Uma morte suave

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UMA MORTE SUAVE

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Livro de Simone Beauvoir traduzido por Bénédicte Houart

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UMA MORTE SUAVE

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Título original: Une mort très douce

© Editions Gallimard, 1964© Edições Cotovia, Lda., Lisboa 2008

Todos os direitos reservados

ISBN 978-972-795-276-2

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Simone de Beauvoir

Uma morte suave

Tradução de

Bénédicte Houart

Cotovia

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A minha irmã

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Do not go gentle into that good night.Old age should rave and burn at close of day;

Rage, rage against the dying of the light….1

Dylan Thomas

1 Não entres docilmente nessa noite fria.A velhice deveria arder de raiva ao anoitecer;Revolta-te, revolta-te contra a escuridão.

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Na quinta-feira dia 24 de Outubro de 1963,às quatro da tarde, encontrava-me eu em Roma,no meu quarto do Hotel Minerva; devia regres-sar a casa de avião no dia seguinte, e estava aarrumar uns documentos quando o telefonetocou. Bost ligava de Paris: “A sua mãe teve umacidente”, disse-me ele. Pensei: foi atropeladapor um carro. Ela estava a içar-se penosamenteda calçada para o passeio, apoiando-se na suabengala, quando um carro a atropelou. “Caiu nacasa de banho; fracturou o colo do fémur”,acrescentou Bost. Ele morava no mesmo prédio.Na véspera, por volta das dez da noite, en-quanto subia a escada com Olga, tinham repa-rado em três pessoas que os precediam: umasenhora e dois agentes da polícia. “É nosegundo andar e meio”, dizia a senhora. Tinhaacontecido alguma coisa à Senhora de Beau-voir?. Sim, uma queda. Durante duas horas, elatinha rastejado no chão até alcançar o telefone;tinha pedido a uma amiga, a Senhora Tardieu,para arrombar a porta. Bost e Olga tinham

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acompanhado o grupo até ao apartamento.Tinham encontrado a Mamã deitada no chãocom o seu robe vermelho de veludo côtelé.A Doutora Lacroix, que mora no prédio, tinhadiagnosticado uma fractura do colo do fémur;após ter sido transportada para as urgências dohospital Boucicaut, a Mamã tinha passado anoite na enfermaria. “Mas vou levá-la para a clí-nica C.”, disse-me Bost. “Trabalha lá um dosmelhores cirurgiões ortopédicos, o Professor B.Ela protestou, tinha receio de que isso vosficasse muito caro. Mas consegui convencê-la”.

Pobre Mamã! Eu tinha almoçado com ela hácinco semanas, quando regressei de Moscovo;como de costume, ela estava com ar doente.Houve tempos, não tão distantes assim, em quese gabava de não aparentar a idade que tinha;agora, não podíamos enganar-nos: era umasenhora de setenta e sete anos, muito desgastadapelo tempo. A artrose nas ancas, que se tinhamanifestado depois da guerra, tinha piorado deano para ano, apesar dos tratamentos em Aix--les-Bains e das massagens: ela demorava umahora a dar a volta a um quarteirão. Tinha dores,dormia mal, apesar das seis aspirinas quetomava por dia. Há dois ou três anos para cá,sobretudo desde o último Inverno, exibia sem-pre aquelas olheiras arroxeadas, aquele narizcongestionado, aquelas faces cavadas. Nada depreocupante, afirmava o seu médico, o Doutor

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D.: problemas de fígado, preguiça intestinal; elereceitava algumas drogas, doce de tamarindocontra a obstipação. Naquele dia, não fiqueisurpreendida por ela se sentir “em baixo”; oque me causou tristeza foi ela ter passado umVerão desagradável. Poderia ter passado fériasnum hotel ou num convento que aceitava hós-pedes. Mas contava ser convidada pela suaprima Jeanne para ir a Meyrignac, e a Schar-rachbergen, onde a minha irmã morava, comotodos os anos. Ambas tinham tido impedimen-tos. Tinha ficado em Paris, deserta, e onde cho-via. “Pela primeira vez, senti pânico”, disse-meela então. Felizmente, pouco tempo depois deeu ter passado por sua casa, a minha irmã rece-beu-a na Alsácia durante duas semanas. Agora,os seus amigos já se encontravam em Paris, euprópria tinha regressado: se não fosse essa frac-tura, eu tê-la-ia certamente encontrado recupe-rada e de bom humor. O seu coração era exce-lente, tinha uma tensão de rapariga: eu nuncatinha temido que ela fosse vítima de um aci-dente brutal.

Liguei-lhe pelas seis horas, para a clínica.Informei-a do meu regresso, da minha visita.Respondeu-me numa voz hesitante. O ProfessorB. pegou no auscultador: ia operá-la no sábadode manhã.

“Deixaste-me dois meses sem notícias!”,disse-me ela quando me aproximei da sua cama.

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Protestei: tínhamo-nos encontrado, eu tinhaescrito de Roma. Ela ouviu-me com um ar incré-dulo. A sua fronte, as suas mãos ardiam; a suaboca algo retorcida articulava as palavras comesforço e havia uma espécie de neblina nos seuspensamentos. Seria o efeito da queda? Ou, pelocontrário, a sua queda fora provocada por umpequeno ataque cardíaco? Ela sempre tivera umtique (Não, sempre não, mas desde há muitotempo. Desde quando?). Os olhos piscavam, assobrancelhas arqueavam-se, a fronte ganhavapregas. Durante a minha visita, essa agitaçãonunca cessou. Quando as suas pálpebras lisas einchadas voltavam a cair, cobriam-lhe por in-teiro as pupilas. O Doutor J., um assistente, pas-sou por lá: a operação era inútil, o fémur nãoestava deslocado, com três meses de descansovoltaria a consolidar-se. A mamã pareceu ali-viada. Contou desordenadamente: o seu esforçopara alcançar o telefone, a sua angústia; a dispo-nibilidade de Bost e Olga. Tinham-na levadopara Boucicaut sem qualquer bagagem. No diaseguinte, Olga tinha-lhe trazido os artigos dehigiene, água-de-colónia, uma bonita liseuse demalha branca. Confundida com os seus agrade-cimentos, Olga tinha respondido: “Mas, minhasenhora, é por afeição”. A Mamã repetiu váriasvezes com um ar sonhador e compenetrado:“Ela disse-me: é por afeição”.

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“Ela parecia tão envergonhada por estar adar trabalho, tão profundamente agradecidapor aquilo que fazíamos por ela: era de partir ocoração”, disse-me Olga à noite. Falou-me comindignação do Doutor D. Melindrado por ter-mos primeiro recorrido à Doutora Lacroix,tinha recusado ir ver a Mamã a Boucicaut naquinta-feira. “Fiquei vinte minutos penduradaao telefone”, disse-me Olga. “Depois da queda,depois da noite no hospital, a sua Mãe teria pre-cisado de ser reconfortada pelo seu médicohabitual. Ele não me deu ouvidos”. Bost nãopensava que a Mamã tivesse tido um ataque car-díaco: quando ele a ajudou a levantar-se, elaestava um pouco confusa, mas lúcida. No en-tanto, duvidava de que ela recuperaria no prazode três meses: em si própria, uma ruptura docolo do fémur não é grave; mas uma imobili-zação prolongada provoca escaras que, nosvelhos, não cicatrizam. A posição deitada cansaos pulmões: o doente pode apanhar uma pneu-monia fatal. Não fiquei muito comovida. Apesarda sua enfermidade, a minha mãe tinha boasaúde. E, no fim de contas, estava em idade demorrer.

Bost tinha avisado a minha irmã, com quemtive uma prolongada conversa ao telefone: “Euestava mesmo à espera disso!”, disse-me ela. NaAlsácia, tinha achado a Mamã tão envelhecida,tão fraca, que tinha comentado com o Lionel:

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“Não passa do Inverno”. Uma noite, a Mamãtinha tido violentas dores abdominais: ela estevequase para pedir que a levassem ao hospital.Mas, de manhã, tinha recuperado. E quando aconduziram de volta a casa de carro, “encan-tada, deliciada” — como ela própria dizia —com a sua estada, ela tinha recuperado energia eestava rejuvenescida. No entanto, em meados deOutubro, cerca de dez dias antes do acidente,Francine Diato tinha ligado à minha irmã:“Acabo de almoçar em casa de sua Mãe. Pare-ceu-me tão mal que quis avisá-la já”. A minhairmã veio logo a Paris sob um falso pretexto eacompanhou a minha Mãe a um radiologista.Após examinar as radiografias, o seu médicotinha afirmado peremptoriamente: “Não hárazões de preocupação. Formou-se no intestinouma espécie de bolsa fecal, que dificulta a eva-cuação. Além disso, a sua Mãe come pouco, oque pode levar a carências alimentares: mas elanão se encontra em perigo de vida”. Tinha acon-selhado a Mamã a alimentar-se melhor e tinhareceitado novos medicamentos muito energéti-cos. “Mesmo assim, eu estava inquieta”, disse--me Poupette. “Supliquei à Mamã que contra-tasse uma enfermeira de noite. Ela nunca quis: aideia de uma desconhecida dormindo sob omesmo tecto era-lhe insuportável”. Poupette eeu combinámos que ela viria para Paris daí a

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duas semanas, quando eu contava viajar paraPraga.

No dia seguinte, a boca da Mamã aindaestava contorcida, a sua elocução difícil: as suasgrandes pálpebras turvavam-lhe a visão e assobrancelhas estremeciam. O braço direito, queela partira há vinte anos numa queda de bici-cleta, não tinha recuperado completamente; a queda mais recente tinha magoado o braçoesquerdo: ela mal conseguia mexê-los. Fe-lizmente, tratavam dela com todo o cuidado. O seu quarto dava para um jardim, longe dosruídos da rua. Tinham deslocado a cama,tinham-na colocado paralelamente à janela demodo a que a Mamã pudesse aceder ao telefoneque estava pregado à parede. Com o troncoencostado às almofadas, ela encontrava-se maissentada do que deitada: os pulmões não se can-sariam. O colchão pneumático, ligado a um apa-relho eléctrico, vibrava e massajava-a: tal impe-diria a formação de escaras. Todas as manhãs,uma fisioterapeuta fazia trabalhar as suas per-nas. Os riscos referidos por Bost pareciam afas-tados. Com a voz algo entaramelada, a Mamãdisse-me que uma empregada lhe cortava acarne, a ajudava a comer, e que as refeições eramexcelentes. Enquanto que em Boucicaut lhetinham servido morcela com maçã! “Morcela! Apessoas doentes!”. Falava com mais desenvol-tura do que na véspera. Repisava as duas horas

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de angústia em que rastejara pelo chão, interro-gando-se se conseguiria alcançar o fio do tele-fone e puxá-lo até si. “Um dia, disse à SenhoraMarchand, que também vive sozinha: Feliz-mente, temos o telefone! E ela retorquira: é pre-ciso ainda que possamos alcançá-lo”. De modosentencioso, repetiu várias vezes aquelas pala-vras; e acrescentou: “Se eu não tivesse conse-guido, estava em maus lençóis”.

Teria ela conseguido gritar suficientementealto para ser ouvida? É duvidoso. Eu podia cal-cular o seu desespero. Ela acreditava no Céu;mas, apesar da sua idade, das suas enfermida-des, dos seus problemas de saúde, estava teimo-samente agarrada à terra e tinha em relação àmorte um horror animal. Tinha contado àminha irmã um pesadelo recorrente: “Perse-guem-me, corro, corro, e bato num muro; pre-ciso de saltar esse muro, mas não sei o que seencontra do outro lado; sinto medo”. Tambémlhe tinha dito: “A morte em si própria não meassusta: tenho medo do salto”. Quando seencontrava a rastejar no chão, julgara que omomento do salto tinha chegado. Perguntei-lhe:“Deves ter-te magoado muito quando caíste? —Não. Não me recordo. Nem sequer tive dores”.Portanto, ela tinha desmaiado, pensei; acrescen-tou que, uns dias antes, após ter tomado um dosmedicamentos novos, tinha sentido as pernasfalharem: por um triz conseguira deitar-se no

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sofá. Olhei com desconfiança para os frascos de medicamentos que — com diversos outrosobjectos — lhe tinha trazido de casa a nossajovem prima Marthe Cordonnier. Ela queriacontinuar aquele tratamento: seria oportuno?

O Professor B. veio vê-la no fim do dia e eusegui-o até ao corredor: uma vez recuperada, aminha Mãe não andaria pior do que antes:“Poderá continuar a fazer a sua vidinha”. Nãopensava ele que ela tinha tido um enfarte? Não,de todo. Pareceu algo surpreendido quando oinformei de que ela sofria de perturbações intes-tinais. Boucicaut tinha diagnosticado uma frac-tura do colo do fémur, mais nada. Ele fá-la-iaexaminar por um clínico geral.

“Vais andar exactamente como antes, disseeu à Mamã. Vais poder retomar a tua vida quo-tidiana. — Ah! Nunca mais ponho os pés na-quele apartamento. Não quero voltar a vê-lo.Nunca. Por nada no mundo!”.

O apartamento: ela tivera tanto orgulhonele! Tinha tomado de ponta o da rua de Ren-nes, que o meu Pai, ao envelhecer, enchia comos seus acessos de mau humor. Após a mor-te dele — por pouco tempo seguida pela daAvó —, ela decidira romper com o passado.Alguns anos antes, uma amiga sua tinha mu-dado para um estúdio, e a Mamã tinha ficadofascinada por esse modernismo. Por razõesconhecidas, era fácil encontrar casa em 1942,

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e ela pôde assim realizar o seu sonho: alugou umestúdio com loggia na rua Blomet. Vendeu asecretária em pereira escurecida, a sala de jantarHenri II, a cama de casal, o piano de cauda;conservou os restantes móveis e um pedaço davelha alcatifa vermelha. Colocou nas paredesquadros da minha irmã. No seu quarto, instalouum sofá. Na época, ela subia e descia lestamenteas escadas interiores. Na verdade, eu não achavaaquela casa muito alegre: situada num segundoandar, tinha pouca luz, apesar das grandes jane-las. Nas divisões de cima — quarto de dormir,cozinha, casa de banho — estava sempre som-brio. Era aí que a Mamã habitava, desde quecada degrau da escada interior lhe arrancava umgemido de dor. Em vinte anos, as paredes, osmóveis, o tapete, tudo estava sujo e gasto.A Mamã tinha considerado a possibilidade de irmorar para uma casa de repouso quando, em1960, o prédio tinha mudado de proprietário eela se julgara ameaçada de despejo. No entanto,não encontrara nada que lhe conviesse e, deresto, estava habituada à sua casa. Tendo sabidoque não tinham o direito de a despejar, perma-necera na rua Blomet. Mas, agora, as suas ami-gas e eu própria iríamos procurar uma casa derepouso agradável onde ela poderia instalar-se,logo que se encontrasse restabelecida: “Não vaisvoltar para a rua Blomet, prometo-te”, disse--lhe eu.

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