UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA-UnB INSTITUTO DE CIÊNCIAS...
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UNIVERSIDADE DE BRASLIA-UnB
INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS-ICS
CENTRO DE PESQUISAS E PS-GRADUAO SOBRE AS AMRICAS- CEPPAC
ALDO ZAIDEN BENVINDO
A NOMEAO NO PROCESSO DE CONSTRUO DO CATADOR
COMO ATOR ECONMICO E SOCIAL
BRASLIA-2010
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ALDO ZAIDEN BENVINDO
A NOMEAO NO PROCESSO DE CONSTRUO DO CATADOR
COMO ATOR ECONMICO E SOCIAL
Dissertao apresentada ao Centro de Estudos e
Ps-Graduao sobre as Amricas como parte
dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre
em Cincias Sociais, especialista em Estudos
Comparados Sobre as Amricas.
Orientador: Prof. Dr. Moiss Villamil Balestro
Braslia- Julho 2010
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BANCA EXAMINADORA:
Professor Doutor Moiss Villamil Balestro (Presidente) CEPPAC/UnB
Prof. Dr.Danilo Nolasco Marinho SOL/CEPPAC/UnB
Prof. Dr.Srgio Sauer- PROPAGA- UnB
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Dedicatria
Aos Meus Pais, Benvindo e ngela, exemplo de amor aos filhos, amor
educao e ao seu pas
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Agradecimentos
Em primeiro lugar, gostaria de oferecer meus sinceros agradecimentos aos
Catadores de Materiais Reciclveis da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, pelo
exemplo de trabalho e f no prprio esforo para fazer de suas vidas algo melhor. Tio,
Zilda, Hada Rbia, Carminha, todos os cooperados, todos que tem f no trabalho unido,
reciclando nossa f na humanidade.
Ao meu amigo Ricardo Vasquez, o Bolvia, sem quem eu no teria conseguido
escrever o texto. Perseverana e um beijo para Humberto, seu nenm!
A amiga Renata Estrella, pela fora crescente de nossa amizade e os 21 dias de
carro emprestado!
A Renata Oliveira, pela ajuda com as transcries, as maravilhosas risadas, o
pedao de caminhada e o sincero carinho comigo.
A Tnia Costa Lima, pelo amor, pela companhia profunda e pelo apoio
incondicional nos dois anos em que troquei a gravata pela cala jeans e a mochila. A ti,
meus maiores votos de felicidade e paz.
Aos grandes scio-ambientalistas Plita Gonalves e Jorge Pinheiro, do Rio de
Janeiro, pelo incentivo, apoio logstico, pelas cartilhas! Viva a nossa amizade!
A minha v Nenzica e minha tia Regina Zaiden, pelo amor absoluto!
Aos amigos Din e Paulo Arruda, pelo lugar no ninho, sempre que precisei.
A Cleusa e ao Fernando, de quem jamais me esqueo, e vice-versa.
A Jos Guerra, Andr Maya, Carlos Henrique, Juliana Bessa, Rafael Leporace,
Telmo Amand, Iara Flor, Paula Stein, Jnior lcio, Valentina Castello Branco, Manuela
Fantinato, Andr Pereira, Srgio Rizzo Dela-Svia, Vincius Marques de Carvalho,
amigos parceiros nesta empreitada.
A Jos Ferreira (in memoriam).
Ao meu orientador, professor Moiss Villamil Balestro, por haver me ajudado,
com sua abertura e sensibilidade, a superar os desafios de um estudo interdisciplinar e
ter compreendido os percalos acadmicos e existenciais vividos. A ti, o meu sincero
abrao!
Aos meus irmos, Juliano e rica, que sempre acreditaram em meu potencial,
meus maiores espelhos para que eu visse minha fora, meus maiores defensores dos
outros ou de mim! A vocs, meu maior beijo!
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Resumo
Como ocorre a constituio do ator econmico e social? Quais as implicaes
dos processos de identificao e subjetivao para a ao econmica e social? Esta
dissertao de mestrado busca discutir, a partir dos exemplos das diferentes
configuraes de trabalho individual e coletivo realizado pelos catadores de materiais
reciclveis no estado do Rio de Janeiro, as condies sociais e psquicas fundamentais
para o estabelecimento de uma racionalidade econmica.
As diversas teorias sociais e econmicas, clssicas ou contemporneas, discutem
a ao econmica e social tendo como pressuposto um ser que realizar tais aes. A
observao de grupos tradicionalmente excludos realizada para fins deste estudo aponta
para a seguinte hiptese: a pessoa no-nomeada/autorizada no se constituir enquanto
ator econmico de fato. Este fato significa que sua ao se no se constitui enquanto tal
no contexto socioeconmico e no mbito do prprio indivduo.
Sugere-se, deste modo, que, para se realizar uma anlise da ao econmica e
social contemplando um espectro maior dos seres humanos que trabalham, necessrio
um olhar especfico sobre o psiquismo do lumpensinato. Este enfoque permite se
delinear uma anlise sobre a insero dos indivduos no conjunto de regras sociais
compartilhadas pela coletividade, neste contexto analisadas sob um enfoque
complementar entre a sociologia econmica e a psicanlise.
Palavras-Chave: catadores de materiais reciclveis, psicanlise, sociologia econmica,
ao coletiva, ao econmica, ao social, identificao, nomeao, autorizao.
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Abstract
How does the constitution of social and economic actor occurs? What are the
implications of the processes of identification and subjectivity for the social and
economic action? This Masters purpose is to discuss, from the examples of different
configurations of individual and collective work done by recyclable waste pickers in the
state of Rio de Janeiro, psychological and social conditions essential to the
establishment of an economic rationality
The various social and economic theories, classical or contemporary, discuss the
social and economic action on the assumption that a person performs such actions. The
observation of traditionally excluded groups conducted for this study points to the
following hypothesis: a not named/unauthorized person does not constitute as an
economic actor. This fact means that his action is not constituted as such in the
socioeconomic context, as well as within the individual himself.
Therefore it is suggested that in order to perform an analysis of economic action
and social contemplating a larger spectrum of human beings that work, a specific look
on the psyche of the lumpenproletariat is necessary. This approach allows to outline an
analysis on the inclusion of individuals in the set of social rules shared by the
collectivity, in this context, analyzed in a complementary approach between economic
sociology and psychoanalysis.
Keywords: recyclable waste pickers, psychoanalysis, economic sociology, collective
action, economic action, social action, identification, nomination, authorization
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Sumrio
Dedicatria
Agradecimentos
Resumo
Abstract
Sumrio
Introduo .......................................................................................................................11
1-Ao econmica e ao coletiva ..................................................................................17
1.1 Discusso e contexto terico dos conceitos ..............................................................17
1.2 Aportes tericos contemporneos sobre ao coletiva e redes sociais: A Nova
Sociologia Econmica ..............................................................................................18
1.2.1 Circulao de informao e confiana ................................................................20
1.3 Sociedade e Ao Coletiva .......................................................................................21
2 Nomeao e Autorizao ..........................................................................................26
2.1 Identidade e Identificao .........................................................................................28
2.2 O Outro e a Nomeao Autorizadora .......................................................................30
2.3 A identidade em movimento .....................................................................................32
2.4 O (a)sujeito ou o sujeito antes do nome ...................................................................34
2.4.1 O catador no-nomeado, o gozo e a paisagem do lixo ......................................36
2.4.2 O catador no-nomeado e tragdia dos bens comuns .........................................38
2.5 O sujeito autorizado e a autonomia ..........................................................................40
3 Cooperativas de reciclagem e movimentos dos catadores no Brasil ........................43
3.1 Nomeao, autorizao e o sucesso econmico dos catadores ................................44
3.2 Polticas de nomeao dos catadores .......................................................................48
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4 Mtodo ......................................................................................................................52
4.1 Coleta de dados .........................................................................................................52
4.2 Anlise dos dados ....................................................................................................53
5 Breve histrico dos casos considerados ....................................................................55
5.1 As iniciativas ............................................................................................................55
6 Construo dos catadores enquanto atores sociais e econmicos ............................62
6.1 Nomeao imbricada e o processo de autorizao: com a palavra, os catadores .....62
6.1.1 A nomeao parcial ............................................................................................66
6.1.2 Decretos nomeadores e ao socioeconmica ....................................................69
6.2 Construo da ao coletiva .....................................................................................71
7 Consideraes finais .................................................................................................77
8 Bibliografia ...............................................................................................................81
Lista de Siglas............................................................................................................86
Anexos.......................................................................................................................88
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Deixem falar os pequenos
papeis... Vamos falar dos
pequenos papeis
Serge Gainsbourg- Les petits
papiers.
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Introduo
Para se compreender, no sentido hermenutico, a trajetria de constituio das
organizaes de catadores de materiais reciclveis no Brasil, oportuno se aprofundar
nas razes e dimenses da palavra autorizao.
Em seu Vocabulrio das Instituies Indo-Europias, mile Benveniste (1995),
indica que o termo adviria do latim auctoritas, o qual se referiria, em sua raiz, ao poder
que detinha o censor romano de fazer existir uma coisa no mundo. Esta interpretao
etimolgica nos remete prpria dinmica pela qual se deram as primeiras iniciativas
de organizao do segmento no pas.
Se o trabalho com o lixo e sua comercializao registrado no Brasil desde o
sculo XIX1, ou seja, bem antes que a questo ambiental adquirisse importncia nos
debates acadmicos ou de polticas pblicas, a invisibilidade deste segmento de
trabalhadores foi, e ainda , em boa parte dos centros urbanos, sua marca histrica
maior (Mayer, 2009).
Esta invisibilidade se daria por dois fatores principais: o primeiro, por se tratar
de um contingente de trabalhadores que no ocupam um lugar no processo produtivo
hegemnico ou na representao social que se tm deste mesmo processo; e o segundo,
como conseqncia do primeiro, por seu trabalho no ser historicamente reconhecido
como tal nestas localidades: tratar-se-ia de uma atividade de pessoas excludas e/ou
moradores de rua (Lima, 2008).
Contudo, embora no existam estatsticas precisas sobre o nmero de pessoas
que se mantm graas ao trabalho de recuperao de materiais reciclveis e reutilizveis
tanto no Brasil quanto no resto do mundo, o Banco Mundial estima que cerca de 1,5%
da populao economicamente ativa da sia e Amrica Latina (15 milhes de pessoas)
tira desta atividade seu sustento (Medina, 2007). No Brasil, em levantamento realizado
em 20062, no contexto de uma anlise dos custos para a criao de postos de trabalho na
cadeia produtiva da reciclagem, apontou-se um contingente de aproximadamente 500
mil catadores no pas, os quais participam, em diferentes nveis de interao e
1 (...) so uns quarenta ou cincoenta, muito unidos e amigos, e que de Rio de Janeiro s conhecem a Sapucaia. Dividem entre si,
com todo o methodo e ordem, os variados servios das diversas reparties de Lixo ().Tudo alli aproveitado, renovado, re-
utilizado e revendido. Jornal do Commrcio, edio de 5 de julho de 1896. 2 Relatrio Anlise do Custo de Gerao de Postos de Trabalho na Economia Urbana para o Segmento dos Catadores de
Materiais Reciclveis Ministrio do Desenvolvimento Social-MDS, Movimento Nacional dos Catadores de Materiais
Reciclveis - MNCMR,- PANGEA-BA
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organizao, de um mercado em expanso, que, em 2007, movimentou cerca de R$ 8
bilhes no pas. 3
Apesar destes nmeros importantes, veremos, em uma perspectiva histrica, que
esta parcela da populao que desenvolve, a partir de seu trabalho, um valor econmico
para o que j no teria mais valor4
, no se reconhecer, at a formao das primeiras
organizaes de catadores de materiais reciclveis no Brasil, como trabalhadora.
Ser a partir do envolvimento de grupos da sociedade civil, em especial das
Pastorais de Rua, que surgiro as articulaes iniciais para a organizao do segmento
no Brasil, levando criao das primeiras associaes de catadores5 em So Paulo e
Belo Horizonte no fim da dcada de 80. Muitas destas organizaes se mostraram
espao importante para incluso econmica e social, assim como para a constituio de
uma identidade cidad para seus membros.
Na passagem entre a excluso no espao das cidades, ou mnima garantia de
direitos da grande maioria dos catadores, e a organizao sociopoltica atual de parte
dos catadores de material reciclvel em algumas cidades brasileiras, identifica-se ainda
a participao de outros dois plos transformadores, alm dos grupos da sociedade civil
comprometidos com esta realidade: o Poder Pblico, mediante agentes tcnicos e
polticos sensveis causa dos excludos e/ou causa ambiental e os prprios
catadores6.
Fala-se, pois, do trabalho realizado pelas entidades que apiam a atividade
organizada no trabalho com o lixo, em sua ao de apontar e nomear qualidades
especficas do trabalho da catao, situando, deste modo, tais trabalhadores em um
contexto histrico e social reposicionado; de aes governamentais que passaram a
tratar de questes especficas deste grupo e suas dinmicas (leis municipais, decretos
federais, polticas pblicas que designam a categoria em seus direitos); de avanos
institucionais e culturais que integraram a atividade da catao em um contexto poltico
e cultural positivo, o qual contempla dimenses sociais e ecolgicas; e, por fim, da
prpria mobilizao local e nacional da categoria, que atualmente se vale de todos estes
3 Dados: CEMPRE- Compromisso Empresarial para Reciclagem- disponvel em cempre.org.br, acessado em 15/03/2010
4 Pode-se associar este movimento ao conceito de construo social de mercado, da Nova Sociologia Econmica, de Granovetter
(1992, 1985) e Fligtein (2002) 5 Apesar de se entrecruzarem, os segmentos Populao de Rua e Catadores se organizam em movimentos distintos, com
demandas especficas. O que delineia o Movimento Nacional da Populao de Rua a busca de reconhecimento como
indivduos portadores de direitos. O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclveis (MNCR) trata
fundamentalmente do reconhecimento dos mesmos enquanto trabalhadores, da partindo suas demandas. Os dois movimentos, contudo, realizam encontros nacionais em conjunto.
6 Caderno de Programao do 6Festival Lixo e Cidadania, Belo Horizonte- 2007
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aspectos para produzir seu prprio discurso, com crescente identidade de categoria.
Na trajetria de formao das redes sociais dos catadores de materiais reciclveis
no Brasil, bem como no tocante a outros grupos tradicionalmente excludos, a ao
coletiva7 implicada forja um processo de autorizao social. Este processo refere-se
idia do sujeito barrado8 em Lacan (2005), metfora para o sujeito social no que diz
respeito insero da pessoa na sociedade e sua relao com as regras nela existentes.
No caso dos catadores, isto passa necessariamente por uma resignificao positiva do
lxico associado ao trabalho realizado por estes indivduos, tanto pela sociedade, como
pelos prprios trabalhadores.
Desta maneira, e como resultado de aes amplas e da prpria luta deste
segmento de trabalhadores por reconhecimento, o catador histrico, habitante das ruas e
dos lixes, passa ento de parte do problema da pobreza parte da soluo, de
parte do lixo a ambientalista histrico, entre outras nomenclaturas que se
incorporam ao termo catador, como agente ambiental e reciclador. Em outras
palavras, e a partir destas outras palavras e nomes, ele renasce, agora pertencente a uma
categoria de trabalhadores, para o mundo dos direitos. Neste ponto, a expanso dos
direitos pode ser entendida como diretamente relacionada mudana dos nomes dados a
estes indivduos (Castro, 2003).
Esta nova condio produto de um processo de subjetivao9 nomeador que
autoriza o catador enquanto trabalhador e cidado, permitindo-o agir em um mercado
competitivo e interferir em suas regras especficas. Ou seja, fala-se de um sujeito que se
constitui, e a partir deste processo passa a ser um ator econmico da cadeia produtiva da
reciclagem.
Quando se trata de pensar os coletivos, as redes sociais e suas dinmicas,
percebe-se que uma parte das discusses realizadas nos ltimos anos no mbito da
economia, sociologia, sociologia econmica e cincia poltica realiza uma reflexo
sobre a forma como os indivduos atuam em grupo e como suas preferncias e
interesses pessoais podem ou no ser determinantes para sua ao na dimenso do
coletivo (Granovetter, 1992; Olson, 1999).
7 Mancur Olson props, em 1971, em seu livro, A lgica da Ao Coletiva que todos os indivduos de um grupo sejam racionais
e centrados em seus prprios interesses, e que saiam ganhando se, como grupo, agirem para atingir seus objetivos comuns, ainda assim eles no agiro voluntariamente para promover esses interesses comuns e grupais" (Olson, 1999, p. 14)
8 Conceito proposto por Jacques Lacan, em seu Seminrio X, de 1973, referente ao sujeito inserido no contexto social, ou
internalizando as regras adjacentes do contexto scio-cultural (Lacan, 2005) 9 Processo de constituio de um sujeito (Laplanche e Pontalis, 1992) implicando a interrupo da simbiose psquica do ser com
as figuras de investimento afetivo iniciais de sua existncia,, .
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13
Os autores filiados Nova Sociologia Econmica realizam uma importante
reflexo acerca das dimenses implicadas na ao coletiva ao emprestar um vis
sociolgico s anlises das aes econmicas.
Enfatizando as redes, os laos sociais, a cultura, as instituies e suas inovaes,
Granovetter e Swedberg propem que as aes econmicas percorrem caminhos
consideravelmente mais complexos que os do indivduo maximizador de recursos
anunciado na teoria econmica neoclssica em sua concepo de indivduo e grupos.
Em tais anlises, os sujeitos so vistos a partir de sua insero em seu contexto cultural
e institucional, o que permite a estes autores entender a ao econmica como uma ao
social. Deste modo, afirma-se que os sujeitos, alm de objetivos econmicos, buscam
atingir outros objetivos como sociabilidade, estatuto e poder (Granovetter, 1985).
Em outra nuance, que considera uma perspectiva do comportamento dos
indivduos sob o ponto de vista de suas motivaes, Mancur Olson (1971, 1999) busca
entender em quais condies se pode esperar que um grupo de pessoas, empresas ou
naes se organize para perseguir um interesse comum, e em que condies se esperam
que tal processo no acontea.
Nesta breve contextualizao terica, temos, em uma tnica ainda mais recente
acerca da ao coletiva, Elinor Ostrom (1990) contestando a proposio negativa de
Olson (1971, 1999), bem como a de Hardin (1968) sobre os empreendimentos coletivos.
Seguindo a mesma base metodolgica destes autores, Ostrom, ao contrrio destes,
reafirma o poder das cooperativas e das associaes na promoo do surgimento de
instncias coletivas com vistas ao manejo sustentvel de bens comuns. Dentro de um
empreendimento coletivo, o indivduo realiza uma ao social balizada por regras
estabelecidas coletivamente, preservando deste modo a prpria coletividade, a saber, o
bem-comun10
.
Este panorama terico aprofunda o poder explicativo de consideraes e estudos
acerca da ao social e das aes coletivas. Contudo, ainda que neste arcabouo se
esteja falando de uma racionalidade dependente do contexto11
(context-bound
rationality), de uma racionalidade que no ex-ante como sustentado pela economia
clssica, segundo a qual o indivduo j apresenta naturalmente uma propenso para
10
Do direito romano res publica, a coisa que pertence a todos sem pertencer a um indivduo em particular (Bobbio, 2000) 11
Conceito operacionalizado pelo Novo Institucionalismo da Sociologia,(vide Nee e Brinton, 1998 apud Balestro 2006), revisitando a idia de uma racionalidade dependente do contexto desenvolvido no perodo clssico da sociologia, o qual enfoca a estrutura e o contexto social no qual os interesses e normas do indivduo e dos grupos se desenvolvero ao mesmo passo em
que se desenvolvero as normas e os interesses implicados nas mudanas institucionais.
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trocar, negociar e permutar uma coisa por outra (Smith, 1776, 1981), parte-se,
inevitavelmente, de um ser social, de um indivduo que realiza uma ao na sociedade.
Ocorre, contudo, que ao tratarmos do lumpen12
, ou seja, de indivduos riscados
das representaes sociais (Moscovici, 1961, 2003) como , em uma perspectiva
histrica, o caso dos catadores de materiais reciclveis -- a no ser que algum os
convoque, autorizando-os a tomar posse de um lugar flico13
-- uma anlise
eminentemente interdisciplinar, que aborde o prprio processo de entrada no
significante coletivo, se impe. Neste sentido um dilogo entre a psicanlise e as demais
reas das cincias sociais interessadas na atividade econmica , no presente estudo,
antevisto como de fundamental complementaridade.
A partir do caso especfico dos catadores, possibilita-se inicialmente uma
melhor delimitao do alcance das teorizaes acerca da ao coletiva, alm de
preencher um vazio existente nos modelos explicativos, tradicionais ou modernos, que
apresentam o indivduo como algum propenso a realizar uma ao econmica, uma
ao social: o sujeito no-nomeado no realizar nenhuma ao.
Indica-se, ainda, que o ferramental explicativo desenvolvido pelas teorizaes
psicanalticas pode contribuir com novas metforas que permitam aprofundar a
conceituao dos processos implicados nos empreendimentos realizados coletivamente
pelos catadores.
No presente estudo, buscar-se-, em um trajeto interdisciplinar, analisar a
relao entre o manejo do ferramental existencial decorrente dos processos de
nomeao e autorizao e as caractersticas da ao coletiva presentes nas redes sociais
que se formam a partir dos arranjos cooperados de catadores.
Para isso, a anlise de iniciativas cooperativadas de catadores de materiais
reciclveis na Regio Metropolitana do Rio de Janeiro oferece exemplos emblemticos
de diferentes nveis de organizao coletiva, possibilitando uma interessante
contextualizao destes novos atores no mercado de reciclveis, na sociedade que ora os
acolhe. Estes processos esto em interligao com os atos que resignificam o trabalho
com o lixo e fundam a categoria na qual estes indivduos se inscrevem enquanto
trabalhadores.
Prope-se, assim, realizar, em um trajeto interdisciplinar, uma discusso sobre o
12
subprotetariado, na acepo marxista do termo, levando em conta o carter pernicioso desta condio no tocante sua mobilizao social, mas ressaltando essencialmente seu estado de excluso social.
13 posio de autoridade, o Outro Lacaniano (Andr, 2004)
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15
processo de construo da racionalidade econmica dos indivduos, a partir do exemplo
de pessoas excludas social e economicamente, e a ao coletiva que a partir desta
construo se desenvolve. Esta construo supe uma anterior validao destas pessoas
enquanto sujeitos, a partir dos processos aqui designados como nomeao e
autorizao. Neste sentido, a questo de pesquisa colocada no trabalho, oportunizada
pela anlise de algumas configuraes de trabalho realizado por catadores de materiais
reciclveis individuais ou associados : quais as condies sociais e psquicas para a
constituio do ator econmico e social?
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1-Ao econmica e ao coletiva
1.1- Discusso e contexto terico dos conceitos.
No contexto histrico em que Marcel Mauss (1925, 1985) realiza suas
consideraes acerca da ddiva14
, trazendo a partir suas observaes etnolgicas
exemplos variados e consistentes da no universalidade das relaes de trocas ditadas
pela lgica da maximizao, vivencia-se, ironicamente, o incio de um perodo de
recolhimento da sociologia no que diz respeito s suas discusses sobre a vida
econmica, ou mais especificamente sobre o mercado. (Gislain e Steiner apud Raud,
2005). Uma clara diviso se cristaliza a partir de Parsons, nos anos 1930: a economia se
reapropria das discusses hegemnicas sobre o mercado, e a sociologia se volta
sobretudo a uma anlise das instituies.
Este fenmeno acabou por negligenciar a importncia da ao social na
teorizao realizada por Weber (1994), a qual contemplava amplamente consideraes
acerca da ao econmica, bem como delimitava a posio a ser ocupada pelo Estado
nas relaes sociais. Da mesma forma, o amplo projeto sociolgico de Durkheim, que
teve como um de seus objetivos principais discutir e problematizar as vises
individualistas preconizadas pelas teorias clssicas e neoclssicas econmicas,
descontinuado. Ainda que, em seu percurso terico, Durkheim tenha acabado por fazer
a delimitao da prpria Sociologia em relao s disciplinas da Economia e Psicologia,
a perda da interdisciplinaridade jamais se constituiu como um objetivo, ao contrrio
(Raud, 2004).
Mesmo que, posteriormente, a compreenso de que a vida social no pode ser
reduzida vida econmica tenha sido corroborada por tericos de diversas correntes,
como Bourdieu, Giddens e o prprio Parsons (Baert, 1998), ser apenas nos anos 1960
que uma incurso renovada da sociologia se dar nos campos da economia, bem como
uma contra partida refinada deste campo se dar na seara das instituies sociais.
14
Essai sur le Don, Marcel Mauss (1925, 1985).
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1.2 Aportes tericos contemporneos sobre ao coletiva e redes sociais: A Nova
Sociologia Econmica
A Nova Sociologia Econmica, de Granovetter e Swedberg, herdeira da
percepo durkheimiana acerca do esgotamento da economia poltica marginalista.
Todavia, esta corrente contempornea, antes de propor uma ruptura, ou uma
substituio terica economia em si, realiza, ao fim e ao cabo, uma crtica moderada e
pontual s acepes tradicionais.
Nestas novas teorizaes, tem-se sobretudo a prevalncia de um vis de
complementaridade, o qual se expressa por meio da incorporao de novas explicaes
e refinamentos provenientes dos avanos obtidos pelas cincias sociais, fato que,
conseqentemente, resulta em um aumento do poder explicativo do prprio arcabouo
terico em economia.
Nesta tnica, os conceitos de ao econmica, manejados tanto pela Sociologia
Econmica quanto pela Cincia Econmica, convergem, estando mantidas em grandes
linhas as percepes acerca da racionalidade dos indivduos.
A ao econmica seria definida (...) em termos da escolha entre meios raros
(Swedberg, 2003 e Granovetter, 1992), ou, retomando a definio weberiana, como
sendo orientada para a satisfao de necessidades definidas pelos indivduos em
situao de escassez (Raud, 2005). A riqueza desta nova abordagem se revela, na
verdade, na tomada em considerao, de forma aprofundada, dos contextos nos quais a
ao econmica se desenvolve, tendo como enfoque as redes sociais em que os
indivduos e grupos esto inseridos: a ao econmica imbricada socialmente.
Se o cenrio privilegiado pelo vis tradicional da cincia econmica compreende
a ao econmica a partir de uma etimologia onde o indivduo o centro de tudo; uma
ao que deriva da capacidade de manejo de um sujeito dotado de caractersticas
psicolgicas que favorecem mais ou menos a sua maximizao e otimizao de
recursos, Granovetter (1973) prope que esta mesma ao econmica deve ser
entendida como uma ao social15
. Trata-se de uma ao que, neste contexto, est
ligada no s ao indivduo, mas tambm s condies institucionais, capacidade de
15
Aes coordenadas objetivando fins (econmicos) conforme proposto por Weber (1979)
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cooperao existente, confiana, s competncias e aprendizados adquiridos nas
trajetrias individuais e grupais, capacidade de ao coletiva e formao de redes
sociais, indo alm da definio bsica weberiana de ao social.
Nesta viso, as aes econmicas no acompanham os caminhos simplificados
pelos modelos econmicos tradicionais com vistas maximizao, mas sim caminhos
consideravelmente mais complexos em direo este fim. O comportamento, sob este
prisma, no um produto de um contexto individual, posto que os laos sociais
influenciam as trajetrias; os indivduos buscariam, em seus empreendimentos, alm do
sucesso econmico, remuneraes sociais, polticas e psicolgicas, as quais se
manifestam nas instncias pessoais e da coletividade16
.
Estas variveis complexas devem ser tomadas em suas especificidades
institucionais, culturais e territoriais, de forma interdependente, o que concorreria para a
compreenso do fato de que em um mesmo pas ou em uma mesma regio, grupos
sociais aparentemente assemelhveis, e que atuam em um mesmo mercado, tm
resultados econmicos bastante diferenciados: a remunerao tambm dependeria da
estrutura social vigente e das relaes estabelecidas pelos atores com os agentes
pblicos e privados.
Assim, Granovetter (1973), em sua teoria sobre a fora dos laos fracos17
, ao
enfatizar a perspectiva das relaes pessoais na anlise das relaes mercantis,
aprofunda e qualifica de forma diferenciada uma noo que j havia sido definida por
Weber e Durkheim no que diz respeito estas mesmas relaes, que seriam vistas como
uma relao social.
Nesta teorizao, a teoria sobre as redes sociais fundamental para se estudar o
mercado e outros fatores econmicos. Nela se discute como as estruturas destes arranjos
podem afetar resultados econmicos, tais como o preo, a produtividade e a inovao.
Quando se trata de empreendimentos cooperados, ou de aes socioeconmicas
amplas, como o caso de algumas iniciativas dos catadores de materiais reciclveis
abordados neste estudo, o espectro desta literatura, apresenta-se oportuno. A ao
econmica e social engendrada pelos catadores insere-se em um contexto de mercado
que caracterizado pela grande presena de atravessadores e, portanto, por uma relao
16
Granovetter retoma aqui as idias de Weber e de Polanyi acerca dos objetivos amplos buscado pelos indivduos (1985, p. 506).
17 Conceito desenvolvido no artigo The strength of Weak Ties, Mark Granovetter (1973), na qual feita
uma anlise sobre o mercado de trabalho e as nuances polticas e institucionais envolvidas nos
processos de contratao de empregados.
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19
de formao de preo do produto do trabalho completamente assimtrica, constatando-
se, ainda, grandes diferenas de nveis de informao entre os agentes envolvidos.
Assim, somente o catador organizado tem conseguido estabelecer relaes de mercado
diferenciadas, o que determinante para o prprio desenvolvimento e sustentao dos
processos de subjetivao especficos das pessoas que compem o segmento, como
veremos no captulo 2.
1.2.1- Circulao de informao e confiana
O enfoque nas redes sociais, que se apresenta como a contribuio essencial da
Nova Sociologia Econmica potencializada pela proposta de Burt (1992), em sua
teoria dos buracos estruturais18
. Existiriam convergncias e paradoxos nestas duas
abordagens.
Esta aproximao enfoca, sobretudo, a qualidade dos fluxos de informaes
entre os componentes de uma rede; aspecto que entendido como varivel determinante
para os resultados sociais e econmicos da rede como um todo.
Adotando o entendimento de Granovetter de que a rede parte do indivduo, Burt
(2001) depreende desta configurao o conceito de rotas de acesso para outras redes
Deste modo, surge uma discusso sobre buracos estruturais presentes nestas mesmas
redes, posto que pessoas diferentes podem se encontrar desconectadas em uma mesma
estrutura social. Na ocorrncia deste fenmeno, surgiria a oportunidade, para certos
grupos ou membros deste mesmo arranjo, de agenciar o estabelecimento do fluxo de
informao que conforma a prpria rede, podendo, ao assumir esta posio, controlar
unilateralmente os projetos e as formas de organizao que se estabeleceriam
coletivamente.
No caso de uma cooperativa de coleta seletiva, para que a gesto de uma
cooperativa ocorra de forma eficaz no que tange a seus resultados econmicos, supe-se
que todos os cooperados tenham pleno entendimento da estrutura de produo, dos
deveres e direitos de cada um no funcionamento da cooperativa, o que, segundo
Gonalves (2003) no nada fcil. Isso exige um longo processo de aprendizagem e
prtica e, sobretudo, a construo de confiana entre os participantes desta mesma rede.
A origem, bem como a trajetria de vida de grande parte destes trabalhadores no so,
18
Structural Holes BURT, Roland (1992).
-
20
infelizmente, prdigas em exemplos ou experincias que facilitem o estabelecimento de
um quadro de mtua confiana com vistas plena cooperao no mbito de um
empreendimento coletivo. Este aspecto se revelar nas anlises das entrevistas
realizadas.
Esta noo retoma a importncia, apontada por Granovetter, de se saber como as
redes sociais se articulam em torno de ideais, confiana mtua e gerao de renda como
crucial para se entender porque determinadas redes prosperam e outras no. H que
considerar as relaes entre indivduo-indivduo, indivduo-mercado e indivduo
sociedade na considerao de seu poder de facilitar ou restringir o sucesso econmico e
social.
1.3 Sociedade e Ao Coletiva.
O reconhecimento, pelo indivduo, de sua condio frente ao Outro19
(o qual
pode ser representado pelo prprio mercado, pelas regras internas implicadas no
trabalho coletivo, ou outras situaes de interao social), assim como a percepo de
pertencimento deste mesmo indivduo a uma categoria, aquela composta pelos outros
iguais, so elementos motivadores para uma discusso terica importante acerca da
ao coletiva.
Ela permite realizar uma considerao acerca das regras estabelecidas
coletivamente e dos contratos sociais que se firmam com vistas aos resultados da
prpria ao coletiva. As associaes de trabalho cooperativado enfrentam o desafio
contnuo de coordenar o manejo dos bens comuns entre seus membros.
Tomarei aqui dois autores, em seu dilogo e oposio: Mancur Olson e Elinor
Olstrom.Esta reviso terica permitir introduzir o cruzamento necessrio entre a
psicanlise e as anlises das cincias sociais, no que diz respeito ao social e ao
coletiva quando se trata de considerar questes relativas mobilizao para ao
coletiva no contexto social do lumpesinato.
Em seu livro A lgica da ao coletiva, de 1965, Mancur Olson defende a
hiptese de que grupos maiores teriam menor tendncia a atingir seus objetivos do que
grupos menores.
Operando uma definio de bem comum definido como qualquer bem cujo
19
Em psicanlise, a operacionalizao do conceito de pequeno outro e grande Outro refere-se, em
grandes linhas, metfora da socializao proposta por Lacan (1956-57, 1995).
-
21
consumo ou utilizao por um indivduo no pode implicar a excluso de outros no
consumo ou utilizao deste mesmo bem por qualquer outro deste mesmo grupo20
,
Olson (1971) supe que o objetivo de um grupo reside em atingir os interesses de seus
membros. Deste modo, a disputa entre os interesses individuais e comuns em uma
organizao se assemelha existente no contexto do livre-mercado: as pessoas sempre
tenderiam a maximizar os seus interesses privados, um processo que se daria de uma
maneira racional.
Nesta linha de argumentao, Olson (1999) ope-se idia popular de que os
seres humanos teriam uma propenso abstrata e inata a se organizar. Para corroborar
esta idia, o autor se vale do apontamento de diversas diferenas qualitativas e
quantitativas fundamentais entre os grupos pequenos e grandes.
Em grupos grandes, cada pessoa receberia um benefcio proporcionalmente
menor de um bem comum. Uma vez este recebendo apenas uma diminuta frao dos
retornos propiciados por um bem comum, sua ao de contribuio ser menor, criando
uma situao onde esta pessoa raramente agir em prol do benefcio coletivo, a no ser
que o retorno individual seja suficiente para cobrir os custos individuais da ao.
Vale dizer que os estudos que deram origem a esta argumentao advm da
observao dos comportamentos de grupos diante de impostos e contribuies
correlatas para o Estado.
Em contrapartida, grupos menores se apresentam como mais viveis por seus
custos de organizao reduzidos, e, sobretudo, pelo fato de cada membro receber uma
poro mais substancial do bem coletivo. Contudo, mesmo nesta configurao, diversos
aspectos negativos so ressaltados, de modo que temos uma situao em que os grupos
em geral jamais poderiam funcionar perfeitamente: a distribuio dos encargos entre os
membros ser sempre desigual, fomentada pelo oportunismo21
de alguns membros
(Olson, 1999), os quais agiriam menos que outros para obteno do mesmo, assim como
nos grandes grupos.
O pessimismo de Olson, no que diz respeito aos empreendimentos coletivos, ou
mesmo convivncia harmnica, reside em sua percepo negativa da natureza das
trocas entre os seres humanos. H que se realizar uma considerao, contudo, sobre que
20
"A common, collective or public good is here defined as any good such that if person X . . in a group
consumes it, it cannot feasibly be withheld from others in that group." traduo do autor. 21
Paradoxo do carona (Olson:1999) : indivduos, agindo de forma oportunista, pegam carona no
esforo empreendido por outros.
-
22
tipo de indivduo est se falando, ou quais so os contextos em que este tipo de
racionalidade excessivamente oportunista se desenvolve.
Veremos, no prximo captulo, que os processos de constituio identitria
podem ser compreendidos, a partir de uma semiologia sobretudo didtica, como se
dando por estgios, e que, se verdade que os seres humanos no possuem uma
propenso natural22
a se organizar coletivamente, o oportunismo relatado por Olson
aparecer como resultante de uma falha na inscrio dos sujeitos em uma ordem
simblica coletiva completa. Em outras palavras, o sujeito abordado por Olson no se
insere completamente no seu contexto social, permanecendo em uma relao dbia com
o meio que o envolve. Pode se entender que a descrio comportamental de Olson
refere-se, em termos psicanalticos, a sujeitos que se valem do manejo das prprias
regras sociais para seu prprio gozo, indivduos com traos eminentemente perversos23
,
aprisionados em estruturas tipicamente narcisistas (Lacan, 1956-57, 1995)
Em uma linha irmanada, Granovetter (1985), em sua abordagem sobre o
surgimento do oportunismo, aponta uma sada que no passa pelo estabelecimento de
polticas repressivas, tal como se discute desde a proposio sobre o papel e lugar do
Estado, em Weber (1979). Aposta-se, para isso, no mercado concorrencial, tomado em
seu texto com uma forma de rede social, e nas relaes pessoais implicadas, diretas ou
indiretas, que assegurariam a confiana mtua. Esta posio, no entanto, reafirma a
noo liberal clssica de auto-regulao das atividades em uma sociedade capitalista,
apenas transferindo para as redes um papel que seria eminentemente reservado ao
capital.
Uma ressalva a esta posio deve, contudo, ser feita: retornando-se a Weber
(1994), temos considerao de que, no quadro da troca mercantil, os atores econmicos
no levam em conta somente seus interesses prprios, mas tambm o contexto
institucional, como j dito, em particular as regras jurdicas, morais e tradicionais. Deste
modo, afirmar que a confiana no espao do mercado decorre das relaes pessoais ,
em parte, diminuir o papel das normas jurdicas e morais, e esquecer que, se muitas
relaes econmicas passam por relaes pessoais, tambm muitas no passam por elas,
e que isso no implica obrigatoriamente mais oportunismo (Raud, 2003).
22
Esta terminolgia remete-nos ao debate antropolgico sobre vises de homem. 23
O termo Spaldung- ciso, foi utilizado por Freud (1927) para designar a separao que os indivduos
de constituio psquica perversa realizariam entre eles e as regras coletivas. Posteriormente o termo
Verneugnung passa a ser utilizado para se referir a no submisso dos mesmos aos interditos e normas
sociais. (Roudinesco, 1998)
-
23
Em meio a esta discusso, Elinor Ostrom, oferece-nos um contraponto
interessante sobre o que tal arcabouo afirma no que diz respeito s regulaes sociais
existentes nos processos de produo coletivos.
Ostrom (1990) realiza uma contestao bem fundamentada sob o ponto de vista
metodolgico da tragdia dos bens comuns, formulada por Garett Hardin, em 1968.
Os resultados das anlises engendradas por Hardin buscam demonstrar que, frente a
uma pastagem aberta a todos, cada pastor segue racionalmente a lgica do benefcio
individual, a qual consistiria em um movimento de externalizao dos custos e em um
outro de internalizao dos benefcios, de forma individualizada. Desta forma, a ao
dos pastores, agregados neste espao aberto a todos, conduziria inexoravelmente ao
esgotamento dos recursos locais.
Para se evitar a tragdia, ou seja, para gestar o recurso de forma sustentvel, as
solues possveis prospectadas por Hardin recaem em um dilema entre o socialismo,
o que supe uma interveno direta do Estado, ou a privatizao, mediante gesto
descentralizada pelo mercado. Ao fim de consideraes amplas sobre as duas
alternativas para civilizar o uso deste espao, Hardin adere soluo de mercado,
fundada na definio de direitos de propriedade privada, que segundo diversos modelos
de ento (e de agora, porque no?), apresentariam maior eficincia, tanto para a gesto
social, como para diminuio dos custos de transao.
Valendo-se das mesmas regras e tcnicas de observao, tratamento de dados e
anlise empregados para tais construes tericas, Ostrom consegue demonstrar a
fragilidade destas concluses, as quais, taxativamente, propugnam a ineficincia de
empreendimentos cooperativados e afirma que, na verdade, o modelo de Hardin no
trata de bens ou recursos comuns, mas sim de recursos de livre acesso, bens de
pessoa alguma. (Ostrom, 1990)
A partir desta percepo, Ostrom, reempregando o mesmo termo, bem
comum, consegue ir alm da dicotomia pblico-privado, Estado ou mercado, como
caminhos para o estabelecimento de regras sociais comuns e viabilidade econmica e
social. Uma terceira via nos indicada, a qual representada pela prpria acepo
renovada da propriedade comum, dos bens comuns.
Entra-se, assim, em uma discusso sobre a ao coletiva sob a perspectiva dos
limites que dela podem surgir por meio da agregao e interao de indivduos
existentes nos empreendimentos coletivos. Nestes, o pressuposto do agente
-
24
maximizador dos recursos no prevalece, pela razo simples de que se est trabalhando,
manejando, bens entendidos como pertencentes coletividade.
Introduz-se, neste ponto, a prpria metfora da constituio da frtria, que, como
veremos no prximo captulo, passa pelos processos de identificao verticais, vindo de
cima, do grande Outro, e horizontais, vindo do pequeno outro, existentes entre os entes
participantes de uma categoria, regio ou empreendimento. A constituio ou instituio
de regras compartilhadas propiciada pelos atos de associao e cooperao, pode ser
entendida com a prpria imagem do processo civilizatrio humano.
-
25
2- Nomeao e Autorizao
Cada indivduo uma parte componente de numerosos
grupos, acha-se ligado por vnculos de identificao em muitos
sentidos e construiu seu ideal do ego segundo os modelos mais variados.
Cada indivduo, portanto, partilha de numerosas mentes grupais - as da
sua raa, classe, credo, nacionalidade, etc. - podendo tambm elevar-se
sobre elas, na medida em que possui um fragmento de independncia e
originalidade (Freud,1976)
Uma vez anunciado o potencial, ou mesmo a necessidade de uma comunicao
interdisciplinar entre as anlises socioeconmicas e a psicanlise, com o objetivo de
melhor abarcar as caractersticas do fenmeno amplo presente na constituio da ao
coletiva engendrada pelos catadores, verifica-se que uma aproximao conceitual destes
dois domnios deve ser feita de forma cuidadosa.
A economia, a cincia poltica e a sociologia econmica compartilham
postulados e premissas acerca da racionalidade humana e, de forma metodologicamente
legtima, partem de um ser social para realizar suas anlises. A psicanlise, no que tange
sua teorizao sobre as pulses, que poderiam ser entendidas como as motivaes
do agir dos indivduos, prenuncia uma dinmica que se referencia na instncia do
inconsciente das pessoas. Tal configurao, contudo, no implica necessariamente um
embate entre vises de homem to explosivo como poderamos intuitivamente supor
ao considerarmos a utilizao dos termos inconsciente e racional.
Em uma leitura no to ousada, pode-se dizer que o homo oeconomicus no se
diferencia tanto do ser humano enfrentado pela psicanlise (Conway, 1983). Trata-se, na
verdade, de dois irmos, herdeiros de um vis determinista, ainda que diversas
evolues tericas nos dois campos tenham ocorrido.
O fato que o homem da psicanlise no se furta a realizar seus clculos de
custos e benefcios, seja na sua batalha para afastar a angstia instituda pela
introduo da Lei24
, no campo das neuroses25
, quanto na desconsiderao desta lei,
24
Significante do barramento do sujeito, metfora para a insero do indivduo no conjunto de regras
sociais, implicando em renncia ao prazer narcsico (Assoun, 2003)
-
26
sobrepujada pela busca de um mais gozar, em uma configurao perversa26
.
Nestes termos, pode-se entender que as diferenas epistemolgicas entre tais
famlias intelectuais no que diz respeito s motivaes do ser humano pertencem,
sobretudo, aos campos da etimologia e da semiologia ou seja, residiram bastante em
diferenas nas suas semiologias, que, no obstante, determinam e modificam seus
prprios enfoques dados ao fenmeno humano.
No contexto deste estudo, centrado em grupos tradicionalmente excludos, esta
complementaridade proporciona um aumento do poder explicativo das teorias
socioeconmicas adotadas, bem como da prpria abordagem em psicanlise, em dois
movimentos:
O primeiro, preenchendo uma falta existente nos modelos explicativos
considerados acerca da formao do prprio ser social quando se trata
do lumpesinato;
O segundo, introduzindo novas explicaes e perspectivas aos
entendimentos presentes nas teorizaes socioeconmicas sobre a ao
coletiva e ao econmico-social.
Participando deste primeiro movimento, tem-se os processos anunciados pelos
dispositivos aqui designados como nomeaoe autorizao, que so atos que designam
o ser humano enquanto pertencente uma coletividade, se instituindo como condio
para conformao do prprio ser social.
A partir das observaes empricas realizadas para este estudo, entende-se que
estamos abordando grupos que pertencem, ou, em um determinado momento de sua
trajetria, pertenceram a uma frao de classe que (...) no consegue construir desde
baixo as suas prprias formas de organizao (Singer, 2009).
Para se compreender tal cadeia explicativa, supe-se uma ateno especial a
algumas conceituaes concernentes aos processos de subjetivao e identificao,
fundamentais para falar do processo de inscrio do sujeito enquanto tal no conjunto das
regras compartilhadas pela sociedade ou, aproximando-se mais especificamente do caso
25
A maneira como a pulso vivida singularmente pelo sujeito aponta para as diferentes estruturas
clnicas: neurose, psicose, perverso.(Laplanche e Pontalis, 1992) 26
Na perverso o sujeito busca manejar, dominar o pulsional se colocando como objeto de gozo do
Outro. Em seu agir, o perverso comandado pelo imperativo categrico do gozo: vive para o gozo, na
tentativa de apoderar-se dele, organiz-lo, administr-lo e prorrog-lo (Andr, 2004)
-
27
em questo, no mercado em que atua.
2.1 Identidade e identificao:
Burity assinala que a percepo de que o ser dos indivduos e grupos sociais
no est simplesmente dado pela natureza dos processos de socializao tradicionais ou
por sua posio na estrutura de classes sociais tem contemporaneamente trazido tona
toda uma revalorizao do tema da identidade (1997, p. 4).
Em Psicanlise, o termo identificao tradicionalmente utilizado para
designar o processo central pelo qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando
ou se apropriando, em momentos chaves da sua evoluo, de aspectos, atributos ou
traos dos seres humanos que o cercam (Roudinesco e Plon 1998, p. 363). Trata-se,
pois, de descrever um processo psicolgico pelo qual um indivduo assimila uma
propriedade de um outro e se transforma (Laplanche e Pontalis, 1992).
Cabe neste momento designar o entendimento que se est adotando do termo
identificao. Neste texto, ele ser tomado de forma diferente da que se usa
correntemente para identificar algo em uma categoria. Est se falando aqui do ato de
algum passar a se identificar dentro de uma categoria, de uma pessoa se ver e ser vista
enquanto pertencente a esta categoria; um processo que envolve sistemas mais
complexos, sem excluir as dinmicas da diferenciao e da alteridade, e que podem
explicar a formao do ns.
Este ltimo ponto algo relacionvel prpria operao da categoria
catadores qual se passaria a pertencer, com suas caractersticas prprias, positivas e
negativas. Identificar implica "separar", "designar", mas tambm "tornar igual a" e
neste campo semntico que se insere o sentido propriamente psicolgico do termo, bem
como o prprio processo de nomeao destas pessoas, que ser abordado aqui.
Realizando uma pequena reviso de alguns conceitos desenvolvidos e
modificados ao longo da histria da teorizao psicanaltica, veremos que Freud, ao
propor o conceito de Ideal do Eu27
(1914, 1996a), desenvolvido posteriormente como
Supereu (1923, 1996b), situa tais termos como referentes a uma instncia da
personalidade cujo papel comparvel ao de um juiz ou ao de um censor (Freud, 1923,
1976). Em outras palavras, prope-se que teramos, por meio de uma mediao
27
Traduo mais moderna, utilizada em substituio aos termos superego, retomando o original
Uberich, eego, do alemo Ich, empregados por Freud. nota do autor.
-
28
realizada por uma conscincia moral, os elementos formadores de um ideal do Eu, que
se torna um modelo ao qual o individuo procura se conformar.
A partir destas concepes, Freud, ao abordar o processo de constituio do
grupo humano, toma o ideal coletivo como retirando sua eficcia da convergncia dos
ideais de ego individuais (Laplanche, 1975).
No contexto dos catadores de reciclveis, a introduo de uma diretriz legal, de
uma Lei que funda os indivduos, ao mesmo passo que fundada no encontro destes
mesmos indivduos (Kehl, 2000a), contribui para surgimento de uma identidade com
objetivos norteados de forma comum, ideal a toda uma coletividade. Esta Lei se
manifesta, entre outro espao, no conjunto de regras e procedimentos que surgem a
partir da ao coletiva implicada nas associaes para o trabalho com reciclveis
observadas. Neste ponto especfico, esboa-se a compreenso de um pacto civilizatrio.
As formulaes contemporneas nas cincias sociais, que, de forma ora mais
crtica, ora no, partem do pressuposto da existncia de um sujeito orientado por fins
teleolgicos, tendem a problematizar a dinmica de adequao deste ser aos contextos
sociais nos quais o mesmo participa. Desta forma, a dinmica do ajustamento dos
desejos ou dos impulsos do indivduo face ao Outro28 torna-se uma tnica prevalente
nas anlises sociais. Este vis faz com que o processo de constituio da identidade seja
entendido como, sobretudo, um desafio por se encontrar um meio-termo entre aquilo
que somos e aquilo que se espera de ns, tendo-se o Outro como o contraponto social
que permite ao indivduo se reconhecer e se julgar. Neste processo dialtico, os sujeitos
se construiriam, por semelhana e oposio (Machado, 2003).
No espectro destas mesmas concepes acerca do indivduo, temos Marx, em
seu Grundisse29 afirmando que este ser isolado, fruto da sociedade civil, que se
encontra em uma contnua busca por satisfao de fins privados, no surge fora do
contexto social.
Avanando-se a partir destas idias e conceitos sobre o sujeito social, surge a
prpria discusso enfatizada no presente estudo: a insero do sujeito no contexto
social, no algo dado priori. Localizar a pessoa em seu contexto cultural, territorial e
histrico no significa, sob a tica psquica, a incluso deste no contexto social
28
A ordem simblica, metfora da alteridade no contexto social; conceito amplamente operacionalizado
por Jacques Lacan (1953). 29
Grundrisse der Kritik der politischen konomie, manuscritos de Karl Marx, de 1856 que seriam o
esboo do que viria a ser o Capital.
-
29
(Assoun, 2003). A inscrio dos indivduos na sociedade um processo que passa pela
fundao da sociedade nos indivduos, e vice versa, de forma interdependente.
Trata-se aqui de enfocar a apreenso da estruturao do sujeito psquico. Esta
operao nos remete ao processo civilizatrio, descrito pela psicanlise, quando se fala
da interao indivduo-sociedade, o que se constitui com um passo que autoriza e valida
os atos dos sujeitos diante do Outro, da ordem simblica, do significante social.
2.2 O Outro e a nomeao autorizadora
Ao tratarmos a constituio da identidade dos catadores, assumindo tal processo
como fundador da prpria subjetividade cidad de grande parte dos componentes destes
grupos, a questo do olhar do Outro surge em um contexto de resignificao identitria,
de refundao do prprio indivduo.
Neste sentido, torna-se oportuno confirmar o entendimento de que a formao
do eu advm do olhar do Outro, conforme proposto por Lacan (1973). Este processo
descrito, em um contexto clnico, como introdutor de uma relao da criana com os
sistemas simblicos fora dela mesma, sendo assim o momento da sua entrada nos vrios
sistemas de representao.
O grande Outro (maisculo, autorizado e constitudo) define o pequeno outro
(minsculo, indiferenciado do espao que ocupa). Este processo ser sempre mediado
pela linguagem30
. Assim, temos o surgimento de uma dialtica de intersubjetividades,
por meio da qual o mundo social passa a ter peso de realidade para os sujeitos que dele
participam.
Assim, para a leitura freudiana realizada por Lacan, entende que se o sujeito
"determinado pela linguagem e pela fala, e isto quer dizer que o sujeito, in initio,
comea no lugar do Outro, no que l que surge o primeiro significante" (Seminrio 11,
apud Leite, 1994:38).
Segundo este raciocnio, ns nos constitumos na linguagem e pela linguagem e
a porta de entrada deste processo a fixao ao significante. Isto se d,
fundamentalmente, a partir de uma identificao com um trao nico do Outro, a ordem
simblica, a ordem da linguagem. Trata-se de tomar, para ns, a relao desta
possibilidade que se chama identificao, no sentido em que a surge o que s existe na
30
O inconsciente, para Lacan (1973) construdo a partir de uma operao lingstica que inscreve o
sujeito e no sujeito, os significantes sociais, representados pela Lei.
-
30
linguagem, e graas linguagem... (Lacan, 1995).
Dir-se-, contudo, que tais acepes so metforas correspondentes formao
do indivduo,. Estas mesmas, por serem provenientes de um contexto de escuta
privilegiada do setting analtico31
, seriam de operacionalizao problemtica no
contexto de uma observao ampliada, que contemple grupos.
Sobre isso, vale lembrar que Freud (1921, 1996), no captulo A identificao,
de Psicologia das Massas, bem como na sesso o Eu e o Isso da mesma obra, que
trata da relao entre o eu e o supereu/ideal de eu, j abordados aqui, extingue a
distino entre psicologia individual e social (Florence, apud Burity, 1994), apontando
que o que da ordem do indivduo j social e vice-versa.
No sentido inverso, partindo do macro para o micro, a prpria base das
teorizaes iniciais realizadas no campo da psicanlise parte da introduo, no sistema
familiar e individual, de metforas advindas de atuaes eminentemente coletivas,
sociais, como a prpria alegoria trgica edipiana e o mito da horda primitiva32
.
Nesta negociao, o desenho do processo de constituio da subjetividade
psicanaltica permite-se assim acontecer fora das fronteiras do setting teraputico, da
relao analista/analisando, para articular-se a uma interrogao poltica sobre a
heterogeneidade constitutiva dos atores coletivos (Burity, 1997).
Desta forma, teramos um aval histrico e metodolgico, situado no contexto das
formulaes e evolues tericas prprias da psicanlise, para as observaes deste
campo interpretativo nos contextos coletivos. Isto permite extrapolar os conceitos
rgidos das imensas muralhas tericas vigentes no prprio mbito da psicanlise.
Todavia, surgem algumas possveis dificuldades de compreenso, o que exige
esclarecimentos mais aprofundados:
1) Decorrente da nfase dada aos processos psicossexuais de desenvolvimento do
indivduo, promove-se uma viso de identidade petrificada a partir das experincias
infantis33
, o que botaria em cheque a presente abordagem, que descrever o
processo de mudanas identitrias profundas e importantes em adultos;
2) Outra confuso possvel adviria da constatao de que as categorias do sujeito e
31
Contexto teraputico da relao transferencial analista-analisando (Laplanche e Pontalis, 1992) 32
Totem e Tabu (Freud, 1924, 1996c) 33
Referencia-se primeira tpica freudiana (Roudinesco e Plon, 1998)
-
31
da sociedade no seriam separveis no prprio discurso freudiano, pois o indivduo
estaria imediatamente representado no campo da intersubjetividade, implicando
sempre outros sujeitos (Birman, 1994 p.128). Este aspecto tornaria difcil a
discusso sobre um no-sujeito, um (a)sujeito, como afirmado ao se considerar o
lumpen enquanto objeto de observao.
2.3 A identidade em movimento
No h consenso no campo de estudos psicanalticos quanto extenso possvel
das operaes de resignificao identitria engendrados por processos posteriores
estruturao primria dos indivduos. Tais processos, por sua vez, so tradicionalmente
abordados no mbito de um trabalho teraputico.
Para se realizar observaes mais amplas, de grupos, como se buscar fazer no
mbito deste estudo, h que se cuidar para que no se caia em possveis vcios prprios
da prtica clnica em psicanlise, especialmente os decorrentes do manejo da relao
existente entre o analista e o analisando, que, no raro, acabam por sinalizar uma
percepo essencialista da personalidade.
A valorizao, nos processos de anlise teraputica, do repetitivo e do
recorrente, referenciados na origem do indivduo, nas memrias e experincias
ancestrais constitutivas dos mesmos, resulta muitas vezes, ainda que acidentalmente, em
uma viso de personalidade que denota um carter de permanncia da mesma ao
longo do tempo. necessrio, para fins de compreenso, que se faa uma diferenciao
entre traos identificatrios primrios e secundrios e que se aborde o carter de
atemporalidade dado ao inconsciente pela psicanlise.
Os traos identificatrios primrios referem-se aos processos estruturantes da
personalidade, ocorridos na infncia e posteriormente revisitados na adolescncia (Kehl,
2000b), os quais so base para a constituio de uma estrutura psquica do sujeito. Esta
estrutura determina sentidos de ao e reao do sujeito ao longo da vida. Um
movimento que realizado pelo ser humano em sua existncia ser o de revistar estes
momentos iniciais, conforme proposto por Lacan em seu Seminrio IV, A Relao de
Objeto (2005), resignificando-os a partir de seus novos contextos e vivncias (Lacan,
2005). Por sua vez, um gradiente da personalidade dos indivduos, consideravelmente
mais moldvel, ainda que sempre refletido na estrutura do indivduo, ser referido como
-
32
trao identificatrio secundrio.
Somando-se a estes aspectos, que contribuem para se compreender melhor esta
relativa maleabilidade dos indivduos, temos ainda uma diferenciao feita por Freud
acerca das instncias consciente e inconsciente no que tange percepo da prpria
histria: uma reflexo acerca da temporalidade que ocorreria de maneira diferenciada
nas instncias psquicas.
Ao abordar o presente na transferncia34
, Freud discorre sobre a rememorao
do infantil, bem como sobre a expectativa de mudana. Se a estrutura neurtica
compreende um sujeito que enfilera passado, presente e o porvir, a experincia
analtica demonstra que o tempo no um dado imediato da subjetividade. Indo alm,
esta possvel temporalidade do relato da histria do indivduo no nvel consciente, uma
vez sendo resultado de uma psicognese, pode ser apenas esboada ou mesmo no
constituda.(Andr, 2008). Estes aspectos se relacionam com a prtica de anlise, onde o
sujeito pode circular, em determinados contextos, entre momentos regredidos, ou
infantilizados.
Estas caractersticas reforam a seguinte idia: se o sujeito no se fixa ou se filia
propriamente a uma linearidade histrica, ele pode se reinventar posteriormente. Neste
espectro amplo, temos a noo de identificao colando-se idia de um processo
contnuo de modificaes; um processo parcialmente inacabado e influencivel,
portanto, pelo Outro, como dito, entendido como o prprio contexto social e seu
conjunto de regras.
Neste vis, permitir-se afirmar que identidade no algo posto ou dado a priori,
nem tampouco completamente previsvel de acordo com a estrutura psquica dos
indivduos. algo algo que se pode imaginar a posteriori. Fala-se, sobretudo, de um
processo de fragmentao e recomposio; de um constante movimento de construo,
referenciado em nossa prpria biografia.
Nesta tnica, Castells anuncia que toda e qualquer identidade construda, e
recebe em seu percurso matria-prima fornecida pela histria, geografia, biologia,
instituies produtivas e reprodutivas, pela memria coletiva e por fantasias pessoais,
pelos aparatos de poder e revelaes de cunho religioso (1999, p. 23). Todos esses
materiais seriam processados pelos indivduos, grupos sociais e sociedades que
reorganizam seu significado em funo de tendncias sociais e projetos culturais
34
A dinmica da transferncia, Freud (1912. 1996)
-
33
enraizados em sua estrutura social, bem como em sua viso de tempo e espao.
Os processos de nomeao de indivduos/grupos so atos eminentemente
polticos (Ciampa, 1993), e supem esta referida maleabilidade do sujeito diante do
contexto, sem que todavia se perca de vista sua estrutura psquica interna. Isto retoma a
afirmao de Machado (2003) acerca da adequao, que situa a identidade no ponto de
cruzamento entre algo que vem de ns (o equipamento psquico com o qual nascemos) e
algo que nos vem de fora, isto , da realidade externa. Na realidade externa o que existe
a sociedade humana, com as suas instituies e as suas normas, como trazido por
Freud, em Totem e Tabu (1923, 1996).
Ao realizar uma leitura, consciente ou no, dos contextos no qual se insere, o
sujeito realiza uma projeo acerca de seu porvir balizada em suas informaes sociais e
psicolgicas sobre possveis modos de vida (Giddens, 2002). Neste sentido, as
perspectivas de um determinado indivduo se manifestaro dentro de um determinado
grupo ou contexto institucional, tanto no que diz respeito sua esperana ou no de
atingir um objetivo ou um estgio social; bem como de sofrer as conseqncias de seu
prprio contexto psquico e cultural. Esperamos, em outras palavras, sermos o que
somos, coerentemente nossa biografia: o ser humano conhece seu destino.
No universo de trabalho dos catadores, a mudana das trajetrias individuais
estar diretamente ligada aos significados dados ao trabalho realizado pelos grupos de
trabalhadores que se formam. Enriquez (1990, 2007) aponta uma importante articulao
entre o trabalho e identidade, ao descrever o processo de insero social que o mundo
do trabalho propicia. As experincias associativas de catadores que abordaremos
funcionaram, muitas vezes, como meio para o exerccio do direito existncia social
(Carvalho e Trajano, 2004). Falemos, pois, do sujeito que (ainda) no existe
socialmente.
2.4 O (a)sujeito35
ou o sujeito antes do nome..
A operacionalizao da hiptese anunciada anteriormente, e que ser chave para
a anlise aqui realizada, de uma existncia que, em determinados contextos, se cronifica
em um estgio de desenvolvimento anterior sua inscrio social. Discutir esta
inscrio em si passa necessariamente pelo aprofundamento de algumas questes
35
Designo como (a) sujeito este indivduo anterior entrada no contrato social coletivo, em aluso aos
teoremas analticos prprios da teorizao lacaniana.(Lacan, 1956-57, 1995)
-
34
especficas no tocante noo de sujeito.
Em um contexto histrico, tem-se Jacques Lacan formulando, a partir de uma
leitura do livro As estruturas elementares do parentesco, de Claude Lvi-Strauss, o
dipo36
freudiano como sendo a metfora da prpria passagem do estgio de natureza
para a cultura (Roudinesco, 1998).
Nestes termos, ressalta-se o papel simblico que Lacan atribui funo paterna:
trata-se de uma instncia que institui o sujeito ao dar-lhe seu nome, situando-o deste
modo em sua ascendncia, descendncia e no conjunto de regras decorrentes d esta
delimitao social. Por meio dessa funo, introduz-se a Lei37
. Coerentemente, se a
sociedade humana dominada pelo primado da linguagem38
, a funo paterna
confunde-se com o prprio exerccio de uma nomeao, a qual permite ao indivduo
adquirir sua identidade. Ressalte-se que, no mbito desta teorizao, est-se falando de
uma identificao que provm de uma relao hierarquizada, verticalizada.
Uma parte importante destes enunciados concerne ao nome e ao sobrenome que
ns temos, os quais fazem parte de nossa identidade, mas no foram escolhidos por ns.
Eles nos localizam dentro da sociedade como membros desta ou daquela famlia, e
assim designam para cada um de ns algum como sendo nossa me, algum como
sendo nosso pai, outros seres humanos como nossos irmos ou primos (Martins, 1991).
Isto serve tambm para definir aqueles ou aquelas com quem no se pode manter
relaes sexuais: enfim, o que se chama de lei da proibio do incesto, ponto fulcral
da alegoria edipiana acerca da lei social para a psicanlise (Roudinesco e Plon, 1998).
Durante seus estudos sobre parania e, conseqentemente, sobre as psicoses,
Lacan (1955-56, 1995b) denomina essa funo paterna como o nome-do-pai, conceito
que, nesse estudo, ser associado ao de foracluso39
. Tal termo serviu a Lacan para
esboar sua teoria das psicoses, por meio do que ele chamou de foracluso do nome-do-
pai, que mecanismo especfico das psicoses. Este consiste na rejeio de um
significante fundamental que expulso do universo simblico do sujeito, resultando
36
O complexo de dipo uma metfora Freudiana para o processo de socializao dos indivduos, que
passa pela percepo do outro pela entrada de interdies e regras sociais; uma imagem concernente
civilizao, o que supe uma regulao social dos desejos dos sujeitos (Laplanche e Pontalis, 1992). 37
Lacan pensa a lei a partir de Lvi-Strauss, ou seja, da interdio do incesto que possibilita a circulao do maior dos bens simblicos: as mulheres. um desenvolvimento do dipo freudiano, no que diz
respeito ao processo de civilizao. (Andr, 2004) 38
Metfora Lacaniana, introduzida em 1953, acerca do inconsciente em sua estruturao e insero no
contexto social.(Assoun, 2003) 39
Foraclusao: termo que designa uma falha, uma incluso incompleta do indivduo na linguagem, no
interdito edipiano fundante do pacto civilizatrio. (Roudinesco e Plon, 1998)
http://64.233.163.132/wiki/Interdi%C3%A7%C3%A3ohttp://64.233.163.132/wiki/Incesto -
35
assim em uma serie de sintomas psicticos (delrios, alucinaes...). No minha
inteno neste estudo ilustrar as psicoses, mas me valer destas definies para melhor
entender o que falta em um sujeito que no sujeito, um (a)sujeitado.
Em outra digresso terico-histrica, v-se que ser pelo entendimento do
fetichismo que Freud formular suas idias acerca das diferentes idades da humanidade.
Esta formulao aparece inicialmente em sua obra Totem e Tabu, de 1913.
Fetichismo um termo empregado por Freud para designar um mecanismo de
recusa angstia provocada pela entrada do indivduo no contexto da linguagem, que
o espao das regras, onde limitaes ao desejo so impostas ao sujeito. Este barramento
realizado por uma Lei simblica compartilhada inaugura o sujeito social.
Ser tambm por meio do estudo do fetichismo que se formularo conceitos que
daro forma quilo que os psicanalistas denominaram como perverso, ou o negativo da
castrao, que uma designao referente a um indivduo que leva sua existncia fora
do campo legal, ou seja, sem uma Lei significante que barre seu comportamento, este
sempre tendente ao fetiche. A partir deste raciocnio, fica delineada a necessidade de
uma Lei que insira o sujeito nas regras sociais do campo civilizatrio, libertando-o do
estado de obsesso pelo fetiche.
2.4.1- O catador nao-nomeado, o gozo e a paisagem do lixo
No trabalho de campo deste estudo, diferentes nveis e estgios de organizao
destes trabalhadores, tanto do ponto de vista individual quanto grupal, so percebidos.
No panorama levantado, so encontrados grupos bastante avanados no que diz respeito
maneira de trabalhar coletivamente, assim como outros tantos consideravelmente
desorganizados, com pouqussima estruturao de identidade quanto ao seu trabalho ou
categoria na qual se enquadrariam. Para se falar do catador que ainda no se constituiu
enquanto sujeito social pleno faz-se uma correlao entre estes diferentes estgios de
organizao individual e grupal e a teoria psicanaltica dos diferentes estgios de
organizao da identidade do sujeito.
Freud (1905, 1996) escalona estgios em sua teoria do desenvolvimento
psicosexual dos indivduos a partir de algumas categorias: as fases oral, anal, flica e
genital. Trata-se, certamente, de uma noo de estgio que comum biologia
evolucionista, psicologia e psicanlise; trs disciplinas que, em suas discusses
tericas fundamentais, tiveram o cuidado de diferenciar idades da vida, etapas ou
-
36
momentos de evoluo (Roudinesco e Plon, 1998).
Nesta correlao terica, so colocadas como mais "precrias" ou "arcaicas",
aquelas situaes de trabalho com o lixo nas quais no temos um trabalho coletivo
como atividade normal, e tampouco um desejo de uma melhor insero no mercado da
reciclagem narrado. Isto se manifesta tanto no que diz respeito ao manejo das regras
para formao de preo, quanto na ausncia de projetos que visem atingir outros
objetivos comuns.
A imagem do trabalho destes indivduos que no esto ligados a nenhuma
organizao associativa, cooperativa etc., e que atuam em meio abundncia de
materiais reciclveis existentes em um lixo, como o caso do Aterro Metropolitano de
de Jardim Gramacho40
, se cola quelas que a psicanlise faz de um indivduo em seus
primeiros estgios de vida.
Os psicanalistas tm apontado um estagio no qual o beb humano se encontra
indiferenciado do seu meio ambiente, em uma relao simbitica com a me e submerso
ao desejo do Outro; em uma relao de objeto caracterizada pela passividade (Bergeret,
1998). O catador desorganizado no apresenta um lugar no aterro sanitrio; ele faz parte
do aterro, e compe a prpria paisagem do lixo.
Nesse quadro primitivo, o catador espera pelos caminhes, passivamente, qual
um beb espera de ser saciado em seu desejo pelo seio materno. um ser que busca a
satisfao imediata e que no atua para construir um desejo autnomo, ficando
submetido aos ritmos dos caminhes, aos ditames dos atravessadores etc.
Muito ao contrrio. Uma espcie de alegria infantil destes catadores individuais
percebida pelos que observam os caminhes que transportam os catadores para dentro
e fora do Aterro de Gramacho. No so raros gritos de satisfao, berros de verdadeiro
gozo dos que ali entram para trabalhar e, dentro de algumas horas, sair com seus fardos
carregados de plstico, papel.41
Isto denota que o espao do lixo o da plenitude material segundo este catador
regredido neste estgio primitivo, o qual supera a insalubridade do trabalho, ou mesmo
no a sente. Deste gozo, derivam diversas dificuldades de organizao do grupo no
contexto do aterro, como veremos nos depoimentos sobre as cooperativas que atuam em
40
O maior aterro sanitrio da Amrica Latina, no qual trabalham cerca de 280 catadores organizados em
associaes, e outros 3000 catadores independentes (Pinheiro, 2007) 41
Constato obtido por meio de observao no local, feita a partir de indicao de Jorge Pinheiro,
pesquisador, conselheiro do Frum Estadual Lixo e Cidadania do Rio de Janeiro.
-
37
Gramacho.
2.4.2- O catador no-nomeado e a tragdia dos bens comuns.
A segunda funo do dilogo interdisciplinar proposto neste texto ser o de
adicionar novas imagens e metforas s explicaes prprias das cincias sociais. Mais
especificamente, dos autores com os quais se est trabalhando na abordagem da
dinmica da ao coletiva dos catadores. Sobre o (a)sujeito, temos uma analogia
possvel..
A tragdia dos bens comuns, proposta por Garret Hardin (1968), e contestada
por Elinor Ostrom (2000), pode ser tomada como referente a este sujeito que escapa
delimitao realizada pela funo paterna; um sujeito que recusa, ou deixa de lado, de
forma oportuna (perversa), uma regulao social, uma Lei.
Est-se referindo, em termos psicanalticos, a um ser que, na verdade, encontra-
se cronificado em uma espcie de estgio de natureza, o qual se revela certamente
predatrio no que diz respeito aos bens de acesso livre 42
.
Este quadro se torna possvel pela no confrontao, por parte destas pessoas,
com o que vem do outro, com o desejo do Outro. O indivduo de Hardin, e, como
veremos posteriormente, em certa medida, o sujeito de Mancur Olson (1965, 1971), no
est inserido em uma fraternidade, em uma ordem social capaz de por freios avidez
pelo gozo, j apontado como prprio da dinmica do fetiche, e a recusa de viver o fim
do mesmo.
Os balizamentos e as regras de convvio e compartilhamento dos bens comuns,
conforme proposto por Elinor Ostrom (1990, 2000), so advindos da percepo que o
indivduo passa a ter de sua insero em um contexto social, ou seja, de uma
internalizao destes mesmos limites, coerentemente percepo psicanaltica do
processo civilizatrio.
No caso dos catadores, esta discusso nos remete considerao sobre a
importncia das identificaes horizontais, que so aquelas que se do entre os
membros de um mesmo grupo. Esta considerao deve contemplar os desafios impostos
pela origem destes grupos, cujo trao originrio maior o da excluso e o da
42
Elinor Ostrom (1990) prope que aquilo que Hardin (1968) propunha como bens comuns eram, na
verdade, bens de livre acesso, ou seja, bens que no eram percebidos como pertencentes a ningum,
o que suporia pouca implicao quanto ao manejo incorreto deste mesmo bem.
-
38
invisibilidade.
Na circulao horizontal de informaes sobre os modos de agir prprios a um
determinado grupo, tambm se cria a possibilidade para os sujeitos de desenvolvimento
de traos identificatrios secundrios. Estes traos secundrios se tornam essenciais
para permitir a diversificao das escolhas de destino quando o trao estruturante,
advindo da funo paterna, insuficiente, como se observa nos grupos tradicionalmente
excludos (Kehl, 2000a, Singer 2009).
Esta abordagem sobre identificaes horizontais nos indica outra maneira de se
nomear e, por conseguinte, de se autorizar um grupo em um contexto social que os
valide enquanto sujeitos. Um grupo j autorizado e nomeado pode tambm exercer a
funo paterna, constituindo-se como um Outro, ainda que, para a estruturao psquica
de seus prprios membros enquanto tais, no se exclua a ocorrncia de um processo de
identificao fundadora, vertical, em relao ao Pai ou seu substituto como a Lei (Kehl,
2000a).
As mudanas nos significados do contexto em que o sujeito est inserido
modificam o prprio contexto do qual tais significados saem. Lima (2008), ao abordar
as representaes do trabalho realizado pelos catadores de materiais reciclveis, afirma
que a constituio de uma identidade dos mesmos enquanto atores sociais e econmicos
e a sua participao poltica no seio da sociedade brasileira engendra possibilidades de
uma subjetividade individual e coletiva que, alm de alterar o prprio espao pblico e
poltico, modificam o prprio territrio que ocupam.
Isto pode ser verificado com as experincias de Belo Horizonte, Londrina, Santo
Andr, entre outros, ou mesmo em municpios menores, como o de Mesquita (RJ), onde
a presena consolidada de iniciativas de catadores devidamente nomeados em seus
direitos os autoriza a influenciar a poltica de resduos locais, a dar um sentido renovado
para o que se considerava apenas como lixo nestas localidades.
Nesta tnica, h a proposio de Kehl (2000b), que indica que quando um grupo
que se autoriza a uma experincia marginal, fora o seu reconhecimento e sua inscrio
na cultura a que pertence, est contribuindo com sua parcela para a contnua re-escritura
do pacto civilizatrio. Este pacto s tem vigncia e legitimidade enquanto reconhecido
pela maioria, tornado-se a Lei, de fato.
Neste contexto, os novos nomes dados a estes sujeitos e a seus grupos se tornam
verdadeiros textos (Martins, 1991), os quais, operados por diversos atores e apropriados
pelos prprios catadores, diro o que esperado destes grupos: profecias que definem os
-
39
caminhos possveis de incluso e ao do homem que separa e cata, alm de papel,
latinhas etc., significados para seu agir e sua existncia43
.
2.5 - O sujeito autorizado e a autonomia.
a vida me fez um papelo, mas eu fiz do papelo a minha vida... 44
Para se delinear uma conceituao sobre o sujeito autorizado sob uma
perspectiva que aborde tambm questes de autonomia no contexto de sua ao
social45
, imagina-se, antes de mais nada, uma ateno para que no se entre em um
confronto paradoxal com a suposio freudiana do determinismo psquico46
no que diz
respeito ao agir humano.
No obstante, uma nfase necessita ser dada ao entendimento causalista que
Freud (1901, 1996) tem dos fenmenos psquicos. Segundo este entendimento, a mesma
lgica de causa e conseqncia existente nos fenmenos estudados pelas cincias
naturais se aplicaria aos fatos do inconsciente.
Em sua inquietao terica, Freud estava focado na necessidade de expor que os
chistes, os atos falhos e outros fenmenos inconscientes tinham uma origem e um
motivo. E, se em um determinado momento deste estudo nos referirmos ao sujeito da
linguagem, nomeado e escrito no simblico, faz-se necessrio lanar um olhar tambm
ao lado consciente do psiquismo humano (Laplanche e Pontalis, 1992).
O Simblico, como substantivo masculino, foi empregado por Lacan (1953,
1998) para formar sua tpica do Simblico, do Real e do Imaginrio. Esse termo
tambm extrado dos estudos antropolgicos de Lvi-Strauss. No caso, da discusso
feita por este do modelo da lingstica estrutural do ensino de Ferdinand de Saussure
(Assoun, 2003).
Em um texto introdutrio obra de Marcel Mauss, Claude Lvi-Strauss (1989)
43
Martins, a respeito da resignificao dos nomes, fala de um segundo parto: Ao contrrio do primeiro,
que coloca o sujeito no mundo por intermdio de uma operao de expulso, o nascimento do sujeito
para si, para os outros, e para a sociedade implica uma operao de introjeo do mundo (1991. p.22) 44
Texto de cartaz afixado durante o 6 Festival Lixo e Cidadania, realizado em Belo Horizonte em
setembro de 2007. 45
Ao que orientada pelas de aes de outros, como proposto por Weber. 46
Para Freud, todos os fenmenos psquicos e comportamentais, inclusive aqueles que so
aparentemente irracionais, fortuitos e sem importncia, so passveis de serem explicados dentro do
contexto de vida daquela pessoa.
-
40
coloca que toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas
simblicos, na primeira fila dos quais se situam a linguagem, as regras matrimoniais, as
relaes econmicas, a arte, a religio. Todos estes sistemas visam expressar certos
aspectos da realidade social e psquica, e, sobretudo, as relaes que os dois tipos de
realidade mantm entre eles, assim como designar quais os sistemas simblicos tais
aspectos mantm entre eles mesmos 47
. Lacan se vale dessas teorizaes para mostrar
como o indivduo humano se insere em uma ordem preestabelecida e de natureza
simblica. Designa assim, como Pai Simblico ou Nome-do-Pai, a Lei que fundamenta
essa ordem (Roudinesco e Plon, 1998).
Desta forma, introduz-se a noo de sujeito barrado ($), que o sujeito social, o
ator social. Enfim, o sujeito barrado no seu desejo, e, portanto, livre assim de sua busc