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A TRAVESSIA ENTRE O INCONSCIENTE E A ESCRITA: uma análise psicanalítica das crônicas de Clarice Lispector PASTANA, Yara 1 PROENÇA, Octávio 2 VIDAL, Eduardo 3 RESUMO O presente minicurso tem por objetivo desvelar as mais diversas relações que entrelaçam Literatura e Psicanálise por meio de crônicas, gênero textual híbrido, que açambarca não apenas um conteúdo jornalístico, documental, mas também engloba as subjetividades de quem o escreve, como podemos constatar na escrita das crônicas de Clarice Lispector (1920- 1977) reunidas e publicadas nas obras: A descoberta do mundo (1984) e Para não esquecer (1978), a partir do conceito de inconsciente poético proposto Jacques Lacan (1901-1981), no qual a literatura, nada mais é que um contorno ao Vazio, nos protegendo do contato direto com a Coisa. Posteriormente as crônicas da criadora de Macabéia “Perdoando Deus” e “Mineirinho” serão lidas através de conceitos que estão presentes na obra de Sigmund Freud (1856-1939): o Amor, que se inicia a partir do complexo de Édipo, no qual ele é conceituado como narcisista, aporético e, por fim, egoísta; e a Cultura que segundo o psicanalista alemão, nasce da necessidade de proteção da natureza e de controle dos impulsos do ser humano, presentes em Psicologia das massas e análise do eu (2015 [1921]) e O Futuro de uma Ilusão (1927 [2011]), respectivamente. Dessa forma, visamos contribuir para mais uma leitura da obra clariceana possibilitando um diálogo entre estas duas áreas do conhecimento das ciências humanas já citadas que se complementam. Visamos também incentivar o estudo acadêmico de tais saberes como forma de contribuir para a Universidade como 1 Universidade do Estadual do Pará – UEPA. Graduando em Filosofia. E- mail: [email protected] 2 Universidade do Estadual do Pará – UEPA. Graduanda em Filosofia. E- mail: [email protected] 3 Universidade Federal do Pará – UFPA. Mestrando em Estudos Literários. E-mail: [email protected]

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A TRAVESSIA ENTRE O INCONSCIENTE E A ESCRITA: uma análise psicanalítica das crônicas de Clarice Lispector

PASTANA, Yara1

PROENÇA, Octávio2

VIDAL, Eduardo3

RESUMO

O presente minicurso tem por objetivo desvelar as mais diversas relações que entrelaçam Literatura e Psicanálise por meio de crônicas, gênero textual híbrido, que açambarca não apenas um conteúdo jornalístico, documental, mas também engloba as subjetividades de quem o escreve, como podemos constatar na escrita das crônicas de Clarice Lispector (1920-1977) reunidas e publicadas nas obras: A descoberta do mundo (1984) e Para não esquecer (1978), a partir do conceito de inconsciente poético proposto Jacques Lacan (1901-1981), no qual a literatura, nada mais é que um contorno ao Vazio, nos protegendo do contato direto com a Coisa. Posteriormente as crônicas da criadora de Macabéia “Perdoando Deus” e “Mineirinho” serão lidas através de conceitos que estão presentes na obra de Sigmund Freud (1856-1939): o Amor, que se inicia a partir do complexo de Édipo, no qual ele é conceituado como narcisista, aporético e, por fim, egoísta; e a Cultura que segundo o psicanalista alemão, nasce da necessidade de proteção da natureza e de controle dos impulsos do ser humano, presentes em Psicologia das massas e análise do eu (2015 [1921]) e O Futuro de uma Ilusão (1927 [2011]), respectivamente. Dessa forma, visamos contribuir para mais uma leitura da obra clariceana possibilitando um diálogo entre estas duas áreas do conhecimento das ciências humanas já citadas que se complementam. Visamos também incentivar o estudo acadêmico de tais saberes como forma de contribuir para a Universidade como pesquisadores que se importam com a interdisciplinaridade como forma de construir um conhecimento que possibilite um interesse por parte dos ouvintes.

Palavras-chave: Literatura; Psicanálise; Crônica.

INTRODUÇÃO

Com o advento dos Estudos Culturais, em meados dos anos 60, as barreias que

separavam as áreas do conhecimento foram aos poucos ruindo, apresentando um leque de

possibilidades hermenêuticas para um mesmo corpus de análise, afinal, uma das suas

principais contribuições para as ciências humanas foi à interdisciplinaridade.

1 Universidade do Estadual do Pará – UEPA. Graduando em Filosofia. E-mail: [email protected] Universidade do Estadual do Pará – UEPA. Graduanda em Filosofia. E-mail: [email protected] Universidade Federal do Pará – UFPA. Mestrando em Estudos Literários. E-mail: [email protected]

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É a partir desta abertura que nos propomos a desenvolver uma leitura analítica de

algumas crônicas de Clarice Lispector (1920-1977), publicadas originalmente no Jornal do

Brasil entre 1967 a 1974, reunidas em A descoberta do mundo, livro em 1984, sob a luz dos

estudos psicanalíticos. É importante ressaltar que, segundo Jacques Lacan (0000-0000), a

psicanálise se aproxima da literatura por se interessar naquilo “que está no cerne da

transmissão por via de um escrito, quando algo é transmitido a partir de uma experiência que

ocorre num além em relação ao significante, no ato que consagra a um só tempo, corpo

pulsional e escritura” (CARREIRA, 2014, p. 33).

Por meio desta colocação, nos propomos observar de que maneira as crônicas

clariceanas trazem em seu bojo a relação inconsciente poético propostas por Lacan, mas antes,

é necessário frisar que o gênero crônica apresenta a ambiguidade de ser, ao mesmo tempo, um

tipo de escrita ligada a um fato histórico e também uma espécie de laboratório da escrita, no

qual há a inserção do eu de quem a escreve. Para Gabriela Ramos

A crônica, gênero brasileiro eminentemente híbrido, tem estruturas narrativas que passeiam pelo jornalismo e pela literatura, cuja poeticidade ficcional das sensações e dos sentimentos universais é transmitida por meio de uma estrutura verossímil. Normalmente publicada em jornais e revistas, a crônica fica entre a morte simbólica do jornal do fim do dia, com as informações velhas, e a permanência como texto literário, proporcionada pela publicação em livro (RAMOS, 2012, p. 1)..

Para além do gênero crônica, o conjunto da obra de Clarice Lispector rompe, em

muitos aspectos, a velha concepção que separa a figura do autor de sua arte literária, mas é

nelas que a autora deixa melhor transparecer o fio ténue que conecta a mulher a escritora, lá

está presente as ruas por onde ela andava, as pessoas com as quais convivia, enfim, as

experiências do cotidiano da autora, transpostas para a palavra, para a letra, preenchendo um

espaço vazio: a página.

Desde a publicação de seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, de 1944, há

o estreitamento entre o real, factual e o imaginário, isto porque ela fez do campo da escrita um

lugar de fruição, como relatado em texto publicado em 22 de agosto de 1970, no já citado

J.B.:

O que me guia ao escrever [grifo nosso] é sempre um senso de pesquisa e de descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o mais possível se aproximando e me aproximando do que estou pensando na hora de escrever. Aliás, pensando melhor, nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo (LISPECTOR, 1999, p. 306).

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Álvaro Lins (1912-1970), sobre o já citado romance, pontua a inventividade de Clarice

Lispector ao introduzir na ficção brasileira, o chamado romance psicológico que tem como

principal característica o monólogo interior, ou seja, a representação do eu das personagens,

catalogado pelo crítico como um “moderno romance lírico”.

Lírico aqui é entendido como representação do eu poético profundo, que não se detém

as crônicas da criadora de Ângela Pralini, mas que abrange todo sua obra a partir de 1964, ano

de publicação de seu A paixão segundo G. H. Para Jacques Lacan, este tipo de criação é o

resultado da reprodução poética do inconsciente, que busca dar um contorno ao vazio, tendo a

obra de arte literário mediadora entre ele e a Coisa.

Também nos propomos ler algumas crônicas de Clarice Lispector como “Perdoando a

Deus” a partir do tema do amor presente em Psicologia das massas e análise do eu (1921), de

Sigmund Freud (1856-1939). O amor ao longo da história sempre foi compreendido de

diversas formas e em vários campos, dentro da filosofia, por exemplo, há o pensador Platão

(428/427–348/347 a. C.) que, em outras palavras, diz que amamos aquilo que desejamos, por

tanto, o desejo é uma inclinação daquilo que nos falta. Na tela O primeiro beijo (1890), de

William Adolphe Bouguereau (1825-1905) que expressa à superação de grandes obstáculos

por amor e até mesmo na ciência, e depende da área de conhecimento para que nos

apreendamos tal temática, no caso deste presente trabalha o amor será debatido em duas

perspectivas que é pela literatura com a autora brasileira Clarice Lispector e pelo pai da

psicanálise Sigmund Freud.

No conto “Perdoando Deus”, a personagem esta passeando por Copacabana, até que se

sente a mãe de Deus, por tanto, a mãe de todas as coisas, quando logo mais ela pisa em um

enorme rato morto, nesse momento ela se enche de nojo, repulsa, raiva, nesse momento ela

sente raiva de Deus. Com isso, a personagem acaba por adentrar em uma forte reflexão que

mais tarde será apresentada. Mas aqui emergem as seguintes perguntas, só amamos aquilo que

é belo? Amamos somente aquilo que desperta o nosso desejo? Ao longo deste trabalho

intenciono apresentar as respostadas para as respectivas perguntas.

Este trabalho não procura enquadrar o conto “Perdoando Deus”, de Clarice Lispector

às categorias filosóficas e tampouco psicanalíticas. Este trabalho procura colher pistas de

sentimentos humanos à luz de aspectos sociais e pessoais que entendem que a psicanálise

freudiana aborda, com o objetivo maior de compreender o ser humano diante do sentimento

entendido por vezes como mais perturbador dentre os homens que é o amor.

Abordaremos também a crônica intitulada ‘’Mineirinho’’, publicada no livro Para não

esquecer (1978) que revela o sentimento de Clarice Lispector perante a morte de um assassino

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que foi baleado com treze tiros pela polícia, isso gerou uma revolta na escritora e que na

crônica se revela como uma espécie de denúncia da hipocrisia humana e clama pela justiça.

Sigmund Freud em sua obra o Futuro de uma ilusão (1927) trata fundamentalmente do tema

da religião. A construção do tema trabalhado pelo Psicanalista surge do terreno de

crescimento da religião: a cultura. Este será o caminho tomado pelo trabalho: a construção da

cultura. A proposta desta apresentação será a de envolver aspectos da cultura para Freud com

a crônica da autora.

Dessa forma a psicanálise servirá de subsídio teórico para a leitura das crônicas de

Clarice Lispector, cujo enfoque se espraie na construção da linguagem poética para Lacan,

assim como os conceitos de Amor e Cultura para Freud.

REFERENCIAL TEÓRICO

A psicanálise nos Estudos Literários vê a obra de arte como expressão do inconsciente,

fruto da subjetividade, na qual põe o leitor em uma posição de analista do escritor, para

exemplificar, basta citar o famoso texto “Dostoiévski e o parricídio”, de Sigmund Freud, onde

o famoso psicanalista analisa por meio do romance O jogador, a personalidade do escritor

russo.

Se Freud estava mais interessado em mapear as causas das doenças mentais surgidas

devido as constantes repressões sexuais oriundas da sociedade, nomeadas de neuroses, seu

sucessor, Lacan, ao atualizar a teoria clínica do considerado pai da psicanálise, foca suas

pesquisas para o campo da linguagem, como afirma Terry Eagleton (1947-), no seu famoso

manual Teoria da Literatura: uma introdução (1983):

A obra de Lacan é uma tentativa, marcadamente original, de “reescrever” o freudianismo de modo relevante para todos os que se interessam pela questão do sujeito humano, seu lugar na sociedade e acima de tudo, sua relação com a linguagem. É essa última preocupação que torna a obra de Lacan também interessante para os teóricos da literatura (EAGLETON, 1983, p. 176).

É a partir das colocações sobre a linguagem que a teoria psicanalítica se torna

importante para o desenvolvimento do nosso minicurso neste momento.

Em crônica publicada em 9 de dezembro de 1967, cujo nome é “Uma coisa”, a

escritora, em um movimento paradoxal, revela, mas também esconde um momento de

percepção:

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Eu vi uma coisa. Coisa mesmo. Eram dez horas da noite na Praça Tiradentes e o táxi corria. Então eu vi uma rua que nunca mais vou esquecer. Não vou descrevê-la: ela é minha. Só posso dizer que estava vazia e eram dez horas da noite. Nada mais. Fui porém germinada. (LISPECTOR, 1999, p. 51).

A escrita, assim como a rua, é a representação do preenchimento do vazio, onde se

busca dar um contorno, de organizá-lo, com o intuito de traduzir a experiência que desemboca

no “gozo perdido de a Coisa, parcialmente recuperado nessa experiência que a obra de arte

proporciona, [...] ela [grifo nosso] se ela eleva à dignidade de Coisa” (CORREIA, 2014, p.

23).

A escrita percorre o vazio da página, atribuindo voz para o que antes era mudo, se

transformando, ganhando forma, mas que, não se fecha em um universo interpretativo,

justamente por ser o resultado de uma representação do inconsciente que, por sua vez,

segundo Lacan, “é estruturado como linguagem poética, razão pela qual ser acessível a

interpretação e a leitura” (CORREIA, 2014, p. 48), é a partir dessa assertiva que o teórico

francês chega a concepção que o discurso é proferido de um litoral simbólico, passível a

novos níveis interpretativos:

Desse litoral seria possível perceber os efeitos daquilo que não se escreve e que irremediavelmente escapa o sentido, ou seja, o real. Referindo-se a uma experiência que esbarra no campo dos afetos, a leitura desses textos repercute no corpo. Dessa forma, algumas escritas textuais surgiriam no limiar do discurso, no litoral do saber e da produção deste, desembocando no saber inconsciente (CARREIRA, 2014, p. 49).

Em outra crônica do mesmo ano de 1967, intitulada “Não sentir”, a autora expõe uma

possibilidade ligada à dicotomia vida e morte, desembocando mais uma vez no vazio:

O hábito tem-lhe amortecido as quedas. Mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem de dar como aviso e sintoma. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo, porém em grande perigo de vida: pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o benefício de seu próprio aviso prévio. (LISPECTOR, 1999, p. 32-33).

Dessa forma, a escrita de Clarice Lispector se tece por meio do fluxo descritivo de

uma lógica poética do inconsciente, buscando dar um contorno ao vazio, com o objetivo de

aproximação para a Coisa.

Ainda sob a luz dos estudos psicanalíticos, em Psicologia das massas e analise do eu,

Sigmund Freud busca investigar o que mantem uma massa conexa, no presente texto ele

utiliza conceitos como identificação, idealização, libido, regressão e recalque, o psicanalista

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explica o mecanismo dos grandes grupos e o inconsciente do povo que se submetem aos

lideres.

No capitulo VII, Freud trata da identificação, o autor começa a dar o enfoque no tema

em que ganhará destaque neste presente trabalho, que é acerca do amor. O autor afirma que a

identificação ‘’é conhecida pela psicanálise como a manifestação mais precoce de uma

ligação emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na pré-história do complexo

de Édipo’’ (FREUD, 2015, p. 98), quando uma criança do sexo masculino manifesta um

interesse particular pelo pai, interesse esse que para a psicanálise freudiana simboliza o

sentimento de se tornar o pai, pode-se dizer que neste momento ele toma o pai como um ideal,

e a mãe representa para o indivíduo um investimento objetal. Percebemos que Freud destaca

duas ligações psicologicamente diferentes ‘‘em relação à mãe, um claro investimento sexual

de objetos; em relação ao pai, uma identificação que o toma por modelo’’ (FREUD, 2015 , p.

99), Freud afirma que desde o inicio a identificação é ambígua, pois pode-se voltar tanto para

a expressão da ternura quanto para o desejo de eliminação o mesmo acontece com o sexo

feminino. Portanto, percebemos que a identificação aspira por dar ao eu uma forma

semelhante a do outro eu tomado como modelo.

Com relação ao amor, Freud cria um fundamento básico constituinte em que se da

todo o processo de desenvolvimento do sujeito e da civilização. O amor em Freud estaria para

registros da realidade. Para Freud, o paradigma amoroso inicia-se no complexo de Édipo, ou

seja, um amor de natureza sexual, com isso, para o psicanalista, o amor é instrumental,

narcísico, aporético por natureza, porém é o amor edipiano que se constituirá como

fundamento do homem individual (sujeito individual) e homem enquanto sua manifestação

coletiva (cultura, civilização).

Quando levamos tal teoria freudiana para obras artísticas podemos identificar diversas

dificuldades por serem de campos diferentes saber, portanto, são linguagens diferentes.

Percebemos também que a ciência vê o amor como uma areia movediça, enquanto que os

poetas, os artistas deleitam-se sobre tais sentimentos e os transformam em uma bela narrativa.

Na crônica Perdoando Deus, publicado no livro Felicidade Clandestina (1971),

Clarice Lispector fornece vida a uma personagem que em meio a um devaneio proporcionado

por um momento de nojo, raiva, traz à luz de forma secundária a relação do amor entre mãe e

filho transposto na personagem e em Deus e posteriormente proporcionando uma reflexão do

amor de modo geral.

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A Crônica é narrada pela própria personagem, personagem esta que encontra-se

andando pela Avenida Copacabana, distraída quando sente-se a mãe de Deus, portanto, a mãe

de todas as coisas.

O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre. (LISPECTOR, 1999, p. 311-312 )

E, em seguida, quase pisa em um enorme rato morto, nesse momento a personagem

enche-se de sentimentos como: terror, pânico. Depois que consegue voltar em si, é tomada

pela raiva, como poderia Deus fazer isso com ela? Se ela teria lhe destinado o sentimento

mais sublime, o amor de uma mãe.

O rato, deus, o espaço em que a crônica é apresentada ao leitor, nos propicia várias

reflexões sobre diversos temas, como religião, cultura, indivíduo, libido, amor, dentre outros.

A obra de Freud intitulada O Futuro de uma Ilusão trata, de forma predominante,

sobre os motivos pelos quais levaram o ser humano a ter uma necessidade de possuir uma

religião. O Psicanalista, no início desta obra, irá mostrar que para conhecer o futuro de uma

cultura é necessário conhecer seu passado, então o Freud busca percorrer o caminho contrário

ao futuro do terreno onde a religião se sustenta: a cultura. ‘’Como se sabe a cultura humana –

me refiro a tudo aquilo em que a vida Humana se elevou acima de suas condições animais e

se distingue da vida dos bichos’’(FREUD, 2011, p. 22).

Para o Psicanalista, somos dotados de uma energia vital chamada Impulso responsável

por nossos desejos mais instintivos, como fome, sede e instinto sexual que recebe o nome de

Libido. Sem algo para bloquear estes impulsos, o ser humano ao conviver com outro estaria

fadado a desconfiança, então a cultura foi necessária, mas para que ela permaneça em

funcionamento saudável foi necessário que meios fossem ‘’criados’’ para que os impulsos

fossem negados, e pelo sacrifício da negação, aqueles que o fizeram seriam recompensados, o

instrumento que teria a função de fornecer essa recompensa seria o que Freud chama de

Patrimônio Psíquico da Cultura. Que ao todo, Freud cita quatro: o Fortalecimento do Super

Eu, a arte, os ideais e o principal seria a religião.

A crônica de Clarice Lispector intitulada “Mineirinho’’ relata a reação de uma mulher

que acaba de receber a notícia de alguma fonte desconhecida de que um dos bandidos mais

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procurados de onde ela morava havia morrido pela polícia com trezes tiros, a mulher então se

revolta, pois, aqueles que deveriam defender a todos, acabam apenas vingando-se.

Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: 'O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no Céu. Respondi-lhe que mais do que muita gente que não matou (LISPECTOR, 1999, p. 19).

A crônica foca principalmente na questão da justiça, mas é possível encontrar diversas

facetas do ser humano que a própria cultura tenta esconder.

METODOLOGIA

O trabalho será realizado através da metodologia da pesquisa qualitativa que com sua

aplicação possibilita o captar de ideias, sentimentos, expectativas e aspirações do objeto

estudado. Será realizado por meio de apresentação de caráter expositivo do conteúdo

originado de pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico utilizando o recurso de datashow. No

caso desta pesquisa, serão utilizadas analises dos discursos dos autores trabalhados visando

possibilitar a compreensão interpretativa das ideias propostas. 

CONCLUSÃO

De acordo com o apresentado acerca das teorias psicanalíticas e as crônicas de Clarice

Lispector, percebemos a relação entre literatura e ciência proporcionando a análise subjetiva

do ''eu'' inerente ao ser humano, relação essa que percebemos na Contemporaneidade onde as

áreas de saber se relacionam predominantemente.

Contemporaneidade essa, em que o individuo encontra-se em uma crise de identidade

e a psicanálise por sua vez busca compreendê-lo dentro de sua falta de sentido. A literatura

revela e esconde o mesmo, por isso entende-se que ela muita das vezes não se esgota, pois o

escritor que está conectado com o seu tempo percebe a escuridão que existe nas luzes do

mesmo.

A escuridão que é vista como algo negativo, aqui, se apresenta não como uma

característica de inércia ou pacificidade, mas sim, revela uma abertura para possibilidade, para

criação, como acontece na literatura que propõe uma dialética entre autor e leitor onde este

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consegue significar a obra e abrir outras possibilidades para ela. A Literatura demonstra como

nenhuma área do saber é capaz de açambarcar todas as nuances sentimentais do individuo e

isso pode orientar uma melhor percepção psicanalítica do ser humano.

Em Psicologia das massas e análise do eu, enfatiza-se o aspecto de como as massas

conseguem se manter coesas, em dado momento quando o autor trata da identificação nota-se

a primeira característica do amor que está presente no Complexo de Édipo. Em O Futuro de

uma Ilusão, Freud trata das origens da necessidade do ser humano de possuir uma religião,

mas que tal obra se inicia com uma análise da cultura que perpassa pelos mais diversos pontos

até chegar finalmente à religião.

Portanto, a Psicanalise e a Literatura fornecem diversas formas de se compreender o

ser humano em seu mais profundo aspecto, demonstrando as facetas claras e ocultas da

humanidade, desveladas a partir da exposição do inconsciente poético como proposto por

Lacan.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARREIRA, Luciana Brandão. No litoral entre literatura e psicanálise. Rio de Janeiro: Cia. De Freud, 2014.EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983.FREUD, Sigmund. O Futuro de uma ilusão. Porto alegre: L&PM Pocket, 2011.FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Porto alegre: L&PM Pocket, 2015.LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.RAMOS, Gabriela. A crônica como intenção entre jornalismo e literatura. XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Ouro Preto – MG.