autodenominam como tais. Ver, por exemplo, Mungoi (2012)

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o tema (LOMBAS, 2011; GUIMARÃES, 2002; SCHWARTZMAN, 2001; SOBRINHO, 2005;

MOROSINI, 2011, BRUM, 2009, 2010, 2011, 2014; FERREIRA E MOREIRA, 2002; BRITO,

2004). Esta bibliografia sobre mobilidade acadêmica centra-se nos efeitos do deslocamento de

estudantes brasileiros em direção ao exterior.

Mas quando o assunto são os estudantes estrangeiros que vêm para o Brasil nota-se

uma produção bibliográfica mais acanhada. Houve ainda a constatação de que quando o tema

da mobilidade de estudantes africanos é abordado nas ciências sociais brasileiras, o grupo que

foi mais estudado é aquele de sujeitos do PALOP29. Juntamente a isso, se coloca mais uma

questão para a escolha desta bibliografia. Como nos dispusemos a analisar o caso dos estudantes

da RDC, e uma vez que não existem trabalhos sobre tais estudantes no Brasil, ampliamos o

escopo dos textos, abordando então toda a região da África.

Existe ainda um dado interessante da produção bibliográfica sobre este tema. Vemos

que metade dos autores mobilizados para este subcapítulo é ou foram eles mesmos

intercambistas no Brasil, em sua maioria na pós-graduação. Esta parece uma sugestão forte de

que aqueles que passam por este processo de deslocamento inerente ao intercâmbio, percebem

a sua condição como uma questão que pede uma análise social. Desta forma, em três dos seis

artigos produzidos, os autores estavam eles mesmos neste processo de deslocamento espacial.

Um destes é Kaly (2001), que parte da narrativa de sua própria trajetória educacional no Brasil

para discutir algumas questões relevantes para o assunto.

A primeira questão, e talvez uma das mais recorrentes em todos os trabalhos talvez

seja aquela relativa ao preconceito racial enfrentado pelos estudantes africanos no Brasil

(KALY, 2001; SUBUHANA, 2009; MASSART, 2002; GUSMÃO, 2011; MUNGOI, 2012;

PIRES, BERNER e FRANÇA, 2016). Ao chegaram ao Brasil existe da parte destes estudantes

a ideia de que estarão adentrando ao “paraíso terrestre” (KALY, 2001), onde as diferentes raças

convivem em harmonia. Tal quadro não poderia ser mais errôneo da realidade com a qual se

deparam aqui. O que eles encontram é um país que, por mais que tenha uma grande população

negra, ainda sim mantém diversas práticas de discriminação, como em um relato que Subuhana

(2009) recebeu de um estudante, o qual percebe o afastamento das pessoas quando está em

algum ônibus.

Os autores destacam algumas das especificidades do racismo encontrado pelos

estudantes. Primeiramente se tratam de estrangeiros: negros estrangeiros. Para Massart (2002)

o pertencimento à categoria administrativa de estrangeiro surge com certa ambivalência.

29 “Países africanos de língua oficial portuguesa”, os quais são: Angola, Moçambique, Cabo-Verde,

Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.

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Primeiro ela define o lugar exterior que o estudante pertence em relação à sociedade brasileira:

ele é alguém que veio para cá, mas que não é daqui. A segunda consequência de ser estrangeiro

– esta mais próxima da discussão racial – é a forma como tal categoria impacta nas

representações que se constroem sobre os estudantes do continente africano. Ser estrangeiro

também é uma forma de diferenciação social em relação ao negro brasileiro, como coloca um

entrevistado de Massart, que diz: “Aqui no Brasil, a discriminação [racial] é grande. Talvez não

para nós; logo que sabem que és estrangeiro, o relacionamento contigo muda” (MASSART,

2002. P. 281).

Mas, como bem já salientou Sayad (1998), ser estrangeiro não é a mesma coisa para

todos os estrangeiros. Se é possível dizer que o mundo é constituído pelas desigualdades entre

diferentes países, também é possível dizer que esta desigualdade perpassa os sujeitos destes

diversos países. Dado óbvio desta desigualdade é a invisibilidade que determinados espaços

possuem no reconhecimento geográfico do mundo. Quero dizer: todos nós sabemos onde fica

a Europa e quais são, mais ou menos, os países principais que constituem este continente - o

mesmo não acontece com o continente africano. Para muitos a África surge como um país por

si só. As especificidades de cada país são diluídas numa espécie de africanidade, que ressoa até

mesmo na forma como estes estudantes podem se fazer entender no Brasil (MUNGOI, 2012).

Essa categorização tem efeitos sensíveis para os estudantes que aqui chegam. Como

destaca Mungoi (2012), para o caso dos intercambistas na cidade de Porto Alegre, os grupos de

“africanos” tendem a estabelecer redes de contato entre eles mesmos. A proximidade linguística

é, para muitos, um dos motivos, uma vez em que o francês é uma língua disseminada em

diversos países do continente. Outra similaridade entre os diferentes grupos é a condição na

qual se inserem: todos são estrangeiros em outro país.

Desta forma, os estudantes se reúnem em torno da africanidade que partilham para se

reconhecer e serem reconhecidos (MASSART, 2012; MUNGOI, 2012; SUBUHANA, 2009;

KALY, 2001). A utilização de tal categoria tem muito a ver com a forma equivocada com que

a África é entendida, uma delas sendo a sua falsa existência como país. Outros equívocos

comuns levantados na bibliografia recaem sobre falsas imagens do continente africano,

principalmente aquelas em que as pessoas estão morrendo de fome; vivem no meio da floresta;

são todos bandidos armados e por aí vai.

A realização de eventos - como é o caso das festas africanas realizadas em Porto

Alegre, ou aquelas no Rio de Janeiro, feitas por cabo-verdianos – são importantes momentos

para alterar tais representações. São estes os espaços em que muitas vezes é possível mostrar

traços culturais específicos de cada país até então desconhecidos. Desta forma, mais do que

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somente diversão, as festas são também espaços de ensino sobre aquilo que existe de particular

em cada nação da África, ou, também, sobre o que pode existir de constante entre diferentes

nações dentro do continente africano. Mungoi (2012) acentua tal “função pedagógica”30 no

seguinte trecho:

“As festas africanas como são designadas por muitos brasileiros e africanos,

constituem uma das formas mais importantes de sociabilidade dos estudantes

africanos em Porto Alegre. É nestas festas que ocorre a convergência dos

diferentes sub-grupos e grupos dos estudantes africanos e a sua interação com

a população local. A festa neste sentido se torna um cenário intermediário para

a articulação dos diferentes grupos e assume uma função pedagógica. ”

(MUNGOI, 2012. p.129-130)

Existe ainda um fator de destaque para o estabelecimento das redes de sociabilidade

que é destacado no caso do Porto Alegre. Este elemento é a existência da casa estudantil da

cidade, que recebeu muitos dos estudantes que haviam chegado no país. Este é um espaço onde

este grupo de intercambistas pode se encontrar e conviver.

Podemos dizer que em Curitiba não é diferente. Aqui temos a CEU, fundação que

disponibiliza moradia estudantil para aqueles que vieram de outras cidades (ou países) e

procuram preços mais acessíveis para morar numa região central da cidade. O preço do aluguel

sai, em média, 250,00 R$ por mês, valor consideravelmente menor do que o aluguel de qualquer

apartamento no centro da cidade, mesmo dividindo com outras pessoas. Quando um dos

primeiros grupos de congoleses chegou em Curitiba, no ano de 2011, estes foram trazidos pelo

cônsul brasileiro na RDC, que por sua vez havia entrado em contato com a fundação da CEU.

Como estes estudantes não poderiam apresentar alguns dos documentos exigidos para a

participação na banca julgadora, a intermediação feita pelo embaixador foi crucial para o

estabelecimento deste grupo lá. Com o tempo a CEU passou a ser o principal local para moradia

de estudantes estrangeiros, principalmente para aqueles que, por sua condição de recém-

chegados à cidade, ainda não podiam arcar com o valor de um aluguel.

A existência da CEU como moradia estudantil aparece como uma possibilidade

bastante interessante também pela dificuldade de o estrangeiro conseguir alugar um

apartamento na cidade. Todos os estudantes que vieram para o Brasil conveniados ao PEC-G

possuem o visto temporário IV (PIRES, BERNER e FRANÇA, 2016). Este visto, direcionado

para estudantes que entram no Brasil, impede estes de exercerem atividade remunerada, com

pena de notificação ou mesmo deportação. Conciliado a isto, existe a impossibilidade de se

alugar um imóvel na cidade, seja por conta das exigências das imobiliárias (que somente

30 Cf. Mugoi, 2012, pp. 129-130.

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aceitam, entre outras coisas, fiadores que tenham outros imóveis no país em seu nome), seja

por conta do medo que muitos proprietários podem experimentar de que os locatários voltem

para seus países de origem, como me foi relatado por um dos estudantes.

Esta dificuldade na hora de se alugar uma casa talvez marque bem uma das questões

recorrentes que a bibliografia sobre o assunto aborda. Para aquele estudante que vem cursar o

ensino superior no Brasil, uma divisão logo fica clara. Existe por um lado a universidade que o

recebe, representada por seus alunos, técnicos, professores e espaços de convivência, e, por

outro, uma sociedade mais abrangente, para além da universidade, nos ônibus, bares, cafés,

mercados, imobiliárias, etc. Tal divisão é importante para se pensar nas formas como

estrangeiros e diferentes grupos étnicos se “integram” à sociedade da qual passam a fazer parte

(POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1997).

Carlos Subuhana (2009), ao falar sobre sua própria trajetória educacional - em especial

no momento de sua chegada no Brasil – explicita tal ponto. Para ele estes dois âmbitos de

socialização ficam bastante claros para os intercambistas, que tendem a estabelecer suas redes

de contato na universidade. Esta é também uma das diferenças mais notáveis entre aqueles que

se deslocam a trabalho – imigrantes tais como problematizados por Sayad - e aqueles que se

deslocam por motivos educacionais. Para estes últimos a socialização e a integração se dão de

maneira muito diferente do que para os primeiros. Esta é uma diferença tanto no que toca a

quem são as pessoas, quanto ao tipo de relação que é estabelecida. 31

Ainda existe outro tema recorrente nos trabalhos sobre estudantes africanos no Brasil:

os projetos de vida. Tanto Subuhana (2009), na descrição de sua trajetória educacional, quanto

Massart (2012), em seu estudo dos estudantes cabo-verdianos na cidade do Rio de Janeiro,

levam em conta tal questão. O problema se põe de tal forma: uma vez que estes estudantes têm

todos um visto temporário para ficar no Brasil, como eles veem a sua provisoriedade no país?

Eles pretendem continuar aqui após seus estudos?

Parece um ponto pacífico entre estes dois autores o caráter provisório que o Brasil

ocupa nos planos dos intercambistas. Conforme o relato dos autores a maioria pretende voltar

para a sua terra. A ideia de contribuir com a nação é invocada por muitos. Aqueles que saem

31 Sobre esta diferença nas formas de integração dos sujeitos em deslocamento – os imigrantes e os intercambistas

– vale a pena um parêntese. Durante o trabalho de entrevista formal – posterior as diversas conversas informais –

tal separação entre a vida na universidade e aquela na sociedade “como um todo” ficou muito evidente. Nota-se

uma preponderância do ambiente acadêmico na hora do estabelecimento de vínculos, em especial por conta do

tipo de tratamento que é dispensado ao intercambista na universidade. Tal questão será discutida com maiores

pormenores no último capítulo.

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para estudar se sentem numa espécie de obrigação de ajudar os seus países de origem. Além

disso a saudade de casa é um elemento recorrente nas entrevistas.

G: Como é? Gosta de viver aqui no Brasil?

F: Gosto muito, apesar de sentir muita saudade da minha família. Sabe, cabo-

verdianos são muito ligados à sua terra, dá pra chorar de vez em quando [...]

G: Poderia imaginar ficar no Brasil?

F: Não viver, eu quero viver é em Cabo Verde. Cabo Verde é pequeno, não

tem problemas de morte, assalto, sequestro, estresse...

(MASSART, 2012. P.292)

Os estudos superiores feitos no Brasil, percebe-se nos textos levantados, são utilizados

para se levar à cabo um certo projeto de vida. Mais uma vez, aqui a noção – muito utilizada na

sociologia da imigração - de integração passa a ser questionada. De que tipo de integração

estamos falando? Mais do que a dissolução cultural de um sujeito numa cultura supostamente

homogeneizada e englobante (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1997), temos aqui sujeitos

que se inserem na sociedade brasileira com vistas a um fim específico. Não se tratam, como foi

demonstrado durante o capítulo, de trabalhadores que se mantém indefinidamente no país ao

qual chegam, mas sim de estudantes em mobilidade acadêmica. Estes últimos, diferentemente

dos primeiros, não estão buscando, seja pela melhora nas qualidades de vida, seja pela ilusão

que sustentam e sem a qual perderiam seu único lugar de existência – como indica Sayad para

os imigrantes argelinos -, de um estabelecimento indefinido no Brasil. A maioria pretende voltar

para casa: ajudar na construção de seus países; encontrar trabalho em casa; voltar para perto da

família.

Existem obviamente aqueles que dizem querer continuar no país, como veremos mais

adiante. Adiantando algumas conclusões, percebemos durante as entrevistas que para alguns o

Brasil ainda é uma possibilidade. Veremos mais à frente que tipo de possibilidade é essa e o

porquê de tal expectativa de permanência.

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3- Os programa de intercâmbio na UFPR

Num primeiro momento será feita uma breve história da internacionalização na UFPR,

onde iremos nos concentrar em destacar alguns dos momentos-chaves para esses processos.

Como tal história não está em formato escrito, nem em documentos na universidade muito

menos em livros sobre o tema, realizamos uma entrevista com alguém que participou

ativamente da questão. Na ocasião entrevistamos o professor e ex-diretor da ARI entre 2009 e

2016, Carlos José de Mesquita Siqueira, do departamento de Engenharia Mecânica. Foi através

de seu relato que chegamos a elaboração do texto, e somos, portanto, gratos pela sua

colaboração. Lembramos que não possuímos elementos para contextualizar a fala do professor

Siqueira num contexto mais amplo da internacionalização da universidade.

Além disso, são apresentadas aquelas redes de intercâmbio nas quais a UFPR está

inserida32. Fizemos um mapeamento destes programas e uma breve apresentação de cada um,

o que é importante na medida em que tal trabalho nos fornece um quadro das oportunidades de

intercâmbio para os estudantes que estudam na universidade e para aqueles que aqui chegam.

Além dos programas aqui apresentados, existem ainda uma série de parcerias entre a

universidade e outras instituições, essas mais difíceis e exaustivas para analisar, uma vez que

são muito frequentemente iniciativas departamentais ou, ainda, de professores específicos

dentro de departamentos específicos da instituição.

Conseguimos dados relativos ao envio e recebimento de alunos de alguns destes

programas, em especial dos programas: Associación de Universidades Grupo Montevidéu

(AUGM); Consortium for North Americans Higher Education Colaboration (CONAHEC);

Programa Estudante Convênio de Graduação (PEC-G) e o reingresso de imigrantes pelo

Programa de Ocupação de Vagas Remanescentes (PROVAR), o primeiro e o segundo sendo

disponibilizados pela ARI e o último que foi encontrado junto ao site do Ministério da

Educação33. Após a apresentação dos programas será analisado o caso específico de grupos de

estudantes participantes do PEC-G.

3.1. Uma breve história da internacionalização da UFPR34

32 A lista de programas foi elaborada a partir dos programas divulgados no site da ARI, responsável

administrativa pelo envio e recebimentos de alunos da instituição. A lista pode ser encontrada em:

http://www.internacional.ufpr.br/portal/pagina/36. Acessado em 22/03/2017. 33 In: http://portal.mec.gov.br/pec-g. acessado em 22/03/2017 34 Para aqueles interessados em saber um pouco mais sobre a história da internacionalização da UFPR

e a atuação do Professor Siqueira nesse âmbito ver: https://www.youtube.com/watch?v=aZa4Q180a-I

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Se, como vimos anteriormente, a internacionalização do ensino superior no Brasil

aconteceu de forma gradual e marcada pelo surgimento de agências reguladoras específicas

(CAPES e CNPq, principalmente), como foi que tal processo tomou forma na UFPR? Na falta

de material formalizado e específico sobre o tema, realizamos uma entrevista com o professor

e ex-coordenador da ARI, Carlos José de Mesquita Siqueira. É a partir do seu relato que será

traçada uma breve trajetória deste tema para o caso da UFPR.

De uma forma ou de outra, seja através de acordos formais ou pelo engajamento de

sujeitos específicos, a internacionalização sempre fez parte da universidade. Assim como a

bibliografia indica, mesmo que os programas não fossem administrados pela burocracia

universitária, os processos de mobilidade eram coordenados através de figuras-chaves dentro

dos departamentos. As iniciativas não eram formalizadas, uma vez que não existia, dentro da

universidade, uma agência responsável pela manutenção e a supervisão destes acordos. Isso

gerava uma série de questões, a principal delas sendo a falta de monitoramento destes alunos.

O mesmo pode ser visto no caso da UFPR. Pelo menos é isso o que o professor afirma:

“[...] em novembro de 1996 [...] surgiu de fato esse movimento (de

internacionalização)... pelo menos aqui nas engenharias... e comigo em

especial... dessa visão de promover acordos de cooperação da UFPR com

universidades francesas [...] mas dependia muito da vontade das pessoas [...]

não havia nada institucionalizado [...] não se pode dizer que havia uma

institucionalização da internacionalização.” (SIQUEIRA, 2017)

Como forma de exemplificar o modo como a mobilidade estudantil ocorria, o professor

dá o exemplo de um aluno que o procurou em certa ocasião. Segundo ele, o estudante disse que

gostaria de fazer intercâmbio para outro país. Nesta ocasião o professor Siqueira foi até o

coordenador de um programa de intercâmbio e comentou sobre o interesse do aluno de fazer

parte do programa. A resposta do professor foi a seguinte: “meu curso não tem nada a ver com

aquele... então não tenho porque nem como enviar aquele aluno”. Este tipo de gerenciamento

dos programas de intercâmbio, uma vez que estes não eram geridos pela universidade e ficavam

à cargo somente dos coordenadores de cada programa, foram usuais até a gestão do professor

Siqueira, quando então houve um esforço de formalizar tais processos.

Aquelas iniciativas de mobilidade eram então realizadas pelo coordenador em parceria

com uma universidade estrangeira, geralmente com a qual o professor tivesse algum histórico.

Era sobretudo através deste tipo de relação que a internacionalização ocorria. Além disso,

muitas vezes empresas privadas participavam em colaboração com a universidade, como foi o

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caso da Renault. Como professor do departamento de engenharia mecânica, o professor

Siqueira fez parte de uma comitiva da universidade convidada pela empresa para conhecer suas

instalações na França. Foi a partir desta comitiva que foi firmado um acordo entre as duas partes

(empresa e universidade), onde eram enviados alunos para a França e acolhidos alunos

franceses em Curitiba, já que, segundo o professor:

“[...] ela (a Renault) tinha interesse de receber alunos franceses em estágio

aqui e de enviar os nossos alunos para estágio lá... para então identificar o

perfil destes futuros engenheiros para que ela pudesse emprega-los aqui de

volta... então a nossa parceria com a empresa Renault favoreceu bastante essa

ampliação de novos acordos de cooperação”

(SIQUEIRA, 2017)

Assim podemos ter um quadro das formas como a internacionalização ocorria. Quer

dizer, torna-se claro que o processo foi se alterando no tempo, tornando-se gradativamente uma

questão de maior importância para a administração universitária conforme a

internacionalização se mostrava um processo central para a educação superior num mundo

globalizado.

A primeira iniciativa no sentido de institucionalizar estas demandas de mobilidade

acadêmica na UFPR foi na gestão de reitor do professor José Henrique de Faria (1994-1998).

Foi durante este período que surgiu o já extinto Escritório de Relações Externas (ERE), que não

ficava nem mesmo dentro da universidade, mas era sim um escritório alugado na Rua Marechal

Deodoro, e que, segundo o entrevistado, “[...] não tinha a função de promover a

internacionalização da UFPR”. Segundo Siqueira, ele tinha mais a função de organizar viagens

internacionais do reitor do que necessariamente promover a chamada internacionalização.

A ARI, responsável até os dias atuais por tudo que toca à mobilidade interna e externa

de estudantes UFPR, foi criada em 2003, na gestão de reitor do professor Carlos Augusto

Moreira Junior (2002-2006, 2006-2008). Apesar de sua criação, o professor entrevistado aponta

para uma diferente forma de gestão, onde é a partir de sua entrada neste órgão que a questão do

intercâmbio de alunos na graduação é levada em consideração.

Foi no ano de 2009 que o professor Siqueira passou a coordenador a ARI, durante a

gestão do professor Zaki Akel Sobrinho (2008-2012, 2012-2016). Segundo ele nos conta, sua

principal tarefa foi a de atender uma “demanda reprimida” para o caso de intercâmbio na

graduação. Como foi exemplificado acima para o caso do aluno que queria sair mas teve seu

pedido negado pelo coordenador do programa, havia para o caso da graduação o problema

representado “por esses alunos que queriam sair e não tinham como... porque não tinha um

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mecanismo através do qual eles pudessem oficializar a saída”. Uma das frentes nas quais essa

demanda reprimida foi abordada é a equivalência dos currículos, de tal forma que as matérias

cursadas fora do país tenham valor para a conclusão do currículo na universidade brasileira.

Outra prática instituída foi a de concessão de bolsas para estudantes participantes de alguns

programas de intercâmbio.

O professor Siqueira destaca então a centralidade que a internacionalização tem para

a organização da universidade. Para o professor, este eixo é, nos dias atuais, tão importante

quando a pesquisa, o ensino e a extensão, configurando-se então como um quarto eixo na

universidade. Todas as universidades nos dias atuais, pelo menos aquelas de grande porte, como

coloca o professor, levam em consideração a internacionalização na elaboração de seus

objetivos. Segundo seu relato:

“[...] hoje é impossível uma universidade que não pense nesse eixo

internacionalização porque com isso você ao internacionalizar o ensino da

graduação você promove uma formação aberta que visa contato com esse

mundo externo [...] isso é extremamente rico para a formação do profissional

como cidadão e como técnico... esse é realmente um ganho inestimável”

(SIQUEIRA, 2017)

Além de uma formação mais ampla para os alunos, o professor ainda comenta a

relevância de tal eixo para a própria universidade. Para ele, a internacionalização é responsável

por uma importante parcela do prestígio das instituições acadêmicas. Em sua fala:

“[...] certamente é um reconhecimento a médio e longo prazo para a

instituição... com isso se ganha tanto melhorando a participação nos rankings

né... quanto reconhecimento pela comunidade... então há várias frentes de

ganho... de fato é possível sim considerar a internacionalização um quarto

eixo.”

(SIQUEIRA, 2017)

A existência dos programas de intercâmbio para graduação surge então neste cenário,

quando passa a se considerar a mobilidade acadêmica como um eixo central da manutenção da

vida universitária. A assinatura de acordos de mobilidade se torna então uma questão relevante

na construção de um modelo de universidade.

Alguns destes programas ativos na UFPR serão expostos a seguir. Nesta exposição

fazemos uma breve apresentação do escopo de cada um deles e em seguida apresentamos os

dados quantitativos conseguidos junto aos órgãos responsáveis. A ARI foi a principal

colaboradora na obtenção destes dados.

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3.2- AUGM35

Este programa de intercâmbio é um convênio promovido pelo Grupo Montevidéu e

possibilita o fluxo de estudantes entre as universidades parceiras. Todo o processo se dá através

das administrações das próprias universidades, que recebem os pedidos tanto de vinda para a

sua instituição quanto de ida para outra. Este programa estabelece um período máximo de

estadia de um semestre fora da instituição de ensino de origem. Além de estudantes de

graduação, o convênio também torna possível o fluxo de pós-graduandos, professores e pessoal

técnico das universidades.

O programa se baseia na Declaração Mundial Sobre a Educação Superior, documento

da UNESCO de 199836. Nesta declaração se traçam alguns parâmetros e princípios para o

intercâmbio de pessoal de nível superior, onde se dá ênfase aos laços de solidariedade entre

instituições que surgem através destas práticas de internacionalização do ensino. Ao contrário

do PEC-G, por exemplo, onde o processo seletivo é feito primeiro pela embaixada brasileira no

país de origem e depois por um conselho formado por técnicos do governo e administradores

universitários, na AUGM todo o processo é realizado pelas próprias universidades conveniadas.

São avaliados tanto os pedidos de saída quanto de entrada nas universidades.

Existem algumas regras para a participação no programa. Uma delas é em relação ao

pagamento de custos de viagem e alimentação. Segundo o seu estatuto, existe uma divisão no

pagamento e manutenção destas atividades, que funcionam da seguinte forma. A universidade

de origem (ou seja, aquela que envia o estudante) deve arcar com o custo do transporte, bem

como com uma ajuda financeira para a manutenção da estadia estudantil. Já a universidade de

acolhimento, arca com os valores de moradia a alimentação dos estudantes. Vale notar que isso

nem sempre ocorre, pelo menos não com os estudantes que conheço, que por mais que não

paguem pela alimentação precisam arcar com os custos da moradia. Universidades com

alojamentos próprios e restaurante universitário podem fazer isso dentro de seus próprios

limites. No caso da UFPR, os estudantes conveniados da AUGM que residem em Curitiba têm

direito a utilizar o espaço do RU sem precisar arcar com os custos. Ao estudante fica a

responsabilidade de arcar com os gastos da obtenção do visto para viagem, e também os custos

com seguro acidente e saúde.

35 In: http://www.grupomontevideo.org/escala/ 36 Segue link para acesso à referida declaração da UNESCO.

http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-a-Educa%C3%A7%C3%A3o/declaracao-mundial-sobre-

educacao-superior-no-seculo-xxi-visao-e-acao.html

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Conseguimos junto à Assessoria de Relações Internacionais da UPFR uma série de

dados referentes tanto aos alunos que chegaram na instituição quanto sobre aqueles que saíram.

Os dados vão de 2001 até 2015. Mas existem algumas lacunas neste material, entre os anos de

2010 e 2015. Conforme o servidor técnico da universidade me informou, isso ocorreu porque a

pessoa que fazia tal trabalho antes dele não deixou indicação de onde estava tal material. Além

disso, existe ainda outra lacuna no material, referente a universidade de origem dos estudantes

que vieram para a UFPR nos anos de 2010, 2012 e 2013. Para aqueles da UFPR que foram

enviados para outras universidades o buraco é mais profundo, abarcando todo o período entre

2010 e 2013. Após o tratamento destes dados, vemos algumas constantes, explicitadas a seguir.

O material coletado abarca tanto aqueles estudantes que deixaram a universidade

quanto aqueles que chegaram. Primeiramente iremos tratar daqueles casos que vieram para a

UFPR. Percebemos que entre os anos de 2001 e 2015 (exceto aqueles já comentados), chegaram

a UFPR um total de 146 estudantes, sendo o ano de 2015 aquele de maior destaque, com um

total de 25.

O país que mais enviou estudantes para a UFPR foi a Argentina, com um número total

bastante superior a qualquer outro país do programa. Isso se dá muito na medida em que este é

o país parceiro que mais possuí universidades cadastradas no programa, no total de 11. Foram,

de 2001 a 2015, um total de 92 estudantes de universidades argentinas, 63% do total. O segundo

país a mais enviar alunos foi o Uruguai com um total - bem menor que o da Argentina, por sinal

- de 16, seguido então por Paraguai (10), Chile (8) e Bolívia (2). Os restantes dos 18 alunos são

dos anos de 2011 e 2014, em relação aos quais não está especificado qual a sua universidade de

origem. Para o grupo desta categoria, qual seja, o dos estudantes enviados para e recebidos pela

UFPR, o curso com a maior relevância quantitativa é arquitetura, com 12. Após, vem

administração com 10 e o direito com 9. Segue gráfico com os dados dos alunos que a UFPR

recebeu e seus países de origem:

Gráfico 1: AUGM: ALUNOS ESTRANGEIROS RECEBIDOS NA UFPR

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FONTE: ARI UFPR

Em relação aos alunos da UFPR enviados para outras instituições os dados são os

seguintes. Entre o período de 2001 a 2015 (exceto 2010, 11, 12 e 13) foram enviados um total

de 129 estudantes, sendo 2008 o ano de destaque, com 18 enviados. Novamente a Argentina

surge como o principal destino, se mostrando um destaque neste fluxo de alunos e em uma

consequente internacionalização do ensino superior. Ela foi o local de escolha de 92 dos 129,

72%, um percentual mais alto do que no recebimento de alunos. Algo que difere do grupo que

compreende os recebidos pela UFPR é o curso de maior relevância. Ao invés de Arquitetura e

Urbanismo, foi o curso de Letras da UFPR que mais enviou estudantes.

Gráfico 2: AUGM: ALUNOS UFPR ENVIADOS E PAÍSES DE DESTINO.

Argentina 57%

Desconhecidos18%

Chile10,00%

Paraguai9%

Chile4,70%

Bolívia1%

AUGM: Alunos estrangeiros recebidos na UFPR

Argentina Desconhecido Uruguai Paraguai Chile Bolívia

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FONTE: ARI UFPR

3.3-PEC-G37

O Programa de Estudantes-Convênio de Graduação é desenvolvido entre o Brasil e

outros países em desenvolvimento com os quais se mantém acordos educacionais e culturais.

Esse projeto se baseia na cooperação entre Brasil e outros países em desenvolvimento. Segundo

Rizzi (2012):

[...] o Programa de Estudante Convênio de Graduação (PEC-G), que teve sua

origem desde o final da década de 1920, administrado exclusivamente pelo

Ministério das Relações Exteriores até o ano de 1967, foi desenvolvido desde

então, com base na assinatura de Protocolos conjuntos, com prazos

indeterminados, entre os Ministérios da Educação (e as Instituições de Ensino

Superior) e o das Relações Exteriores (com a participação das Missões

Diplomáticas e Repartições Consulares)

(RIZZI, 2012, p.100)

Segundo a autora, o programa teve seu primeiro protocolo assinado em 1965 e, desde

este momento, o programa era regido por uma lógica de cooperação entre o eixo Sul-Sul. No

ano de 1979, entre as 65 universidades brasileiras parceiras do acordo, foram deslocados um

37 Para aqueles que quiserem ter acesso às tabelas que originaram a análise que se segue estou

disponibilizando um link aberto. In: https://drive.google.com/open?id=0B1NAQ-0B-75ac0FVSUVNYk9zbWM

Argetina72%

Uruguai13%

Paraguai7%

Chile6%

Bolívia2%

AUGM: Alunos UFPR enviados e países de destino

Argetina Uruguai Paraguai Chile Bolívia

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total de cerca de 1750 estudantes, sendo 60 % do continente africano (RIZZI, 2012). Confirma-

se então a importância dada pelo governo brasileiro à manutenção das relações diplomáticas

com os países da África, atores importantes na construção de um fluxo econômico e cultural

que se opusesse à hegemonia norte-americana e europeia daquele período.

Como um programa no qual as diretrizes são traçadas no Brasil, o fluxo de estudantes

respeita as escolhas e preferências do Brasil em relação aos países e número de estudantes, que

devem ter, preferencialmente (o que se confirma no trabalho de campo realizado em Curitiba),

entre 18 e 23 anos. A parceria se dá tanto entre universidades públicas quanto privadas, mas

nota-se uma preponderância de alunos em universidade públicas, pelo menos para o caso dos

estudantes com os quais travei contato. Abaixo segue a lista das universidades parceiras que

receberam estudantes da RDC até o atual momento:

Tabela 3: UNIVERSIDADES BRASILEIRAS COM ESTUDANTES DA RDC

CEFET – RJ FURB-SC FURG – RS IFBA – BA

IFCE – CE PUC- RS PUC-MG PUC-RJ

UDESC – SC UEG – GO UEL –PR UERJ – RJ

UFAL – AL UFAM – AM UFBA –BA UFC- CE

UFCG – PA UFF – RJ UFES –ES UFG –GO

UFRGS – RS UFJF – MG UFLA – MG UFMG – MG

UFMS –MS UFPA – PA UFPB – PB UFPE- PE

UFPEL – RS UFPI –PI UFPR – PR UFRJ – RJ

UFRRJ – RJ UFSC –SC UFSCAR – SP UFSCPA – RS

UFT – TO UFU – MG UFV – MG UNAMA –AM

UNB- DF UNESP – SP UNICAMP – SP UNILINS – SP

UNIRIO – RJ USP – SP UFP –RS UTFPR - PR

FONTE: Ministério da Educação

A inscrição para aqueles que querem participar do programa é feita, num primeiro

momento, junto à embaixada brasileira no seu país de origem. Lá os pretendentes a

intercambistas serão solicitados a entregar uma série de documentos, quais sejam: declaração

de compromisso; histórico escolar do ensino médio, o qual, segundo me foi informado pelos

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próprios estudantes da RDC38, precisa ter uma média maior que 80, caso contrário o pedido é

indeferido e um comprovante de capacidade econômica dos pais ou responsáveis, o que já

prenuncia os recortes de classe que se operam na escolha daqueles que podem participar do

PEC-G.

O processo seletivo passa então por duas fases. Primeiro os documentos entregues na

embaixada são analisados pelas próprias missões diplomáticas brasileiras. Esse é o primeiro e

maior corte na escolha dos estudantes, segundo foi relatado por um deles. A segunda parte do

processo seletivo é feita entre a Divisão de Temas Educacionais, a Coordenação-Geral de

Relações Estudantis e uma comissão indiciada pelos Pró-reitores das universidades brasileiras,

em Brasília. Neste momento os alunos são divididos entre as universidades participantes do

convênio. Para tanto são analisados os pedidos por parte dos estudantes de qual a cidade para a

qual desejam ir, o curso que pretendem cursar e as possibilidades de cada uma das

universidades. Muitas vezes, como me foi relatado, não existem vagas nas universidades das

cidades escolhidas, o que então faz com que os estudantes sejam designados para outro lugar,

condição que ele pode ou não aceitar. Este é o caso, por exemplo, da maioria dos estudantes

que se encontram na UFPR39.

Como muitos desses estudantes chegam ao Brasil de países onde o português não é a

língua utilizada comumente, existe um déficit linguístico que eles precisam superar. Este é o

caso de estudantes de Gana, da República Democrática do Congo, de Camarões, entre outros

países. Como parte do programa se exige dos estudantes que façam um curso de um ano de

português. Os cursos são dados no CELIN e são totalmente gratuitos. Muitos estudantes que

irão fazer suas graduações no interior do Paraná ou mesmo em outros estados, são enviados

para Curitiba para desenvolver o português40. É somente após este curso e a obtenção do

certificado de proficiência mínima que eles iniciam os seus estudos na universidade.

Dentre os programas aqui descritos, o PEC-G surge como aquele com a maior

relevância em termos de quantidade de alunos. De 2010 até 2016, o programa trouxe, somente

para a UFPR, seja para o campus litoral ou para os campi de Curitiba, um total de 73 alunos de

diversos países. O ano de 2013 foi aquele em que chegaram mais estudantes, 17. À partir deste

38 Todas as entrevistas feitas para a pesquisa foram juntos aos estudantes da República Democrática do

Congo que participam do PEC-G residentes em Curitiba. 39 Entrevistado “A”: “Primeiro eu escolhi São Paulo e Porto Alegre mas não tinha vaga... aí eu vim aqui

pra Curitiba... aí eu vim pra cá”. Entrevistado “B”: “Escolhi duas cidades... Belém e Porto Alegre... mas meu nome

saiu por aqui”. 40 Entrevistado “B”: “Sim... porque você escolhe a faculdade e dai eles escolhem o centro de

línguas...geralmente onde você vai estudar vai ser o centro de línguas... mas as vezes é diferente... as vezes não sei

por qual critério você faz... daqueles que chegaram agora nenhum deles vai ficar em Curitiba... todo mundo vai...”

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mesmo ano se percebe uma progressiva diminuição no número de alunos participantes. O ano

de 2016, por exemplo, conta com somente 8 novos estudantes que chegaram à universidade

pelo PEC-G.

Os estudantes que vieram para a UFPR provêm de uma multiplicidade de países, um

total de 20, do continente africano, da América do Sul, América Central e Ásia. Nota-se mais

uma vez a participação dos países em desenvolvimento. Nem a parte norte do continente

americano, muito menos quaisquer regiões da Europa possuem estudantes na universidade

através do PEC-G. O país que mais enviou estudantes é o Paraguai, com um total de 11. Logo

após vem a República Democrática do Congo, com um total de 9 estudantes, 9.5% do total,

configurando o país da África com o maior número de estudantes conveniados nesta

universidade.

No quadro geral do PEC-G, aquele que se refere aos números em âmbito nacional,

vieram, entre 2010 e 2016, um total de 242 congoleses para as universidades brasileiras

parceiras. Nota-se a preponderância de participação das universidades públicas no programa,

as quais foram o destino de um total de 225 estudantes. As privadas ficaram com somente 17

alunos, 7% do total, percentual bastante baixo. O principal motivo, é justo dizer, são as taxas

que aqueles que vieram para o Brasil teriam que pagar caso fizessem seus cursos em instituições

privadas de ensino. Em Curitiba somente um congolês estuda em universidade privada, na PUC.

Ainda em relação às variáveis dos conveniados ao PEC-G que vieram da RDC, a

variável de gênero mostra algumas tendências que merecem atenção. Primeiramente, a vinda

de homens é consideravelmente maior. Do total de 242 intercambistas, 177 são homens, um

total de 73%! O número de mulheres é 54, somente 22%. Sobram ainda 11 pessoas, as quais,

por conta de seus nomes e também pela falta de dados em uma busca rápida, não sei ao certo

em qual variável recaem. A preponderância é um indicador, por si só, de uma dinâmica desigual

no envio de aluno com uma base de gênero. Seja por quais motivos forem – segurança,

diferentes tipos de responsabilidade familiar, lugares sociais, etc – tais números demonstram

que, nos processos de deslocamento espacial uma série de clivagens entra em ação na

determinação daqueles que podem ou não realizar tal empreitada.

Mas, uma vez mesmo que estas mulheres tenham chegado ao Brasil, outra divisão, esta

relacionada às áreas destinadas para cada sexo, se torna visível. O que os dados indicam é a

hegemonia que determinados cursos tem na sua relação com o masculino e o feminino. Se, por

exemplo, tomarmos as engenharias – seja ela civil, química, mecânica, da computação ou de

petróleo – iremos perceber que do total de 242 conveniados, 56 deles vieram para estudar nesta

área. Adicionando à variável curso também a variável de gênero, uma tendência se torna clara.

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Deste total de 56 vagas destinadas às engenharias, somente 3 são ocupadas por mulheres, 5%

do total! Como uma decorrência desta privação ou tendência ligada à gênero, não só alguns

cursos são interditados às mulheres, como também alguns são destinados à sua presença.

Hotelaria, por exemplo, tem quatro vagas, todas elas preenchidas por mulheres. Turismo,

também com quatro vagas, é outro curso onde todas as participantes são mulheres.

Existem ainda dados trabalhados por outras pessoas que indicam o tamanho do

programa PEC-G e PEC-PG para a internacionalização do ensino superior no Brasil (PIRES,

BERNER e FRANÇA, 2016). No levantamento de dados feito pelas autoras em questão,

destaca-se a preponderância de alunos do continente africano. Segundo ela, eles representam

70% do total: 65% de africanos no PEC-PG até 2013 e 77% para o PEC-G até 2015. Como

comentam:

“Até 2015, do total de 8.747 estudantes selecionados pelo PEC-G, 6.761 eram

africanos, 1939 da América Latina e Caribe e 47 da Ásia. Até 2013, do total

de 9.900 estudantes selecionados pelo PEC-G e pelo PEC-PG. 6.630 eram

africanos, 2.609 da América Latina e Caribe e 115 da Ásia.”

(PIRES, BERNER e FRANÇA, 2015. P. 758-759)

Nota-se então a importância das parcerias estabelecidas pelo governo brasileiro com

os países da África, o que indica um interesse específico em manter boas relações diplomáticas

com os países deste continente. Como Rizzi (2012) destaca, houve uma retomada entre os anos

de 2003 a 2010 de uma política marcada por um Relacionamento horizontal (p. 95) – iniciada

na gestão do MRE de José de Magalhães Pinto –, desta vez compreendida através da

denominação de cooperação Sul-Sul, um conceito que ela sugere ser mais abrangente41. Essa

política diplomática com países africanos teve seu ápice no governo de Ernesto Gaisel, entre os

anos de 1974-1979, e ficou conhecida pelo nome de Política Pragmática.

Apesar disso, nota-se que nos últimos anos o número de estudantes africanos que

vieram para o Brasil via PEC-G tem diminuído. Para o caso da UFPR, por exemplo, no atual

ano de 2017, chegaram somente três estudantes da RDC, os quais estão fazendo o curso

intensivo de português no CELIN. Mas, mesmo neste número reduzido, nenhum deles irá ficar

em Curitiba. Dois irão para o interior do estado e uma irá fazer sua graduação em Niterói, no

Rio de Janeiro.

41 Ainda sobre estas relações diplomáticas do Brasil com os países do continente africano, ver entrevista

dada à Folha de São Paulo do diplomata brasileiro Celso Amorin. In.

http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/02/1593079-fechar-embaixadas-seria-retrocesso-impraticavel-diz-

celso-amorim.shtml

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Como destaca o professor e ex-diretor da ARI, Carlos José de Mesquita Siqueira em

sua entrevista: “[...] pelo menos aqui na UFPR o que eu percebia ao longo desses anos que eu

estive à frente é que o número de alunos de fato que ingressaram na universidade diminuiu...

houve época em que nós abríamos 79 a 80 vagas... vinham 18, 20 alunos”. Quando perguntado

sobre os motivos para a diminuição no fluxo de estudantes para universidade, o professor elenca

como um dos motivos a diminuição ou restrição de vagas em alguns cursos da universidade:

“[...] nós até restringimos vagas em alguns cursos ou até zeramos vagas como no caso da

medicina [...] e alguns outros cursos [...] tiveram problemas com aluno PEC-G que não tiveram

bom desempenho e eles acabaram optando por não oferta mais vagas”

3.4. PROVAR

Além dos programas de intercâmbio, vale ressaltar alguns programas de acolhimento

e integração, como o PROVAR. Esta modalidade de entrada no ensino superior no Brasil é

aquele mais divergente dos programas que estamos analisando. A primeira diferença é que ao

invés de ser um programa como o AUGM, PEC-G e CONAHEC, o PROVAR não é

desenvolvido em parceria com outros países. Ele não configura um programa de intercâmbio.

Ele é melhor descrito como um projeto no qual a UFPR disponibiliza vagas nos seus cursos

para a comunidade de imigrantes e refugiados que estão no estado. Neste sentido, ele é mais

um programa de reingresso ao ensino superior do que um programa de mobilidade acadêmica

propriamente dito.

Assim sendo, o PROVAR – que teve início com a comunidade migrante em 2015 – é

um caminho para aqueles que vieram para o Brasil à procura de melhores condições de vida

retomarem os seus estudos. Aqueles que desejam fazer o reingresso no ensino superior precisam

estar atentos as datas do processo seletivo. Durante este período eles devem entregar os

documentos necessários para o processo na sede do Projeto Migração, Refúgio e

Hospitalidade42, do curso de Direito, no prédio histórico da Santos Andrade. Lá, eles são

entrevistados pelos estudantes que trabalham como bolsistas, onde especificam qual o curso

que desejam fazer e os motivos para tanto.

Existe também uma assessoria psicológica para aqueles que buscam algum

atendimento deste tipo. Os estudantes que fazem tal trabalho são do curso de psicologia e

também recebem uma bolsa de estudo. O nome do projeto é Migração e Processos de

42 Endereço virtual do projeto, In: https://www.facebook.com/projetohospitalidade/

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Subjetivação: Psicanálise e Política na Rede de Atendimento aos Migrantes43. Ao fazerem a

solicitação de reingresso estas pessoas também passam por uma entrevista com bolsistas do

curso de psicologia.

As vagas para aqueles que desejam entrar na universidade são definidas pelos próprios

cursos. Cada coordenação tem a possibilidade de discutir internamente se irão disponibilizar

vagas para a comunidade de imigrantes. As vagas são abertas em diferentes proporções entre

os cursos. Para o processo seletivo com entrada em 2017 os cursos que abriram vagas foram,

juntamente com o número de vagas: agronomia (1); biomedicina (2); ciências da computação

(1); Engenharia civil (1); engenharia elétrica (1); engenharia mecânica (1); farmácia (1); história

(1); nutrição (1); letras - francês (1); odontologia (1) e turismo (2). Ao total foram abertas 14

vagas.

Para o ano de 2017, temos alguns dados daqueles que realizaram o PROVAR.

Primeiramente percebemos que o número de candidatos por vaga é baixo. Os cursos mais

concorridos foram o de biomedicina e ciências da computação, que apresentaram a proporção

de 3 candidatos por vaga. Isso talvez se dê por conta da má divulgação do processo seletivo, ou

mesmo por sua novidade. A grande maioria dos concorrentes é de origem haitiana. De um total

de 25 solicitantes, 15 destes vieram do Haiti. A maioria de haitianos também é vista na

aprovação no processo. Das 14 vagas, 8 delas foram destinadas para os imigrantes deste país.

Para o ano de 2016 foram 15 vagas e, novamente, a maior parte delas foi preenchida

por haitianos, um total 12. Já para 2015 foram 7 vagas, 6 delas preenchidas pelas pessoas deste

país.

Como estes alunos entraram em anos anteriores conseguimos ver, nos dados

disponibilizados pelo Projeto Migrações e Hospitalidade, seus índices de aprovação. Vemos

que quase todos eles - fora dois casos – reprovaram em mais matérias do que naqueles que

foram aprovados. Quer dizer, a dificuldade de inserção e de aprendizado no meio acadêmico

fica bastante clara, seja pela língua ou pela necessidade que a maioria, senão todos, tem de

trabalhar ao mesmo tempo em que realizam seus estudos. Seguem duas tabelas com os dados

dos alunos matriculados no reingresso pelo PROVAR. A primeira delas é referente aos

aprovados nos processos com entrada em 2015 e 2016. Por conta disso elas possuem os números

de matérias nas quais os alunos se matricularam. A segunda tabela é referente aos alunos com

entrada para o ano de 2017, para os quais não possuímos os dados de matrícula e aprovação:

43 Segue endereço virtual do Projeto. In:

https://www.facebook.com/pg/movimentosmigratoriosepsicanalise/about/?section=hours&tab=page_info

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Foi conta destes problemas que surgiram nos dois primeiros anos que de atividade do

programa, que o CELIN decidiu realizar um curso de acolhimento linguístico e acadêmico no

final de 2016. Neste curso os estudantes participaram, durante dois meses, de aulas de português

para fins acadêmicos, de passeios pela universidade para conhecerem as estruturas de suporte

que a universidade oferece, e eventos de socialização, como foi o caso de um torneio de futebol

que ocorreu no final deste ano. Além disso os estudantes reingressos irão passar por avaliações

semestrais dos seus desempenhos. Neste momento irão poder trazer questões sobre as suas

experiências na universidade.

3.5. CONAHEC

O CONAHEC é um programa que associa 180 universidades espalhadas pelo Canadá,

México e EUA, as quais se tornam destinos para estudantes de outras universidades ao redor

do mundo. Ele foi criado com o intuito de conectar diferentes instituições num mundo cada vez

mais global. Para participar desta associação as universidades destes três países (México,

Canadá e EUA) precisam pagar uma taxa anual. Segundo relato do professor Silveira, a taxa

que a UFPR paga é de 1760 dólares por ano, o que dá aos alunos o direito de estudar nestas

instituições sem o pagamento das taxas acadêmicas. Como a maior parte do sistema de ensino

superior nestes países é pago o pagamento desta anuidade acaba sendo de grande ajuda para

aqueles que desejam estudar fora.

Segundo o professor Siqueira, responsável pela ARI no ano em que o acordo foi

assinado com a UFPR (2009), este convênio se mostrou benéfico com o tempo. Segundo ele

nos conta:

“[...] pra te falar a verdade... em 2009 eu até me mostrei um pouco contrário

mas depois eu me convenci que era fabuloso porque essas universidades

americanas e canadenses geralmente elas não isentam os alunos das taxas

acadêmicas... não isentam normalmente... mas fazendo parte desse

programa... desse consórcio os alunos são isentos... então é uma maneira de

baixo custo... eu considero... 1760 dólares por ano”

Para o caso deste programa de intercâmbio conseguimos somente dados sobre os dois

semestres do ano de 2015. Segundo funcionário da ARI que nos atendeu, a pessoa que era

responsável por este consórcio estava de férias, o que impossibilitou o envio dos dados para os

outros anos.

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No caso do ano de 2015, um total de 31 alunos se cadastrou para mobilidade acadêmica

através do convênio CONAHEC. Destes 31, somente 15 levaram a cabo suas mobilidades, uma

vez que 16 destes desistiram no decorrer do processo. Os motivos para a desistência não são

claros, já que não constam como variáveis nas planilhas disponibilizadas pela ARI. Uma

hipótese para esta alta taxa de desistência é a falta de bolsas para os alunos que participam de

tal consórcio, algo que foi apontado pelo professor Siqueira durante sua entrevista.

Dentre os três países participantes que recebem estudantes, o EUA é aquele que mais

recebeu alunos da UFPR. Do total de 31 estudantes que solicitaram a mobilidade acadêmica,

23 destes escolheram as universidades deste país. O restante de oito alunos escolheu

universidades do Canadá. Nenhuma universidade mexicana está na lista de destino. Dentre as

universidades com maior taxa de destino está a Eastern New Mexico (EUA) com 9, seguida

pela Silkirk College (Canadá) com 5.

Para um estudo mais aprofundado sobre os impactos deste programa específico de

intercâmbio na UFPR seria necessário ter acesso aos dados dos outros anos. Somente assim

poderíamos estabelecer conclusões mais gerais sobre a relevância de tal programa como meio

de mobilidade acadêmica.

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4. UM ESTUDO DE CASO: O PROGRAMA PEC-G NA UFPR

Iremos nos dedicar neste último capítulo a interpretação das entrevistas feitas com os

estudantes da RDC que são alunos da UPFR. Das cinco entrevistas realizadas, quatro delas são

com aqueles conveniados ao programa PEC-G, enquanto uma foi feita com um aluno que entrou

na UFPR através do processo do PROVAR. Isso muda um pouco a condição deste último em

relação aos primeiros quatro tendo em vista que, por exemplo, ele pode exercer trabalho

remunerado no Brasil, já que possui o visto de refúgio e não o visto temporário IV da Polícia

Federal, destinado aos estudantes internacionais. Ainda assim, por outro lado, também

acreditamos que por mais que existam estas diferenças, existem ainda várias similaridades entre

as experiências de cada um deles.

Como já dito anteriormente, a escolha deste grupo para pesquisa passa também pela

minha própria história pessoal. Para aqueles que escutarem as entrevistas talvez fique claro que

o ambiente da conversa era mais descontraído e muitas vezes de amizade do que aquele que o

texto transcrito consegue capturar. Eu possuía um roteiro para a entrevista, e foi a partir dele

que surgiram respostas interessantes para se entender um pouco mais das motivações e da vida

destes estudantes44. As respostas e as alterações nas entrevistas surgiram a partir deste núcleo

fixo do roteiro de entrevista, que será apresentado em anexo.

O material foi analisado da seguinte forma. Após o trabalho de transcrição das

entrevistas, o texto foi lido e dividido em blocos temáticos. Os trechos pertinentes a cada tema

foram separados e novamente lidos para a escrita do texto. Daí retiramos alguns dos trechos

que nos parecem elucidativos do conjunto mais geral das entrevistas. Serão estes os trechos

citados. Aqueles elementos que se mostraram recorrentes nas falas dos estudantes serão então

apresentados aqui. O texto seguirá a mesma organização do trabalho de análise. Quer dizer, este

capítulo também será dividido naqueles blocos temáticos estipulado nas análises, que são

“Motivos para vinda ao Brasil”; “Socialização no Brasil”, “Experiências no Brasil”;

“Preconceito’ e “Perspectivas futuras”. Com isso buscamos dar um panorama mais ou menos

geral daqueles elementos que, em conjunto, perpassam a experiência de mobilidade acadêmica

destes estudantes.

44 Novamente, para aqueles que estiverem interessados neste material, disponibilizei uma pasta no

google drive onde ele pode ser facilmente encontrado. Lá estão as tabelas com os dados quantitativos dos

programas; os áudios das entrevistas e a transcrição das mesmas. In: https://drive.google.com/open?id=0B1NAQ-

0B-75ac0FVSUVNYk9zbWM

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Motivos da vinda ao Brasil

Primeiramente, notamos que anteriormente à vinda ao Brasil os estudantes da RDC

não possuíam ideia alguma de como era a educação aqui. Por isso mesmo o Brasil é pouco

considerado como um possível país de destino para estudos. Há inclusive, da parte destes que

chegam, uma surpresa com a qualidade do ensino no Brasil, dado que “sempre pensava: França

é melhor, Canadá é melhor”45. A reação é de que “[...] quando você chega perto você consegue

ver o que é estudos no Brasil de verdade... nem eu botava fé ia ser coisa boa... que o ensino no

Brasil ia ser uma coisa boa... tipo estruturada”46.

Como vimos anteriormente, as viagens para estudos internacionais se inserem num

projeto de ascensão social ou, ao menos, de melhora de chances na vida profissional. Isso é

também verdade para o caso dos intercambistas congoleses na universidade brasileira. Como

as condições de estudos não são as melhores no seu país de origem47, a vontade, expressa por

todos os entrevistados e tida como um traço característico dos estudantes deste país, é a de

migrar para estudar. Como dito pelos entrevistados quando indagado se eles já tinham interesse

em viajar para fora do país para estudos:

“Ah... a gente... eu e a minha família tava tentando... meio que planejando uma

viagem para um outro país assim... ai acabou optando pelo Brasil... primeiro

porque era um pouco mais fácil conseguir a bolsa... ou seja tinha muitas

vagas... e também pela questão de a oportunidade de aprender outra língua”

(ENTREVISTADO 1, 2017)

Olha, eu nunca pensei em vir pro Brasil... quando eu era mais jovem eu

pensava em sair do Congo sabe... mas lá os jovens pensam mais na França...

na Europa... nos país que fala francês [...]daí fiquei sabendo com um amigo

meu que tinha um convênio [...]daí ele falou eu fui la na embaixada do Brasil

ouvi que realmente tinha um convênio entre os dois governos... Brasil e do

Congo... e fiz a inscrição [...]daí passei...e to aqui.

(ENTREVISTADO 4, 2017)

Esse foi o movimento de todos os entrevistados. Em algum momento de suas

graduações eles estavam à procura de um modo de sair da RDC para continuar seus estudos.

Chegaram então, através de diferentes caminhos, na oportunidade de participar do PEC-G.

Alguns foram informados por amigos nas faculdades que já cursavam, outros descobriram o

45 Entrevistado 1 46 Idem 47 Como já discutido no trabalho e tratado no livro do World Bank, “Education in the Democratic

Republic of Congo: priorities and options for regeneration”. Neste livro uma série de indicadores são mobilizados

para explicar a situação da sistema educacional do país.

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PEC-G porque pesquisavam programas de estudos fora do país, outro porque já tinha um primo

que estudava no Brasil e outro ainda porque, em meio a um forte mal-estar que o levou ao

hospital, acabou conhecendo o cônsul brasileiro na RDC que lhe contou sobre o programa.

Mas a vinda para o Brasil não foi a primeira opção de todos eles. Todos consideraram,

num primeiro momento, ir para outros países. Como vimos numa fala acima, a primeira

alternativa foi buscar ir para algum país de língua francesa, como a Bélgica, que por conta da

história colonial ainda é um destino frequente de estudantes. Existe inclusive, como explicado

por um dos entrevistados, um programa de intercâmbio mantido pelo governo belga destinado

exclusivamente para congoleses. Além da Bélgica, países como França e Canadá foram

escolhas que também passaram pela mente destes estudantes antes de virem para o Brasil. Por

motivos como falta de dinheiro para arcar com uma vida na Europa e a alta concorrência para

participar de programas de intercâmbio nestes países, que são as principais escolhas de muitos

na RDC, eles acabaram optando por estudar no Brasil, que disponibiliza também uma ajuda de

custo para os estrangeiros na universidade. Essa ajuda tem uma função importante de

possibilitar a permanência dos mesmos.

Ressalta-se aqui um elemento de poder como um definidor das possibilidades de

agência (neste caso específico encarnada na possibilidade ou não de deslocamento) destes

sujeitos que buscam uma formação educacional internacional. Quer dizer, mesmo que estes

sujeitos possam fazer planos para um estudo internacional, estes planos estão restritos àquelas

possibilidades objetivas e, mais do que isso, conhecidas de cada um sobre a mobilidade

estudantil. Por um lado, não é possível participar de todos os programas de intercâmbio, seja

pela alta concorrência ou pelos custos de realizar um estudo superior na Europa. Por outro,

como discutido por Monsma (2000), as possibilidades de escolha são restritas àquelas escolhas

conhecidas. Os sujeitos não possuem conhecimento de todas as oportunidades disponíveis. Tal

conhecimento também depende da inserção de cada um e das suas colocações em diferentes

estratos sociais. A agência e a capacidade de planejamento dos sujeitos são definidas pelas

condições deles mesmos num dado momento.

Como discutido anteriormente, a assinatura de acordos estudantis com países do

continente africano é uma importante ferramenta para se estabelecer um diálogo e uma

colaboração entre países Sul-Sul. Através destes acordos os vínculos intelectuais, econômicos

e mesmo afetivos entre os seus cidadãos vão tomando forma. Este fluxo alternativo no

movimento internacional de estudantes do continente africano, que agora não estão mais

fadados a buscar um estudo internacional na Europa, cria uma nova configuração no campo

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educacional. A posição do Brasil enquanto agente geopolítico parceiro de países como a RDC

possibilita o estabelecimento de relações mais duráveis entre os dois países.

Isso também é verdade no nível dos sujeitos. Em concordância com a fala do professor

Siqueira sobre os impactos que a internacionalização causa na universidade, podemos também

afirmar que estes impactos não se restringem somente ao meio acadêmico. As consequências

parecem enormes, principalmente se considerado o impacto a longo prazo que estes processos

de mobilidade estudantil acarretam, principalmente quando considerado os vínculos afetivos e

profissionais que são estabelecidos entre os sujeitos em deslocamento e entre estes e aquelas

pessoas da sociedade de acolhimento.

Socialização no Brasil

Um ponto importante para o estudo da internacionalização é, como já dito

anteriormente, considerar a trajetória e a experiência daquelas pessoas que fazem parte de tal

processo. São elas que, através de suas ações levam à cabo o que pode ser considerado uma

internacionalização de fato do ensino. Assim, como destaca o professor Siqueira, a

internacionalização ocorre em várias frentes, e ela não se resume, apenas, ao envio de alunos

para outros países, mas também ocorre através da chamada “internacionalização em casa”.

Desta forma, se falamos de internacionalizar a universidade, também falamos das relações que

estes estudantes internacionais estabelecem aqui, na universidade brasileira. Digo, se estes

estudantes não se fizeram presentes - e de alguma forma eles sempre estão presentes - não é

possível falar em uma internacionalização do ensino superior. A presente seção irá se deter

naqueles aspectos das entrevistas que destacam alguns dos meios encontrados por eles para

estabelecer contato com a sociedade brasileira e para constituir seus espaços dentro dela.

Num primeiro momento destacamos a existência de dois eventos importantes para a

socialização dos estudantes da RDC na cidade de Curitiba. O primeiro deles, já esboçado

anteriormente na introdução deste trabalho, foram as partidas de futebol na CEU. Durante ao

menos dois anos houveram partidas regulares de futebol nas tardes de sábado, onde pessoas de

dentro e mesmo de fora da fundação se encontravam e jogavam bola48. O mesmo é verdade

para eles, que, a partir do futebol na CEU, conheceram e passaram a se relacionar com outras

pessoas. Este evento foi, durante um bom tempo, mais do que somente um espaço para se

praticar esporte, também um espaço para trocas de experiência e criação de vínculos afetivos.

48 Foi neste ambiente que conheci muitos daqueles que iriam se tornar meus amigos e, no futuro,

entrevistados para este trabalho.

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Nestes momentos os estudantes congoleses geralmente jogavam com seus times e, em

meio as piadas de ambos os lados, iam estabelecendo um lugar na comunidade que os cercava.

Quer dizer, ao se colocarem na condição de oponentes, e muitas vezes companheiros de times,

estes estudantes iam sendo reconhecidos por aquela comunidade na qual chegaram. O futebol,

como evento de socialização, foi um destes lugares nos quais os vínculos afetivos e o

reconhecimento da existência destes estudantes como sujeitos ocorreram.

O segundo evento aqui destacado são as festas africanas. Assim como destaca Mungoi

(2012) para o caso dos estudantes africanos como um todo na cidade de Porto Alegre, as festas

africanas realizadas em Curitiba por estudantes deste continente, inclusive da RDC, foi um

evento de destaque para a celebração e reconhecimento da diferença. Os participantes destas

festas, na grande maioria das vezes universitários, podiam travar contato com as diversas

manifestações culturais destes estudantes internacionais. Isso ocorria através das comidas, das

roupas, das músicas e das interações que eram travadas nestes espaços entre os diferentes

subgrupos dentro do grupo de estudantes africanos em Curitiba.

Destes dois eventos surge uma questão importante para se entender a socialização

destes estudantes. Ao desembarcarem no Brasil, chegaram como estrangeiro de um tipo

específico, qual seja, como estudantes estrangeiros. Com isso queremos dizer que, mais do que

parte da sociedade do trabalho, estes estudantes fazem parte da comunidade universitária. É

com isso em mente que uma divisão na socialização destas pessoas foi se delineando conforme

realizávamos e analisávamos as entrevistas. Veja o trecho a seguir:

“Cara até que a adaptação não foi complicada... até por ser a universidade as

pessoas têm a mente mais aberta assim... pessoas tem uma maneira de pensar

diferente tipo [...] consegui fazer amigos já no primeiro ano da faculdade...

amizades que eu levo até hoje [...] só que fora da universidade é outro mundo

né... a gente teve que se acomodar... entender como as pessoas pensam e tal...

foi uma... toda uma aprendizagem”

(ENTREVISTADO 2, 2017)

Essa visão é a da universidade como uma espécie de local governado por leis paralelas

ao resto da cidade. Um local onde as interações são mais horizontais e menos marcadas pelo

preconceito. Os termos “ter a mente mais aberta” ou “tem uma maneira diferente de pensar”

intuem nessa direção. Aqui surge uma questão que toca à sociologia da imigração. Brevemente,

se estes estudantes se integram de alguma forma no período de tempo estipulado para os seus

estudos, eles se integram, sobretudo, no seio da universidade brasileira, enquanto estudantes

universitários, e suas vidas são mais marcadas pelas interações dentro da universidade, uma

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instituição bastante ampla e ramificada, do que fora dela, rumo a sociedade de uma forma mais

ampla, representada, sobretudo, pelo trabalho.

Quando questionados sobre suas relações de amizade com brasileiros, os estudantes se

apresentam como pessoas bem inseridas. Eles destacam que, além dos amigos do mesmo país

e do mesmo continente, eles possuem sim amigos brasileiros. Como por exemplo: “na igreja

que eu frequento também... lá também conheço bastante gente e alguns encontros aí dando

uma saída por aí você acaba conhecendo”49, ou, “gosto de Curitiba cara... gosto daqui... fiz

bastantes amigos aqui...”50. Veem-se como pessoas bem inseridas, ainda que seus espaços de

socialização estejam quase sempre, de uma forma ou de outra, vinculados aos espaços ocupados

por universitários. Os exemplos do futebol na CEU, uma das residências estudantis de Curitiba,

e as festas africanas são marcantes neste sentido.

Mas, para além da universidade, quais são os lugares que eles frequentam? As

comunidades nacionais e continentais (africana) que estão fora da universidade é um desses

meios. Alguns dos estudantes que vieram para o Brasil fazer seus estudos já os terminaram e,

por escolha própria, decidiram se manter aqui. Ainda que não sejam muitos casos, eles existem.

Conheço dois congoleses que tomaram essa decisão. Além destes, há também aqueles que

vieram para o Brasil não para estudos, mas sim para trabalhar. Através destas pessoas, eles

também estabelecem relações para além da universidade, indo almoçar na casa de amigos,

saindo para ir em festas ou simplesmente conversando na rua.

Por fim, surge ainda um último espaço de socialização reiterado nas entrevistas.

Alguns destes sujeitos que estudam no Brasil frequentam a igreja. Dois dos entrevistados

frequentam a mesma igreja, a Primeira Igreja Batista de Curitiba. Segundo um deles este é um

lugar “que eu frequento também [...] eu gosto de ir lá... é legal lá... eu frequento lá aí lá eu fiz

bastante amizade”51. A igreja surge então como um dos poucos lugares fora da universidade

no qual estes estudantes estabeleceram relações com brasileiros.52

Afora isso, a comunidade de congoleses mantém uma coesão bastante forte entre seus

membros. A existência de grupos de Whatsapp e de grupos para receber novos estudantes e

pessoas de seus países de origem mostra isso. Aqueles que chegam na cidade são rapidamente

absorvidos pelos que aqui já estão.

49 Entrevistado 4 50 Entrevistado 2 51 Entrevistado 4 52 Note-se que os dois entrevistados acima que comentaram de suas amizades fora da universidade vão

na mesma igreja. Novamente isso indica algo importante sobre os meio de socialização dos estudantes estrangeiros

no Brasil.

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Experiências educacionais no Brasil

Se a experiência de vinda para o Brasil é marcada, como vimos anteriormente, por um

desconhecimento sobre a educação no país, como é que estes estudantes avaliam a educação

que recebem no ensino superior brasileiro? Dado que todos os entrevistados para a pesquisa já

haviam, senão terminado, ao menos iniciado uma graduação na RDC, eles surgem como

informantes privilegiados para a comparação entre as formações universitárias nos dois países.

Decorrente de sua dupla inscrição, eles possuem um poder de comparação maior sobre os dois

cenários, demonstrando as vantagens e desvantagens encontradas nos dois países.

Chegando ao Brasil e descobrindo mais sobre a realidade brasileira, os estudantes

dizem gostar do ensino que recebem na universidade. Um dos pontos destacados é que,

diferentemente da RDC, onde as aulas são preenchidas por grande número de alunos, “com 200

pessoas no mesmo momento”, no Brasil as turmas são menores. Uma das vantagens que eles

percebem neste modelo é de que a relação aluno/professor se torna mais próxima, já que é

possível para o professor perceber, dados alguns limites óbvios, as necessidades particulares de

cada aluno. Como destacado por um deles:

“Eu consigo comparar muito... porque no Congo o sistema pedagógico já

permite que tenha muitos alunos numa sala de aula... tipo turmas grandes

assim... e além de ter turmas grandes os professores não se [...] preocupam em

saber se todo mundo entendeu... afinal são duzentos alunos para um

professor... afinal ele é só uma pessoa [...]”

(ENTREVISTADO 1, 2017)

Aliada a proximidade com o professor, o ensino superior brasileiro é uma referência

em algumas áreas. Para um dos alunos PEC-G, estudante do curso de agronomia, como as

condições climáticas do Brasil são parecidas com a da RDC, e uma vez que aqui a pesquisa

nesta área é mais forte do que em seu país, vale a pena fazer a graduação no Brasil. Para ele

compensa vir para o Brasil “dependendo do curso que ele (o estudante) quer fazer.... as vezes

não compensa né... a agronomia compensa... alguns cursos também... mas tem que estudar bem

o curso que quer fazer”. O que ele nos indica é que mais do que uma experiência internacional,

a escolha de uma área na qual o Brasil tenha relevância em pesquisa e ensino é mais importante.

Sendo o Brasil um país tropical e tendo melhores laboratórios e pesquisas relevantes na área,

ele se torna um destino positivo para quem quer fazer agronomia.

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Quando questionados sobre a qualidade do ensino no Brasil e sobre a escolha de ter

vindo para cá todos apontam aspectos positivos. Pelo menos no que toca as suas trajetórias

acadêmicas, ter vindo para o Brasil foi uma boa escolha.

“Assim eu não me arrependo de ter vindo para o Brasil para estudar... pelo

menos pra estudar eu não... eu acho tipo assim não me arrependo porque foi

uma oportunidade boa... porque foi uma coisa assim [...] mais simples assim

de aprender outra língua [...] eu acho assim o Brasil no ponto assim se for falar

do ensino superior apenas... o Brasil ainda consegue manter uma boa

organização no ensino superior... se for comparar com o Congo né... o ensino

superior no Congo a ementa é boa... tipo o conteúdo é bom... mas a

administração e pedagogia os métodos são um pouco sei lá rígidos e fechados

que não facilita muito a aprendizagem [...]”

(ENTREVISTADO 1, 2017)

Como veremos mais à frente, algumas críticas são feitas à condição dispensada ao

estrangeiro no país, mas estas críticas não se direcionam ao ensino superior. Tanto é assim que

quando perguntados sobre se indicariam o Brasil para possíveis conhecidos na RDC, todos

afirmaram que sim, dadas algumas ressalvas. Aquela que mais nos importa neste trecho é a

necessária vinculação ao PEC-G, tido como uma porta de entrada facilitadora para a condição

de estrangeiro aqui. O trecho a seguir é bastante elucidativo dos motivos pelos quais o programa

é um importante meio para viver no Brasil. Quando perguntado se indicaria o Brasil para outros

congoleses virem estudar, o estudante responde de tal maneira:

“[...] eu falaria pra ele melhor ir pelo programa do PEC-G que fora do

programa PEC-G... porque fora do programa do PEC-G é difícil... que você

tem que pagar faculdade tem que pagar o aluguel e tem que... comprar roupas

tem que se alimentar tudo isso... é complicado... só que quando você está no

programa você não paga a faculdade mas você paga o seu aluguel... aí é

tranquilo”

(ENTREVISTADO 3, 2017)

Ele não comenta, mas além dessas facilidades aqueles participantes do PEC-G não

pagam o RU e, como auxílio permanência, recebem uma bolsa chamada Projeto Milton Santos

de Acesso ao Ensino Superior (PROMISAES)53. Graças ao PROMISAES muitos destes

estudantes conseguem se manter sem ter que pedir para seus familiares que arquem com todas

as suas despesas.

No geral, o Brasil é percebido com um bom país no qual estudar. Os acordos mantidos

entre os governos favorecem a vinda de estudantes de países africanos. Sem estes programas, e

algumas das facilidades que eles possibilitam, é muito provável que o Brasil não fosse um

53 Este auxílio é destinado aos estudantes estrangeiros, com validade para o todo o território nacional, e

tem o valor de 622,00R$ por mês.

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destino procurado ou levado em consideração por eles já que, para além da universidade, as

oportunidades de vida não são consideradas boas. Falaremos mais sobre este ponto no último

trecho deste capítulo.

Preconceito

Como destacado na bibliografia sobre o tema da mobilidade estudantil de estudantes

africanos para o Brasil, o tema do preconceito é uma das constantes nos trabalhos (KALY,

2001; SUBUHANA, 2009; MASSART, 2002; GUSMÃO, 2011; MUNGOI, 2012; PIRES,

BERNER e FRANÇA, 2016). Muitos vêm para cá achando que iriam encontrar o “paraíso

racial”, o que, em todo caso, não acontece. Talvez pelo fato de serem estudantes universitários

e conviveram a maior parte de seus tempos na universidade, lugar que, como visto

anteriormente, é considerado menos discriminatório, a realidade deles seja diferente. De

qualquer forma, os estudantes africanos não se parecem, na maioria das vezes, com os negros

brasileiros, o que inclusive reflete em suas falas.

Nenhum deles diz ter passado por algum caso de ofensa direta por conta de sua cor.

Talvez o primeiro tipo de preconceito pelo qual passem seja pela ignorância de muitos em

relação ao que é um país africano. No geral, como eles colocam, as pessoas partilham do ponto

de vista de que são todos países muito pobres, com guerras e fome. Há ainda o corrente engano

de que ao invés de um continente, a África seja um país só (MUNGOI, 2012). Este equivoco

foi comentado por eles algumas vezes.

Sobre essa ignorância em relação ao continente africano temos esta imagem

compartilhada por um estudante do Togo em seu Facebook:

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Figura 1: País de origem: África?

Isso ocorreu quando o estudante estava fazendo o recadastramento no portal do aluno.

É possível ver a incredulidade e o tom de deboche com que o estudante trata a questão. Acho

pouco provável que em tal formulário constasse como opção a Europa como país. Essa espécie

de desconhecimento, efetuado na invisibilidade da diversidade cultural de um continente como

a África, é também decorrência das desigualdades de representação de diferentes espaços. São

estas desigualdades mais amplas que parecem afetar os modos como estes estudantes se inserem

na sociedade brasileira, em especial quando precisam se definir para os outros como africanos.

Foi expresso pelos entrevistados também uma espécie de preconceito que tende a

positivar excessivamente a realidade na qual aqueles que vêm para o Brasil tinham antes de sair

de seus países. Explicamos: para muitos dos brasileiros que encontram estudantes africanos

estes últimos são tidos como ricos em seus países de origem, do contrário - esta é a afirmação

que se dão - como seria possível para eles saíram da África para vir morar aqui? Um dos

estudantes se refere a uma experiência que teve na CEU da seguinte forma:

“[...] eu esperava que assim por exemplo... pudesse ajudar mais os pobres só

que a casa do estudante sempre acha que o estudante africano é rico... que ele

é intercambista igual todo... não que a gente seja sei la pobre... pobre... pobre...

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mas assim a gente nem é rico quanto eles imaginam né... as vezes eles

confundem a gente com os intercambistas que ganham bolsas em euros por

exemplo que podem pagar um apartamento de boa porque no final recebem

uns três mil reais de bolsa [...]”

(ENTREVISTADO 1, 2017)

Sim, é verdade que existe um exagero muitas vezes quando se pensa na condição

econômica daqueles estudantes congoleses no Brasil. De fato, estes são muitas vezes

imaginados como pertencentes às grandes elites do país. Como vemos não é esse o caso, mas,

obviamente, estes estudantes fazem parte de uma parcela privilegiada da população. Em

material produzido em 2005, o Banco Mundial aponta para a quantidade de crianças que

terminam o ensino primário na RDC. Segundo o levantamento deste órgão, somente 29 % delas

chegam a entrar no ensino secundário! Nota-se então que por mais que estes estudantes não

sejam de famílias de elite, também não são, nem de longe, dos estratos sociais mais pobres da

sociedade da qual vieram. Talvez o único exemplo que destoe deste quadro seja o do estudante

que, depois da separação de seus pais, foi morar em um convento, lugar no qual residiu até

pouco antes de sua vinda ao Brasil.

Como todos expressam em suas entrevistas, a bolsa PROMISAES que recebem os

ajuda a se manter em Curitiba de maneira expressiva. Mas como vimos a bolsa não tem um alto

valor, e uma vez que não recebem ajuda financeira do governo de seus países, se torna sua fonte

principal de renda. Diferentemente dos estudantes europeus, os quais saem de seus países

recebendo suas bolsas em euros, os estudantes africanos recebem somente uma bolsa do

governo brasileiro, a qual, se eles precisam pagar aluguel não lhes sobra mais quase nada.

Se tem algum lugar onde o preconceito parece atingir estes estudantes de forma mais

impactante é quando estes procuram vagas no mercado de trabalho. Isso é um fator sensível

para eles, pois muitos precisam, como condição sine qua non para terminar seus cursos, fazer

um estágio obrigatório. Aqueles que não conseguem fazer tal estágio em empresas – o meio de

maior destaque para se estagiar em suas áreas – completam essas horas em projetos de extensão.

Tal dinâmica acarreta em uma volta destes estudantes para a socialização que ocorre dentro da

universidade. Desta forma a divisão, muito nítida durante todo o trabalho de pesquisa, entre a

vida na universidade e fora dela, se acentua ainda mais para os estudantes estrangeiros e do

continente africano.

Para eles o problema do preconceito na hora de entrar no mercado de trabalho também

se dá através da díade negro/estrangeiro. Relatam a atual crise econômica brasileira como um

dos fatores que piora ainda mais sua situação no mercado. Segundo eles, quando o empregador

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vai disponibilizar uma vaga de trabalho, ele irá dar prioridade para os nacionais. Sobre os dois

pontos levantados acima, notadamente, sobre o estatuto de estrangeiro e de estrangeiro negro

no Brasil, um dos estudantes comenta sobre a expectativa de entrada no mercado:

“por que além de a expectativa ser negativa é pior ainda quando você pensa

que você é estrangeiro mas... particularmente africano... no sul do Brasil... e

você é negro entende... daí tem tipo um monte de preconceito que influencia

qualquer mercado que seja... mesmo a vida acadêmica... mas assim na vida

profissional pior ainda sabe”

(ENTREVISTADO 1, 2017)

É com vista nestas duas questões que chegamos ao último trecho, no qual relatamos a

expectativa destes estudantes sobre os seus planos futuros. Querem estes continuar no Brasil?

Se sim, porque e sob quais condições? Se não, para onde querem ir e por quais motivos?

Perspectivas futuras

Se, como vimos no segundo capítulo, a intencionalidade é um traço essencial na

definição de agência, como ela se aplica no caso estudado? Quando questionados sobre quais

seriam seus planos futuros, os estudantes nos deram algumas respostas, e é partir destas

respostas que a noção de intencionalidade surge. Novamente, tal noção é utilizada para

compreender como os sujeitos agem em meio a uma organização cultural complexa e que tipo

de consequência tal ação acarreta para a organização social da qual participam. Como é que,

dentro de um contexto de poder, estes sujeitos conseguem se utilizar de certas estruturas para

realizar seus planos? Este gradiente de ação pode ser melhor vislumbrado nestes planos, uma

vez em que a possibilidade de mobilidade através de um programa de intercâmbio surge como

um impulsionador para planos futuros. Temos então uma questão de escolha com vista a algum

fim específico. Quais são os fins buscados pelos estudantes?

Como visto anteriormente, no momento em que o conveniado PEC-G é admitido no

programa, este precisa aceitar um contrato que diz, entre outras coisas, que ele irá ajudar no

desenvolvimento do seu país se utilizando daqueles conhecimentos que recebeu aqui. Mas,

como percebemos no decorrer do trabalho de pesquisa, esta não é uma possibilidade tida como

certa para eles. Muitos comentam de sua vontade de não voltar para a RDC. Um deles chega a

dar uma explicação do porque não pretende voltar ao seu país, pois segundo ele “não me sinto

na obrigação de voltar porque eu sinto que o meu país não contribuiu diretamente assim na

minha formação”. Alguns inclusive, como é o caso de um amigo, conseguiram um trabalho no

Brasil após suas graduações, e por isso mesmo continuam por aqui após seus estudos.

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Para muitos deles a vontade principal é a de continuar seus estudos universitários,

dentro ou fora do Brasil. Alguns pretendem ficar por aqui enquanto outros esperam ir para outro

lugar. Um dos entrevistados diz estar certo de que irá para Portland, onde realizará um mestrado

profissional. Segundo este mesmo estudante, não compensa ficar no Brasil:

“[...] eu não quero ficar aqui... eu quero ir pra um país que eu vou

ganhar um pouquinho melhor... primeiro fazer um mestrado e depois ficar lá...

só que se o Brasil tivesse uma boa oportunidade pros estrangeiros que vem

aqui... estudando aqui... tivesse um bom salário que pagasse bem e tudo isso

eu ficava”

(ENTREVISTADO 3, 2017)

Ele não é o único que expressa sua descrença nas condições de trabalho no Brasil. Se,

como vimos atrás, todos eles falam bem do sistema de ensino brasileiro, é também um consenso

para o grupo estudado que o país não oferece uma condição salarial boa. Como eles destacam,

um dos motivos para isso é que aqui eles recebem em real, enquanto mesmo na RDC eles

recebem geralmente em dólar.

Mas este não foi o único motivo apontado pelos estudantes para sua descrença em

conseguir trabalho no Brasil. Aliado àquele cenário de preconceito no mercado de trabalho

nacional por conta de sua origem e cor de pele, eles também apontam a crise pela qual o país

passa como um fator que diminui suas chances de ficar aqui. Para eles “a situação econômica

do pais caiu um pouco”54, principalmente em comparação com o momento em que eles

chegaram no país, em 2011, quando ainda havia um cenário mais otimista para os estrangeiros

que quisessem trabalhar por aqui.

Se manter na vida acadêmica, num possível mestrado, é uma modalidade destacada

para continuar no Brasil. Como eles não têm uma previsão clara de trabalho, a pós-graduação

é uma alternativa para ficar por aqui, até porque, como dito por um deles, “acho bem difícil

saindo da faculdade”55, quando perguntado se pretende continuar no Brasil.

Quando confrontados com a questão de retornar a RDC, não existe uma

homogeneidade nas respostas. Alguns dizem não acreditar que isso seja possível, enquanto um

deles disse que pretende voltar para lá. Para este estudante que pretende voltar para seu país no

final deste ano (2017), os motivos apresentados são aqueles de ajudar no desenvolvimento do

país. Para ele - estudante de agronomia na UFPR - os conhecimentos aprendidos aqui, num

ambiente onde é feita pesquisa de ponta, irá ser de grande importância para desenvolver projetos

na RDC. Este foi o único caso onde o discurso desenvolvimentista, que está inscrito nos

54 Entrevistado 2 55 Entrevistado 1

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objetivos do PEC-G, foi reproduzido. Foi também o único que expressou sua vontade de voltar

para seu país ao fina da graduação.

De todos os outros casos a expectativa é de dar continuidade para suas vidas fora de

seu país de origem, pelo menos para a maioria dos entrevistados. Aqui novamente surge a

questão da intenção destes sujeitos. O que as entrevistas e a utilização da teoria da agência como

ferramenta de análise dos discursos nos indica é que há uma espécie de ação instrumental das

oportunidades de mobilidade acadêmica.

A inserção destes estudantes em um programa de mobilidade acadêmica foi crucial

para a ignição dos projetos internacionais dos participantes. A própria escolha do Brasil como

destino aparece, numa das entrevistas como decisão inserida num projeto maior de vida:

“[...] se Deus é a vontade dele continuar fazendo uma especialização em outro

país americano... do continente americano... por exemplo os EUA e o

Canadá... daí quando eu perguntei algumas pessoas me falaram (que) seria

melhor você ir (para o) Brasil porque é no mesmo continente que os EUA (e

o) Canadá... daí você pode ir continuar ao invés de evoluir na Europa (que)

vai ser difícil sair desse continente para outro”

(ENTREVISTADO 5, 2017)

Aqui podemos ver como a própria escolha de vir para o Brasil já estava determinada

por um plano futuro de migrar para algum país da América do Norte. Mas, além disso, algumas

questões surgem aqui. A primeira delas, à cargo de curiosidade, são as constantes referências

ao termo de evoluir em outro país, o que demonstra uma ideia de que aquele que se forma é

superior ao profissional formado em seu país de origem. O segundo elemento digno de nota é

que o Brasil surge neste trecho somente como um estágio necessário para se ascender ao local

de destino preferido. Novamente as desigualdades geopolíticas regem a escolha dos locais para

onde se deseja ir para estudos e para possível moradia. A intencionalidade da escolha do Brasil

como destino só faz sentido quando vista dentro de um plano “individual”56 maior, qual seja, o

de migrar para países de “primeiro mundo”.

56 As aspas aqui estão justificadas pela discussão feita no capítulo 2.2, quando discutimos como na

definição destes objetivos uma série de questões de ordem familiar, por exemplo, também estão geralmente na

constituição destes planos individuais.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe aqui destacar como a estada no Brasil não é definida somente pelo conjunto de

disposições encontradas na sociedade brasileira. O caso dos estudantes em mobilidade

acadêmica é interessante também neste sentido. Através de estudos destes casos podemos

perceber como sujeitos inseridos numa estrutura complexa de regras culturais conseguem tomar

suas decisões com um grau maior ou menor de eficácia, com base em predisposições que

precedem a sociedade na qual adentram. Novamente, o argumento à priori não é o de que os

sujeitos estejam livres das definições sociais que os cercam, mas sim – e isso parece crucial

para o caso estudado – que estes sujeitos estão inseridos numa série de contextos ao mesmo

tempo.

Como Sayad (1998) demonstra para o caso dos imigrantes argelinos na França, estes

não são somente imigrantes senão também emigrantes. Com isso ele restitui a importância de

se pensar, para aqueles que estão longe de seus países, também a sociedade de emigração, que

sofre com o êxodo de seus nacionais. Para o caso dos intercambistas isso também é válido.

Queremos dizer que para se entender os motivos para vinda ao Brasil e as decisões que os

fizeram chegar até aqui, é também preciso entender aqueles planos feitos na RDC, os quais

estão mais em diálogo com a realidade de lá do que daqui.

Além disso, há também um elemento internacional na definição dos destinos de estudo.

O Brasil se insere, no contexto de mobilidade acadêmica, como uma possibilidade específica.

Como vimos anteriormente, a primeira alternativa destes estudantes não era vir para cá. Tal

oportunidade só tomou forma quando muitos perceberam que não conseguiriam ir para outros

países, em especial países europeus. Este é então um dos elementos marcantes da

internacionalização do ensino superior: o local de destino é escolhido com base nas

possibilidades práticas a partir de um cenário hierarquizado de universidades e países.

Novamente, o Brasil surge como um destino interessante para aqueles que, não possuindo uma

educação de ponta em seus países de origem, procuram uma maneira de ascender a posições de

destaque, seja como intelectual acadêmico ou como profissional do mercado de trabalho, num

contexto global.

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ANEXO 1: Lista de entrevistados

Curso Idade Tempo no

Brasil

Pretende ficar

no país?

Entrevistado 1 Arquitetura 25 anos 5 anos e 6 meses Sim, desde que

consiga

continuar na

pós-graduação

Entrevistado 2 Engenharia civil 24 anos 5 anos e 6 meses Sim, mas está

aberto a outras

oportunidades

fora

Entrevistado 3 Comunicação

institucional

26 anos 6 anos e 6 meses Não, irá para os

EUA fazer uma

especialização

Entrevistado 4 Agronomia 25 anos 6 anos e 6 meses Não, irá voltar

para a RDC em

busca de

trabalho

Entrevistado 5 Gestão da

informação

31 anos 2 anos e 6 meses Ainda não sabe.

Pretender

continuar sua

migração rumo

aos países da

América do

Norte

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Anexo 2: Roteiro para entrevistas com alunos

Nome; idade; qual curso está fazendo; período; se forma quando?

PRIMEIRO BLOCO: PROJETO MIGRATÓRIO

Alguém te indicou o Brasil?

Como você ficou conhecendo o programa do PEC-G?

Por que decidiu vir para o Brasil?

Como foi desde o momento em que você decidiu tentar vir para cá até o momento em

que chegou no Brasil? (Houve muita burocracia, quais foram os documentos solicitados?)

Qual foi a escola em que fez os seus estudos secundários?

Qual foi a sua área de formação no secundário? Humanas, exatas, etc.

SEGUNDO BLOCO: INSERÇÃO UNIVERSITÁRIA

Qual curso está fazendo aqui e por que?

Você sempre quis fazer esta faculdade ou ela lhe foi indicada na RDC?

Como você se sentiu recebido aqui no Brasil?

Você acha que houve uma preocupação especial da parte da universidade em receber

os intercambistas? (por exemplo, o curso de português de um ano antes de começar o curso)

Passou por alguma dificuldade por ser congolês?

Você tem muitos amigos da África e da RDC no Brasil?

Você acha que tem mais amigos africanos ou brasileiros?

É uma boa universidade?

Melhor do que na RDC ou pior?

O que faz dela melhor ou pior?

TERCEIRO BLOCO: INTEGRAÇÃO E PERSPECTIVAS FUTURAS

Pretende ficar no Brasil depois que terminar a graduação?

Se sim, por que?

Se não, por que?

Quer ficar aqui para trabalhar ou estudar?

Você acha a universidade brasileira boa?

Melhor do que na RDC ou pior?

O que faz dela melhor ou pior?

Indicaria o Brasil para outra pessoa da RDC?