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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
GIOVANNA PINHATA DE ANDRADE GONZAGA DE OLIVEIRA
A BATUCADA NA CIDADE MODELO: IMPROVISO E CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADE
CURITIBA
2019
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GIOVANNA PINHATA DE ANDRADE GONZAGA DE OLIVEIRA
A BATUCADA NA CIDADE MODELO: IMPROVISO E CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADE
Monografia apresentada ao curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Setor de Técnologia, Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo. Orientadora: Profa. Dra. Maria Carolina Maziviero
CURITIBA
2019
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TERMO DE APROVAÇÃO
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Dedico este trabalho a todas as mulheres que vieram antes de mim, abriram
caminho, e tornaram meu percurso menos árduo. Em especial Marissol, Luzia,
Catarina, Elisa, Nadir e Rita. Dedico este trabalho também à educação pública
brasileira, de quem sou filha, integralmente.
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O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O povo sabe o que quer
Mas o povo também quer o que não sabe
O que não sabe, o que não saberia
O que não saboreia porque é só visão
E tão somente cores, a cor do veludo
Ludo, luz, brinquedo, ledo engano, tele
Teletecido à prova de tesoura
Que não corta, não costura, que não veste
Que resiste ao teste da pele, não rasga
Nunca sai da tela, nunca chega à sala
Que é pura fala, que é beleza pura
É a pura privação de outros sentidos tais
Como o olfato, o tato e seus outros sabores
Não apenas cores, mas saliva e sal
Veludo em carne viva, nutritiva
Não apenas realidade virtual
Veludo humano, pano em carne viva
Menos realce, mais vida real
Gilberto Gil, REP.
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RESUMO
Este estudo apresenta uma discussão acerca do conflito entre a cidade formal e a vida cotidiana. Para tanto, analisou-se a questão da construção identitária a partir do discurso institucionalizado, presente nos Planos Diretores da cidade de Curitiba e o desdobramento deste discurso no imaginário e na cultura popular a partir da produção e expressão do samba na cidade. A discussão sobre o cerceamento de um comportamento espontâneo e lúdico frente ao espaço urbano se faz presente, uma vez que Curitiba é uma capital brasileira famosa pelo “sucesso‟ na implantação de seu planejamento urbano. Nesse sentido, selecionou-se a festividade carnavalesca como objeto de estudo, levantando a presença da festa na capital paranaense desde sua formação. Aborda-se questões relacionadas à políticas públicas de incentivo cultural, fazendo uma reflexão sobre a imagem formal e mercantilizada da cidade e a supressão de expressividades que não “se adequam” à esta imagem. O mapeamento do lugar do samba na cidade de Curitiba ao longo do tempo – espaços privados e públicos, carnaval oficial e insurgente- tanto da festividade quanto espaços de “produção” do carnaval, como os barracões de escolas de samba, fazem perceber quais camadas da população produzem o carnaval oficial da cidade. Nesse sentido, questiona-se a falta de incentivo público dada ao carnaval curitibano, assim como o comportamento da mídia em relação à festa. Os estudos de caso correlato levantados dão respaldo à formulação das diretrizes projetuais, a partir de um enfoque que questiona a formalidade e a rigidez do espaço urbano planejado de maneira oficial, propondo uma abordagem lúdica no desenho de mobiliário urbano, reconfigurando sua funcionalidade ao uso. Os espaços que tradicionalmente locam o carnaval em Curitiba serão a plataforma de intervenção deste trabalho. Palavras-chave: Espaço Urbano, identidade, carnaval, improviso, Curitiba.
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ABSTRACT
The present study brings a discussion regarding the conflict between the formal city and everyday life. For this purpose, the question of identity construction from the institutionalized discourse present in the Mater Plans of the city of Curitiba and its outcomes in the popular belief and culture have been analyzed from a samba production and expression point of view. The discussion about the curtailment of a spontaneous and ludic behavior before the urban space is present since Curitiba is a famous Brazilian capital for the "success" obtained in the implantation of its urban planning. In this sense, the carnival festivity was selected as an object of study, raising the presence of the event in the capital of Paraná state since its foundation. Issues related to the public policies of cultural incentive reflecting on the formal and commercial image of the city and the suppression of expressions that do not "fit" within this image are addressed. The mapping of the place of samba in Curitiba city over time - private and public spaces, official and insurgent carnival - both of the festivity and spaces of carnival "production", such as samba school warehouses, make you realize which population groups produce the city's official carnival. In this sense, the lack of public incentive given to the Curitiba carnival is questioned, as well as the media approach regarding the party. The correlate study cases presented they support the design guidelines formulation, based on an approach that questions the formality and rigidity of the formal urban space, proposing a ludic approach in the design of urban furniture, reconfiguring its functionality to its use. The sites where traditionally carnival takes place will be the platform for the urban interventions of this study.
Key-words: Urban Space, identity, carnival, improvisation, Curitiba.
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – BANDEIRA-POEMA “SEJA MARGINAL SEJA HERÓI”, HÉLIO
OITICICA, 1968 .................................................................................................. 23
FIGURA 2 – AMÉRICA INVERTIDA, JOAQUIM TORRES GARCÍA, 1943 ................ 24
FIGURA 3 - MAPA DO PROGRAMA ROSTO DA CIDADE, 2019 .............................. 27
FIGURA 4 – REVISTA ILLUSTRAÇÃO PARANAENSE, “HOMEM PINHEIRO”, JOÃO
TURIN, 1927. ..................................................................................................... 30
FIGURA 5 - PLANTA DA CIDADE DE CURITIBA, 1944 ............................................ 36
FIGURA 6 - VILA TASSI: CONTEXTO EM 1944 ........................................................ 37
FIGURA 7 – CAPA DO LONG-PLAY DO MOVIMENTO ATUAÇÃO PAIOL (MAPA) .. 45
FIGURA 8 – JARDIM BOTÂNICO (ESQ.) E ÓPERA DE ARAME, (DIR.)
ARQUITETURA ICÔNICA DE CURITIBA. .......................................................... 47
FIGURA 9 – RECORTES DA EXPRESSÃO MIDIÁTICA ACERCA DA ATUAÇÃO DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DE CURITIBA ENTRE 1978-1980, 1999 .............. 48
FIGURA 10 – CAPA DO LONG-PLAY “CURITIBA, CIDADE DA GENTE”, 1982 ........ 53
FIGURA 11 – RAFAEL GRECA APRESENTANDO “AUTO DE FUNDAÇÃO DE
CURITIBA”, 2019 ............................................................................................... 56
FIGURA 12 - "FUNDAÇÃO DE CURITIBA", THEODORO DE BONA, 1936 ............... 57
FIGURA 13 – PRIMEIRA REPRESENTAÇÃO DE CURITIBA, JEAN BAPTISTE
DEBRET, 1827. .................................................................................................. 58
FIGURA 14 – INAUGURAÇÃO DA SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE TREZE
DE MAIO, DÉCADA DE 1880 ............................................................................. 63
FIGURA 15 – CORSO NA RUA XV DE NOVEMBRO, 1916 ....................................... 67
FIGURA 16 – CORSO NA RUA XV DE NOVEMBRO, ESQUINA COM RUA
MONSENHOR CELSO, 1912 ............................................................................. 68
FIGURA 17 – CORSO NA RUA XV DE NOVEMBRO, ESQUINA COM RUA BARÃO
DO RIO BRANCO, 1924 ..................................................................................... 68
FIGURA 18 – RECORTES FOTOGRÁFICOS: DECLÍNIO DO CORSO E INÍCIO DOS
BLOQUINHOS DE RUA, 1930 – MEADOS DE 1940 .......................................... 71
FIGURA 19 - PERCURSO DA ESTRÉIA DA COLORADO NO CARNAVAL
CURITIBANO ..................................................................................................... 72
FIGURA 20- BATERIA DA ESCOLA DE SAMBA COLORADO, DÉCADA DE 1950 .. 73
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FIGURA 21 – AFOXÉ, BLOCO DE RUA DE UMBANDA E CANDOMBLÉ, DÉCADA
DE 1970 ............................................................................................................. 74
FIGURA 22 - AVENIDAS DO SAMBA CURITIBANO AO LONGO DOS ANOS .......... 75
FIGURA 23 – DECORAÇÃO DE CARNAVAL NA RUA MARECHAL DEODORO,
DÉCADA DE 1980 .............................................................................................. 76
FIGURA 24 – CAPA DOS LONG-PLAY “ABRE ALAS”, INÍCIO DA DÉCADA DE 1980
........................................................................................................................... 77
FIGURA 25 – CURVA E LOMBADA NA AVENIDA CÂNDIDO DE ABREU, 2009 ...... 79
FIGURA 26 – BLOCO GARIBALDIS E SACIS NO LARGO DA ORDEM, 2010 .......... 84
FIGURA 27 – TRIO ELÉTRICO GARIBALDIS E SACIS NA RUA MARECHAL
DEODORO, 2019 ............................................................................................... 84
FIGURA 28 - LUGAR DO CARNAVAL OFICIAL E INSURGENTE ............................. 88
FIGURA 29 – ANTES E DEPOIS DA INSTALAÇÃO DO BERTELMANPLEIN,
MEADOS DA DÉCADA DE 1940 ........................................................................ 90
FIGURA 30 - BERTELMANPLEIN, MEADOS DA DÉCADA DE 1940 ........................ 91
FIGURA 31 – “VOLTA AO MUNDO”, CINTHIA MARCELLE, 2004 ............................ 93
FIGURA 32 – 475 VOLVER, 2009 (ESQ.) E FONTE 193, 2007 (DIR.) ....................... 93
FIGURA 33 - BAIRROS E TRIÂNGULO HISTÓRICO DE SÃO PAULO-SP ............... 95
FIGURA 34 – VISTA AÉREA DO VALE DO ANHANGABAÚ, 2019 ........................... 96
FIGURA 35 – APROPRIAÇÃO DO PARQUE DO VALE DO ANHANGABAÚ PELA
COMUNIDADE DO SKATE ................................................................................ 97
FIGURA 36 – ESTRUTURA TEMPORÁRIA PARA MANOBRAS DE SKATE NO VALE
DO ANHANGABAÚ ............................................................................................ 98
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 16
2 DESLOCAMENTO ENTRE CORPO E DISCURSO: COTIDIANO E CIDADE
FORMAL ................................................................................................................... 18
2.1 O IMPROVISO E A CIDADE FORMAL ............................................................... 21
3 DISCURSO E IDENTIDADE: NARRATIVAS INSTITUCIONAIS SOBRE
CURITIBA E A BUSCA PELA DEFINIÇÃO DE CULTURA LOCAL E TRADIÇÃO . 26
3.1 PLANO E DISCURSO ......................................................................................... 30
3.1.1 Curitiba de amanhã .......................................................................................... 32
3.1.1.1 Curitiba depois da linha do trem: Vila Tassi .................................................. 34
3.2 TECNOCRACIA IDENTITÁRIA E PUBLICIDADE ............................................... 38
3.2.1 Curitiba do Novo Milênio .................................................................................. 42
4 O LUGAR DO SAMBA NA CIDADE MODELO ..................................................... 50
4.1 A CIDADE E O SAMBA ....................................................................................... 59
4.2 O LUGAR DO SAMBA EM CURITIBA ................................................................ 61
4.2.1 O lugar do carnaval curitibano .......................................................................... 65
4.2.1.1 A curva e a lombada: o lugar e a representação institucional ...................... 75
4.2.1.2 O pré-carnaval insurgente ............................................................................ 81
5 ESTUDOS DE CASO ............................................................................................. 89
5.1 PLAYGROUNDS DE ALDO VAN EYCK ............................................................. 89
5.2 VOLTA AO MUNDO, 475 VOLVER E FONTE 193, DE CINTHIA MARCELLE ... 91
5.3 VALE DO ANHANGABAÚ: A APROPRIAÇÃO DO SKATE ................................ 94
6 DIRETRIZES .......................................................................................................... 99
7 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 102
ANEXO 1 – ENTREVISTA COM MANOEL J. SOUZA NETO, CIENTISTA
POLÍTICO E FUNDADOR DO MUSEU DO SOM INDEPENDENTE DE CURITIBA.
105
ANEXO 2 – MAPEAMENTO DOS LOCAIS DE ENSAIO DE ESCOLAS DE SAMBA
– 2009, 2010, 2012. CAROLINE BLUM. ................................................................ 110
MAPEAMENTO 2009: ............................................................................................ 110
ANEXO 3: MAPA SÍNTESE DOS LOCAIS EXPRESSIVOS NO CARNAVAL
CURITIBANO .......................................................................................................... 114
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1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo discutir a construção identitária da
população de Curitiba a partir de mecanismos institucionais. Observa-se, para isso,
a atuação da municipalidade na aplicação dos Planos Diretores a partir de 1965,
identificando a construção de uma narrativa condizente com a imagem que se
projetava da cidade. Fazendo um contraponto ao discurso dominante, levantou-se a
presença, em Curitiba, de uma das expressões populares mais significantes no
contexto nacional: o samba. Sendo esta expressividade vinculada a um recorte
específico da população, geralmente periférico e negro, observou-se se o discurso
institucional – voltado para a classe média branca – se fez assimilado a partir das
letras de samba produzidas na capital paranaense, assim como sua interferência no
fomento do carnaval.
A primeira parte deste trabalho traz reflexões acerca da produção do espaço
formal e interferências neste a partir do uso cotidiano, por praticantes ordinários.
Discute-se o esgotamento das lógicas de atuação contemporâneas sob o espaço
urbano, que cristalizam as cidades em um historicismo mal justificado e/ou
transformam-nas em cenários genéricos competindo por investimento de capital
privado internacional. Sugere-se, porém, uma abordagem em menor escala, onde os
espaços urbanos são projetados a partir de necessidades reais, coletivamente, a
partir da observação do uso da cidade, projetado por quem usa a cidade.
Nesse sentido, reflete-se sobre a construção da memória coletiva e sua
potência na construção de cenários que enaltecem determinados aspectos históricos
e abafam outros. Importante mecanismo para que instituições como o Estado
direcionem e atribuam valor para o que se considera, por exemplo, a verdadeira
cultura tradicional das cidades.
A compreensão de Curitiba como “cidade-modelo” no âmbito nacional e
internacional, leva, na segunda parte deste trabalho, à elaboração de um panorama
acerca das intervenções urbanísticas realizadas na cidade. Percebe-se que estas
intervenções sempre vinham acompanhadas de um discurso de valorização estética,
procurando relacionar – e reduzir - a população a um recorte comportamental e
étnico específico, referenciando uma suposta tradição europeia. Procurou-se refletir
a respeito do discurso de progresso aliado a esta “identidade europeia”, percebendo
abafamento de outros tipos de expressão étnicas também presentes na capital.
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O estudo da presença da festividade carnavalesca na cidade, a partir da
pesquisa da produção do samba, levou a refletir sobre o lugar do carnaval, seja o
institucional quanto o insurgente. Discute-se também a presença de uma “curadoria”
municipal na promoção de eventos culturais alinhados ao discurso hegemônico de
produção desta paisagem da cidade-modelo, fama que ainda perdura.
Em suma, objetiva-se discutir a presença de uma expressividade que
corresponde a uma prática de improviso, imprevisível e inesperada frente à
realidade da cidade formal ordenada, e no caso de Curitiba, famosa por seu
ordenamento “bem sucedido”.
Entendendo que o conflito entre a cidade formal e o uso cotidiano demonstra
disputas entre os diferentes atores urbanos, levantou-se, nos estudos de caso,
expressões que direcionam o raciocínio projetual no sentido de dar suporte à
festividade insurgente e formal do carnaval – evento extraordinário, unido a
necessidades cotidianas dos praticantes ordinários do espaço.
O primeiro estudo de caso trata do projeto de mobiliário de playground de
Aldo Van Eyck, na Holanda, onde o arquiteto lançou mão de formas e composições
simples, com a intenção do estímulo da imaginação, dando margem ao uso não
previsível dos elementos. O segundo estudo de caso aborda três vídeo-
performances da artista brasileira Cinthia Marcelle. Marcelle aborda a questão da
reinterpretação de elementos técnicos projetados para funções específicas (um
caminhão de bombeiros, uma escavadeira, uma rotatória urbana rodeada por
kombis) em ações não usuais. As propostas da artista provocam a reflexão acerca
da “refuncionalização” de objetos e espaços urbanos, que assim como o primeiro
estudo de caso, provoca uma reinterpretação do elemento apresentado a partir de
um uso não previsível. O terceiro estudo de caso trata da apropriação do Vale do
Anhangabaú, em São Paulo, por skatistas. Este caso interessa no contexto deste
trabalho por se tratar de uma interpretação alternativa do espaço urbano e sua
apropriação ativa por uma parcela da população tida como marginalizada. Pontua-se
também a associação, por parte da mídia e poder público, entre o esporte e
criminalidade até os anos 1990, abordagem muito semelhante à feita com sambistas
no final do século XIX e início do século XX.
As diretrizes projetuais se organizam, portanto, a partir da observação da
presença do carnaval em Curitiba – suas carências espaciais e deficiências em
relação a políticas públicas e da identificação de expressões populares abafadas
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e/ou desqualificadas pela mídia por não se encaixarem no cenário produzido pela
municipalidade. Nesse sentido, observa-se os espaços onde o samba ainda resiste:
barracões de escolas de samba, casas que restaram da antiga Vila Tassi, a avenida
definida pela prefeitura para os desfiles de carnaval e os pontos de saídas de blocos
de carnaval afim de compreender uma mancha de atuação. Entendendo que a única
forma de se preservar um espaço-movimento é possibilitando a existência de quem
modifica e interage com este espaço, o projeto de intervenção que será elaborado
no segundo momento deste trabalho, seguirá estas premissas.
2 DESLOCAMENTO ENTRE CORPO E DISCURSO: COTIDIANO E CIDADE
FORMAL
“(...) as duas correntes do pensamento urbanístico contemporâneo mais em voga internacionalmente, na teoria mas também na prática do urbanismo, apesar de serem quase antagônicas, chegam a um resultado muito parecido. (...) Tanto a corrente mais conservadora, pós-modernista tardia e radical, que preconiza a petrificação do espaço urbano, principalmente de centros históricos (museificação, patrimonialização, cidade-parque-temático ou disneylandização), quanto a corrente dita progressista, neomodernista e neoliberal, que faz a apologia dos espaços urbanos caóticos, principalmente periféricos ou de cidades da periferia mundial (junkspaces, cidades genéricas, cidades- shopping ou espaços terminais do capitalismo selvagem), destroem o espaço-movimento. A primeira, por intermédio de uma estratégia de institucionalização-congelamento do existente, e a outra, na direção inversa, pela destruição-substituição do existente mediante uma nova Tabula Rasa.” (JACQUES, 2011, p. 158)
Iniciamos este capítulo com uma citação de Paola Berenstein Jacques que
possui um caráter de denúncia: as estratégias aplicadas na produção das cidades
contemporâneas não são apenas insuficientes na resolução de seus problemas
quanto aniquilam o que a autora chama de espaço-movimento. Intrinsecamente
conectado ao uso cotidiano da cidade, o espaço-movimento é produzido a partir da
atuação de “não-arquitetos”, os praticantes ordinários, de Michel de Certeau. Trata-
se de uma abordagem espacial a partir do uso, não impositiva e construída
coletivamente. O espaço-movimento e a presença de seus caminhantes anônimos
será desenvolvida mais adiante neste capítulo, por hora apontamos, conforme
Jacques, a existência de práticas alternativas às “cidades genéricas” e/ou “cidades
congeladas”.
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A flexibilização dos modos de acumulação do capital à nível global,
principalmente a partir dos anos 1970, evidencia uma prática estatal que tende à
desinstitucionalização do espaço público a favor da presença mercadológica. O
mercado é afirmado como instituição reguladora prioritária no direcionamento de
recursos e relações sociais. Nota-se a promoção de intervenções urbanas movidas a
“ocasiões”: grandes eventos e projetos monumentais, conectados à uma lógica
global de lucro. Para a atração destes espetáculos, as cidades passaram a adotar
agressivas medidas publicitárias de marketing através de políticas de image-making
orientadas para fazer negócios. Afirma-se, portanto, a mercantilização de um
produto até então inédito: a própria cidade. Nesse sentido, tem-se processado um
significativo encolhimento da prática pública no sentido de atender demandas
sociais, cada vez mais distantes do plano da experiência. (PALLAMIN; ARANTES,
2002).
A competição entre cidades pela atração de investimento privado gera
desdobramentos como o “produto cultural” que lança mão de particularidades
históricas, artísticas e culturais na construção de um cenário imediatamente rentável,
recorrendo à sua espetacularização. A cultura torna-se mercadoria. Vera Pallamin, a
partir de David Harvey (1993)1, aponta que esses processos contemporâneos de
estetização da cultura perfazem-se em uma complexa trama simbólica e
“alinham-se à concreção de novos tipos de superficialidade, corroborando com a supervalorização da imagem e do efêmero, e com uma espécie de esvaziamento de conteúdos. Nos seus desdobramentos produz-se um esteticismo generalizado que traz em seu bojo os dilemas da dilapidação de ações culturais, concorrendo para sua “funcionalização”. Práticas e projetos culturais, dessa perspectiva, tendem a ser reduzidos ou instigados às consequências de interesses econômicos, numa intensa mercadificação que lhes acarreta uma perda significativa de seu potencial construtivo, uma vez que passam a ser atrelados estreitamente a táticas de lucro” (PALLAMIN, 2002, p. 104)
Neste movimento estetizante da cultura, aponta-se a intensificação de
práticas e discursos de memória, comercializando em diferentes escalas, referências
do passado. Maziviero (2018) aponta a memória como um fator estreitamente
conectado à formação e manutenção das identidades, situando os seres humanos
no tempo e conferindo-lhes a percepção de sua finitude, a partir de conexões com
_______________ 1 David Harvey. The Condition of Post-Modernity. Cambridge / Oxford: Blackell, 1993 (1ª ed. 1989)
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estruturas materiais. Como “estruturas materiais” entendemos os objetos que nos
rodeiam e os ambientes em que estão inseridos, que funcionam como elementos
cotidianos de acionamento da memória e da identidade. A autora afirma que a perda
da memória estaria, portanto, associada à perda de identidade. Nesse sentido,
pontuamos a atuação do Estado e grupos dominantes, que por vezes se utilizam
ideologicamente de recortes do passado na construção de uma memória dita
nacional, suprimindo fatos históricos que levam à supressão, portanto, de outras
memórias coletivas. Neste processo seletivo de recortes históricos em que alguns
fatos são registrados e outros são esquecidos “(...) o que será preservado na
memória dos indivíduos é escolhido em função de interesses pessoais ou políticos
pertinentes a determinado momento e, nesse sentido, a memória pode se tornar um
instrumento de dominação, assim como o esquecimento.” (MAZIVIERO, 2018).
Como já colocado, a construção da memória e da identidade necessitam de
reafirmações cotidianas. Essa afirmação também se aplica à memória coletiva e aos
elementos materiais com que esta se relaciona. Nesse sentido, a história das
cidades também pode ser recortada, garantindo os interesses de grupos
dominantes, que irão atuar no espaço urbano a partir destes recortes, selecionando
obras aptas à “preservação”, implantando medidas urbanísticas que valorizam áreas
específicas da cidade etc. (MAZIVIERO, 2018).
Rita Velloso (2016) afirma, a partir de Lefebvre2, que a vida urbana se
concretiza num movimento dialético de contrários, de criação e destruição de valores
e atitudes, mesmo que essa atitude seja o consumo. Defende-se “(...) o cuidado com
as coisas e os objetos do cotidiano como a atitude que possibilitaria uma inversão da
reificação, estabelecendo nessa posição seu mais importante princípio: a abertura
da práxis.”. Entende-se a práxis como um contraponto à chamada “miséria do
cotidiano”: a passividade. “A passividade se dá na medida em que os habitantes
delegam aos especialistas (os planejadores, os arquitetos, os desenhistas) não
apenas a tomada de decisões, mas o cuidado e a preocupação envolvidos numa
decisão.” (VELLOSO, 2016).
_______________ 2 LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford/Cambridge, Blackwell, 1991, p. 11-12.
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“A dominância da opinião do especialista sobre a cotidianidade configura um espaço petrificado, em que a reificação, de início somente tolerada e suportada, é, a seguir, aceita. A passividade corresponde a uma acomodação nociva, cujas razões estão dadas na fragmentação do fenômeno urbano, e, por outro lado, manipulação do cotidiano, na medida em que este se torna objeto da organização social. Em tais condições, que são o chão no qual germina a sociedade burocrática de consumo dirigido, o uso desaparece ou cai no silêncio, que, de resto, não é outra coisa senão a passividade, ou aquilo a que o habitante urbano chama satisfação, que, em geral, é o estado em que se instalam, acomodadas, as classes médias urbanas” (VELLOSO, 2016)
O conceito de espaço-movimento de Jacques (2011) é diretamente ligado
aos seus atores (sujeitos da ação) que são tanto aqueles que o constroem e
transformam continuamente quanto aqueles que o percorrem cotidianamente. A
autora descreve essa atuação a partir do estudo da construção cotidiana das
favelas, que entre outras características, não se finda nem tem autoria. Apesar de
seu objeto ser a favela, Jacques aponta que esta interpretação do espaço pode ser
útil na atuação da cidade dita formal. A autora afirma, a partir da compreensão do
esgotamento das políticas de intervenção urbanas contemporâneas que “(...) Essa
outra maneira de fazer dos não arquitetos, de inventar sua própria cidade, pode
sugerir uma nova maneira de fabricar a cidade de amanhã” (JACQUES, 2011, p.
157).
2.1 O IMPROVISO E A CIDADE FORMAL
“Escapando às totalizações imaginárias do olhar, existe uma estranheza do cotidiano que não vem à superfície, ou cuja superfície é somente um limite avançado, um limite que se destaca sobre o visível. Neste conjunto, eu gostaria de detectar práticas estranhas ao espaço “geométrico” ou “geográfico” das construções visuais, panópticas ou teóricas. Essas práticas do espaço remetem a uma forma específica de “operações” (“maneiras de fazer”), a “uma outra espacialidade” (uma experiência “antropológica”, poética e mítica do espaço) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade transumante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível.” (CERTEAU, 1998, p. 172)
Certeau aponta a observação de um comportamento frente ao espaço urbano
que não se alinha ao comportamento passivo e satisfeito das classes médias
urbanas. Velloso (2016) afirma, a partir de Lefebvre, que o espaço social se
apresenta de modo dual, produzido por forças e relações de produção: tanto como
um campo de ação quanto uma base para a ação, uma plataforma onde o corpo
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age, produzindo o espaço. “A mediação corpórea pauta a possibilidade de novas
criações no espaço da vida cotidiana, esse campo sobre o qual se projetam as
atividades produtivas.”. Nesse sentido, afirma-se que um espaço apropriado é
potencialidade de superação da alienação na vida cotidiana, uma vez que reinstala o
valor de uso. A experiência da apropriação representa a possibilidade contínua de
produção de relações novas porque são capazes de configurar novas práticas,
reconfigurar usos e funções arquitetônicas, livres de determinismos e
constrangimentos.
Tanto a reinterpretação espacial a partir da apropriação corpórea quanto a
discussão sobre cultura popular pode ser encontrado no trabalho do artista brasileiro
Hélio Oiticica (1937-1980). Em 1965, o artista apresentou os Parangolés na
exposição Opinião 65, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM – RJ
com um grupo de passistas da Estação Primeira de Mangueira, uma das mais
tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro. A obra é proveniente do encontro
de Oiticica com a cultura do samba no Morro da Mangueira. Os Parangolés tratam-
se de capas, tendas e estandartes que modificavam-se completamente a partir do
movimento do sujeito que os vestia. É uma obra que explora o despertar
participativo na arte, a experiência para além da visão, desconstruindo a posição
passiva do expectador, predominante na arte tradicional. A apresentação de Oiticica
no MAM em 1965 não foi bem aceita. O grupo foi expulso do museu e o artista
decidiu prosseguir a apresentação do lado de fora (BRAGA, 2017).
Os Parangolés são a proposta mais conhecida de Oiticica, que teve uma
trajetória com uma produção muito rica, permitindo incontáveis análises. Refletindo
sobre a não aceitação de sua proposta no contexto da arte tradicional, o artista
aplica a estratégia da inversão – explanada a seguir -, provinda do ambiente
carnavalesco. Em seus escritos, Oiticica usa a expressão “anti-arte” para descrever
seu trabalho. A estratégia da inversão foi aplicada na obra Seja Marginal Seja Herói
(Figura 1):
“Neste parangolé-poético, Oiticica explicita sua defesa da marginalidade no sentido da confrontação da regra, da vivência das margens da sociedade. A frase que dá título à obra mistura vários sujeitos: o marginal bandido, o marginalizado econômico-social, e a marginalidade do artista que, estando na margem, olha para o centro mas também consegue olhar pra fora” (BRAGA, 2017)
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FIGURA 1 – BANDEIRA-POEMA “SEJA MARGINAL SEJA HERÓI”, HÉLIO OITICICA, 1968
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural3
Ainda sobre “inversão”, cita-se brevemente o trabalho de 1935 de Joaquim
Torres García (1874-1949). O artista uruguaio defende a criação de uma “Escuela
del Sur” que evidencia uma necessidade latino-americana de buscar caminhos
próprios, invertendo a posição de dependência às nações colonizadoras e o
pensamento dominante. Ao inverter em 180° o mapa da América-Latina (Figura 2),
García reposiciona simbolicamente o norte, possibilitando outra interpretação acerca
do território e da própria cultura (COSTA, 2011).
“He dicho Escuela del Sur; porque en realidad nuestro norte es el Sur. No debe de haber norte, para nosotros,sino por oposicion a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el mapa al reves, y entonces ya tenemos justa idea de nuestra posicion, y no como quieren en el resto del mundo. La punta de America,desde ahora, prolongandose, senala insistentemente el Sur, nuestro norte. Igualmente nuestra brujula: se inclina irremisiblemente siempre hacia el Sur, hacia nuestro polo. Los buques, cuando se van de aqui, bajan, no suben, como antes, para irse hacia el norte. Porque el norte ahora esta abajo. Y levante, poniendonos frente a nuestro Sur, esta a nuestra izquierda. Esta rectificacion era necesaria; por esto ahora sabemos donde estamos”
4
(GARCIA, 1935. Apud Costa, 2011)
_______________ 3 Disponível em: Acesso em 01 de jun. 2019.
4 Eu disse Escola do Sul; porque na realidade o nosso Norte é o sul. Não deveria haver norte para nós mas por oposição ao nosso sul. É por isso que agora colocamos o mapa ao contrário e temos
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24
FIGURA 2 – AMÉRICA INVERTIDA, JOAQUIM TORRES GARCÍA, 1943
Fonte: Costa (2011)
Tanto as obras de Oiticica quanto a de Torres García foram citadas
brevemente neste trabalho com a intenção de construir um raciocínio a respeito da
prática da inversão carnavalesca, desenvolvida por Da Matta (1997). O objeto deste
trabalho se desenvolve a partir da expressão do samba na presença das
festividades do carnaval, discutindo questões de construção de identidade, de
improviso cotidiano e seu contraste com a cidade formal. O título deste tópico “O
improviso e a cidade formal” fica mais claro a partir de agora. As obras dos dois
artistas não se relacionam com o título deste tópico de forma literal, mas uso aqui a
palavra “improviso” com um sentido de transgressão, em contraponto à “cidade
formal”, que representa literal e simbolicamente uma ordem de princípio tecnocrata,
que carrega consigo uma imposição de uma narrativa dominante e excludente.
Da Matta (1997, p.46) analisa o carnaval em comparação com as festividades
do Dia da Independência (Dia da Pátria), pois considera que são “ritos fundados na
possibilidade de dramatizar valores globais, críticos e abrangentes da nossa
uma ideia precisa da nossa posição e não como eles querem no resto do mundo. A ponta da América, a partir de agora, se prolongando, insistentemente aponta Sul, nosso norte. Da mesma forma nossa bússola: se inclina inevitavelmente sempre em direção ao Sul, em direção ao nosso polo. Os navios, quando saem daqui, descem, não sobem, como antes, para ir para o norte. Porque o norte agora está em baixo. E levante-se, encarando nosso Sul, está à nossa esquerda. Essa retificação foi necessária; para isso, agora sabemos onde estamos. Tradução nossa.
-
25
sociedade.”. O autor observa os eventos contrastando-os com os atos do mundo
cotidiano. Da Matta define como princípio do raciocínio a separação nítida entre o
domínio do mundo cotidiano e o universo dos acontecimentos extra-ordinários,
entendendo que a passagem de um domínio a outro é marcada por modificações no
comportamento da população. Nesse sentido, o carnaval é interpretado como um
evento situado entre a rotina e o imprevisto “planejados, mas muitas vezes,
incontrolados. (...) é possível relacionar os rituais fundados no princípio social da
inversão, como é o caso dos carnavais, com a ação popular “espontânea” e
extraordinária (isto é, não esperada e não planejada) das massas (...)” DA MATTA
(1997, p. 49).
É interessante observar, como levanta o autor, sobre a distribuição espacial
destes eventos. O Dia da Pátria é realizado geralmente em um local historicamente
aclamado e diante de figuras que representam a ordem jurídica e política. Já o
carnaval, relaciona-se de outra forma com o espaço urbano, invertendo algumas
situações cotidianas:
“(...) embora exista um local especial para os desfiles das escolas de samba, a “rua”, tomada em seu sentido mais genérico e categórico, e em oposição à “casa” (que representa o mundo privado e pessoal), é o local próprio do ritual. Assim, o universo espacial próprio do carnaval são as praças, as avenidas e, sobretudo, o “centro da cidade” que, no período ritual, deixa de ser o local desumano das decisões impessoais para se tornar o ponto de encontro da população, do mesmo modo que os salões são o espaço igualador de várias posições sociais no baile.” (DAMATTA, 1997, p. 56)
Entendendo a prática carnavalesca como um evento que permite e incentiva
o improviso, veremos ao longo deste trabalho quais foram os espaços reservados
para a festividade na cidade de Curitiba, famosa pelo seu planejamento urbano “bem
sucedido”.
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26
3 DISCURSO E IDENTIDADE: NARRATIVAS INSTITUCIONAIS SOBRE CURITIBA
E A BUSCA PELA DEFINIÇÃO DE CULTURA LOCAL E TRADIÇÃO
No dia 20 de novembro de 2018, o atual prefeito de Curitiba (gestão 2017-
2020), Rafael Greca de Macedo lança, em frente à Igreja do Rosário5 (localizada no
Largo da Ordem, no Centro Histórico de Curitiba), o programa “Rosto da Cidade” -
idealizado por ele próprio. De acordo com a mídia oficial6 “O Rosto da Cidade é um
programa de revitalização urbana em parceria com a iniciativa privada que tem como
objetivo a recuperação e preservação do Centro Histórico de Curitiba” a partir de
execução de nova pintura e aplicação de uma “resina especial”, uma “tecnologia
antipichação” como colocou Greca7. Durante o evento de lançamento, o prefeito
declarou sua intenção de “devolver ao rosto sagrado de Curitiba a sua condição de
dignidade” pontuando a ação como “um projeto antipichação e antivandalismo”,
completando eloquentemente: “xô tranqueira e xô pichador”8.
Pela abrangência do programa, o “rosto sagrado de Curitiba” mede dois
quilômetros quadrados, inseridos no setor histórico e área central da cidade (Figura
3). Muitos dos edifícios incluídos na primeira etapa do projeto (são 6 etapas ao todo)
estão em uso, sediando atividades culturais ligadas à Fundação Cultural de Curitiba
(FCC). Porém, o que chama a atenção são as demais etapas, que incluem edifícios
sabidamente sem uso e com aspecto de abandono. A mídia oficial não dá detalhes
sobre como a prefeitura intervirá nestes casos, mas Greca adiantou: “A ideia é
começar pelos prédios da Prefeitura e igrejas históricas e depois avançar em
edificações particulares, a partir de convênio com proprietários a ser costurado pela
Procuradoria do Município”9. Correspondendo de maneira bastante literal ao nome
do projeto, o que se assume pelas informações publicadas oficialmente - e pelas
declarações do prefeito - é a intenção de “restauração” da imagem de edifícios
específicos incluídos em uma área específica da cidade, através de suas fachadas.
_______________ 5 Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito.
6 Rosto da Cidade – Prefeitura de Curitiba. Disponível em: . Acesso em: 15 de abril de 2019; Agência de Notícias – Prefeitura de Curitiba. Disponível em: Acesso em: 15 de abril de 2019
7 Idem 6
8 Agência de Notícias – Prefeitura de Curitiba. Disponível em:
9 Idem 5
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27
FIGURA 3 - MAPA DO PROGRAMA ROSTO DA CIDADE, 2019
Fonte: Prefeitura de Curitiba – Rosto da Cidade (2019)10
O raciocínio que dá suporte a este tipo de intervenção institucional não é
exceção da atual gestão da prefeitura de Curitiba. A busca pelo rosto da cidade,
assim como a disseminação e a preservação do retrato deste rosto remonta à uma
Curitiba recém-nomeada capital da província do Paraná, atravessa as expressões
paranistas do início do século XX até que abraça o planejamento urbano em meados
do século XX.
_______________ 10
Disponível em Acesso em 15 de abril 2019.
-
28
Lucrécia Ferrara (2007) aponta que do século XVII à primeira metade do XIX,
Curitiba era “chão de passagem”: conectava tropeiros e condutores de gado entre
São Paulo e Porto Alegre. De chão de passagem, a cidade passa a destino de
vários processos migratórios no século XIX, fator que a autora atrela à questão de
“indefinição” da cidade, por sua “variada e inconstante multiplicidade”. Coloca,
inclusive, que Curitiba se mantém - até a primeira metade do século XIX - como um
chão de passagem, mas dessa vez entre brasileiros e “imigrantes banais, anônimos
e periféricos no mundo”: “Enquanto chão qualquer, a história é irrelevante e, o
espaço, indefinido: tudo está para ser feito, para ser construído” (FERRARA, 2007,
p. 156).
Curitiba tornou-se capital da província do Paraná em 1853, no processo
nacional de interiorização dos núcleos administrativos por fatores militares11. “Para
obter o título, bastou um decreto. Para sentir-se uma capital de fato, Curitiba
necessitou de mais de um século” (DUDEQUE, 2010, p.26). Esta afirmação de Irã
Taborda Dudeque se relaciona com o pensamento de Ferrara ao observarmos os
esforços, principalmente das diversas administrações municipais ao longo do século
XX, na construção identitária da capital do Estado do Paraná:
“Era imprescindível criar razões de orgulho por pertencer ao Paraná, mesmo que ele próprio precisasse ser criado enquanto definição de território geográfico e, sobretudo, cultural. Pertencer para apropriar-se e apropriar-se para identificar-se: tudo isso com forte apelo visual, uma imagem para convencer e persuadir ou para estimular a ação coletiva e, nessa dualidade, parece debater-se a percepção que os habitantes têm da cidade.” (FERRARA, 2007, p. 159)
A intenção deste trabalho é analisar as estratégias institucionais de
construção imagética de Curitiba de 1940 a 1990 e seus efeitos no imaginário
coletivo. Para tanto, observa-se a produção de um dos gêneros musicais mais
representativos da expressão popular brasileira: o samba. A análise de letras de
samba produzidas localmente, a organização de agremiações carnavalescas e a
disputa por um “espaço oficial” desta expressão são objeto desta pesquisa.
Abordamos também o papel e a “curadoria” da municipalidade na promoção de
_______________ 11
Paraná e Guarapuava eram as cidades mais desenvolvidas do Paraná na época e tinham maior vocação para sediar a capital do Paraná. Mas por conta da política de interiorização, Curitiba foi selecionada.
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29
eventos, assim como analisamos o direcionamento do fomento institucional a
expressões culturais (inseridas no âmbito da música paranaense) que condizem
mais do que outras com o “filtro” desta “curadoria”. Que filtro é este? O que passa e
o que fica?
Antes disso, porém, é importante pontuar, ainda que brevemente, um
relevante movimento curitibano do início do século XX: o paranismo. A relevância do
paranismo se justifica por se tratar de uma “verdadeira obra visual de engenharia
simbólica, para mostrar o Paraná ao Brasil e Curitiba aos curitibanos e ao mundo”
(PEREIRA, 1997 apud FERRARA, 2007, p. 157). Tanto Ferrara quanto Dudeque
(2007 e 2010, respectivamente) observam a forte carga de signos no discurso
paranista, que se utilizou de elementos da fauna e da flora da região para evocar um
discurso de pertencimento e apropriação “de alguns parâmetros visuais e
representativos de uma história, de uma tradição cuja realidade ou existência
concreta pouco importa, visto que significativa enquanto imaginário” (FERRARA,
2007, p. 157). Desenvolvido por funcionários públicos e intelectuais12 na década de
1920, o movimento foi responsável, entre outras coisas, por consagrar a imagem da
araucária como símbolo estadual, assim como a erva mate, principal riqueza da
região (Figura 4). Não à toa, ambos os símbolos compõem o brasão do estado e
evocam, conforme Ferrara, a força e a coragem do Paraná, sintetizando visualmente
uma relação do território com a nação e que “permanecem no repertório cultural da
população relacionando-se a desenvolvimento e progresso” (FERRARA, p. 157).
É evidente que este discurso não se dava isoladamente em Curitiba, mas
relacionava-se com o contexto nacional da chamada Primeira República e o início da
industrialização brasileira. O paranismo transmitia uma ideia de um estado idílico,
isento de qualquer conflito social, envolto em uma atmosfera lendária. É interessante
pontuar que em 1962, a SAGMACS13 “chocou-se contra essa ufania (...) ao divulgar
os dados de um Paraná com secas, enchentes, misérias e êxodos.” (DUDEQUE,
2010, p. 349).
_______________ 12
O intelectual Romário Martins (1874-1948) se destaca como uma importante personalidade neste contexto. Martins referenciava personagens indígenas em seus escritos. De acordo com Salturi (2009, p. 06): “Os estudos históricos que tratam sobre os escritos de Romário Martins dizem que os mitos e lendas que aparecem nas obras deste foram criados pelo próprio autor com o intuito de atingir o “imaginário popular” para garantir a “dominação”“.
13 Empresa responsável pela elaboração do Plano de Desenvolvimento do Paraná.
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30
Qual é, afinal, o rosto de Curitiba? Qual o ângulo de registro desta feição? Os
curitibanos se reconhecem neste retrato?
FIGURA 4 – REVISTA ILLUSTRAÇÃO PARANAENSE, “HOMEM PINHEIRO”, JOÃO TURIN, 1927.
O periódico “Illustração Paranaense: mensário paranista de artes e actualidades” circulou no
início do século XX, retratando o ambiente artístico e sociocultural da capital e desenvolvendo a
temática paranista.
Fonte: João Turin: Vida, obra, arte14
(2019)
3.1 PLANO E DISCURSO
“(...) Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória.
_______________ 14
Disponível em Acesso em 08 de jun. 2019.
-
31
(...) Mas foi inútil a minha viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo.” (Ítalo Calvino, Cidades Invisíveis, p. 20)
Assim como Zora, Curitiba possui um itinerário evocativo de memória.
Projetou, desde os anos 1940, uma imagem extremamente positiva da sua gestão
urbana. A partir dos anos 1970 este discurso ganhou mais força e a fama de Curitiba
passou de “laboratório de experiências urbanísticas” à “Capital ecológica” nos anos
1990, chegando à condição de “cidade modelo” para todo o país, com projeção
internacional na virada do século (OLIVEIRA, 2000).
Como já colocado, o Estado do Paraná buscava definir-se desde o início do
século XX, na tentativa de evocar na população um sentimento de pertencimento e
identificação, além da necessidade discriminar o estado no contexto nacional.
Curitiba, como capital, funcionou como núcleo disseminador desses discursos. Em
um primeiro momento fazia-se referência à fauna, flora, e lendas indígenas da
região. Depois, ainda na primeira metade do século XX, os conceitos modernistas
popularizaram-se e as obras públicas de grande porte - assim como o próprio plano
diretor - se tornaram importantes recursos na construção de uma narrativa identitária
para a cidade de Curitiba. Neste sentido, a atuação da gestão pública ao longo da
segunda metade do século XX foi decisiva: implantou-se o plano diretor de 1965
com certa eficiência e, juntamente com um aporte publicitário, consolidou-se um
discurso que não mais remetia às características naturais da região, mas em seu
desenvolvimento tecnológico, “inovador”, “criativo”. Tudo isso atrelado à imagem de
genialidade dos técnicos, arquitetos e urbanistas: equipe do prefeito (FERRARA,
2007; DUDEQUE, 2010; OLIVEIRA, 2000).
Conforme Ferrara (2007), estas evocações são controladas a partir de
imagens construídas, táteis e visuais ao mesmo tempo. A autora aponta uma lógica
de “ensinar a ver: o que ver e como ver, portanto, uma imagem filtrada, tendo em
vista uma homogeneização perceptiva.” (FERRARA, 2007, p. 156). Nesse sentido, é
preciso pontuar a parcialidade destas representações oficiais da cidade, que apesar
de se pretenderem hegemônicas acabam “enfocando em demasia alguns aspectos,
desconsiderando outros e praticamente ignorando as manifestações que
contradigam a positividade do cenário.” (OLIVEIRA, 2000, p. 16). Dennison Oliveira
2000) aponta que a credibilidade transmitida pelo discurso oficial está atrelada a
certos aspectos da realidade ou dificilmente se sustentariam ao longo do tempo.
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32
Analisar o discurso criticamente não pode levar a afirmar que as representações são
meras falsificações grosseiras. Porém, ainda conforme o autor, é necessário
observar se o discurso oficial e a imagem proveniente deste discurso não acabaram
por ocultar, ao longo do tempo, aspectos tão ou mais relevantes para a
compreensão histórica e experiência urbana da cidade de Curitiba.
Pretende-se, neste capítulo, compreender a relação entre a dimensão
comunicativa - desenvolvida pela imprensa e pela publicidade - e os planos diretores
que, conforme FERRARA (2007), são estrategicamente explorados na construção
da identidade da cidade, procurando despertar um ideal de pertencimento na
consciência popular. Para isso, apresenta-se brevemente as intervenções mais
significativas no âmbito do planejamento urbano curitibano contextualizadas com o
panorama nacional e internacional do mesmo período. Questionando o processo de
memorização cristalizada, como o transmitido pelo realismo fantástico de Calvino
(1990) na cidade fictícia de Zora, busca-se, em seguida, evocar a expressão popular
curitibana a partir do samba e da presença do carnaval na cidade. A busca pelo
“lugar do samba” em Curitiba e as reflexões acerca do desdobramento do discurso
oficial no imaginário popular partem da intenção de reinterpretar a cidade a partir de
um discurso não-oficial.
3.1.1 Curitiba de amanhã
O primeiro plano diretor da cidade de Curitiba, do ano de 1942, foi proposto
por Alfred Agache, contratado por uma empresa de São Paulo que por sua vez,
tinha sido escolhida pela prefeitura de Curitiba: “Teremos plano como o Rio de
Janeiro, São Paulo, Chicago, Buffalo, Filadélfia e esse plano será decretado, saíra
da técnica e da arte de Agache, um dos maiores urbanistas do mundo” (Diário da
Tarde, 3 de outubro de 1940; SILVA, 2000, p. 38 apud FERRARA, 2007, p. 160). O
raciocínio presente na sua elaboração estava estritamente relacionado com o
urbanismo da escola modernista da Carta de Atenas (1933), que interpretava a
cidade “como um conjunto arquitetônico que deveria atender a certo número de
funções essenciais, como trabalho, habitação e circulação” (OLIVEIRA, 2000, p. 74).
Na teoria modernista, estas funções são distribuídas na malha urbana a partir de
áreas funcionais que são conectadas por vias expressas, privilegiando o automóvel
individual. Abrigando estas funções, conjuntos de edifícios são projetados a partir de
uma lógica racionalista (OLIVEIRA, 2000).
-
33
Neste momento, Curitiba não era uma capital de destaque no contexto
nacional, sendo reconhecida apenas por seu caráter fortemente agrícola. (ZIRKL,
2003, p.87, apud SOUSA, 2012). O Brasil passava pelo período do Estado Novo, é
interessante observar, portanto, a preocupação do planejador em propor um Centro
Cívico e um estádio municipal. Conforme Dudeque (2010), a política mundial das
décadas de 1930 e 1940 convertia estádios em locais para contato entre massas
urbanas e dirigentes políticos. O plano também contava com um centro comercial (o
centro tradicional), uma cidade universitária (o Centro Politécnico), um setor militar,
um Centro Industrial (Capanema e Rebouças) e um Centro de Abastecimento (onde
hoje é o Mercado Municipal) (OLIVEIRA, 2000).
De acordo com Irã Taborda Dudeque (2010, p. 77) o Plano Agache
munia-se de um “urbanismo de representação, que pretendia dotar Curitiba do
aspecto de capital, mas que não sugeria meios para que a atividade econômica se
desenvolvesse.”. O autor aponta que o governo central, entre 1930 e 1937,
preocupou-se em resgatar a capacidade de exportação agrícola da capital (como o
café), tratando a produção industrial como um complemento das importações. Ao
longo da 2a Guerra Mundial (1939-1945) houve um aumento na produção industrial
brasileira, mas a situação de Curitiba não mudou, continuando como um centro de
transação de produtos agrícolas e extrativos (como a madeira) (DUDEQUE, 2010).
Nesse sentido, conforme o autor, a proposta do Plano Agache para a área industrial
de Curitiba era apenas oratória, uma vez que a delimitação presente na proposta:
“(...) pretendia converter a área industrial (com minúsculas) em Zona Industrial (com
maiúsculas). E tudo continuaria como antes.” (DUDEQUE, 2010, p. 68). Continuaria
como antes porque, desde o Código de Posturas de 1895 as indústrias de Curitiba já
se concentravam naquela região (Capanema e Rebouças).
Desde a década de 1940 o planejamento urbano foi utilizado como
estratégia de ação e discurso do poder público no governo da cidade, afastado da
participação popular e norteado por valores e procedimentos limitados à uma visão
tecnicista. Estes valores e procedimentos se dividam em duas dimensões: a
técnica/ideológica e a comunicativa (DUARTE, 2002 apud FERRARA, 2007). Ferrara
(2007) aponta a importância da dimensão comunicativa na implantação do plano,
que a partir da atuação da imprensa o expandiu persuasivamente no meio social.
-
34
“O curitibano deve ter orgulho de sua cidade. Ela já é, de fato, uma das mais lindas do nosso país. Um poeta batizou-a de cidade sorriso, um pintor de cidade das flores e, agora, um jornalista de Moças bonitas...Nesse sentido, temos hoje o prazer de transmitir aos curitibanos uma grata notícia: pela Prefeitura Municipal foi assinado contrato para a realização de um belo plano de urbanização da nossa capital. Os melhoramentos que vão ser executados obedecerão à orientação do professor Agache, notável urbanista de representação universal.” (Diário da Tarde, 19 de maio 1941; SILVA, 2010, p. 65, apud FERRARA, 2007, p. 160)
Após o lançamento do plano, Curitiba passou por um rápido e imprevisto
crescimento urbano que acabou por causar diversos problemas como loteamentos
clandestinos, inundações frequentes no centro da cidade, déficit de unidades
habitacionais, mau estado da rede viária e um centro da cidade em deterioração,
atravancado por vias estreitas (OLIVEIRA, 2000). Conforme o autor, além dos
problemas descritos, os parâmetros excessivamente rígidos do plano foram fatores
importantes para que o Plano Agache fosse implantado muito parcialmente, ficando
obsoleto rapidamente.
3.1.1.1 Curitiba depois da linha do trem: Vila Tassi
A década de 1940 não foi transformadora apenas nos meios institucionais de
gestão e planejamento urbano. A década marcou-se também pela mudança nos
hábitos curitibanos de brincar uma das mais tradicionais festas populares brasileiras:
o carnaval, que se tornou uma importante expressão do samba (VIACAVA, 2010). O
desenvolvimento do raciocínio acerca da importância do samba como canal de
expressão popular virá no capítulo seguinte, porém, no presente momento é
essencial evidenciar um dos contextos da Curitiba “não institucional” que se
desenvolvia nos quintais dos trabalhadores da via férrea.
Entre os anos de 1942 e 1957 atuava na capital paranaense a Rede de
Viação Paraná Santa Catarina (RVPSC), uma das principais empresas do estado.
“empregando um grande número de funcionários que estabeleceram entre si
associações que ultrapassaram as relações exclusivamente operacionais com a
linha férrea”. (BATISTA, 2007 apud OLIVEIRA, 2013, p. 75). A partir de
reivindicações dos trabalhadores, a RVPSC - através da Caixa de Aposentadorias e
Pensões dos ferroviários - financiou e construiu vilas e moradias.
Localizada exatamente ao lado dos trilhos do trem, a vila Capanema contava
com 68 lotes e é um exemplo de atuação da RVPSC. Próxima à Vila Capanema
-
35
configurou-se a Vila Tassi, que abrigou trabalhadores da via férrea e foi considerada
um dos principais redutos negros e operários da cidade15, situados em uma
condição periférica tanto espacial quanto socialmente (Figuras 5 e 6). Como já
colocado, a relação comunitária entre esta parcela da população não se limitava à
vinculação empregatícia. O Clube Atlético Ferroviário (hoje Paraná Clube) e a
Escola de Samba Colorado, fundados em 1930 e 1944 respectivamente, são dois
importantes exemplos de associações da comunidade Vila Tassi. O estádio Durival
Britto e Silva, hoje estádio do Paraná Clube, próximo à vila foi construído com
significativas doações da RVPSC e era o terceiro maior estádio do país na época de
sua inauguração, sediando jogos da Copa do Mundo de 1950 (CÓRDOVA et al,
2010; GALLARZA; BAPTISTA, 2010 apud OLIVEIRA, 2013).
_______________ 15
PAZELLO, Ricardo Prestes. Curitiba tem samba de classe. Brasil de fato. Disponível em: < www.brasildefato.com.br/node/34090/> Acessado em: 29 de maio de 2019.
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36
FIGURA 5 - PLANTA DA CIDADE DE CURITIBA, 1944
Mapa de Curitiba de 1944 com demarcações de suas zonas fiscais e ruas.
Fonte: As virtudes do bem-morar: o processo de urbanização de Curitiba e a produção
arquitetônica de Eduardo Fernando Chaves16
_______________ 16
Disponível em:< https://asvirtudesdobemmorar.wordpress.com/obras-de-eduardo-fernando-chaves-2/> Acesso em 14 de abril de 2019.
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37
FIGURA 6 - VILA TASSI: CONTEXTO EM 1944
Nota-se que a localização da Vila no ano de 1944 era periférica, uma vez que as ruas de seu entorno
nem tinham nominação à época da produção do mapa.
Fonte: Elaborado pela autora.
Em 1949 o terreno onde se localizava a Vila Tassi foi comprado por grandes
empresários da indústria do beneficiamento do trigo, resultando na expulsão dos
moradores. Restaram três casas, que ainda resistem. Em uma delas morava Ismael
Cordeiro, o Mestre Maé da Cuíca (1927-2012), fundador da Escola de Samba
Colorado. Sobre o fim da vila, Maé escreveu e cantou:
“Quem diria que a Vila Tassi iria se acabar/ Quem diria que somente três casa/ Iriam ficar/ Elas ficaram pra mostrar ao carnaval/ Que o samba lá da Vila/ Sempre tem o seu lugar/ A gente gostava/ Quando a tardinha chegava/ Embaixo das três árvores/ O batuque começar/ E a cuíca começava a roncar/ Pra mostrar a vizinhança/ O que era um samba ao luar/ Quem diria?“ (Samba “Vila Tassi” composição de Maé da Cuíca)
A Colorado foi a primeira (e única) escola curitibana que se iniciou realmente
como escola, ao contrário das demais que são provenientes de organizações de
blocos de carnaval. O samba “Vila Tassi” é tido como a primeira composição autoral
apresentada num concurso de carnaval em Curitiba e fez da Colorado a primeira
escola a desfilar com um samba enredo inédito na cidade (BLUM, 2017).
-
38
Somente após o surgimento da escola que a capital paranaense conheceu o
chamado “carnaval brasileiro”. Considerado música das baixas camadas sociais, dos
“negros e desordeiros”, o samba demorou a se inserir em Curitiba. “Os primeiros
anos não eram muito fáceis (...), o curitibano, por demais conservador, até então
dava preferência à polca e ao “choro”.” (NAROZNIACK, 1974). Após a ousada
estréia da Colorado, os carros alegóricos do tradicional carnaval curitibano deram
lugar aos blocos carnavalescos, que se consolidaram principalmente após a primeira
metade da década de 1940 (NAROZNIACK, 1974).
Enquanto a Curitiba institucional buscava por sua identidade a partir de
parâmetros idealizados, havia uma outra Curitiba que sabia muito bem quem era.
3.2 TECNOCRACIA IDENTITÁRIA E PUBLICIDADE
Desde meados da década de 60, as elites locais do Paraná e claro, de
Curitiba, começaram a forjar estratégias de desenvolvimento baseadas em políticas
para atração de investimentos industriais (OLIVEIRA, 2000). Notava-se também uma
preocupação em “diminuir a sensação de insignificância” (DUDEQUE, 2010, p. 386)
para que Curitiba fosse finalmente reconhecida como uma capital frente aos
brasileiros, paranaenses e os próprios curitibanos. É importante pontuar, mesmo que
brevemente, as influências a nível mundial, nacional e regional que influenciavam a
lógica da gestão urbana neste período.
No período após Segunda Guerra Mundial, a integração do território nacional
se torna viável a partir da interligação das estradas de ferro, também há
investimento pesado em programas de infraestrutura como para a construção de
estradas de rodagem que colocam em contato as diversas regiões entre ferrovias
com a região polar do país - São Paulo e Rio de Janeiro (SANTOS, 2013). O autor
aponta 1964 como um marco: após o golpe de Estado o movimento militar criou
condições para uma rápida integração nacional, assim como um movimento de
internacionalização. O país se torna um grande exportador tanto de produtos
agrícolas não tradicionais (soja, cítricos) quanto de industrializados. A evolução da
população urbana brasileira e a inversão do lugar de moradia são outros fatores que
modificam intensamente o panorama nacional a partir do fim da Segunda Guerra
Mundial: os progressos sanitários, a melhoria dos padrões de vida e a própria
urbanização levaram a um aumento demográfico (diminuição da mortalidade,
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39
aumento da natalidade) (SANTOS, 2013). Sobre o Paraná, Milton Santos (2013)
aponta uma das taxas de decréscimo mais significativas da população rural entre
1970 e 1980 em relação ao restante do país. Nesse sentido, é importante notar o
desenvolvimento do que veio a se tornar a Região Metropolitana de Curitiba (RMC) -
criada em 1973 -, que recebeu boa parte da população rural no período apontado
por Milton Santos.
Em Curitiba, as transformações urbanas marcavam a evidente obsolescência
do Plano Agache, que não atendia mais às necessidades de desenvolvimento da
capital paranaense. Em 1963 houve a criação da Companhia de Urbanização de
Curitiba (URBS) e em 1964 a decisão da Companhia de Desenvolvimento do Paraná
(CODEPAR) de revisar o Plano Agache (BONINI, 2006, apud SOUSA, 2012). Para
tanto, em 1965, lançou-se um concurso nacional entre empresas de arquitetura e
urbanismo para selecionar a melhor proposta de plano diretor para Curitiba. O plano
preliminar vencedor foi produzido pela empresa Serete Engenharia S.A. em
associação com o conceituado escritório de Jorge Wilhem, ambos de São Paulo. Na
época, houve a necessidade da criação de um órgão “capaz de propor e fixar
normas de aplicação do Plano Preliminar de Urbanismo” (a proposta vencedora).
Criou-se então em julho de 1965 a Assesoria de Pesquisa e Planejamento Urbano
de Curitiba (APPUC) e em dezembro do mesmo ano o Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). (OLIVEIRA, 2000; IPPUC).
De acordo com Dennison Oliveira (2000, p. 49) a abordagem do plano
proposto pode ser caracterizada como Urbanismo Humanista, uma vez que “pode
ser situado a meio caminho entre a abordagem modernista original, (...) da Carta de
Atenas, e a ascensão das posturas críticas a esse mesmo modernismo”. Como
exemplo, o autor cita as críticas à despersonalização e esvaziamento de espaços
públicos tidas como frequentes no Modernismo, o que levou, em Curitiba, a uma
abordagem que incorporava princípios de revitalização dos espaços públicos
tradicionais da cidade bem como propor novos pontos de encontro para seus
habitantes. A seleção dos “espaços público tradicionais” baseou-se na identificação
do antigo centro como o “lócus privilegiado das tradições” a partir da observação dos
seus antecedentes arquitetônicos (OLIVEIRA, 2000; DUDEQUE, 2010).
O atual plano diretor da cidade de Curitiba remonta ao plano de 1965, que
setorizou funcionalmente (Carta de Atenas) os espaços urbanos a partir de zonas
predominante ou exclusivamente residenciais, comerciais e industriais conectadas
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por vias de circulação (Tabela 1). É importante pontuar a ênfase dada ao transporte
coletivo e à uma política de atração de investimentos industriais por meio da criação
da Cidade Industrial de Curitiba. O chamado Plano Wilhem, de 1965, só foi colocado
em prática em sua totalidade durante o período 1971-1983, correspondente às
administrações de Jaime Lerner (1971-1975 e 1979-1983) e Saul Ruiz (1975-1979),
ambos do partido ARENA (Aliança Renovadora Nacional). Ambas as administrações
contribuíram com modificações que permitiram a melhor implementação do plano,
como a proposta do Sistema Trinário, o Plano Massa e a Rede Integrada de
Transportes (OLIVEIRA, 2000).
TABELA 1 – APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA CARTA DE ATENAS AO PLANO WILHEM
Fonte: Dudeque (2010)
Sobre a primeira gestão de Lerner (1971-1975) e a aplicação do Plano
Wilhem, Dudeque (2010, p. 386) afirma que “A geração de planejadores urbanos
que assumiu a prefeitura de Curitiba em 1971 herdou angústias seculares que não
se resolviam apenas com raciocínios urbanísticos.”, fazendo menção, dentre outros
aspectos, à “crise de identidade” da capital paranaense. A reestruturação do Centro
Histórico proposta por Wilhem tinha uma intenção de resgate de tradições porque
havia a necessidade de que a população gostasse da cidade, além de demonstrar
que “(...) os administradores urbanos respeitavam as tradições locais de
convivência. Gostar da cidade prenunciava a possibilidade de senti-la importante, o
que aumentaria a estima à cidade: um ciclo virtuoso.” (DUDEQUE, 2010, p. 386).
A reestruturação do Centro Histórico duraria mais do que a gestão em
exercício podia dispor. A prefeitura então lançou mão de atrativos urbanos17 de
_______________ 17
Um dos exemplos dos atrativos urbanos implantados na época foram equipamentos para parques infantis, como um tabuleiro de xadrez em grande escala na praça Generoso Marques.
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efeito imediato que sofreram algumas críticas. Estrategicamente, direcionou-se o
desenvolvimento urbano na direção de infraestrutura “pesada”, como sistema de
transporte coletivo, industrialização, saneamento, arruamento e moradia, uma vez
que a demanda do governo militar era justamente neste sentido. Entretanto,
“mantinha-se a vontade de que qualquer edifício ou equipamento (ônibus, uma
escola, postes, uma estação de trens) atraísse a curiosidade e as visitas de técnicos
ou de viajantes ociosos”18 (DUDEQUE, p. 387).
Fernanda Sánchez (1993) interpreta a política de modernização urbana via
planejamento em Curitiba como processual. A autora indica duas fases: a primeira
na década de 1960 e a segunda de 1970 a 1974. A primeira pode ser caracterizada
como a fase de “institucionalização” do plano, quando se estabeleceram “para as
administrações seguintes, compromissos irrecusáveis com este aparato institucional,
o que lhe garantiu sobrevivência e continuidade.” (SÁNCHEZ, 1993, p. 30). A
segunda fase é considerada pela autora como “de implementação”, que possibilitou
a consolidação da imagem de Curitiba - cidade planejada, imagem esta recuperada
e fortalecida nos anos 1990.
O processo de legitimação do Plano ao nível da opinião pública, como já
colocado, foi previsto por Wilheim: “Os instrumentos de implantação passam pelos
meios de divulgação das teses do Plano. Estas devem adequar-se aos níveis de
comunicação de massa locais: cinema, debates, símbolos gráficos, televisão,
cartilhas escolares, cursos, plebiscitos, etc”. (WILHEIM, 1969, p. 103 apud
SÁNCHEZ, 1993).
“(...) cria-se um código visual para construir uma identidade que sustentaria e ampliaria a primeira apropriação social e cultural. Organiza-se a imagem em função da identificação que se busca para a cidade e, reciprocamente, interpreta-se a imagem tendo como parâmetro a identidade almejada. Desse modo, a imagem e sua função se relacionam e se sustentam mutuamente, movidas pela racionalidade técnica do plano urbano.” (FERRARA, Lucrécia. 2007, p. 161)
_______________ 18 Como colocado anteriormente, as gestões que colocaram em prática o plano de 1965 - com as devidas alterações - foram as de Jaime Lerner (1971-1975 e 1979-1983) e Saul Ruiz (1976-1979), ambos do mesmo partido político. Nota-se que o sucesso no campo do planejamento urbano “tem no êxito político-partidário o seu corolário” (OLIVEIRA, 2000), afinal, são 12 anos consecutivos de gestões de mesmo alinhamento estratégico.
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No curso dos anos 1970 é notável a ampliação do espectro de apoio por parte
da população ao Plano. Massivas campanhas publicitárias desenvolvidas a partir
de uma estrutura de marketing consolidada permitiam ao poder público ir vencendo
resistências e possibilitando a implantação de diversos projetos de modernização
urbana (SÁNCHEZ, 1993). É interessante perceber, por exemplo, o samba enredo
desenvolvido pela Colorado que tinha como tema “a noite de inauguração do
Teatro Guaíra”:
“Em dezembro de 74/ o presidente inaugurou o Guairão/ discursos, sorrisos e abraços/ tudo era alegria e emoção/ Feliz todo mundo comentava/ É mais um monumento para nossa história/ Orgulho da nossa cultura, estou feliz/ Guaíra é o maior teatro do país.” (Samba de Homero Réboli e Claudio Ribeiro, de 1975)
A inauguração de um edifício voltado principalmente para a apresentação de
artes clássicas, que teria como público uma parcela da população específica,
geralmente classes mais altas, foi cultuado na avenida do samba em 1975 pela
única agremiação – e escola de samba- carnavalesca organizada genuinamente por
classes populares. É improvável que o “pessoal da Colorado” tenha frequentado o
Teatro Guaíra na época, mas é evidente a apropriação simbólica do espaço.
3.2.1 Curitiba do Novo Milênio
“A grande esperança da arquitetura contemporânea moderna foi o planejamento, a planificação urbanística, o plano nacional, regional, urbano. A teoria dos modelos, que é ligada ao sistema econômico (...), transformou também a arquitetura e o planejamento numa ação tecnocrática, utópica, de mesa, desligada dos verdadeiros problemas. Transformou-os num pseudoproblema de papel.” (Lina Bo Bardi, 1976, p. 143)
Esta reflexão trazida por Lina Bo Bardi em 1976 se relaciona com o
depoimento do arquiteto Abrão Assad em agosto de 1990 sobre a primeira gestão
de Jaime Lerner: “(...) havia muita coisa a fazer e não havia qualquer dúvida sobre o
que precisava ser feito (...) é que a cidade necessitava de tantas coisas e era tão
evidente isto que nem era preciso debate ou consulta a grupos de bairros sobre
suas carências” (SÁNCHEZ, 1993, p. 53). De fato, o período posterior à Segunda
Fase do Plano, com este já “implementado”, conforme Sánchez (1993) se
desenvolve a partir do mito já consolidado de um prefeito que também é um
“urbanista visionário”. O contexto histórico, técnico-político e econômico permitiu que
Lerner institucionalizasse a modernidade curitibana “em um sistema de
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necessidades construídas e recicladas a cada novo momento” (SÁNCHEZ, 1999, p.
90).
Foram nas décadas de 1980 e 1990 - principalmente na de 1990 - que se
desenvolveram os elementos de impacto visual que promovem, ainda hoje, a
legibilidade da cidade. Curitiba era considerada desenvolvida, mas faltavam-lhe
símbolos para completar os pressupostos básicos da cidade modernista e
proporcionar, “finalmente”, qualidade de vida para a população. Complementando o
habitar, trabalhar e circular, foi a partir do lazer funcional que se construiu “a
funcionalidade urbana que permite qualidade de uso, mas impõe-se, também, uma
imagem que estabelece um impacto perceptivo e, no tempo, transforma-se em
hábito.” (FERRARA, 2007, p. 161).
Nesse sentido, a Fundação Cultural de Curitiba, criada em 1973, teve um
papel central. A primeira gestão de Jaime Lerner (1971-1975) direcionou a
“reciclagem” de vários espaços tradicionais da cidade convertendo-os em salas de
espetáculo, centros comunitários, etc. Um exemplo icônico deste tipo de intervenção
na cidade é o Teatro Paiol, inaugurado em 1971, com uma apresentação de Vinicius
de Moraes, Maria Medalha, Toquinho e o Trio Mocotó. À convite da equipe do
prefeito o grupo inaugurou, no antigo paiol de pólvora, um teatro de arena. Por se
tratar do período de Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) e provavelmente inspirado
pela materialidade do teatro, Vinicius de Morais compôs:
“Estamos trancados no paiol de pólvora/ Paralisados no paiol de pólvora/ Olhos vendados no paiol de pólvora/ Dentes cerrados no paiol de pólvora/ Só tem entrada no paiol de pólvora/ Ninguém diz nada no paiol de pólvora/ Ninguém se encara no paiol de pólvora/ Só se enche a cara no paiol de pólvora/ Mulher e homem no paiol de pólvora/ Ninguém tem nome no paiol de pólvora/ O azar é sorte no paiol de pólvora/ A vida é morte no paiol de pólvora/ São tudo flores no paiol de pólvora/ TV a cores no paiol de pólvora/ Tomem lugares no paiol de pólvora/ Vai pelos ares o paiol de pólvora”
Nesse contexto, surgiu o Movimento Atuação Paiol, MAPA, liderado pelos
músicos Marinho Gallera e Paulo Vítola, envolvidos com a atuação cultural
municipal. A FCC foi organizada neste núcleo, dando vazão e subsidio a produções
como discos de vinil Long-Play (LP) do MAPA (Figura 7), que produzia uma “MPB de
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bom gosto”, conforme afirma em entrevista (Anexo 01) Manoel J. de Souza Neto19,
fundador do Museu do Som Independente e pesquisador da produção de música
paranaense.
“(...) Já o MAPA, inicio do movimento da FCC, do Paiol, você vê ali a MPB, o samba canção, o pessoalzinho urbano, classe média, tentando fazer esse movimento da cidade em inovação, que era o espírito do grupo ligado ao Jaime Lerner, cidade cosmopolita então a gente tem que representar isso e entra essa musica popular brasileira comportada de “bom gosto” e que agrade as classes que estavam apoiando aquilo”.
Neto posiciona esses comentários ao comparar o lançamento do LP do MAPA
em 1976 com o lançamento do disco “Gralha Azul”, dos anos 1960, a partir de
subsídio do Estado do Paraná que teve participação de Inami Custódio Pinto,
folclorista, pesquisador e compositor paranaense. Ambos os discos tinham a
intenção de resgate de cultura popular, que acaba pasteurizada.
“(...) Nos anos 1960 a gravadora quis fazer com apoio do Estado. Mas aí o pessoal do litoral que produzia o fandango, o Mestre Inami foi gravar, mas eles não queriam aquele jeito de falar caipira, típico do caiçara, que não é do interior, mas é litorâneo, e aí trazem uma cantora de música popular do Rio famosa e tal. Então já são processos constantes de apagamento, até onde tinha gente tentando fazer este resgate, porque o Inami não concordou com isso, ele queria gravar o pessoal mesmo, mas a gravadora impôs. E na época era muito difícil fazer um LP então só teve porque tiveram que fazer um acordo”.
_______________ 19
Manoel José de Souza Neto é graduado em Ciência Política pelo Centro Universitário Internacional de Curitiba. Pesquisador, escritor e agitador cultural, é editor do Observatório da Cultura e Diretor do Museu do Som Independente. Foi por 6 mandatos Membro da Câmara/Colegiado Setorial de Música e Conselho Nacional de Políticas Culturais/MINC (2005/2017). Informações retiradas do Lattes.
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FIGURA 7 – CAPA DO LONG-PLAY DO MOVIMENTO ATUAÇÃO PAIOL (MAPA)
Fonte: Acervo do Museu do Som Independente (2019)
O projeto de “modernização” de Curitiba se expandiu na segunda gestão do
prefeito (1979-1982) onde se criou diversas oportunidades de cultura e lazer
utilizando os equipamentos disponibilizados pela reforma urbana, além de uma forte
política de preservação de patrimônio histórico. Ansiava-se pela “integração do
homem à cidade”, fazer “de cada curitibano um urbanista” integrar “o homem no
projeto de revitalização dos valores tradicionais da cidade” (OLIVEIRA, 2000).
Buscava-se uma mudança da mentalidade do indivíduo frente à sua cidade, porém
os valores disseminados referiam-se a aspectos não tão progressistas da sociedade.
Lucrécia Ferrara (2007) afirmou que Curitiba é o curitibano. A autora aponta
que as três etapas migratórias20 que afetaram a cidade, marcaram-na com seus
fluxos. Nesse sentido, os atributos resgatados no discurso institucional são
_______________ 20
Período escravocrata, imigrações europeias e migrações provenientes da urbanização.
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marcados pelas características da população: as crenças, valores, hábitos e
esperanças do curitibano médio. Sánchez (1999, p. 90) cita Paulo Botas: “Curitiba foi
pensada para ser a cidade da classe média, por excelência. Sem contradições, um
belo jardim com crianças robustas, a cidade da gente”.
Estes aspectos ficam evidentes nas políticas de resgate de “tradições” e suas
facetas étnicas. As políticas patrimoniais e de promoção de atividades culturais
frequentemente faziam menção a um recorte específico da memória e da cultura da
cidade: a cultura imigrante. Não qualquer imigrante, mas os imigrantes europeus.
Conforme Oliveira (2000) a celebração de valores alemães, poloneses e italianos
também fazia parte, mesmo que indiretamente, do projeto de “modernização”
urbana, uma vez que também era a origem da elite dirigente do período.
Nacionalmente era recorrente a associação entre progresso e imigração europeia,
nesse sentido, é notável o esforço na celebração dos valores das etnias em questão,
veiculando Curitiba como uma “cidade de primeiro mundo”.
As intervenções urbanas realizadas no período da terceira gestão de Jaime
Lerner (1988-1992) foram marcadas pela rapidez no tempo de execução a partir do
uso de novas tecnologias construtivas e pelo forte impacto visual das obras (Figura
8). As práticas referentes ao planejamento urbano ficaram, portanto, em um segundo
plano. A gestão optou por enfatizar realizações de ordem estética aliada a uma
política voltada ao meio ambiente. Como já pontuado, estes novos espaços
propostos relacionam-se às atividades de lazer e cultura, a Rua 24 Horas (1991), a
Ópera de Arame (1992) e o Jardim Botânico (1991) são alguns dos principais
exemplos: espaços de usufruto circunstancial apresentados como necessidade,
síntese da vida coletiva dos curitibanos. Nesse sentido, “as “ideias criativas”, ao se
tornarem “rotina na cidade”, passam a fazer parte do imaginário dos curitibanos,
como componentes da linguagem sintética da imagem-mito.” (SÁNCHEZ, 1999, p.
85), a linguagem-síntese também procura evidenciar uma aparente aceitação
consensual por parte da população (FERRARA, 2007; SÁNCHEZ, 1999; OLIVEIRA,
2000).
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FIGURA 8 – JARDIM BOTÂNICO (ESQ.) E ÓPERA DE ARAME, (DIR.) ARQUITETURA ICÔNICA DE CURITIBA.
Fonte: Instituto Municipal Curitiba Turismo21
(2019)
Desta forma, Curitiba atualizou seu status de mítica vanguarda urbanística,
reforçou sua vocação turística, inseriu o discurso ecológico na narrativa urbana e
proporcionou à gestão da prefeitura uma imagem de eficiência e agilidade, imagem
esta projetada nacional e internacionalmente (OLIVEIRA, 2000). Sánchez (1999, p.
86) indica que as inovações urbanas tomam um sentido comercial, como novos
produtos lançados ao mercado consumidor (Figura 9). A autora afirma que a própria
noção de qualidade de vida é “vendida” aos “cidadãos consumidores”: confunde-se
cidadão com consumidor e cidade com mercado (SANTOS, 1987 apud SÁNCHEZ,
1999).
“Como código, essa estetização é planejada e induzida: a grande tarefa é modelar a cidade entre potenciais orgânicos e necessidades básicas da vida diária, entre soluções técnicas e persuasão publicitária, entre desejos difusos e induções planificadas, entre arquitetura e urbanismo, entre forma e imagem, entre comunicação e persuasão. A eficiência comunicativa foi decisiva nos anos 40 ou na década de 70 até os dias atuais, para, na sua recepção de massa, assegurar o apoio e o aplauso social da população que, embora sem participar diretamente dos planos e decisões, sente-se representada pela imprensa (...).”. (FERRARA, 2007, p. 162)
_______________ 21
Disponível em: Acesso em 08 jun. 2019
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FIGURA 9 – RECORTES DA EXPRESSÃO MIDIÁTICA ACERCA DA ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DE CURITIBA ENTRE 1978-1980, 1999
Recortes de manchetes do jornal Folha de São Paulo, entre 1973 e 1980. As manchetes
fazem referência, de maneira bastante positiva, à implantação do Plano Wilheim pela gestão Jaime
Lerner.
Fonte: Sánchez (1999)
Sobre o aspecto levantado por Ferrara, Dudeque (2010, p. 399) aponta uma
questão importante. Afirma que depositar a responsabilidade da adesão da
narrativa institucional apenas na qualidade do marketing reproduzido pela prefeitura
e governo do estado na promoção de Curitiba é uma análise simplista, uma vez
que desconsidera que “qualquer propaganda só tem êxito quando explora um ponto
sensível do público, a disposição coletiva em aceitar aquelas ideias.”. Principalmente
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em se tratando de uma expectativa nacional: “o exemplo do que deverá ser o país
no dia em que se embranqueça e se civilize. No dia em que acumule o suficiente
para ser rico e ordeiro” (SANTOS, 1986, p. 35 apud SÁNCHEZ, 1999, p. 94).
Curitiba se apresentava (e se apresenta), no contexto brasileiro, como a “cidade que
deu certo”, como “realidade singular em meio ao caos”.
O trecho citado de Ferrara (2007) se relaciona com a discussão levantada por
Sánchez (1999, p. 93): “o discurso dominante consagra a indiferenciação ilusória
das classes sociais”. A autora s