UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO -...

64
UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO Catarse e expiação diegética no filme O Garoto (1921) Caroline Domingos da Silva Passo Fundo 2014

Transcript of UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO -...

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

Catarse e expiação diegética no filme O Garoto (1921)

Caroline Domingos da Silva

Passo Fundo

2014

2

Caroline Domingos da Silva

Catarse e expiação diegética no filme O Garoto (1921)

Monografia apresentada ao curso de Jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação, da Universidade de Passo Fundo, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo, sob orientação do Me. Fábio Luis Rockenback.

Passo Fundo

2014

AGRADECIMENTOS

Agradeço meu pai; pela preocupação constante, minha mãe (in memorian), pelo exemplo deixado e minha avó (in memorian), pelos primeiros cuidados, pela força transmitida e pelas palavras ditas que nunca serão apagadas, na certeza de que me guiaram até aqui. Ao meu afilhado Bernardo Biscubi Finardi, que tantas vezes interrompeu a pesquisa deste trabalho para comentar algum game, pedir ajuda nos temas da escola ou contar uma piada, me mostrando o lado mais doce da vida.

Ao meu orientador, Prof. Me. Fábio Luís Rockenbach, por ter aceitado o teste de paciência ao me orientar, pelos ensinamentos que começaram no meu primeiro estágio, pelo incentivo em novas caminhadas e por não se importar em responder minhas dúvidas no Diretório Acadêmico, nas escadarias do prédio, através de redes sociais ou em apenas um retorno ao Núcleo Experimental de Jornalismo. A essência do poema de Walt Whitman recitado em Sociedade dos Poetas Mortos (1889) enfim foi compreendida, após meses de trabalho e anos procurando respostas no filme: “Oh, captain! My captain!”. Aos amigos, que suportaram a ansiedade, deram colo, entenderam o choro, ouviram incansavelmente sobre meu objeto de pesquisa e me apoiaram todo o tempo: Laila Cole Varela, Ethiane Hepp, Francisco Almeida, Bruna, Caroline Lima, Caroline Silvestro, Felipe, Isadora, Michelli Beis, Rone Fontella e Paulo Ricardo dos Santos.

Aos professores do curso de Jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Passo Fundo, pelo comprometimento com os valores da profissão que escolhi seguir. Um agradecimento especial à Fabiana Beltrami, que entre coberturas jornalísticas e tantas trocas de ideias, me ensinou sobre o poder de comunicação da imagem e que é preciso sensibilidade para realmente vê-la. Ao professor Cléber Nelson Dalbosco, pela diversão dos primeiros curtas-metragens, pela cobrança com a iluminação das cenas e pelo exemplo de humildade.

4

Como o livro, o cinema tem o poder extraordinário, próprio da obra de arte, de tornar presente o ausente, próximo o distante, distante o próximo, entrecruzando realidade e irrealidade, verdade e fantasia, reflexão e devaneio (p. 422).

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ática, 2000.

5

RESUMO

Este trabalho pretende verificar se Chaplin usava sua vida pessoal como inspiração para seus filmes. A análise da narrativa e da misè-en-scène serão abordados criticamente, com a finalidade de compreender a catarse e expiação do autor em seu filme. A análise de conteúdo buscará verificar se a relação que move esta pesquisa,entre autor e obra, ocorre em um filme, considerando a coleta de dados e observação da sequencia de cenas consideradas como pontos chave do filme O Garoto (1921). Contextualizam-se os principais conceitos do objeto de estudo – Cinema, Charlie Chaplin e Catarse – através dos seguintes autores: André Bazin, Luiz Carlos Merten, Marcelo Whaterly Paiva, David Robinson e Roland Barthes. A partir da análise apresentada, a pesquisa conclui que a vida do autor surge como um elemento importante de referência, de forma que os paralelos entre a vida pessoal e a narrativa surgem espontaneamente, acompanhados de uma mise-en-scène reveladora. Chaplin, transfere suas emoções e memórias afetivas para as cenas, afetando não só a sua encenação, como também a de Jackie Coogan, ator que interpreta seu filho. Portanto, o contexto social no qual o diretor esteve inserido em sua infância, seus traumas, desejos da vida adulta e críticas a momentos pessoais de sua vida e à sociedade, permeiam o filme. Além disso, permitem que o diretor acesse suas memórias e as exponha em tela, o conduzindo a catarse que se apresenta de uma forma diegética e não diegética. A expiação de Chaplin se dá em vários momentos do filme, em que ele faz de sua obra uma oportunidade de rever sua vida e avaliá-la. Palavras-Chave: Charlie Chaplin. Cinema. O Garoto. Catarse. Análise Imagética.

ABSTRACT

This work aims to verify if Chaplin used his personal life as inspiration for his movies. The analysis of the narrative and the mise-en-scene and will be discussed critically, in order to understand the catharsis and the atonement of the author on his film. The content analysis will verify if the relationship moving this research, between author and work, comes in a movie, considering the data collection and observation of scenes sequence considered as key points of the film The Boy (1921). It's contextualize the main concepts of the subject matter - Cinema, Charlie Chaplin and Catharsis - by the following authors: André Bazin, Luiz Carlos Merten, Marcelo Whaterly Paiva, David Robinson and Roland Barthes. From the above analysis, the research concludes that the author's life emerges as an important element of reference, so that the parallels between personal life and the narrative arise spontaneously, accompanied by a revealing mise-en-scène. Chaplin, transfers his emotions and affective memories into scenes, affecting not only his staging, as well as the Jackie Coogan, actor who plays his son. Therefore, the social context in which the director was involved in his childhood, his traumas, desires of adult life and reviews of personal moments of your life and to the society, permeate the film. It also, allow the director to access his memories and expose them on screen, leading to catharsis that presents itself as a diegetic and a non-diegetic ways. The atonement of Chaplin takes place at various times of the film, in which he makes his work an opportunity to revise your life and evaluate it. Keywords: Charlie Chaplin. Cinema. The Kid. Catarse. Mise-en-scène.

7

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Cena 1.............................................................................................................42

Figura 2 – Cena 2.............................................................................................................44

Figura 3 – Cena 3.............................................................................................................47

Figura 4 – Cena 4.............................................................................................................48

Figura 5 – Cena 5.............................................................................................................50

Figura 6 – Cena 5.............................................................................................................52

Figura 7 – Cena 5.............................................................................................................53

Figura 8 – Cena 6.............................................................................................................53

Figura 9 – Cena 6.............................................................................................................54

Figura 10 – Cena 6...........................................................................................................55

Figura 11 – Cena 6...........................................................................................................55

Figura 12 – Cena 6...........................................................................................................56

Figura 13 – Cena 6...........................................................................................................57

Figura 14 – Cena 7...........................................................................................................59

Figura 15 – Cena 7...........................................................................................................59

Figura 16 – Cena 7...........................................................................................................60

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

2 CINEMA: DA SÉTIMA ARTE PARA A ARTE DA CATASE E EXPIAÇÃO

DIEGÉTICA ............................................................................................................... 12

2.1 A linguagem cinematográfica ............................................................................ 14

3 “SMILE, THOUGH YOUR HEART IS ACHING”: A VIDA E OBRA DE

CHAPLIN ................................................................................................................... 22

3.1 Kennington Road, 287 ....................................................................................... 22

3.2 Ri, pois, palhaço ................................................................................................ 32

3.3 “That's the time you must keep on trying” .......................................................... 34

3.4 Depois de Charlie, Carlitos por André Bazin...................................................... 35

4 METODOLOGIA E ANÁLISE: O GAROTO EM DESMISTIFICAÇÃO ............... 38

4.1 Proposta de análise de conteúdo em O Garoto .................................................... 40

4.2 Análise .............................................................................................................. 40

4.3 Narrativa e Mise-en-scène .................................................................................. 40

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 63

9

1 INTRODUÇÃO

Cem anos atrás, Charles Spencer Chaplin lançava seu primeiro filme. Carlitos

Repórter foi produzido em 30 de novembro de 1913 e lançado no ano seguinte,

consolidando Charlie1 Chaplin como ator, produtor e diretor de cinema. Making a Live

era o título original de sua produção. O humor e a crítica já estavam presentes, mas o

sucesso viria quando o ator incorporasse o vagabundo2.

Esta análise de conteúdo sobre filme tem como objetivo verificar SE Chaplin

usava a sua vida pessoal como inspiração para seus filmes, especificamente, no filme O

Garoto, e de que forma o uso de ferramentas narrativas e de linguagem

cinematográficas expõem a expiação e a catarse biográficas do autor na obra. A

motivação para esse trabalho surgiu não apenas da lembrança cinematográfica que 2014

traz de Chaplin, pelo centenário de seu primeiro filme, mas pela percepção prévia de

que suas obras expressam, através da criação artística, traços biográficos que

configuram em importantes elementos na construção da narrativa visual eternizada pelo

cinema.

Para fundamentar a análise, será percorrido metodologicamente o seguinte

caminho: No primeiro capítulo, abordaremos conceitos da teoria cinematográfica e da

teoria narrativa pertinentes ao processo empírico que será utilizado na análise, qual

sejam os conceitos de mise-en-scène, diegese, catarse, expiação e significação. Para

alicerçar os conceitos citados, faremos uso dos estudos de Robert Edgar-Hunt, no que

concerne a conceitos teórico-cinematográficos e semióticos. Já em Jean-Claude

Bernardet, o trabalho buscará as bases dos conceitos teóricos do cinema, bem como na

1 Charles Spencer Chaplin passou a ser conhecido no cinema como Charlie, apelido que ganhou. 2 O Vagabundo, tradução de The Tramp, é o personagem mais popular de Chaplin.

10

obra de Jacques Aumont Para explanações gerais a respeito da estética e conceitos de

narração, os estudos de Aumont servirão como base referencial.

No segundo capítulo, será apresentada a vida pessoal de Chaplin e a importância

dele, como diretor e ator, criador de um dos personagens icônicos do cinema. A obra do

crítico de cinema, André Bazin, é resgatada para compor a identidade de Chaplin. David

Robinson, biógrafo de Chaplin e autor do livro Chaplin: uma biografia definitiva, assim

como Marcelo Rubens Paiva, autor de Chaplin por ele mesmo, serão as fontes de

pesquisa para a criação da linha do tempo cinematográfica de Chaplin, em que

poderemos entender a vida do diretor e o contexto em que seus filmes foram

produzidos, dirigidos e como os personagens ganharam vida, especialmente O

Vagabundo. A obra do jornalista e crítico de cinema, Amir Labaki, será utilizada com a

finalidade de resgatar fatos biográficos e contextos históricos do cinema. Cabe ressaltar

que apenas um período da vida de Chaplin será analisado neste trabalho, tratando da

infância do diretor até o sucesso nos Estados Unidos, compreendendo o período de 1889

a 1921, correspondentes ao nascimento de Chaplin e ao lançamento do filme analisado.

A obra de David Robinson será um dos nortes do trabalho quanto a compreensão da

estrutura familiar de Chaplin, suas influências e detalhes minuciosos de sua vida, com

ênfase até o ano de lançamento do filme O Garoto, em 1921.

O terceiro capítulo será dedicado à apresentação metodológica da análise e à

análise. A abordagem será amparada na análise empírica e de conteúdo do filme

escolhido, com levantamento de dados históricos que possam contextualizar a época de

produção e lançamento; que venham a ser pertinentes para compreensão do capítulo

seguinte. A realização da análise de conteúdo foi motivada pela linha critica escolhida

por pesquisadores dos produtos audiovisuais, com o objetivo da busca por bases afins

com o assunto de análise e a liberdade de interpretação a partir da leitura e observação

da imagem. Sendo assim, retomaremos os conceitos de crítica e interpretação

cinematográfica.

Finalmente, ainda no terceiro capítulo, através de uma análise de conteúdo do

filme O Garoto, buscaremos identificar e descrever as interpretações possíveis entre

cinema e vida pessoal, traçando paralelos de ligação identificados nos conceitos de

expiação e catarse. A partir dos questionamentos do sociólogo e semiólogo Roland

Barthes - apresentados no segundo capítulo - será possível lançar novos olharas e

reinterpretar certos pontos da obra de Chaplin.

11

As conclusões serão guiadas pela observação crítica, pelo levantamento

bibliográfico, pela nostalgia que reacende o debate Chapliniano no ano do centenário de

seu primeiro filme, mas principalmente, pelo anseio em desvendar o mistério criativo do

homem que emocionou plateias ao mesmo tempo que as fez rir.

12

2 CINEMA: DA SÉTIMA ARTE PARA A ARTE DA CATARSE E

EXPIAÇÃO DIEGÉTICA

A história dos filmes cinematográficos começa com a luz, há mais de dois mil

anos. Da alegoria da caverna de Platão, passando por brinquedos, dispositivos de ilusão

e a fotografia, fez-se o cinematógrafo e, depois, o cinema. Por consequência, fez-se

também a teoria que o embasa.

Segundo Sklar (1975, p. 13), as origens da sétima arte estão cravadas na

primeira metade do século XX. Foi nessa época, compreendida de 1896 a 1946, que o

cinema se tornou “o mais popular e o mais influente dos meios de cultura dos Estados

Unidos”. O invento – um cinematógrafo – foi totalmente desacreditado pelos seus

criadores, os irmãos Lumiére, fadado a restrição de uma possibilidade científica. Porém,

nesta mesma época, os Estados Unidos se transformava em uma sociedade industrial, o

que colaborou para a expansão de uma sociedade emergente que clamava por mais

diversão.

O contexto não poderia ser mais propício para que o cinematógrafo evoluísse e

deixasse de ser um mero reprodutor de imagens com vida comercial curta. Foi em 1896,

marco da história por se tratar do ano em que as projeções em tela grande, que “os

filmes invadiram os teatros de vaudeville” (SKLAR, 1975, p. 15), e os centros de

diversão. Apesar da mudança, Sklar (1975) lembra que o entretenimento não era a

finalidade da invenção, que ainda não havia sido popularizada entre o operariado, classe

social majoritária em uma época de revolução industrial.

13

“Como negócio e como fenômeno social, o cinema surgiu para a vida nos

Estados Unidos quando estabeleceu contato com as necessidades e desejos da classe

operária.”, conforme Sklar (1975, p. 26), ao escrever sobre a origem dos “poeiras”,

como eram chamados os locais destinados às exibições em bairros operários. Eram

nesses locais que podiam ser observadas filas gigantescas de operários e operárias, que

aguardavam por um pouco de diversão entre as longas jornadas de trabalho. O autor

ainda afirma que

[...] a necessidade de participação ativa que sentia o espectador não fazia desistir os operários e operárias que formavam o primitivo público cinematográfico. [...] Eles revelavam um apetite pelo domínio do tempo e do movimento. Embora o seu gosto devesse satisfazer-se em salas abarrotadas, escuras e malcheirosas, poucos renunciariam a tais oportunidades de prazer e poder vicário. Acorriam famintos ao cinema e transformavam, por meio dos seus níqueis, um instrumento de ciência e diversão no primeiro meio de entretenimento de massa (SKLAR, 1975, p. 29).

As salas lotadas possibilitaram a expansão do cinema, entre outros fatores. O

fator técnico que possibilita as cópias tem um papel importante na história,

considerando que

“Esse fenômeno permite que o mesmo produto - o filme - seja apresentado simultaneamente numa quantidade em princípio ilimitada de lugares para um público ilimitado. O que amplia as possibilidades de divulgação e de dominação ideológica e tem profundas repercussões sobre o mercado” (BERNARDET, 1993, p. 12).

E, assim, o cinema, além de arte, tornou-se mercadoria, fonte de informação,

entretenimento e ferramenta ideológica. Não só os trabalhadores procuravam o cinema.

Com a Primeira Guerra Mundial, sessões passaram a ser organizadas na África,

conforme conta Carriere (2006). Segundo o autor, as sessões eram organizadas pelos

administradores coloniais franceses, mas visava mais que o entretenimento, mas a

dominação de uma sociedade sobre outra. Era o sinônimo da supremacia branca sobre

as populações africanas. “O cinema, invenção recente dentre muitas do Ocidente

industrializado, era o produto de um encontro histórico entre teatro, vaudeville, music

14

hall, pintura, fotografia e toda uma série de processos técnicos” (CARRIERE, 2006, p.

11), que carregavam a marca de uma mensagem.

2.1 A linguagem cinematográfica

Graças à impressão de realidade e a reprodução de cópias, desenvolvia-se uma

linguagem própria. Bernardet (1993, p. 7) ressalta em seu livro que “os passos

fundamentais para a elaboração dessa linguagem foram a criação de estruturas

narrativas e a relação com o espaço”. O salto qualitativo quanto a linguagem se deu

quando a estrutura narrativa passou a ser o alvo da ousadia dos realizadores, que pouco

a pouco, percebiam que as possibilidades oferecidas pelo cinema ultrapassavam os

limites impostos pelo teatro e davam às cenas mais ritmo, juntamente com o abandono

da câmera imóvel e, posteriormente, a descoberta do corte e da montagem.

A câmera, então, passou a explorar o espaço da cena sem deixar de assumir

posições. A mise-en-scène, definida por Edgar-Hunt (2013, p. 124) como “um termo

francês derivado do teatro que significa literalmente ‘colocar em quadro’. Tudo o que

vemos dentro do quadro da câmera vem com o apoio da mise-en-scène”. Ou seja, a

mise-en-scène, é toda a combinação de fatores que proporcionam ao espectador – leitor

da imagem – uma noção do espaço cinematográfico.

A luz, o movimento, o espaçamento de corpos e coisas e a encenação como um

todo compõem a mise-en-scène. O conceito que surgiu no teatro, ganhou o cinema e

é um conceito crucial quando se fala da organização de objetos dentro do quadro da câmera. Não inclui o ângulo e a distância da câmera, embora forneça uma perspectiva para ajudar o espectador a compreender o material da mise-en-scène. Além disso, não inclui coisas que o espectador não possa ver, como, por exemplo, o som (EDGAR-HUNT, 2013, p. 128).

Ao presentear o espectador com uma alta gama de interpretações através da

percepção de tudo o que há em cena, o cinema se apropria de sentidos que precisam ser

analisados. Conforme Edgar-Hunt (2013, p. 18), um signo é “qualquer coisa, pequena

ou grande, à qual reagimos. Ou seja, algo se torna um signo quando prestamos atenção

especial nele” e ainda, “qualquer coisa que podemos ver, ouvir ou sentir que se refere a

algo que não conseguimos ver, ouvir ou sentir – geralmente, algo ausente no abstrato”.

15

Estes, podem ser interpretados porque carregam uma carga de interpretação. Essa

interpretação não fica restrita às imagens, compostas por informações. É possível

interpretar um produto audiovisual de vários aspectos além da mise-en-scène. E um

deles é a narrativa.

Roland Barthes, crítico e teórico que dedicou um grande número de seus artigos

ao cinema, identificou cinco sistemas de significação com o intuito de desmistificar a

estrutura implícita por trás de todas as narrativas. Os sistemas, também chamados de

códigos mostram que os autores são capazes de gerar significados ao empregar

estruturas preexistentes. Para interpretar as imagens, o público não precisa de um

treinamento ou de um conhecimento a respeito do código, pois a interpretação se dá em

um nível inconsciente, considerando a imersão do sujeito em um mundo de imagens, e,

portanto, signos. O código hermenêutico, o sêmico, das ações narrativas, o simbólico e

o cultural compõem o sistema de significação proposto por Barthes. Esses códigos,

auxiliarão na última etapa do trabalho, que consiste na análise do filme.

No primeiro, o código hermenêutico, analisa-se a força motriz do filme, o que é

responsável por chamar atenção do público. Trata do enigma, dos problemas que serão

apresentados e estrategicamente desvendados ao longo do filme. Segundo Edgar-Hunt,

[...] Barhes identifica dez tipos de perguntas – desde a apresentação inicial de questões gerais ( Sobre o que vai tratar? O que vai acontecer depois?) até a revelação final (Quem fez? Ele vai conquistar a menina?) E também identificou pelo menos oito maneiras diferentes de evitar que o enigma seja resolvido, inclusive, dando respostas parciais ou múltiplas (EDGAR-HUNT, 2013, p. 28).

No segundo código, o semântico, temos acesso aos signos sensoriais, como a

fala, vestimenta, movimento ou gesto, que usamos para interpretar e associar a imagem.

Essa interpretação é a condutora das interferências aos personagens que vemos nos

cinemas, por exemplo, ajudando a contextualizar a informação que se apresenta em

forma de imagem. Isso se dá ao considerarmos que “essas interferências podem ser

complexas ou sutis, mas todas elas derivam de informações formadas mentalmente na

ilusão de pessoas reais tendo experiências reais no mundo real” (EDGAR-HUNT, 2013,

p. 29).

Já o terceiro código “refere-se aos signos pertencentes ao padrão de ações,

16

pequenas ou grandes, que formam a narrativa” (EDGAR-HUNT, 2013, p. 29), ou seja,

os eventos interiores são sinalizados de uma forma exterior, possibilitando uma

compreensão mais fácil. Neste sistema de significação, o código das ações narrativas, é

exposto algo com a intenção de uma segunda revelação, que cabe ao público interpretar,

para que, assim, a história ganhe profundidade.

No quarto sistema, o código simbólico de Barthes, há a relação mais comum do

cinema e aquela que a maioria das pessoas se apoia para recontar a história: a antítese.

O público se apoia nos contrastes de bom e mau, bonito e feio, certo e errado para narrar

os significados que atribui a história contada na tela. Ainda sobre o código simbólico,

Edgar Hunt destaca que

[...] a própria linguagem é estruturada nessas oposições binárias e todo nosso mapa cultural de crenças e valores é produto delas [...]. Em qualquer contexto, um dos pares dos termos é favorecido ou privilegiado sobre o outro, refletindo uma hierarquia de valor (EDGAR-HUNT, 2013, p. 30).

O código cultural é o quinto no sistema listado por Barthes e é onde o

background cultural do leitor de imagens é ativado, considerando que “engloba as

referências do texto a coisas ‘já conhecidas’ e codificadas por uma cultura em

particular” (EDGAR-HUNT, 2013, p. 30). O código de Roland Barthes conduzem à

compreensão da várias vozes de um texto imagético, que tecem a estrutura da narrativa

apresentada em imagens e, no caso deste estudo, do cinema.

A narrativa, uma das variáveis analisadas, trata muito mais do que a “sucessão

de acontecimento reais ou fictícios” (AUMONT, 2003, p. 104), o dever de contar uma

história. A narrativa exige uma estrutura fechada, com começo meio e fim. A variável

será analisada de uma forma diferente da proposta pela literatura, visto que a pesquisa

atingirá o roteiro – importante nesse papel, funcionando como um guia para as

visualizações das ações previstas na narrativa. Para Edgar-Hunt, o público busca

ligações com a realidade no filme que assiste. Para que isso ocorra, Edgar-Hunt cita

Roland Barthes, ao explicar que

17

[...] a narrativa pode incorporar a linguagem articulada, falada ou escrita; imagens, em movimento ou não; gestos; e a organização de todos esses ingredientes [...]. A narrativa despreza a divisão em categorias de literatura boa ou ruim: ela é intencional, trans-histórica e transcultural. Está aí como a própria vida (BARTHES apud EDGAR-HUNT, 2013, p. 44).

Na análise, a narrativa será estudada do ponto de vista do roteiro e argumento do

filme. Considerando que, conforme Comparato (1995, p. 17), o roteiro pode ser definido

como a “forma escrita de qualquer processo audiovisual” ou como a “elaboração do

argumento onde todos os elementos acrescentados são diálogo e descrição no drama e

narração no documental”. O primeiro passo técnico do processo audiovisual deve conter

três aspectos, considerados fundamentais para Comparato: Logos (palavra), Pathos

(Drama) e Ethos (Ética). Tais aspectos são assim considerados visto que a palavra é a

base estrutural do roteiro, o drama deve estar carregado o suficiente para despertar

identificação com o público, contendo ação, conflitos e desfechos. A ética, como

aspecto do roteiro,

“é o significado último da história, as suas implicações sociais, políticas, existenciais e anímicas. O ethos é aquilo que se quer dizer, a razão pela qual se escreve. Não é imprescindível que seja uma resposta; pode ser uma simples pergunta” (COMPARATO, 1995, p. 21).

Já o argumento, ainda segundo Camparato (1995), é considerado da seguinte

forma: “O argumento, ou sinopse, é a story line desenvolvida sob a forma de texto . [...]

A defesa de nossas personagens, a expressão escrita da alma da história.” (Ibid., 1995,

p. 113). Sendo assim, roteiro e argumento serão os aspectos analisados dentro da

segunda variável de análise deste trabalho: a narrativa. Segundo Barthes, a narrativa tem

conexões claras com o mundo real. Essa construção teórica é citada por Edgar-Hunt, e é

construída - considerando que “isso acontece na vida real, mas de forma inconsciente.

No cinema, é intencional” (EDGAR-HUNT, 2013, p. 44). Faz parte, portanto, de uma

linguagem cinematográfica complexa, aparece de muitas formas, sempre existiram (são

trans-históricas) e, por isso “o cinema é agora parte do mundo real – e a linguagem

cinematográfica é outra linguagem com a qual lidamos todos os dias” (EDGAR-HUNT,

2013, p. 44).

Os cinco pontos levantados por Barthes para uma análise estrutural da narrativa

18

nos mostram como o filme é mais que uma história em movimento, ressaltando os

contextos de construção e a ligação entre real e ficção. É nesse contexto, que entra a

diegese, palavra de origem grega – diègèsis - utilizada na linguagem cinematográfica

para designar o oposto da mimese (imitação). Para Souriau, citado por Aumont, pode-se

considerar diegético “tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme

apresenta, tudo o que essa ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira”

(AUMONT, 2003, p. 77). O autor ainda retoma a visão de Mertz e seus discípulos , que

consideram a diegese

[...] o conjunto da denotação fílmica: a própria narrativa, mas também o tempo e o espaço ficcionais implicados na e por meio da narrativa, e com isso as personagens, a paisagem, os acontecimentos e outros elementos narrativos, porquanto sejam considerados em seu estado denotado (AUMONT, 2003, p. 78).

O mundo diégetico só será criado pelo espectador a partir da criação anterior, da

narrativa cinematográfica, pensada pelo autor da obra. Diègèsis, segundo Gennete ao

retomar a origem da palavra segundo Platão, é

O campo da lexis (maneira de dizer; oposta a logos, o que é dito) se divide em imitação propriamente dita (mimesis) e simples narrativa (diègèsis). Essa “simples narrativa” designa tudo o que o poeta conta “falando em seu próprio nome, sem tentar nos fazer acreditar que é outro que fala (o que é o caso da mímesis) (AUMONT, 2003, p. 79).

Para Aumont, o cinema é como a epopeia, visto que

[...] representa ações miméticas mas superpõe a esse primeiro nível de “mostração cênica” a organização da filmagem e da montagem, atos plenamente narrativos, que marcam o estatuto profundamente diegético do discurso fílmico [...]. Nessa instância, o filme é, portanto plenamente uma narrativa, mas a noção de diegese em sua acepção filmológica tem grande pertinência para dar conta da intensidade do efeito ficção provocado no espectador pela representação cinematográfica” (AUMONT, 2003, p. 79).

19

Assim, concluímos, sobre a diegese, que trata-se de um mundo fictício criado

propositalmente para transportar o espectador da realidade, sem descontextualizá-la,

visto que a diegese precisa convencê-lo de que tudo o que é assistido poderia ser uma

cena real e, assim, uma representação da realidade. Para o autor – criador dessa diegese

– ela também é possível e, no caso de Chaplin, a diegese encontra outros dois termos:

catarse e expiação. Isso se dá porque o diretor se apropria do conceito

inconscientemente, transformando e transportando cargas emocionais para o mundo

ficcional que ele cria para si e para o público. No último capítulo, estudaremos como

isso ocorre no filme O Garoto (1921).

Cabe explicarmos catarse e expiação, sem esquecermos não só o significado dos

termos mas os contextos que estes ganham ao se tratar do cinema de Chaplin. Segundo

Roudinesco, autora do Dicionário de Psicanálise, catarse é uma

[...] palavra de origem grega utilizada por Aristóteles para designar o processo de purgação ou eliminação das paixões que se produz no espectador quando, no teatro, ele assiste à representação de uma tragédia. O termo foi retomado por Sigmund Freud e Josef Breur, que nos Estudos sobre a histeria, chamam de método catártico o procedimento terapêutico pelo qual um sujeito consegue eliminar seus afetos patogênico para então ab-reagi-los, revivendo os acontecimentos traumáticos a que eles estão ligados (ROUDINESCO, 1998, p. 107).

Com base no conceito apresentado, pode-se considerar que a catarse ocorre no

cinema não só quando o espectador assiste a uma cena, se identifica através da diegese,

e é capaz de despertar emoções que estavam contidas, com a finalidade de um

desbloqueio emocional. Além do espectador, a catarse pode ser, portanto, verificada no

momento da criação da obra cinematográfica, e não apenas na recepção, já que o sujeito

criador – seja ele roteirista, diretor ou ator – pode, neste momento, eliminar seus

próprios afetos patogênicos revivendo seus dramas e expondo-os de forma

“subliminar”. Sendo assim, entende-se que o termo de catarse diegética refere-se a um

acesso de representações inconscientes em um mundo fictício, mas com ligações com a

realidade. Ou seja, um espaço ou uma forma de expressar emoções reprimidas através

da representação da realidade através de uma obra ficcional.

Se abordamos, portanto, a eliminação de patogenias íntimas, podemos também

trabalhar o conceito relativo à expiação. A palavra tem origem latina, conforme o

20

dicionário Aurélio, e remete à busca de uma penitência por um ato. Termo comum em

textos cristãos e que o cinema resgata como uma maneira de facilitar a interpretação

crítica do espectador sobre determinados assuntos, por meio da metáfora

cinematográfica. No cinema, a metáfora e a metonímia são vastamente utilizadas, sendo

que “o significado metafórico estabelece uma relação entre duas coisas baseadas na

semelhança, compartilhando uma propriedade comum, que motiva a comparação”

conforme explica Edgar-Hunt (2013, p. 25). O autor explica que o “o significado

metonímico estabelece uma relação baseada na associação – em vez de declarar uma

semelhança, uma metonímia substitui uma coisa pela outra” (Ibid., 2013, p. 25). Assim,

compõem-se as cenas que são pensadas pelos diretores, representadas pelos atores e

desvendadas pelo público.

O cinema é preciso, nunca apresenta uma cena sem que nela exista uma intenção

por trás. Ou seja, cada imagem carrega “um corpo sistemático de ideias, atitudes,

valores e percepções, assim como as visões, atitudes, posições e dogmas de um grupo

social” (EDGAR-HUNT, 2013, p. 97). Além dessa carga, e como mencionado

anteriormente, o cinema não se fez sozinho e se vale de outras tantas influências como o

teatro, que leva para o cinema alguns de seus valores. Do teatro para o cinema, a gag se

caracteriza pelo gestos das mãos do clown, sem necessariamente ter uma finalidade

cômica, mas que passou a fazer parte do discurso fílmico, através da linguagem corporal

do trabalho do ator.

A gag tem “caráter repentino, sua imprevisibilidade, às vezes violenta”,

conforme expõe Aumont (2003, p. 141), o que garante a comedicidade do ato, associado

a pantomima, outro termo teatral que foi para o cinema. Jacques Aumont lembra, em

seu Dicionário teórico e crítico de cinema que a pantomima, “representação teatral em

que as personagens se expressam apenas por gestos” (Ibid., 2003, p. 219), foi

frequentemente comparada com o cinema mudo, “em geral, para deduzir daí que, como

seu antecedente teatral, tinha a virtude de comunicar um sentido de maneira imediata,

independente de qualquer língua” (Ibid., 2003, p. 141).

Tão importante quanto compreender a expiação do diretor ou outro profissional

no processo criador, é importante também entender a amplitude da autoralidade no ato

criativo. Para Edgar-Hunt (2013, p. 16), ser autor significa ser o “diretor cuja ‘visão’

individual é a força motriz única ou dominante por trás de todo o trabalho”. Sendo

assim, a autoria de um filme ocorre muito antes das filmagens, mas na criação

imaginária do diretor, para então, poder vislumbrar como cada cena pode ser recebida

21

pelo público e, principalmente, como serão interpretadas.

Um dos aspectos que auxiliam o autor a conduzir o espectador a certas

interpretações é o enquadramento, defendendo a ideia de que a imagem é como um

produto bruto fundamental na construção fílmica. Para isso, consideraremos que é

através da imagem que os fatores que moldam seu desenvolvimento compõem a

linguagem cinematográfica. Segundo Martin (2003, p. 44-45) o enquadramento permite

que o diretor deixe determinados elementos da ação fora da imagem, possa apresentar

detalhes simbílicos ou significativos, seja o autor-compositor de conteúdo de tal forma

que modifique o ponto de vista habitual do espectador e faça uso da profundidade de

campo para atribuir mais significados à cena, ao contexto e, por consequencia, à

narrativa.

Da mágica à ideologia como pano de fundo, passando pela crítica, o cinema

guarda ainda muitas descobertas. Uma delas é o que o espectador não vê. Quem assiste

a um filme, vê o que está na tela, é capaz de reinterpretar a narrativa e os contextos. Mas

não pode ver o caminho que o autor daquela obra percorreu para chegar até ali. Fator

este que garante a marca que perpassará toda a história e a forma como ela será contada

em cenas, através de subjetividades.

22

3 “SMILE, THOUGH YOUR HEART IS ACHING”: A VIDA E OBRA

DE CHAPLIN

Charles Spencer Chaplin, nascido em 16 de abril de 1889, tinha seu destino

cinematográfico traçado muito antes de pisar em um palco. Com a carreira iniciada pelo

mesmo caminho traçado pela mãe, pelos palcos do teatro vaudeville, quando fez suas

primeiras experiências teatrais não imaginava o ícone que se tornaria. Em 1896, o

cinema passava a ser exibido em tela grande e se expandia além do cinematógrafo,

chegava às exibições em teatros Vaudeville. Não por acaso, esse é o começo do mito –

ainda como artista de teatro, mas futuro autor de obras cinematográficas.

Quando o cinema passou a ser exibido nos tablados vaudevillescos, Chaplin era

uma criança, mas uma criança criada em meio a arte. Filho de artistas, faria o caminho

inverso ao cinema. Enquanto a arte de reproduzir o movimento ia para o vaudeville; ele,

após se tornar um ator maduro, levaria sua experiência no tablado para as telas de

cinema. A música Smile, em que um trecho abre este capítulo, antecipa, acima da

filosofia do clown – “ri, pois, palhaço”; conforme Icle (2006, p. 39), a filosofia de vida

de Chaplin.

3.1 Kennington Road, 287

O destino de Chaplin nos palcos foi traçado. Filho de Hanna Hill, uma atriz do

teatro vaudeville, e Charles Chaplin ator e cantor do music-hall, Chaplin filho

dificilmente escolheria um caminho diferente.

A mãe de Chaplin vinha de uma família pobre, marcada por uma profissão que,

23

segundo Robinson (2012, p. 11) teria um papel fundamental na obra de Chaplin: o pai e

o irmão de Hanna trabalharam, mesmo que sem sucesso, como sapateiros e, ainda

conforme o autor, fazendo com que as botas surradas ganhassem um significado

familiar nos filmes chaplinianos. Hanna Harriet Pedlingham Hill fugiu de casa aos 16

anos para tornar-se bailarina do music-hall, trabalhou com uma troupe, fez tournées

pela Grã-Bretanha, conforme afirma Paiva (2009, p. 13).

Segundo Robinson (2012, p. 9), ela teve um filho antes de Chaplin. Sidney John,

o primogênito, não teve o nome do pai mencionado em seu registro e batismo, como

afirma Robinson (2012, p. 9). O nascimento de Sidney foi determinante, segundo a

descrição de Robinson (2012, p. 10), pois, Hanna deu a luz à Sidney fora da casa de sua

família, buscando refúgio junto a pessoas próximas, como o ex-cunhado de sua mãe.

Menos de catorze semanas após Charles Chaplin (pai) passara a residir na mesma rua de

Hanna, na Brandon Street, 57, os dois estavam casados.

Conforme o autor, Chaplin pai já teria iniciado seu trabalho como artista, porém,

“não há registros nem histórias familiares que expliquem a atração desses dois jovens,

sem nenhuma relação anterior com o showbizz, pelo teatro” (ROBINSON, 2012, p. 10),

mas, após as primeiras apresentações, “não há duvidas de que Charles e Hanna Chaplin

ficaram tão fascinados pelo glamour da elite dos teatros de variedades, em suas reuniões

aos domingos de manhã nos pubs de Kennington, quanto seu próprio filho ficaria quinze

anos depois” (Ibid., 2012, p. 11).

A mãe de Charlie teve uma carreira curta e sem brilho, apesar de ser descrita

pelo filho como dona de um talento raro. O pai de Chaplin, segundo Robinson, era um

bom avaliador de talentos, além de saber cantar interpretando um personagem

galanteador ou se aproveitando de características da vida cotidiana. Robinson lembra

que o pai de Charlie Chaplin obteve certo sucesso nos palcos, porém, padeceu de uma

doença comum entre os artistas da época:

“o alcoolismo era uma doença endêmica no teatro de variedades, que se desenvolvera em estabelecimentos nos quais se serviam bebidas, e a venda de álcool ainda era uma parte importante do pagamento dos gerentes. [...] O pobre Chaplin foi só um dos muitos que sucumbiram ao alcoolismo como risco colateral de seu trabalho” (ROBINSON, 2012, p. 11).

E, assim, Charlie cresceu com um pai ausente. Sua vida foi atrelada ao

24

improviso, visto que, até mesmo o registro de seu nascimento não teve muitos cuidados,

como afirma Robinson (2012, p. 10), dificultando a identificação do local de seu

nascimento em Londres. Hanna educou seus dois filhos sozinha, já que Chaplin pai,

conforme Labaki (1995), Paiva (2009) e Bazin (2006), abandonou a família. Fassoni

(1995, p. 29), assim como muitos biógrafos do diretor, apontam a Kennington Road,

287, uma rua do bairro londrino de Bermond-sey como o local de nascimento de

Chaplin, ainda que a certidão nunca tenha sido publicada.

Com o abandono do pai, Hanna tentou sustentar os dois filhos através do seu

trabalho como atriz. Conforme Bazin (2006), a infância de Chaplin foi marcada pelas

inúmeras internações da mãe doente, mas uma delas determinou toda a vida dele. Antes

de completar cinco anos, em janeiro de 1894, Paiva (2009) afirma que ele substitui a

mãe nos palcos pela primeira vez. Desde então, esse seria seu destino e ganha pão.

Orlando L. Fassioni reconstrói o episódio histórico como um dos principais marcos

pessoais e profissionais na biografia do direto:

Foi numa noite em que ela, representando, perdeu a voz. O público ria, zombava. E o pequeno Chaplin, ali escondido, assistia ao vexame com os olhos em lágrimas sem compreender o que se passava. A plateia ameaçava arrebentar o teatro quando alguém o puxou pela mão e meteu-o no palco para substituir a mulher, retirada dali às pressas. Ajeitou-se e cantou Jack Jones quando, no meio cançonete, desabou uma chuva de moedas sobre ele (FASSONI, 1995, p. 28-29).

A saúde de Hanna havia começado a se deteriorar após vários episódios

familiares se desenrolarem, como a separação dos pais após sua mãe ter flagrado o

marido com outro homem, conforme Robinson (2012, p. 21). O biografo afirma que a

atriz fez o possível e conseguiu manter os filhos longe das preocupações familiares, mas

o resultado de seu desgaste foi parar nos palcos, marcando a sua última atuação e a

primeira de seu filho. Com o sucesso da apresentação, o talento artístico de Chaplin foi

descoberto, mas não veio sozinho. Segundo Robinson,

(...) seu senso para os negócios nasceu nessa noite: ele anunciou que voltaria a cantar logo depois de recolher as moedas. Isso produziu uma excitação ainda maior no público, e ainda mais moedas, e Chaplin continuou cantando, dançando e fazendo imitações, até que a mãe o levou, carregando-o debaixo de suas asas (ROBINSON, 2012, p. 22).

25

Como afirma Robinson, a esta altura, Hanna já havia passado por outro

casamento, dado a luz ao seu terceiro filho e encarado mais uma separação. Sendo que

desta vez, perdera o marido, a guarda do filho mais novo e o pouco conforto que

experimentara e teria dado aos filhos, graças a posição social de seu ex-companheiro.

Com o tempo e o declínio da saúde de Hanna, Chaplin sentiu na pele o que, anos mais

tarde, levaria para o cinema:

Charles Chaplin, abandonado pelo pai alcoólatra, viveu seus primeiros anos na angustia de ver sua mãe ser levada para o asilo; depois; quando a internaram definitivamente, na aflição de ser perseguido pela polícia. Era um pequeno vagabundo de nove anos que se esgueirava pelos muros da Kensington Road, vivendo tal como descreve em suas Memórias, “nas camadas inferiores da sociedade” (BAZIN, 2006, p. 9).

A infância de Chaplin foi de extrema miséria, em que era frequentemente

perseguido não só pela polícia, mas pelos credores de Hanna. Assim, tornou-se

entregador em mercearia, recepcionista de consultório médico, empregado de papelaria,

trabalhou como garoto de recados, soprador de vidros, tipógrafos, vendedor e teve

tantos outros ofícios que o ajudaram a sobreviver. Em março do mesmo ano em que ele

se apresenta no teatro pela primeira vez, seu pai morre e, depois, os momentos

miseráveis só aumentam, obrigando a família a vender ou penhorar alguns objetos de

valor, conforme Paiva (2009, p. 20), além de ter os imóveis tomados pela Justiça.

Em junho de 1896, Hanna tem um surto e é internada. Os dois filhos que

estavam sob a sua tutela precisaram ser encaminhados para um asilo-orfanato e, assim,

Chaplin dá entrada na Hanwell Residential School, nos arredores de Londres, de acordo

com Paiva (2009, p. 20). O autor afirma ainda que mãe e filho voltariam a se encontrar

novamente apenas dois anos depois, quando Charlie deixa o asilo para morar em “uma

pobre mansarda” em Londres, onde a mãe passa a trabalhar como costureira.

De acordo com Fassoni, o próprio Chaplin em sua biografia relatou sobre a

miséria e as primeiras oportunidades profissionais:

De quando em quando aparecia numa agência teatral de Brackmore e um dia deu sorte: queriam-no para representar Billie numa peça chamada Jim, o Romance de um Cookney. Duas libras e dez xelins por semana. “Já não era mais um vagabundo dos bairros miseráveis: agora era um personagem de

26

teatro e tinha vontade de chorar” (FASSONI, 1995, p. 29).

Paiva (2009, p. 21) afirma que, quando Charlie tinha 11 anos, Hanna teve novas

crises nervosas e foi novamente internada. Neste período, o menino voltou à solidão,

ficando sob a própria responsabilidade, dormindo pelas ruas e procurando pequenos

papéis nos music-halls, conforme Paiva (2009, p. 21). Robinson (2012, p. 30) conta que

com as internações da mãe, o pequeno Chaplin e seu irmão passaram a viver com

Chaplin pai, a madrasta e um filho do novo casamento de Chaplin, na Kennington Road,

289.

Este lugar, conforme mostra o autor, foi o marco das recordações paternas do

diretor e os dois meses mais infelizes da vida dos meninos, considerando a convivência

com a madrasta que implicava especialmente com Sidney e assim como Chaplin pai,

bebia demais. Foi no caminho para a casa avarandada do pai que Chaplin percebeu suas

lembranças: “Charles se recordava de só ter visto o pai duas vezes: uma vez no palco do

Canterbury Music Hall, em Westminster Bridge Road; na outra vez, Charles, na

verdade se dirigiu a ele quando estavam na rua da casa em Kennington Road”

(ROBINSON, 2012, p. 30).

Cerca de um ano depois da volta a miséria total; em que os meninos

perambulavam entre casas de acolhimento, o irmão mais velho de Chaplin, que havia se

alistado na marinha, retorna para encontrá-lo. Sidney, então com 16 anos, passa a

agenciar seu irmão, Charlie, que interpretava um jovem ladrão em Sherlook Holmes.

Como apresenta Fassoni (1997, p. 29), aos 17 anos o diretor foi ator juvenil e

conquistou um papel em uma comédia pastelão.

Aos 20 anos, o menino que havia crescido procurando por cachês em peças

teatrais, já havia viajado em tournés e começava a planejar sua carreira artística: “ir

morar e trabalhar nos Estados Unidos. Era tudo ou nada, agarrar ou largar, sair-se bem

como cômico ou lavar pratos a vida toda. Aí tudo começou” (LABAKI, 1995 p. 29). O

sucesso se deu a partir da mudança, quando, “na estreia do espetáculo de Fred Karno

nos EUA, os críticos notaram ‘ao menos um inglês engraçado’. Ele, Chaplin”

(LABAKI, 1995 p. 29). Quando o “inglês engraçado” retornou à America, foi

contratado pela Keystone, estreando em Making a Living (Carlitos Repórter ), de 1914.

Conforme Robinson (2012, p. 108), “Chaplin odiou o filme”, alegando estar

ultrajado com a edição e os inúmeros cortes em suas gags, mesmo que este tenha sido

um dos filmes com grande produção da Keystone. Enquanto o seu personagem em

27

Making a Living era o sinônimo da arrogância, representada em bigodes de pontas

viradas para cima, fraque e chapéu alto, o processo de criação de um personagem

completamente oposto já estava em andamento.

(Charlie) Não gostava dos trajes do filme (Making a Living). E, num estalo, a caminho do guarda-roupa, caracterizou-se, embora de forma embrionária, com as calças largas, estilo balão, os sapatos enormes, o casaquinho justo no corpo, o chapéu-coco e a bengalinha, roupas que, misturadas a outro pequeno elemento que adicionou para parecer mais idoso do que era - o pequeno bigode -, já davam forma ao maior palhaço de todos os tempos: Carlitos (FASSONI, 1995, p. 29).

Foi em Kid Auto Races At Venice (Corridas de Automóveis para Meninos),

1914, que Chaplin vestiria as roupas do personagem que o consagraria para o resto de

sua carreira. A bengala e o jeito de andar foram incorporados ao personagem em

Between Showers (Dia Chuvoso e Carlitos e os Guarda-Chuvas), o que, conforme

Paiva (2009, p. 27) transformou Chaplin plenamente em Carlitos, que possuía

características psicológicas diferentes dos personagens que os norte-americanos estavam

acostumados:

O tipo, conta Chaplin, tinha muitas facetas: vagabundo, cavalheiro, poeta, sonhador, solitário, romântico, aventureiro, capaz de passar por cientista, músico, nobre, esportista e milionário com a mesma facilidade com que podia catar pontas de cigarro, roubar pirulitos de criancinhas ou dar pontapés nos traseiros das damas, no auge da raiva (FASSONI, 1995, p. 30).

Conforme Robinson (2012, p. 113), a ideia era criar um conjunto de contrastes

no figurino do Vagabundo. Chaplin, como conta o autor, afirmava que o personagem já

estava pronto quando vestiu o figurino e se dirigiu ao palco, mas a persona demoraria

mais de um ano para se desenvolver por completo (Ibid., 2012, p. 113). Em 1915, Com

uma proposta de 10 mil dólares só de luvas, segundo Fassoni (1995, p. 31), Charles foi

para a Essanay, onde dirigiu e interpretou 14 filmes. O primeiro clássico de Chaplin

chegou no mesmo ano: The Tramp. Juntamente com o filme, viria o amadurecimento do

personagem e a aparição de algumas marcas de sua obra. Até então, Chaplin brincava

com o argumento de que seus filmes precisavam de uma moça bonita, um parque e um

28

policial para que criasse suas gags e pantomimas,

Mas, a partir de O Vagabundo ele insere na sua temática novos elementos pungentes e patéticos: a estrada vazia, o amor verdadeiro, a infelicidade estampada no sorriso de frustração do clown, nos gestos que antes serviam apenas para realçar o humor e agora já passavam a ser elementos de representação que transmitia a dor e levava as pessoas às lágrimas (FASSONI, 1995, p. 31).

The Tramp é considerado um marco da vida profissional de Chaplin por

apresentar, em definitivo, a composição deste personagem mítico. O Clown é o

personagem principal de uma história linear, com começo, meio e fim, conforme

Fassoni (1995, p. 31). Para o autor,

Chaplin teve aí a sua primeira chance em fazer da estrada e da paixão alguns dos elementos que estariam presentes em boa parte das suas obras posteriores. Inclusive o patético que levava as plateias não apenas rir com o personagem mas também chorar com ele. Terminaria, a partir daí, o primitivismo na criação chapliniana (FASSONI, 1995, p. 31).

Chaplin, segundo Neves (PAIVA, 2009, p. 64), conhecia o segredo de seu

sucesso: “todos os meus filmes assentam na ideia de me causar dificuldades, para me

fornecerem a oportunidade de parecer demasiadamente sério nos meus propósitos,

representando um ser normal e delicado”. Assim, o diretor constatou que suas comédias

obtinham êxito ao representar

(...) policiais caindo nos buracos de esgoto, estrebuchando em baldes de cal, caindo de uma carruagem e submetidos a toda espécie de dificuldade. E as pessoas que representavam a dignidade do poder, muitas vezes, bastante imbuídas desta ideia, ridicularizadas e sendo motivo de troça, viviam aventuras que davam duas vezes mais vontade de rir ao público do que se tratasse de simples cidadãos, às voltas com as mesmas complicações (NEVES, 2009, p. 63-64).

Sendo que, segundo Neves (2009, p. 64), o próprio Chaplin considerava que

“ainda mais engraçada é a pessoa ridicularizada que, apesar disso, se recusa a admitir

que lhe acontece alguma coisa de extraordinário e insiste em manter sua dignidade”.

29

Nas palavras do próprio diretor, Chaplin admite ter aprendido rapidamente, com o

teatro, que o público – formado em grande maioria por pessoas de classes mais baixar -

gostava de ver as pessoas ricas em apuros, mostrando compreender como devia ganhar a

simpatia do público e dar a ele o que gostariam de ver. “Se, pelo contrário, eu fizesse

cair o sorvete no pescoço de qualquer pobre mulher doméstica, em vez de rir, teriam pó

ela compaixão” (NEVES, 2009, p. 66), afirmou Chaplin, ao comentar as suas escolhas

de cenas para ganhar o riso do expectador.

Porém, o diretor que reconhecia os anseios do público, não esquecia que a sua

primeira escola teatral se deu em casa:

Sem minha mãe, todavia,pergunto-me se teria alcançado êxito nesse gênero. Era o mimo mais prodigioso que já vi. Ela ficava à janela horas e horas, olhando a rua e reproduzindo com as suas mãos, seus olhos e a expressão e a sua fisionomia, tudo o que se passava em baixo, e isto nunca acabava. E foi olhando-a e observando-a que não só aprendi a traduzir as emoções com minhas mãos e meu rosto, mas também a estudar o homem (NEVES, 2009, p. 67).

Chaplin, que, conforme Neves (2009, p. 66), sempre tirara proveito e inspiração

da vida cotidiana, ainda a apresentava em seus filmes, porém, sentia-se engessado.

Paiva (2009, p. 20) afirma que em dezembro de 1915, a Essanay passa a considerar a

produção de Charlie demasiadamente cara, fazendo com que ele atenda aos pedidos de

contenção, mas sem renovação de contrato. Para manter o astro, a produtora teria

oferecido 500.000 dólares por ano e participação nos lucros. Mesmo assim, ele assina

contrato com a Mutual em janeiro de 1916, pelo valor de 10.000 por semana durante um

ano e 150.000 dólares na assinatura, totalizando 670.000 dólares por 12 filmes. De

acordo com o autor, os filmes seriam lançados entre 1916 e 1917, mas, em cinco anos,

renderão cerca de 5 milhões de dólares.

Conforme Fassoni (1995, p. 32), “Carlitos Policial foi o seu último filme na

Essanay. O Bombeiro, segundo filme na Mutual, lança a psicologia final do vagabundo,

que já não é um fantoche primário e sim um ser com malícia, astúcia, sentimento e

amor, inserindo intrigas que se resumirão, daqui para frente, na eterna disputa entre

bons e maus, fortes e fracos”. O criador sabia exatamente o que extrair de seus

personagens e onde buscar as inspirações necessárias, visto que, conforme Neves (2009,

p. 67) ele fazia questão de observar a recepção de seus filmes. Mais que observar, o

30

próprio Chaplin admitira que, além do cotidiano, a dualidade também era a sua

inspiração:

Outro ponto da humanidade que utilizo, frequentemente, é a tendência do público em gostar dos contrastes e das surpresas nestas distrações. É bem conhecido que o público gosta da luta entre o bem e o mal, o rico e o pobre, o cheio de sorte e o que não tem nenhuma, rindo e chorando, tudo isso em poucos minutos. Para o público o contraste provoca o interesse e por isso a ele recorro continuamente. Sabendo desta inclinação pelo fraco, procuro acentuar minha fraqueza, juntando os ombros fazendo uma cara sofredora e parecendo ter medo. Tudo isso é, naturalmente, a arte da pantomima; mas, se eu fosse um pouco maior, teria dificuldade em ser simpático (NEVES, 2009, p. 67).

Após um amadurecimento ainda maior de seu personagem, o contrato com a

Mutual é rompido em 1917, após assinar com a First National. Em abril de 1917, os

Estados Unidos entram na I Guerra Mundial, conforme salienta Paiva (2009, p. 35),

dando início a uma série de campanhas contra Chaplin.

Em 1918, na First National, “Chaplin começa [...] realizando um pequeno filme

documental encomendado pelo Governo dos EUA, cooperando na campanha dos bônus

de guerra. Não há nem cópia nem negativo desse filme”, segundo Fassoni (1995, p. 34).

No mesmo ano, o diretor terminara ainda Vida de Cachorro, apesar de sentir-se cada

vez mais preso ao enredo, questionando a liberdade de seu clown no enredo. Nesse

filme, Chaplin mostrava a luta pela sobrevivência através do paralelo entre a vida de um

cachorro e a vida de um homem miserável, provando sua capacidade de encontrar

brechas para críticas sociais sem deixar de fazer comédia.

Para Paiva (2009, p. 35), esta é uma das obras que Chaplin comprometera-se de

fazer pela First, que dispunha de poderosos recursos financeiros que incluíam o contrato

de Chaplin, que recebia 1. 075.000 de dólares por oito filmes em 18 meses. Com a vida

financeira garantida, Chaplin mostrava-se preocupado com as suas criações. Mais

precisamente com a independência e liberdade que tinha para executar suas ideias. Ele

voltava a testar sua liberdade de expressão em Ombro Armas, quando, que, segundo

Fassoni (1995), denuncia os valores da guerra, a ilusão de heroísmo através da ironia.

Mais irônico ainda foi a comédia tornar-se a preferida dos soldados americanos na I

Guerra Mundial. Por conta da censura que pairava na época, após Ombro Armas,

Chaplin enfrentaria todos os tipos de pressões.

A pressão que Chaplin sofreu partiria de todos os lados, sendo lembrada por ele,

31

conforme nos mostra o autor:

Quando estava enfim convencido de ser bem-sucedido e ter assimilado completamente o gosto do público, e o sucesso contribuía para manter-me nesta crença, recebi uma carta que dizia: “... temo que está se tornando um escravo do público, enquanto antes era este o seu escravo...”. Esta carta serviu-me de lição. Compreendi que, para que a minha interpretação fosse boa, eu devia estar possuído de um instinto de alegria autentica e então me fiei somente no meu gosto pessoal, na minha compreensão e experiência sem cogitar o público (CHAPLIN, 2009, p. 76).

O peso em se tornar um “escravo do público” mostrara a Chaplin a necessidade

da retomada em sua arte de compreender o que o público quer, mesmo o diretor tendo

reconhecido que esta tarefa se fazia cada vez mais árdua, não só por conta da censura,

mas porque, conforme as próprias palavras de Chaplin: “não creio que o espectador

conheça as suas necessidades, cheguei a esta conclusão, analisando minha carreira. Até

habituar o público ao meu personagem de todas as comédias, encontrei-me num

complexo de dificuldades” (CHAPLIN, 2009, p. 75). Para ele, isso também tolhia a

fantasia da criação artística. Chaplin, em uma de suas declarações, chegou a comparar

as suas produções, traçando um paralelo entre a arte que fazia em seu auge e a sua arte

antes da fama:

No início da minha carreira, quando trabalhava para viver e sobretudo pela satisfação que o trabalho me dava, eu fazia a comédia verdadeira. As coisas continuaram assim até que se tornaram célebres. Naquela ocasião, sentia que devia sustentar a minha fama; senti a responsabilidade que me pressionava e, apesar do meu método de trabalho estar aperfeiçoado, em muitos aspectos a interpretação ia aos poucos tornando-se mais artística (CHAPLIN, 2009, p. 76).

A produtividade do ator e diretor viria a diminuir em 1919, conforme afirma

Fassoni (1995, p. 35). O autor apresenta em sua obra outro fato que marca o ano de

1919 na vida de Chaplin. Este é o momento em que ele se une com Douglas Fairbanks,

Mary Pickford, David Wark Griffith e William S. Hart para defender a liberdade

artística através da United Artists, que, além de garantir a independência, anunciava a

fusão de empresas produtoras que se ligaria aos exibidores americanos. Porém, o

verdadeiro marco deste ano se daria nas duas esferas da vida de Charles, pessoal e

32

profissional.

3.2 Ri, pois, palhaço

A filosofia de vida do Clown – ri, pois, palhaço, contextualizada por Icle (2006,

p. 39) no capítulo anterior – parece ter sido firmada na fase adulta de Chaplin, quando a

máscara de seu personagem, O Vagabundo, está plenamente desenvolvida. Isso porque,

Chaplin passa a perceber o sucesso da fusão de comédia e drama em Ombro, Armas

(1918).

Nessa mesma época, em julho de 1919, Chaplin e a atriz Mildred Harry se

casam em uma cerimônia sigilosa, conforme Paiva (2009, p. 37), motivados pela

suspeita de uma gravidez. Mildred era a primeira esposa de Chaplin e a gravidez não foi

confirmada após o casamento, tratando-se de um alarme falso, segundo Robinson

(2012, p. 247). A dedicação de Chaplin ao trabalho seria um dos fatores que levaram o

casamento ao fim, além das constantes preocupações da esposa com a vida doméstica e

a ausência do marido. O casal teve um filho, que nasceu cerca de um ano após o

primeiro encontro de seus pais, em 1918, segundo apontamentos de Paiva (2012, p.

247). Norman Spencer Chaplin nasceu com má formação e faleceu em 10 de julho de

1919, apenas três dias após seu nascimento. Robinson trata em sua biografia que

“Muitos anos depois, Mildred recordava: ‘Charlie sofreu muito... E essa é a única coisa

que me lembro sobre Charlie... Que ele chorou quando o bebê morreu’ (Ibid., 2012, p.

253). Sobre a perde de Chaplin, David Robinson afirma que

Pode parecer presunçoso traçar relações entre seu choque emocional e a súbita eclosão de criatividade que Chaplin experimentou depois disso; ou entre a morte do primeiro filho e o tema do filme que ele iria fazer em seguida, e que permanece como seu maior trabalho. No entanto, dez dias após a morte de Norman Spencer, Chaplin estava fazendo testes com bebês no estúdio (ROBINSON, 2012, p. 253).

O autor conta ainda que Chaplin estava encantado com Jackie Coogan após vê-

lo em um espetáculo de Jackie Coogan (pai). O garoto teria ganho a simpatia do diretor

ao mostrar sua habilidade em imitar o número que o pai havia apresentado, pois, “talvez

isso o lembrasse sua primeira aparição no palco quando ele não era muito mais velho

33

que Coogan” (ROBINSON, 2012, p. 253). Assim, a história do filme O Garoto (1921)

ganhava forma. Robinson afirma que “Chaplin, tanto na tela quanto fora dela, adotou

um papel paternal de Jackie. Era impossível para as pessoas no estúdio resistirem ao

sentimento de que Jackie tinha substituído o filho que Chaplin acabara de perder” (Ibid.,

2012, p. 255).

A criatividade do diretor era um contraponto a sua realidade familiar conturbada

e a passagem por um divório com Mildred, que, segundo Robinson, teria sido amigável

em um primeiro plano, mas a imprensa teria coagido a atriz a dar declarações sobre

Chaplin, e, assim, passou a ataca-lo (ROBINSON, 2012, p. 255). Contudo, o diretor

seguiu em frente. A maioria das cenas do sótão em O Garoto teriam sido rodadas em

uma semana e a cena de maior impacto do filme – quando o menino adoece e o

vagabundo chama um médico – precisou da ajuda do pai de Jackie Coogan para ser

gravada, devido a forte carga emocional:

“Quando o médico pergunta se ele é o pai do menino, o Vagabundo, inadvertidamente, mostra-lhe o bilhete que estava junto à criança abandonada e que estava cuidadosamente guardado entre as páginas de uma cópia gasta e poeirenta do Police Gazzete. O médico diz que a criança precisa de cuidado apropriado e atenção. O cuidado apropriado e atenção logo chegam – na forma de um presunçoso representante do orfanato e seu assistente bajulador. Apesar da luta heroica do Vagabundo e da criança – armada com um martelo quase do seu tamanho – o menino é levado e atirado, como um cachorro perdido, na parte de trás de um veículo puxado a cavalo” (ROBINSON, 2012, p. 258).

O Vagabundo tenta seguir o veículo em uma corrida pelos telhados, fazendo

com que “a pequena, gigante e absurda figura é elevada ao pathos de herói. Poucos

abraços do cinema são tão comoventes como o beijo que o Vagabundo estala nas

bochechas trêmulas da criança aterrorizada” (ROBINSON, 2012, p. 258). Porém, a cena

não foi gravada facilmente, precisando da ajuda de Coogan pai, que, segundo Robinson

(2012, p. 259), teria percebido a dificuldade do filho em ser “conduzido à condição

emocional da cena” e disse ao pequeno que ele seria realmente levado para um albergue

e tirado do filme, caso não chorasse. Chaplin, como afirma Robinson (2012, p. 259),

teria ficado assustado com o choro de seu aprendiz e teria assegurado “ansiosamente

que ninguém o levaria dali”.

Em outra cena, uma das últimas e mais elaboradas do filme. Para Robinson

34

(2012, p. 261), “certamente, a mais estranha sequencia onírica dos filmes de Chaplin”.

Em que “sozinho, desgraçado e trancafiado, o Vagabundo adormece na entrada da porta

e sonha que o beco se transformou em Paraíso. Todos os personagens do filme - até

mesmo o valentão, o policial e os oficiais do orfanato” (Ibid., 2012, p. 261-262). A cena

foi duramente criticada, conforme expõe Robinson (2012), o que não impede que a

estreia do filme, em 6 de fevereiro de 1921, seja um sucesso em Nova York.

Porém, no período em que Chaplin ainda gravava o filme,

Mildred Harris inicia uma ação de divórcio contra Chaplin, acusado de ‘crueldade mental’. [...] O advogado de Mildred Harris ameaça reclamar judicialmente os bens de Chaplin. Ele foge para Salt Lake City de automóvel, com o negativo de The Kid, e apresenta-o aos dirigentes da First National, que acham o filme medíocre. Recusam pagar mais de 25.000 dólares por bobina suplementar (isto é 225.000 dólares no total) (PAIVA, 2009, p. 38).

Paiva (2009, p. 38), afirma que a renda do filme O Garoto em seus primeiros

anos chegará a 2.500.000 dólares e que a parte de Chaplin entre os lucros brutos da obra

ultrapassará um milhão.

3.3 “That's the time you must keep on trying”

Fassoni (1995) lembra que Chaplin não era mais o mesmo em seu último filme,

A Condessa de Hong Kong (1966), afirmando que “já não era nem o mesmo diretor e

menos ainda o acrobático Carlitos de calças surradas, gestos rápidos e passos largos

fugindo de policiais, driblando credores, protegendo cegos e mocinhas” (LABAKI,

1995, p. 30). O Filme lançado em Paris contava com Sophia Loren e Marlon Brando,

marcando a primeira experiência do diretor com o cinema em cores e uma crítica que o

rotulou como um filme sem emoção, mas com “o que se convencionou chamar de

mensagem” (PAIVA, 2009, p. 59).

Em 1975, segundo Sadoul (2009, p. 60) Chaplin recebe inúmeras honrarias.

Entre elas, é agraciado com o título doutor honóris causa pela Universidade de Durham,

é reconhecido pelo Prêmio de Cultura da Federação de Sindicatos da Alemanha Federal,

tem o Oscar outorgado e, aos oitenta e seis anos, recebe da rainha da Inglaterra o título

de Cavalheiro da Ordem do Império Britânico. Este último título, de acordo com Sadoul

35

(2009, p. 60), foi anunciado no início de 1975, e entregue no dia 4 de março, “no

Palácio de Buckingham – a cerca de 3 quilômetros das ruas miseráveis em que cresceu,

e das escolas para órfãos e abandonados que frequentou” (SADOUL, 2009, p. 60).

Enquanto a orquestra dos Welsh Guards executavam o tema de Limeligth (Luzes

da Ribalta, 1952), Sir Charles Spencer Chaplin não permite que o passar do tempo e o

seu estado o comovam. Sadoul afirma que ele compareceu “perante Elisabeth II numa

cadeira de rodas, embora altivo e sem revelar emoção aparente” (SADOUL, 2009, p.

60).

Conforme Fassoni,

Charles Spencer Chaplin morreu dormindo aos oitenta e oito anos de idade, sessenta e três deles dedicados a saudar, com o riso, as gerações de todo o mundo que não esquecerão Carlitos. Um símbolo do homem espezinhado pelo destino, do fraco, do desajeitado e do desprevenido, do deserdado e do homem puro tentando sobreviver num mundo hostil e doente de sentimentos. (Ibid., 1995, p. 26).

Com estas afirmações, a respeito do “homem espezinhado sobre o destino”, já

não se sabe se o autor fala de Chaplin, o criador, ou de Carlitos, o personagem. A

possibilidade da máscara – Carlitos - confundir-se com o criador dela é o objeto de

estudo dos capítulos seguintes.

3.4 Depois de Charlie, Carlitos por André Bazin

Conforme Bazin (2006, p. 13), Carlitos não é reconhecido pelo público apenas

por seu chapéu ou pelo bigode em trapézio, “mas essas referências físicas teriam

pequeníssima importância se não discerníssemos, em primeiro lugar, os constantes

aspectos internos realmente constitutivos do personagem. Esses são menos fáceis de

definir e descrever”.

O crítico explica que Charlie Chaplin, após desenvolver seu personagem,

utilizava algumas gags características, capazes de demonstrar a visão do personagem

sobre o mundo. O personagem sempre busca “contornar a dificuldade, em lugar de

resolvê-la, uma solução provisória lhe basta, como se o futuro não existisse” (BAZIN,

2006, p. 13). Para Bazin (2006), o vagabundo não consegue se adaptar ao mundo dos

36

homens, muito menos dos objetos, conferindo a estes segundas utilidades, afirmando

que

Os objetos não servem a Carlitos como a nós. Assim como a sociedade se integra a ele provisoriamente apenas por uma espécie de mal-entendido, sempre que Carlitos quer fazer uso de um objeto segundo sua forma utilitária, isto é, social, ele age como um desajeitado ridículo (particularmente à mesa), ou são os próprios objetos que se lhe recusam, a rigor, voluntariamente (BAZIN, 2006, p. 14).

Na diegese de Chaplin, tudo é reinventado. A gag de Carlitos, originada de sua

passagem pelo music hall, desconhece o limite do tempo, visto que

(...) ele é a própria improvisação, a imaginação sem limites diante do perigo. Mas a rapidez da ameaça e, sobretudo, sua brutalidade, em contraste com o estado de espírito eufórico em meio ao qual surge, não lhe permite safar-se imediatamente desta vez. Em lugar de resolver o problema, Carlitos não tem outro recurso senão suprimir as aparências. Quem sabe, em todo caso, aquele gesto, pela surpresa que provoca no guarda, que esperava um movimento de medo, não acabará por lhe oferecer a fração de segundo de que precisa para achar um jeito de fugir? (BAZIN, 2006, p. 17).

Já que o personagem vive em um tempo só seu, se aproveitando de milésimos de

segundo para conquistar suas soluções imediatas, o autor reflete sobre este aspecto,

afirmando que Carlitos não está preso ao remorso e a culpa provenientes do tempo,

como todos os outros, que vivem atrelados a compromissos. Após perceber tal aspecto

interior do Vagabundo, Bazin revela mais sobre as marcas do personagem, como o

pontapé: “É significativo que Carlitos nunca desfira pontapés para adiante. Mesmo os

pontapés nos traseiros de seus parceiros, ele dá um jeito de desferir para outro lado”

(BAZIN, 2006, p. 18).

The Tramp foi considerado por Bazin como “um homem fora do sagrado”, “pois

um doas aspectos mais característicos da liberdade de Carlitos em relação à sociedade é

sua total indiferença às categorias do sagrado” (BAZIN, 2006, p. 19). Sendo que, o

autor designa o sagrado como os aspectos sociais da vida religiosa e ressalta que “a

sociedade impõe mil cerimônias que não passam igualmente de uma espécie de missa

permanente que ela oferece a si própria” (BAZIN, 2006, p. 20).

37

E assim, a personalidade de Chaplin e Carlitos são apresentadas, deixando o

questionamento dos limites de cada uma. O homem criado por Chaplin pode ser

representado sem jeito com talheres, desapegado às normas e aos compromissos, mas

não podemos esquecer que se trata de um mito do cinema, e no cinema, nada é por

acaso.

38

4 METODOLOGIA E ANÁLISE: O GAROTO EM

DESMISTIFICAÇÃO

A pesquisa desenvolvida neste trabalho é exploratória, utilizando Barthes e

Santaella (2005) como referenciais teóricos, junto com os conceitos apresentados por

Hunt.

Para compreender a expiação e a catarse do autor, será analisada a narrativa de

uma forma geral, assim como serão apresentadas sequências em que levanta-se a

hipótese do estabelecimento de relações do personagem principal com o filme.

Para a execução da primeira etapa da pesquisa, a revisão bibliográfica foi

escolhida com o interesse de que englobasse não só o cinema, como demais áreas que o

influenciam ou agregam conhecimento em sua teoria e pesquisa. Em vista deste

argumento, optou-se por uma pesquisa apoiada em obras da psicologia, do teatro, da

linguística, além das biografias de Chaplin.

Neste capítulo será executada a análise de conteúdo do filme O Garoto (1921) de

Chaplin. Considerando que, segundo Bardin (2011, p. 9), a análise de conteúdo pode ser

definida como “um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em

constante aperfeiçoamento, que se aplicam a ‘discursos’ (conteúdos e continentes)

extremamente diversificados, este trabalho pretende ultrapassar a observação passiva do

filme, interpretá-lo sob um prisma crítico e interpretativo.

Conforme Bardin (2011, p. 9), “o fator comum dessas técnica múltiplas e

multiplicadas (...) é uma hermenêutica controlada, baseada na dedução: a interferência”.

A autora afirma ainda que a análise de conteúdo é um esforço de interpretação que

“absolve e cauciona o investigador por esta atração pelo escondido, o latente, o não

aparente, o potencial de inédito (do não-dito), retido por qualquer mensagem”. Sendo

assim, a análise de conteúdo realizada nesta pesquisa tem como objetivo compreender a

39

catarse e expiação diegética do ator e diretor no filme O Garoto (1921), considerando a

hipótese de que a obra contenha elementos biográficos de Charlie Chaplin. Defende-se

também que a catarse pode ocorrer no criador da obra cinematográfica, conforme

apresentado no segundo capítulo do trabalho, considerando as variáveis:

a) mise-en-scène: as cenas escolhidas apresentarão a ligação pessoal do autor com a

sua obra. Para comprovar que a obra carrega informações pessoais de seu criador - tais

como a infância, as ligações familiares, a forma como o diretor via a sociedade e a

criticava, até os dramas da fase adulta, até 1921. Após esta etapa, buscaremos relações

entre os elementos analisados e interpretados com a coleta biográfica de Chaplin, na

tentativa de encontrar relações entre eles e traçar os paralelos da vida pessoal com a

obra cinematográfica, bem como a contextualização destes elementos. Interpretação,

iluminação, cenário e figurino serão analisados.

b) narrativa: a totalidade da narrativa será estudada, juntamente com sequencias de

cenas que serão coletadas para que a mise-en-scene e a diegese possam ser os fatores

comuns estudados nas amostras desta pesquisa.

Para comprovar que a obra carrega informações pessoais de seu criador - tais

como a infância, as ligações familiares, a forma como o diretor via a sociedade e a

criticava, dos dramas da infância até a sua fase adulta, chegando ao ano de 1921,

quando o filme foi lançado. Assim, a coleta biográfica de Chaplin embasará a tentativa

de encontrar relações entre eles e traçar os paralelos da vida pessoal com a obra

cinematográfica, bem como a contextualização destes elementos.

Para balizar a pesquisa e análise de conteúdo, serão utilizadas sete sequencias de

cenas, que serão anexadas ao trabalho, a fim de comprovar que o diretor Charlie

Chaplin não só compôs O Garoto baseado em sua trajetória pessoal, como também fez

da obra uma maneira de acessar seu inconsciente; buscando alívio (catarse, desbloqueio

emocional), como também a utilizava para a expiação; sendo esta uma forma de olhar

para a sua vida em que busca o perdão pelos atos. Cabe analisar também de que forma a

hipótese ocorria, defendendo que Chaplin se valia do mundo fictício (universo

cinematográfico) para contar a sua história. Para isso, faz-se necessário retomarmos

alguns conceitos. Para possibilitar a compreensão do caminho traçado na análise, faz-se

necessário expandir alguns conceitos que serão utilizados no quarto capítulo.

40

4.1 Proposta de análise de conteúdo em O Garoto

A análise de conteúdo proposta por Bardin (2011), será executada considerando

a necessidade de aprofundar o conhecimento a respeito das escolhas narrativas do filme;

descrever e interpretar o cenário como parte da pesquisa a cerca da mise-en-scene,

verificar as informações sobre os personagens com base nos estudos do ato criador e da

semiótica, que lançarão luzes nesta etapa de interpretações e decodificações.

A análise da narrativa será embasada pelos estudos de Gancho (1999), sendo que

serão analisados o roteiro e o argumento neste trabalho. Além dos elementos usados

para compor a narrativa do filme, o tipo de linguagem que o filme usa e a ligação entre

os elementos do mundo diegético com o mundo real são essenciais para que seja

cumprido o objetivo de investigação aqui proposto. Quanto à mise-en-scène, será

aplicado o conhecimento sobre o código de Barthes para interpretar e decodificar os

elementos que Chaplin apresenta em suas cenas. No que diz respeito a diegese, a teoria

cinematográfica, levantada no segundo capítulo desta pesquisa, servirá como base no

estudo da catarse e expiação, com o objetivo de verificar a veracidade desta, como

ocorre e se há a possibilidade de ocorrer não só a catarse diegética, como também a

catarse não diegética. Portanto, busca-se saber além das perguntas já levantadas, se

Chaplin utilizava o mundo ficcional para a própria purgação dos sentimentos.

4.2 Análise

Com sete cenas selecionadas, serão analisadas a narrativa – no que importa saber

sobre o roteiro e o argumento do filme – e a mise-en-scène – contemplando aspectos

como interpretação, iluminação, cenário e figurino. As variáveis apresentadas serão

aprofundadas nesta análise com o intuito de responder ao questionamento inicial.

4.3 Narrativa e Mise-en-scène

Em O Garoto, filme de Charlie Chaplin, lançado em 1921; a afetividade que

surge entre um bebê abandonado e um vagabundo é ocasionada após a criança ser

abandonada na sarjeta. A mãe do bebê o abandona após sair do hospital e, com muitos

reveses, Carlitos educa a criança até o momento em que esta adoece e o estado

intervém.

41

Referente a narrativa, o roteiro segue uma ordem linear e apresenta diversas

marcas autorais do trabalho de Chaplin, como a inadequação com objetos, os sapatos

surrados e grandes demais para seus pés, bem como a pantomima e a perseguição por

órgãos reguladores.

Na primeira cena, apresentada logo abaixo, o diretor avisa seu público que o

filme misturará drama e comédia (“A Picture witch a smile – and perharps, a tear”), e o

transporta através diretamente para um plano geral, capaz de localizar o espectador no

espaço em que a história é gravada. Em se tratando de argumento do filme, neste ponto,

conhecemos dois personagens centrais do filme: o garoto e a sua mãe, uma atriz. O bebê

parece bem enrolado e sua mãe veste-se com simplicidade, mas não aparenta viver na

miséria.

O início da relação paternal entre o vagabundo e um recém-nascido abandonado

em um local de extrema miséria se dá logo após a criança sair do hospital, nos braços de

sua mãe. A mulher, uma atriz e mãe solteira, decide que deve abandonar o bebê em um

lar capaz de lhe dar conforto, julgando não ter condições para cria-lo.

A mulher, uma atriz e mãe solteira, decide que deve abandonar o bebê em um lar

capaz de lhe dar conforto, julgando não ter condições para cria-lo. O início da relação

paternal entre o vagabundo e um recém-nascido abandonado em um local de extrema

miséria se dá logo após a criança sair do hospital, nos braços de sua mãe, e ser

abandonada em um carro que é roubado. Os ladrões abandonam a criança durante a fuga

e o vagabundo a encontra.

Carlitos também não faz questão de cuidar da criança. Carlitos fica com o bebê e

o leva para casa somente após fazer de tudo para livrar-se dele e não ter sucesso em

nenhuma das tentativas. A mãe da criança se arrepende do abandono e tenta reencontrar

o filho, porém descobre que o carro foi roubado e assim, seu bebê passa a ser educado

por Carlitos. Chaplin, assim como a criança indefesa, passou pelo abandono durante a

infância, porém, o dele e de seu irmão não foi proposital e ocorreu devido as inúmeras

internações de sua mãe, chegando a morar por um tempo com seu pai e a passar a maior

parte de seus primeiros anos em um abrigo. Não por acaso a personagem feminina do

filme exerce a mesma atividade de sua mãe, Hanna.

Desde o episódio de ruptura entre mãe e filho, os pais da criança conquistam o

sucesso como atriz e pintor. Com o passar dos anos, o garoto adoece e precisa de

cuidados médicos . Entretanto, o médico percebe a miséria na qual o menino vive e o

separa de seu pai adotivo, por defender que este não teria condições de educa-lo e

42

garantir seu bem-estar, mesmo com as demonstrações de carinho e a tentativa de

Carlitos em manter-se perto de seu filho. Antes da criança ficar doente e ser separada do

vagabundo, conhece sua mãe biológica por acaso, já que ela passa a visitar crianças

pobres para compensar a falta de seu filho abandonado.

No encontro, mãe e filho conversam sem saber o que representam um para o

outro, fazendo com que ela retorne após a visita para conhecer melhor o menino. No

retorno, descobre que a criança foi levada de seu lar e encontra o bilhete que deixará

com o filho no dia em que o abandonou. Ela consegue reencontrar o garoto, o

assumindo como mãe e permitindo que o Vagabundo conviva com o menino.

Figura 1: Cena 1.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Nesta cena percebe-se que a atriz precisou demonstrar que, ai sair sozinha de um

hospital segurando o seu filho nos braços, sentia-se confusa – como apresentado nas

cenas em que ela olha para todos os lados. Isso ocorre especialmente nas últimas

sequencias, em que ela caminha de cabeça erguida, com semblante triste, olha para

todos os lados e segue seu caminho como quem não sabe – ou não tem – para onde ir.

A atriz aqui representada não é denominada em nenhum momento do filme, sua

identidade está atrelada ao filho, assim como no caso de Hanna e Charlie que, apesar de

ser descrita pelo filho como uma excelente atriz, não chegou a ser uma atriz notável,

tendo a carreira interrompida e a saúde debilitada após envolver-se em problemas

familiares. O hospital seria a segunda casa de Hanna, visto que passara por inúmeras

internações, foi apontada como paciente de sífilis e demonstrava humor inconstante, por

isso a representação marcante do local. Nesta cena, Chaplin, representado através da

persona do bebê nos braços da mãe, reflete sobre o seu papel na vida de Hanna.

Não só sobre o seu papel, mas sobre o quanto a família interferiu no sucesso da

43

mãe, visto que sua saúde passou a enfraquecer após a sua maternidade conturbada e aos

episódios que sofrera com a separação de seus pais, os avós de Chaplin. Isso pode ser

observado no início e no final da cena, em que o autor conta ao seu público que o único

pecado da mulher ali representava foi a maternidade e, ao fechar a cena, traz uma fusão

sobre a imagem do hospital, onde se revela a silhueta de alguém carregando uma cruz.

Aqui, Chaplin transpõe o seu sentimento de fardo na vida da mãe, expiando a sua

possibilidade de culpa na vida profissional dela; da mesma forma que o filme mostra

que, como castigo pelo pecado cometido, a mulher deveria carregar o fardo – filho.

A segunda cena estudada ocorre logo após a criança ser abandonada por ladrões

em uma rua. Os dois homens roubam o carro em que o bebê foi abandonado e, ao

perceberem a presença dele, param em um lugar que demonstra sinais de pobreza –

percebidos pelo espectador através da comparação com as cenas anteriores que se

passavam em lugares de maior movimentação, organização e requinte. Nesta cena, há

objetos abandonados, casas sem acabamento, lixo e má conservação das vias,

informando ao público que aquele local é um subúrbio.

O vagabundo encontra o bebê durante seu passeio matina, procura livrar-se dele

e busca explicações sobre a origem da criança de uma maneira nada óbvia; como uma

das marcas de Chaplin: observando se ele fora jogado de uma das janelas ou se caiu de

algum carrinho de bebê. É neste momento que Chaplin quebra o ritmo dramático de sua

obra, fazendo piada de si mesmo. Ele apresenta o local em que o vagabundo está

inserido – um local de extrema miséria – assim como as origens de seu criador.

Nas primeiras sequencias da cena, Carlitos é apresentado ao público com riqueza

de detalhes: o típico passo de ganso, sua bengala, os sapatos grandes, a calça larga

demais, o pequeno chapéu e o paletó apertado. As roupas que parecem não pertencer

aquele homem, considerando que nada está ajustado ao seu tipo franzino, entregam a

situação financeira do Vagabundo. Neste momento, ele ainda aparece com as roupas,

apesar de puídas, mais elaboradas que adiante, informando ao espectador que a situação

financeira se agravou.

44

Figura 2: Cena 2.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Na iluminação da primeira cena analisada era de um tom acinzentado que cada

vez mais escurecia, trazendo à tona o sentimento de que se tratava de uma época

obscura ou ainda, que aquele dia era triste, que a personagem não via luz nele e, por

isso, o telespectador; transportado para o filme através da diegese, também devia ver a

cena daquela forma. A segunda cena analisada traz mais elementos ao redor dos

personagens, marcados pela iluminação ainda obscura, se comparada às próximas cenas

do filme, o que demonstra que o início da vida do personagem infantil foi dramático,

mas teve momentos felizes.

Quanto a mise-en-scéne deste fragmento de O garoto, pode-se observar como o

personagem de Chaplin lida com seus problemas, tentando os contornar e até busca suas

origens, mas rapidamente se distrai com outras informações que o rodeiam, o que revela

não só uma característica pessoal de Carlitos, mas de seu criador. Afirma-se isso com

base nos dados biográficos levantados a respeito deste que, motivado às primeiras

dificuldades enfrentadas, aprendeu a buscar a resolução de seus problemas rapidamente

– problemas que se arrastavam com o tempo, como o exemplo de sua primeira

separação, o abalavam profundamente e interferiam em seu processo criativo.

O improviso das ações é demonstrada através da alternativa utilizada pelo

personagem ao acender seu cigarro, o que o distraiu após quase ser atingido pela sujeira

45

lançada da janela de um prédio. Nesta sequencia, as mãos do Vagabundo são expostas

ao público, que percebe a presença de luvas, as quais ele retira com cuidado, dando a

entender que se tratava de um dia frio – o que também justifica a iluminação condizente

com o clima. Ao acender os cigarros, o vagabundo se atrapalha com as luvas, que

simbolizam um certo luxo para ele, que as arremessa no lixo, demonstrando seu

desapego e incompreensão com o valor que elas poderiam ter, seja para protege-lo do

frio ou conceder-lhe status.

Ao deparar-se com a criança chorando no chão, ele não compreende a situação –

assim como seu criador, ainda uma criança quando a mãe adoeceu, não devia

compreender sua situação – e repete a atitude da personagem feminina: ele olha para os

dois lados antes de tomar uma decisão. O gesto guia o espectador inconscientemente,

conforme apontado pelos códigos de Barthes (EDGAR-HUNT, 2013,). Este significa

que, assim como a mulher que abandonou o bebê, ele também terá uma forte ligação

com a criança, demonstra a busca por uma orientação sobre o que fazer com o

abandonado.

De certa forma, a atitude também pode ser associada a posição do pai de

Chaplin, considerando que, antes de aceitá-lo em sua casa juntamente com o irmão mais

velho, ele teria tentado de todas as formas se desvencilhar da responsabilidade de morar

e cuidar do filho que tivera no seu relacionamento com Hanna, além de tutelar Sidney, o

irmão mais velho de Chaplin e fruto de um envolvimento passado da ex-companheira.

Em sua vida pessoal, Chaplin havia passado recentemente por um casamento que fora

motivado pela suspeita de gravidez de sua esposa, o que não passou de uma alarme

falso. Pouco tempo depois, a esposa de Chaplin daria a luz a um filho do diretor, que

viveria apenas alguns dias devido a uma má formação.

Mesmo confuso e buscando uma explicação nos céus – e nas janelas vizinhas –

ele opta por fazer um gesto oposto ao da mãe do menino e o acolhe. Ao levantar a

cabeça e mirar seja para o céu ou para as janelas, Chaplin reflete sobre o sentimento de

não pertencimento. O diretor declarava em entrevistas que pouco importava sua pátria,

pois ele era um cidadão do mundo, mas, ao analisarmos sua filmografia, percebemos

que o fato do vagabundo ser frequentemente retratado dormindo pelas ruas ou

improvisando um lar, podemos interpretar que o personagem abraça aquela criança com

a intenção de ajuda-la a encontrar seu lugar no mundo, já que o criador do personagem

precisou fazer isso por conta própria. Assim, criador e criatura buscam se livrar do

sentimento de não pertencimento a um lar e na tentativa de conseguir encaixar-se em

46

algum lugar, o que fica evidente quando Carlitos encontra um carrinho de bebê e larga

ali o menino que acabara de encontrar em um beco.

Todavia, mesmo tratando a negação do bebê não ter caído do carrinho como um

acidente, Carlitos segue tentando se livrar dele. Como pudemos observar através das

biografias de Chaplin, especialmente ao trabalho de Robinson (2006), Chaplin guardava

poucas memórias de seu pai, mas tomara conhecimento de que Chaplin pai fizera de

tuso para não assumi-lo e não se importava com sua segurança, visto que negava-se a

pagar pela permanência do filho em um abrigo e, assim, o diretor leva sua vida para as

telas, atuando da mesma forma como seu pai agira com ele.

A última tentativa do vagabundo em livrar-se da criança é apresentada na

terceira cena selecionada para esta análise. No fragmento estudado, o personagem segue

em suas tentativas, agora, em outro beco do subúrbio onde passeava e reside. Ele tenta

esconder o bebê, cogitando abandoná-lo em um esgoto. Pode-se traçar um paralelo com

a infância de Charlie, já que ele, assim como o bebê, sofreu três abandonos: Da mãe,

que devido a enfermidade, não pode acompanhar o crescimento do filho; do pai, que

construiu uma segunda família e cortou relações com a família formada com Hanna,

chegando a ajudar financeiramente com escassez; e de seu irmão mais velho, Sidney,

que precisou servir na marinha e retornou mais tarde, agenciando a carreira do irmão

caçula. Sem contar na ruptura entre ele e o terceiro filho de Hanna, em seu terceiro

envolvimento amoroso e que teve como desfecho a separação e perda da guarda da

criança. Porém, este fora menos grave para Chaplin devido ao pouco convívio com o

irmão. Infelizmente, fora brusco para sua mãe.

Figura 3: Cena 3.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Como observamos, na terceira cena o personagem segura o bebê de um lado

47

para outro, indicando que a construção de sua máscara deveria guiar as conclusões de

seu público á crença de que ele não saberia o que fazer com a criança, para justificar o

novo abandono. Tal desconforto apresentado pelo personagem tem um fim quando ele,

ao desarrumar os panos que envolvem a criança, encontra o bilhete que a mãe havia

escrito, pedindo que este tivesse o amor e os cuidados que ela não poderia lhe dar.

Chaplin foi um homem de muitos envolvimento e, por isso, sua vida pessoal sempre foi

exposta e conturbada, demonstrando a necessidade que ele tinha em firmar laços, ainda

que suas rupturas fossem problemáticas.

É também neste momento que o diretor tem a oportunidade de transferir para o

cinema uma passagem de sua vida. Ele só havia se casado por conta de um filho, que

não passou de uma falsa gravidez. O casamento se manteve até sua esposa engravidar

novamente, o filho nascer com má formação, morrer poucos dias depois, ser enterrado

e, segundo Robinson (2006, p. 253), ter escrito em sua lápide; a pedido da esposa de

Chaplin, seu apelido carinhoso: ratinho. O cinema não é a arte do acaso e, nesta cena,

não se trata de uma coincidência que o bebê pudesse ser abandonado em sarjetas e

esgotos.

A perda do filho devastou o diretor, resultou em uma depressão, seguida de um

verdadeiro surto criativo que culminaria no filme analisado. O bebê, que ora representa

a infância traumática de Chaplin, ora representa seu filho que morreu prematuramente,

carrega as esperanças das duas pessoas. É através dele que Chaplin encontra a

oportunidade de aproveitar sua paternidade interrompida, revisitar as memórias que

guarda de sua infância e família. E, por consequência, repensar sua vida, imaginar como

teria sido a vida de seu filho, o que os dois teriam feito juntos e o seu desejo de

acolhida.

A quarta sequencia desta análise traz a cena em que a miséria do personagem é

conhecida pelo espectador. Neste momento, o bebê volta a representar os sentimentos

de Chaplin, considerando que é apresentado em uma espécie de rede sobre a cama de

Carlitos. Neste caso, podemos afirmar que representa a infância miserável de Chaplin

por questões subjetivas que compõem a cena, como, a partir do conhecimento

biográfico do diretor, concluirmos que este considerava-se suspenso não só da

sociedade, mas dos planos da própria família. Assim, representado suspenso, ligado a

um lar por improviso e laços frágeis, como os que seguram o “berço” do garoto.

48

Figura 4: Cena 4.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Novamente, a relação do personagem com os objetos é encenada. Ao ler a

sequencia, percebe-se que os objetos ganham novas funções no mundo de Carlitos,

como a mamadeira do bebê; que é improvisada para facilitar a alimentação da criança e

livrar o vagabundo de mais uma responsabilidade, ou ainda a cadeira que é adaptada. A

adaptação na cadeira vai além do sentido de servir ao seu dono de uma nova maneira,

mas conquista um espaço para o ator, que a utiliza para criar uma quebra de diegese,

notoriamente proposital3.

Atores não podem olhar nos olhos de quem os assiste – considerando que os dois

lados estão separados pelo tempo, pela barreira da ficção e realidade -, pelo menos não

no cinema. Porém, Chaplin tem uma intenção com a sua quebra de diegese nesta cena e

é justamente olhar nos olhos de seu público. Ele faz isso de uma maneira praticamente

velada – pelo buraco que acabara de cortar no assento da cadeira – e que serve para

aproximar o ator de quem percebe a informação, além de alertá-lo de que por trás

daquela encenação há uma pessoa e que por conta disso, aquela história pode ser real.

Esta é uma das cenas em que o espectador é temporariamente retirado do transe

proposto pelo cinema e torna o ator um xamã, condutor da história e capaz de atuar

conscientemente para câmera e, então, devolver o espectador para a ficção, fazendo com

que este aceite novamente as situações apresentadas.

3 A quebra proposital de diegese, ou a percepção de que o ator está preso em um universo ficcional, ocorre quando ele olha para a câmera, sem que isso signifique um erro. Trata-se da escolha do ator em encarar o público, seguido de uma intencionalidade, que no cinema e no teatro chama-se quebra da quarta parede.

49

Ao longo do filme é apresentada a passagem de cinco anos, trazendo João, o

garoto crescido. Cabe aqui ressaltar um detalhe do filme que é a identidade do menino

abandonado e que é mencionada apenas uma vez, quando o Vagabundo entra com ele

em sua casa e é indagado por algumas mulheres. A situação passaria despercebida, não

fosse a semelhança com a vida de Chaplin. Hanna e Chaplin pai não foram muitos

cuidados quanto ao registro de seu filho, conforme já mencionado no capítulo anterior,

trazendo à tona a identificação de Chaplin, o diretor, com o personagem infantil. Ambos

sofrem com o descaso com sua identidade durante a infância.

A análise da quinta cena traz uma iluminação mais leve no filme, que começa a

demonstrar uma abertura para esta variável. Os ambientes que antes eram fechados e

escuros, começam a ficar cada vez mais acinzentados, demonstrando uma abertura de

iluminação no filme, motivada pela passagem gradual do tempo e o prenúncio de uma

nova fase na vida do menino. Neste momento do filme, o garoto, com cinco anos, já

mostrou que pode ajudar o pai em seu ofício como vidraceiro – sua colaboração é

quebrar as janelas para que seu protetor tenha trabalho – e é retratado no filme em

alguns momentos de distração, que geralmente se passam em uma calçada em frente a

sua casa.

Figura 5: Cena 5.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

São nesses momentos que há a identificação de Chaplin e o personagem João,

lembrando que o próprio Chaplin passou a maior parte de sua infância neste cenário e,

50

assim como seu personagem, era perseguido por policiais. Com a sua apresentação em

uma fase “madura” do personagem, João informa, através de suas roupas, a situação em

que vive. Ele usa roupas largas e remendadas, com golas desajeitadas e, ao contrário do

pai, seu boné é grande demais para sua cabeça. Seus sapatos são surrados, representando

não só o ofício tradicional da família do diretor como também o símbolo das raízes, do

local onde ele pisa e o identifica. Sendo assim, Chaplin afirma através dessa

representação as suas origens, o passado miserável, a história de sua família e a

lembrança.

Por se tratar de uma das marcas não só do figurino de seu personagem, mas uma

identificação de contraponto com os demais personagens de seus filmes, podemos

entender que os sapatos fazem parte da marca autoral do diretor e, nesta cena, são

carregados pelo significado de que Chaplin transfere ao seu personagem as suas

influências e memórias afetivas, e, por consequência, o personagem infantil é afetado

por elas. Sendo o filho uma continuidade do pai, interpretamos aqui que a transferência

desta característica – sapatos surrados – para o personagem que interpreta João, se dá

como uma maneira de Chaplin demonstrar sua vontade de ter alguém para passar

adiante seus valores, ainda afetado pela perda do filho.

A busca se deu de uma forma que ultrapassou o ambiente cinematográfico,

rompeu a diegese, e Chaplin passou a dedicar-se a Jack Coogam, ator mirim que dividiu

a cena com o ator e diretor. A afinidade entre os dois assemelhava-se a de pai e filho,

conforme relatam biógrafos que afirmam que Chaplin gostava de conversar com o

menino, ensinar-lhe sobre interpretação, surpreendia-se com o talento do pequeno e

ainda fazia as suas vontades. Conforme já mencionado, o diretor chegou a preocupar-se

com a carga emocional da criança em uma das cenas que teve a interferência do pai de

Coogan. Há também os relatos de que os trabalhadores do set de filmagens, sabendo da

perda que Chaplin sofrera e conhecedores da sua crise matrimonial, reconheceram que

ele assumira a paternidade do menino nos momentos em que puderam contracenar.

Extravasado o sentimento de proteção para com o outro que Chaplin buscava na

figura do ator mirim, devemos voltar ao reencontro do garoto com a sua mãe, sem que

eles saibam de seus papéis. A atriz ressurge em cena, desta vez, com um figurino mais

requintado. Ela encontra o seu filho no local onde ele mora e que ela visitava para

praticar a caridade. A presença materna foi determinante na vida de Chaplin, seja pelo

sofrimento com a enfermidade ou pelo encantamento com a arte, mas na quinta cena o

papel materno é explorado com o objetivo de recontar uma das histórias pessoais do

51

diretor, que sempre teve esperanças na recuperação de sua mãe.

Neste caso, a recuperação não é representada pela saúde, mas pela reabilitação

financeira da personagem, apresentando que este seria um dos aspectos capazes de ter

mudado a miséria na qual Chaplin viveu durante a infância. De todo modo, representa a

recuperação e a nova vida ao lado da mãe. Esta é uma das cenas capazes de informar ao

espectador a respeito de aspectos internos da infância do diretor, tamanha a

sensibilidade em representar o isolamento do garoto.

No momento em que a atriz segura o bebê, ela olha para a câmera, ocasionando

mais uma quebra de diegese. É através desta quebra que ela, assim como o ato

consciente de Chaplin sob a persona de seu vagabundo, mira no espectador e ativa as

memória dos dois lados: assim como ela utiliza este momento para relembrar o dia em

que segurou seu filho nos braços pela última vez – o que fica subentendido pela forma

como ela se volta para o bebê e seu semblante entristecido -, o público também relembra

esta cena e compartilha dos sentimentos da mulher que abandonou o seu bebê, tentou

reavê-lo e precisou resignar-se com a perda durante todos os anos.

Figura 6: Cena 5.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Na figura 6, localizada acima, faz-se necessário uma observação mais detalhada,

visto que o clímax do filme se aproxima. Nela, está representado um novo afastamento

da mãe após poucos minutos de felicidade para o menino. Outro momento em que pode-

se traçar um paralelo com a vida de Chaplin, já que ele e a mãe puderam passar alguns

momentos juntos; ele e o irmão chegaram a montar uma casa após a saída de Hanna de

uma de suas internações hospitalares. Na cena acima, vemos que a mulher olha adiante

52

enquanto o menino permanece encolhido e sozinho na porta de sua casa. Ela caminha

rumo a uma passagem que se assemelha a um pórtico e o espectador não sabe o que está

do outro lado do pórtico, considerando que a câmera só mostra o que está dentro dele: o

subúrbio e toda a sua miséria.

Por isso, compreende-se que este pórtico é a barreira que separa a sociedade na

qual a atriz está inserida, e a realidade que o filho dela vive, demarcando as diferenças

no estilo de vida dos dois e a separação entre eles. Há uma preocupação fotográfica com

a organização desta cena, apresentada em seu final, quando mãe e filho são

apresentados em lados opostos, cada vez mais distantes, até que ela desapareça na

penumbra. Após a mulher sair de quadro, a imagem do garoto passa a ficar cada vez

mais restrita. Se antes a mãe estava em primeiro plano, demonstrando uma preocupação

estética do diretor em informar que naquele momento ela era uma personagem capaz de

decidir os próximos acontecimentos, ganhando importância na trama, chegou a hopra do

garoto ganhar destaque. Contudo, ele não fica em primeiro plano, a câmera o capta de

longe, apenas o envolvendo na escuridão, como observamos na figura 7 da quinta cena.

Figura 7: Cena 5.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Passado o momento de reencontro e nova separação entre mãe e filho, o garoto

adoece e um médico é chamado para atendê-lo em casa. Porém, ao examinar a criança e

averiguar o local onde ela mora, o médico afirma que é necessária uma intervenção

maior para garantir as condições adequadas para a recuperação da criança.

53

Figura 8: Cena 6.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Conforme observado na sequência acima, esta é a cena que representa o ápice do

filme. É o momento em que ele atinge seu clímax e deixa claro a força motriz do filme,

conforme o código hermenêutico de Barthes, identificada na relação entre o garoto e o

vagabundo em meio à miséria. Além de identificar o fator que determina a atenção do

público, através deste código podemos também afirmar que é neste momento em que o

maior problema da obra se desenrola. A pobreza era sempre contornada por pai e filho,

o grande problema se apresenta quando há a possibilidade de separá-los com a

intervenção do Estado. O espectador que passara cerca de 40 minutos admirando a

história do vagabundo que adota uma criança abandonada e divide o pouco que tem com

ela, adaptando sua vida para poder cuidá-la e, então, depara-se com o desespero da

separação.

Além das separações que Chaplin sofreu ainda criança, o diretor separava-se da

sua esposa nesta mesma época. Nesta cena, Charlie criança e o adulto se mostram ao

público, sendo ora o menino que sofre por não ter poder de decisão perante os órgãos

reguladores e o Estado, ora o adulto perseguido por imprensa, escândalos e ainda

explora seus traumas infantis.

Na figura 9, é possível reconhecer a cena em que o pai de Jackie Coogan, o ator

mirim, precisou intervir para garantir que ele atuaria com a carga de emoção necessária.

54

Figura 9: Cena 6.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

O ator que viveu O Garoto demonstrou sua entrega ao papel sem imaginar que,

naquele momento, encenava um dos desejos de seu ator e companheiro de cena quando

ele tinha a idade do pequeno ator: o desejo de que alguém impedisse que fosse levado

para um abrigo, o acolhesse e pudesse ter uma vida familiar longe dos episódios

conturbados. A mão estendida pede por ajuda, o que Chaplin, pequeno e abandonado,

esperou e só obteve espontaneamente de seu irmão, pois seu pai o acolheu por

obrigação - ao contrário do papel paternal encenado por Chaplin. Quanto ao vagabundo,

esta é a cena em que ele busca exercer sua paternidade, interrompida pela morte do filho

recém nascido.

Figura 10: Cena 6.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

55

Na figura 10, percebemos que a atuação de Chaplin esta focada em impedir que

levem seu filho. A atuação de Chaplin foca na revolta que o vagabundo sente ao não

admitir que levem seu filho para longe dele, uma atitude que ele nunca viu em seu pai,

que sempre foi ausente e permitiu a partida dele e de Sidney de sua casa. Na vida

pessoal, em um episódio recente, ele não pode impedir a separação. Aqui, apoiados pelo

código das ações narrativas de Barthes, nota-se que existem questões interiores que

ficam subentendidas na cena, conduzindo o espectador consciente da história de

Chaplin, a compreender que o ator transfere para a cena as suas emoções e desejos,

como pai e filho acima do seu papel como ator. Figura 11: Cena 6.

Fonte: O Garoto, 1921 (adaptação da autora).

Figura 12: Cena 6.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Nas figuras 11 e 12 a interpretação de Coogan surpreende e é capaz de comover

o público com os apelos do pequeno em permanecer em sua casa, mesmo que esta esteja

inserida em um cenário de pobreza. Percebe-se a partir das comparações com as

56

sequências anteriores, que as cenas individuais da criança recebem maior abertura de

luz, trazendo à tona, ainda sob o prisma do código das ações narrativas de Barthes,

juntamente com o recurso de close-up, que trata-se de uma situação especial, que aquela

pessoa que está recebendo maior luz e destaque em primeiro plano, passará por

momentos decisivos e trata-se de um personagem central, além de indicar que as

emoções do personagem são o assunto central daquela cena.

Um dos paralelos possíveis nesta sequência traça-se a partir da separação que

Chaplin sofreu quando criança, em que suas biografias as relatam, porém, pouco se sabe

sobre os aspectos psicológicos do diretor nesta época. Os relatos das pessoas que

conviveram com ele variam muito, dependendo do grau de convivência que tiveram. Na

fase adulta, com as especulações da imprensa e a fama, a situação não se repetiria. Na

figura 12, percebe-se a reação da criança não só através da interpretação do ator, mas da

fotografia presente na cena, em que o garoto aparece em primeiro plano e com o fundo

notavelmente desfocado, garantindo a importância do personagem e deixando claro que,

em um caso raro do cinema chapliniano, Chaplin não era o personagem central.

Assim, o diretor transfere as suas emoções para os dois personagens, sabendo

que sua experiência profissional foi determinante para que Coogan evoluísse sua

atuação. A transferência de emoções foi possível graças aos laços firmados entre os dois

atores que dividiram a cena, para que o resultado final emocionasse não só o público

mas seu criador.

Figura 13: Cena 6.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Na figura 13, a última a representar a cena escolhida para compor a análise,

Carlitos consegue se desvencilhar da polícia e do médico que tentam contê-lo para

57

facilitar a separação entre ele e o filho, que será levado para um abrigo. A cena volta a

ter muitos elementos em destaque, diferenciando-se da anterior, na qual apenas um

elemento – o menino – era destacado, com um cenário limpo e sem poluições.. Neste

momento do filme, ao desvencilhar-se, Chaplin foge deles por uma janela. Trata-se de

uma das marcas do personagem, capaz de dominar o tempo e, por uma fração de

segundos, encontrar a solução – sempre temporária e prática – para o seu atual

problema. O momento da fuga externa o sentimento do personagem ao separar-se do

filho e a busca por reavê-lo, assim como a mãe da criança fez no início do filme. Porém,

traz à tona também o sentimento do homem por trás da máscara de Carlitos: Chaplin

teria ficado abalado com a perda de seu filho, Norman, porém, não pode fazer nada para

evitar a perda e a dor. A partir desta consideração, a cena retrata a vazão que Chaplin dá

à oportunidade de decisão que teria, caso o que separasse ele o seu filho não fosse a

morte. É nesta situação que ele busca sua afirmação de figura paterna, como se pudesse

provar que conseguiria ser um pai diferente do seu – que o mantinha afastado de sua

segunda família e sem se importar com o bem estar do filho.

Mais indícios da infância de Chaplin são reconhecidos nesta cena, em que há

uma presença majoritária de agentes reguladores. O vagabundo, ao conseguir que

aqueles que o seguram percam as forças oportunizando a sua fuga, purga algumas de

suas passagens de infância, em que era perseguido por credores da mãe e pela polícia,

visto que cresceu à margem da sociedade, pobre, abandonando e à beira da alienação,

conforme consta em suas biografias. Ao livrar-se de seus repressores, o vagabundo

afirma por Chaplin que o menino oprimido pelas ruelas miseráveis cresceu e pode ter

mais força que eles. Tal sentimento faz com que o público identifique-se com o

personagem, mas acima de tudo, há uma identificação intrínseca entre personagem e

ator.

A narrativa sofre um rompimento em determinado momento do filme. Após a

separação, que ocorre apesar de todos os esforços de Chaplin, o ator novamente

transfere para seu personagem as suas emoções. As cenas seguintes mostram um

vagabundo cabisbaixo, dando sinais de uma decepção e impotência perante o destino

traçado. O vagabundo é retratado voltando para a casa e, sem forças, adormece na porta,

dando início a cena onírica do filme, em que há uma quebra com as situações anteriores

do filme, revelando-se uma das cenas mais complexas da obra. Figura 14: Cena 7.

58

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

A última cena analisada é exposta na figura 14. A cena que contém maior

abertura de iluminação revela mudanças no cenário: a casa de Carlitos surge pintada,

enfeitada por flores, assim como todo o restante do local, que se mostra bem cuidado.

Os personagens figurantes usam vestes claras e têm asas. Esse é o sonho do vagabundo.

E no sonho de Carlitos tudo pode acontecer, inclusive o retorno do filho, que o abraça,

e, novamente externando um dos desejos pessoais do ator e diretor que não pôde

conviver com o filho. Entretanto, ele realizou o filme e conviveu com Coogan; com

quem estabeleceu uma relação vista como paternal por muitos que o viram ensinar sobre

a arte da representação ao pequeno, além dos já mencionados passeios e da amizade que

surgiu entre eles.

Figura 15: Cena 7.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Na cena, exposta acima, o filho o conduz a uma loja para que ele possa obter

59

asas assim como todos os outros. Neste momento, o Vagabundo reflete sobre a bondade

humana, simbolizada pelas asas que remetem aos significados que o senso comum

atribui a elas, como a ligação com o sagrado e a pureza. Ele encena para a câmera,

mostra-se desconfortável com as asas, refletindo o desencaixe de seu personagem com a

novidade e, novamente, a crítica de Chaplin, que prefere não assemelhar-se a um anjo e

demonstra isso justamente em um momento em que sua ex-companheira o acusava de

crueldade mental em um processo de divórcio.

Na sequência, a vila onde o vagabundo mora é invadida por seres sem asas, que

remetem a imagem popularizada pelo senso comum como o diabo, representando a

quebra da harmonia em uma mundo perfeito em que o Vagabundo estava inserido, ou

ainda, a perda de controle na vida pessoal de Chaplin, visto que o ator segue suas

transferências emocionais em seu filme. No decorrer da cena, Carlitos encanta-se por

uma moça que surge na trama, mostrando que ele é capaz de amar e ser amado por

alguém, mas a situação é desfeita por um desentendimento. Para conter a briga entre

Carlitos e outro homem, o paraíso do vagabundo sofre um novo choque: o policial, que

também usa asas, toma uma arma em suas mãos e dispara contra um vagabundo alado,

levando Carlitos a morte. Seu filho o encontra inerte no chão e lamenta a sua perda e

quando o policial sacode o corpo, o vagabundo acorda de seu sonho.

Figura 16: Cena 7.

Fonte: O Garoto (1921) (adaptação da autora).

Analisamos, com base na sequência escolhida, que Chaplin utiliza o espaço

diegético para criticar a sociedade que crítica a postura de alguém como ele, que

conquista espaço na imprensa e, por isso, tem a intimidade exposta ao ponto de

60

criticarem sua postura e defeitos. Aqui, Chaplin revive seus encantamentos e desamores,

ao mostrar que o rompimento da perfeição que ele vivia se dá quando o mundo dele é

invadido por outras pessoas e que a raiz de seu problema está em seus envolvimentos

românticos.

A análise poderia seguir sem prejuízos, visto que o filme fornece àqueles que o

leem diversos questionamentos a cerca da inspiração de seu autor, bem como o processo

criativo para compor uma obra que é considerada por muitos como a maior arte de

Chaplin. Assim, o filme termina com o desfecho feliz que o público anseia: o garoto

volta para sua mãe, agora vivendo com conforto, e sem perder a convivência com seu

protetor, que perante a atriz, chega a ser reconhecido pelo policial que antes perseguia

ele e seu filho. A cena final é mais do que a resolução do enigma d’O Garoto, é a

purgação final de Chaplin e a redenção do clown que, enfim, têm um lar e uma família.

61

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Chaplin é cercada pela inspiração pessoal do diretor que extravasa

suas emoções em cena. Assim como o cinema não admite improviso, torna-se

impossível afirmar, após conhecer a biografia do autor e seu filme de 1921, que um

período tão delicado de sua vida não tenha influenciado sua arte. Portanto, a partir da

análise desenvolvida, comprova-se que o diretor transferia seus sentimentos para as

telas.

Especialmente no filme estudado, Chaplin revisita sua vida, defende-se dos

ataques sofridos na fase adulta, reclama seu direito de pai ao segurar o menino em seus

braços, critica a sociedade que o rotula como vagabundo mesmo que ele desempenhe

uma função e ainda, busca saídas contra seus opressores – do passado e do presente. Por

isso, é possível afirmar que Chaplin atingia a catarse, visto que transferia seus

sentimentos em uma espécie de confissão audiovisual. A mise-en-scène Chapliniana

presenteia seu público com uma riqueza de detalhes que habitam na simplicidade aliada

a narrativa, pois, a maior arte, apesar do cuidado fotográfico de seu trabalho, encontra-

se no ator.

Pode-se afirmar que a catarse de Chaplin se dá no âmbito diegético e não

diegético, considerando que, ao mesmo tempo que sua vida pessoal lhe serviu de

inspiração e interferiu em sua criatividade, ritmo de trabalho e recursos utilizados para a

realização do filme. Porém, além da transferência de emoções do diretor para o

personagem, Chaplin quebrava a barreira da ficção e, através da sua relação fora de cena

com Jackie Coogan, Chaplin teve a oportunidade de reaver seu direito de pai,

mentorando o pequeno ator, fazendo suas vontades e fazendo com ele o que nunca fez

com Norman Spencer Chaplin.

62

A catarse diegética se deu no momento em que Chaplin se apropria do surto

criativo após o trauma sofrido com a morte de Norman e transforma sua ânsia paternal

em um filme que apresenta o amor acima das condições financeiras, como uma forma

de justificar o que o fez sobreviver em meio a miséria na qual esteve inserido durante a

sua infância e a sua carência no presente. Deste modo, a catarse não diegética se faz

presente, considerando que Chaplin tem a oportunidade fora do cinema de viver

momentos felizes ao lado de uma criança que o encantara em uma apresentação e ele,

tempo depois, transformara em protagonista de seu filme.

Se Chaplin atinge a catarse através da transferência de emoções para o seu

personagem e para o garoto, o diretor expia sua vida pelos olhos do Vagabundo.

Passado e presente se encontram e tomam forma na persona que mitificou Charlie,

transformando a sua interpretação em um ritual para a própria análise a oportunidade de

dar a sua versão dos fatos, expor a sua história, justificativas, além de tentar consertar

seus erros.

O legado de Charlie Chaplin conseguiu romper a barreira do tempo, mas é

impossível desmistificar sua obra em apenas uma análise, tornando este trabalho apenas

um passo inicial nesta jornada. A vida de Chaplin confunde-se com a interpretação de

seu Vagabundo de tal forma que é preciso atenção para identificarmos quem é a

persona, porém, ao tomar contato com as biografias do diretor e explorar o filme, a

catarse – diegética ou não - assim como a expiação, ganham força e evidência,

possibilitando a comprovação destas.

Em meio a carga emocional que conduziu e compôs cada cena do filme, capaz

de levar as marcas autorais de seu diretor juntamente com a apropriação da inspiração

pessoal, surgem novos questionamentos, como a possibilidade de explorar os limites da

criação do personagem e identificar a influência da vida pessoal deste em suas demais

obras. Nesta, comprovou-se que a união de um riso e quem sabe uma lágrima resultam

em uma mise-en-scène detalhista e uma narrativa reveladora.

Ainda é possível revelar muito sobre a vida de Chaplin, a partir de um amparo

em suas biografias e filmes. Para tanto, resta seguir o conselho deixado por ele em sua

canção, usada como título e inter-títulos deste trabalho. Assim como em Smile, “That's

the time you must keep on trying” para então descobrir o que o diretor revela em suas

obras.

63

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUMONT, Jacques. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003.

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

BAZIN, André. Charlie Chaplin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

BERNARDET, Jean Claude. O que é cinema. São Paulo: Livraria Brasiliense Editora S. A., 1993.

CARLOS, C. S. Arqueologia do cinema. In: LABAKI, Amir. Folha conta 100 anos de cinema: ensaios, resenhas e entrevistas (p. 11-16). Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995.

CARRIERE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Botafogo, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006.

CHAPLIN, Charles. As minhas Aventuras pela Europa. In: PAIVA, Marcelo Whaterly. Chaplin por ele mesmo (p. 63-75). São Paulo: Martin Claret Editores Ltda., 2009.

COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

EDGAR-HUNT, Robert. A Linguagem do Cinema. Porto Alegre, RS: Bookmann, 2013.

FASSONI, O. Chaplin. In: LABAKI, Amir. Folha conta 100 anos de cinema: ensaios, resenhas e entrevistas (p. 26-36). Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995.

64

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1999.

ICLE, G. O ator como xamã. São Paulo: Perspectiva, 2006.

LABAKI, Amir. Folha conta 100 anos de cinema: ensaios, resenhas e entrevistas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995.

MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.

MORIN, E. Chaplin, um estudo – O Mistério de Carlitos. In: PAIVA, Marcelo Whaterly. Chaplin por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret Editores Ltda., 2009.

NEVES, J. A. Carlitos - Uma Antologia. In: PAIVA, Marcelo Whaterly. Chaplin por ele mesmo (p. 63-72). São Paulo: Martin Claret Editores Ltda., 2009.

PAIVA, Marcelo Whaterly. Chaplin por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret Editores Ltda., 2009.

ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ROBINSON, David. Chaplin: uma biografia definitiva. Osasco: Novo Século Editora, 2012.

SADOUL, G. Chaplin: Cronologia. A vida e os filmes. In: PAIVA, Marcelo Whaterly. Chaplin por ele mesmo (p. 11-14). São Paulo: Martin Claret Editores Ltda., 2009.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2005.

SKLAR, Robert. História Social do Cinema Americano. São Paulo: Editora Cultrix, 1975.